A VARIAÇÃO DIAFÁSICA NO PORTUGUÊS DO BRASIL 1 Jacyra Mota*

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Transcrição:

A VARIAÇÃO DIAFÁSICA NO PORTUGUÊS DO BRASIL 1 Jacyra Mota* Résumé Le travail ici présenté analyse la variation linguistique selon la dimension diaphasique (les styles réponses aux questions du questionnaire et conversation libre ). Les données en examen appartiennent à 12 interviewes accomplies, à titre expérimental, dans le cadre du Projet Atlas Lingüístico do Brasil. Palavras-chave: Variantes Fônicas, Variantes Diafásicas, Atlas Lingüístico do Brasil. INTRODUÇÃO Voltada inicialmente para a investigação da diversidade espacial, a geolingüística, sem deixar de lado o caráter prioritário da variação diatópica, que a distingue essencialmente dos estudos de natureza sociolingüística, preocupouse desde cedo com a inclusão de outros parâmetros, especialmente o diageracional e o diassexual, embora sem a sistematicidade que se requer atualmente. Se essa preocupação esteve, de certo modo, presente em trabalhos mais antigos, somente a partir da década de 80 encontram-se os primeiros atlas sistematicamente pluridimensionais, entre os quais se colocam dois atlas brasileiros, conforme observa Thun (2000, p. 374): Les premiers représentants d un atlas linguistique systématiquement pluridimensionnel sont l Atlas Lingüístico de Sergipe, Bahia, 1987, de Carlota da Silveira FERREIRA et alii, le microatlas aranéen contenu dans la monographie de Otto WINKELMANN (1989) 2 et l Atlas Lingüístico do Paraná (ALP), Curitiba 1994, de Vanderci de Andrade AGUILERA, ouvrages que ont le grand mérite d être déjà publiés. Ces trois atlas son bidimensionnels. Les deux atlas brésiliens ajoutent à la dimension diatopique la variable diasexuelle que s étend, en principe, à tous les point du réseau. Le petit atlas d O. Winkelmann est diatopique et diagénérationnel (39 localités, 3 groupes d âge). Le quatrième atlas roman pluridimensionnel est notre Atlas lingüístico Diatópico y Diastrático del Uruguai (ADDU) dont la cartographie se trouve dans une phase avancée (...) 3 Vale lembrar que a pluridimensionalidade do ADDU abarca oito dimensões, tendo em vista que se subdivide a dimensão diatópica em diatópico-topostática com informantes demograficamente estáveis e diatópico-cinética com informantes que emigraram das áreas onde nasceram e se consideram as dimensões diastrática, diageracional, diagenérica, diafásica, dialingüística levando em conta a coexistência do espanhol e do português no território uruguaio e diarreferencial. O desenvolvimento dos estudos geolingüísticos vem mostrando não só a importância da inclusão desses outros parâmetros, como também as inter-relações entre eles, de tal modo que, freqüentemente, uma variação diatópica ou diageracional é vista como diastrática pelos falantes de outras áreas ou de outro grupo sócio-etário e uma variação diastrática assume feição diafásica no registro coloquial de indivíduos de alto grau de escolaridade. Por outro lado, atualmente, a geolingüística substituiu a busca de dialetos arcaizantes, isolados, acantonados em localidades antigas e afastadas dos centros maiores, do- * Professora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia. 1 Esse texto foi apresentado, em versão oral, na mesa-redonda O Atlas Lingüístico do Brasil: um atlas pluridimensional?, no II Congresso Internacional da ABRALIN, que se realizou na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, março de 2001. 2 Cf. WINKELMANN, O. Untersuchungen zur Sprachvariation des Gaskognischen im Val d Aran (Zentralpyrenäen), Tubingen, 1989. Citado por THUN (2000). 3 Os dois primeiros fascículos do tomo I foram publicados em 2000. Cf. ELIZAICIN, A.; THUN, H. (2000). 70

cumentados a indivíduos analfabetos, em geral do sexo masculino, ligados ao meio rural e, tanto quanto possível, sem afastamentos da região em que nasceram, para procurar depreender e sistematizar a complexa rede de variantes que se encontra em todas as línguas. O PROJETO ATLAS LINGÜÍSTICO DO BRASIL (ALIB) Tendo-se iniciado em 1996, o Projeto ALiB procura utilizar os avanços metodológicos da geolingüística pluridimensional contemporânea, contemplando os parâmetros diagenérico, diageracional, diastrático, diafásico e diarreferencial. Inclui, por isso, informantes dos dois gêneros 550 homens e 550 mulheres, de duas faixas etárias a primeira de 18 a 30 anos e a segunda de 50 a 65 anos e, nas capitais de Estado, de dois graus de escolaridade informantes com, no máximo, os quatro primeiros anos do ensino fundamental e informantes com escolaridade universitária. Para a depreensão da variação diafásica prevê o registro não só das respostas a questões previamente elaboradas, nos questionários destinados à apuração das variantes fônicas questionário fonético-fonológico (QFF), semântico-lexicais questionário semântico-lexical (QSL) ou morfológicas questionário morfossintático (QMS), que se apresentam em um tipo de diálogo assimétrico e que ocupam a maior parte da interação informante/ documentador, mas também o de outros tipos de discurso. Esses outros tipos são: (a) o discurso livre do informante, em elocuções mais descontraídas e mais coloquiais, sobre um momento marcante de sua vida, a sua avaliação a respeito da atuação política de um governante, a descrição do seu próprio trabalho ou o relato de um fato de seu conhecimento, temas que lhes são sugeridos já ao final do inquérito, quando a tensão ou a desconfiança iniciais desapareceram e, em geral, estabeleceu-se uma interação mais próxima da situação normal de fala; (b) a descrição de gravuras que são apresentadas no questionário morfossintático para o registro de formas plurais que apresentem variações importantes; e c) a leitura de um texto, ao final do inquérito. Com o objetivo de estabelecer um confronto entre a fala do indivíduo ou da comunidade e a sua própria avaliação incluem-se seis questões de natureza metalingüística. Procura-se, assim, atender ao que se diz no texto em que se apresenta o Projeto ALiB 4. O que se espera dos atlas lingüísticos, hoje, é que possam dar a imagem real da pluralidade e das interrelações dos fenômenos da variação. (...). A nova configuração do mundo contemporâneo, a mobilidade social, a distribuição demográfica, entre outros, constituem-se em fatores que exigem um redirecionamento dos caminhos da metodologia dialetal, sem, contudo, quebrar-se a fidelidade ao princípio de que à Dialectologia cabe, prioritariamente, investigar a diversidade diatópica. A VARIAÇÃO DIAFÁSICA Analisam-se aqui alguns exemplos de variação diafásica, no nível fônico, documentada em inquéritos experimentais, que vêm sendo realizados por diversas equipes integrantes do Projeto ALiB, com o objetivo de formar inquiridores, testar a metodologia de recolha de dados e aperfeiçoar os questionários lingüísticos. Para a depreensão de variantes diafásicas, destacamse algumas questões do QFF e confrontam-se as respostas aí obtidas com ocorrências do mesmo vocábulo ou do mesmo fato fônico, registradas em elocução espontânea, no discurso livre, ou a propósito de outras questões do questionário, no decorrer do inquérito. Foram analisadas as questões do QFF que buscam apurar a variação entre: (a) realizações africadas palatais ([ts, dz]) e realizações oclusivas dento-alveolares ([t, d]), depois de semivogal palatal, nas formas: muito (perg. 77), prefeito (perg. 83), peito (perg.117), doido (perg. 138); (b) realizações alveolares ou palatais ([z, Z]) e realização laríngea ([ú]), em coda silábica, no vocábulo mesmo (perg. 156); (c) presença ou ausência da oclusiva dento-alveolar sonora / d /, em formas gerundivas como fervendo, remando, sorrindo 5 (pergs. 27, 52 e 148). CORPUS ANALISADO Selecionam-se doze inquéritos experimentais realizados na Bahia, em 1999 e em 2000: oito a informantes que cursaram até a 4 a. série do ensino fundamental quatro em Salvador e quatro em Santo Amaro e quatro a informantes soteropolitanos, de nível universitário. 6 Apesar de terem o mesmo grau de escolaridade formal, observa-se que informantes de cada um dos dois grupos considerados o de escolaridade 1 (até a 4 a. série do ensino fundamental) e o de escolaridade 3 (universitária) distinguem-se pelo desempenho lingüístico que apresentam, o que parece relacionar-se com o modo pelo qual se encontram inseridos no mercado ocupacional, conforme quadros a seguir (em que se identificam com H e M, os informantes masculinos e femininos, respectivamente, e com 1 e 2, as duas faixas etárias). 4 Cf. AGUILERA, Vanderci, ARAGÃO, Maria do Socorro, CARDOSO, Suzana, MOTA, Jacyra, KOCH, Walter, ZÁGARI, Mário Roberto (2002, p. 17). 5 Na última versão do QFF, o gerúndio sorrindo foi substituído por dormindo. 6 Os inquéritos foram realizados, sob minha orientação, pelas estudantes bolsistas de Iniciação Científica (CNPq-UFBA): Letícia Magalhães, Lair Farias de Aragão e Sira de Souza Borges. 71

Quadro 1 Informantes de escolaridade 1 (até a 4 a. série do ensino fundamental) Naturalidade Gênero /F. etária / No. inq. Salvador Santo Amaro H 1 (inq. 08) H 2 (inq. 07) H 2 (inq. 12) M 2 (inq. 11) H 1 (inq. 22) H 1 (inq. 24) H 2 (inq. 23) M 1 (inq.25) Destacam-se, no 1 º grupo, principalmente, os informantes 11 (que exerce, na UFBA, a função de cozinheira e professa a religião evangélica) e 12 (que, apesar de não haver concluído a 5 a. série do ensino fundamental, foi casado com uma pessoa de nível universitário, com quem trabalhou durante muito tempo). No grupo 2, as universitárias identificadas como informantes 13 (dentista) e 17 (doutoranda) distinguem-se das que se identificam como 09 (afastada do mercado ocupacional, por aposentadoria) e 10 (professora primária, que trabalha em colégios públicos). Na fala das duas informantes que exercem atividades profissionais que requerem a utilização de uma norma considerada padrão (13 e 17), não se encontram os casos de variação aqui analisados. AS VARIANTES AFRICADAS PALATAIS [ ts, dz ] As africadas palatais [ts, dz] que ocorrem em alternância com as oclusivas dento-alveolares [t, d], em formas como muito, prefeito, peito, doido são as chamadas africadas baianas, embora não se restrinjam a essa área e se estendam por todo o Nordeste. Além do caráter diatópico, essas variantes, podem ser vistas como características de estratos pouco escolarizados, sendo estigmatizadas pela norma considerada padrão, e, em Salvador, como diageracionais, mais freqüentes em falantes idosos. A consciência de alguns falantes quanto ao caráter estrático da variante africada e, conseqüentemente, a utilização de outra variante em situação de fala monitorada, pode ser flagrada nos inquéritos analisados, fato que leva a classificar tais variantes como diafásicas. Quando, por exemplo, diretamente perguntada pelo contrário de pouco (QFF, perg. 77), uma das informantes femininas de Salvador, de faixa etária 2 (60 anos), com escolaridade até a 3 a. série do ensino fundamental (informante 11), utiliza a variante [»mu)j)tu ], mas, no decorrer do inquérito, emite com freqüência a outra variante, como no trecho em que explica a diferença entre dois terrenos, a propósito da pergunta 22 do QMS, que visa a apurar a variação mais bom / melhor e mais ruim / pior. Profissão / Local de trabalho / Outros dados Servente na UFBA. Servente. Prestador de serviços. Trabalhava com a esposa (administradora de empresas) em uma corretora. Tem noções de Direito Imobiliário. Lê jornais, revistas. Cozinheira na UFBA. Evangélica. Lê revistas religiosas. Servente e ajudante de pedreiro. Quadro 2 Informantes de escolaridade 3 ( nível universitário) Naturalidade Salvador Gênero / F.etária No. inq. M 1 (inq. 10) M 1 (inq. 17) M 2 (inq. 09) M 2 (inq. 13) Servente. Segurança. Na época, desempregado. Balconista de farmácia. Prestador de serviços. Vendedora de acarajé. Empregada doméstica. Profissão / Local de trabalho / Outros dados Licenciada. Professora primária em colégios públicos Doutoranda na UFBA, área de Recursos Hídricos Profa. História, aposentada. Trabalhava em Camaçari, Bahia Dentista A diferença é que o de cá tem [»mu)tså] argila, [»mu)tså]... aí não há condições da... das fruta podê saí, que só... só é pedra, num... num é terreno assim... bem úmido, pras que as fruta venham... venham... Também a informante feminina de faixa etária 2, de escolaridade até a 2 a. série do ensino fundamental (inf. 25), natural de Santo Amaro, que, no QFF, emite [» mu)j)tu], tanto como resposta à questão 77 (muito) quanto à 79 (muito obrigada), utiliza com freqüência a variante africada palatal em [»mu)tsu,»mu)tså], a propósito de outras perguntas do QSL e do QMS, como, por exemplo, nos trechos: Gancho é um prendedor [»mu)tsu]... que pouco se usa (QSL, 192) Tem [»mu)tsu»zå)nus] (QMS, 40). Não. Algumas assim... [»mu)tsu] besta, assim (QMS, 25). 72

E, alternando as duas variantes na mesma frase, na descrição das festas que, antigamente, existiam na cidade (QMS 46): Que a praça ficava [»mu)j)tu], assim [»mu)tså] gente, [»mu)tsåstrå...åtrå»så)w)]... [»mu)tså] coisa, [»mu)j)tå,»mu)j)tå,»mu)j)tå] briga, [»mu)tså] violência. Chama a atenção a ocorrência da variante [»mu)j)tu], como resposta à questão do QFF, em Santo Amaro, pelo fato de a variante africada palatal ter sido a documentada com mais freqüência nessa localidade, em três dos quatro informantes ali registrados, encontrando-se, em um dos inquéritos (informante masculino de faixa etária 2) apenas essa variante nas respostas muito, prefeito, peito, direito e em outro (informante masculino de faixa etária 1) a única ocorrência, no grupo de inquéritos analisado, da sonora [dz], em [»dodzu], como resposta à pergunta 138 do QFF (doido). A africada palatal não se documenta nos quatro inquéritos de informantes de nível universitário, o que não nos autoriza a concluir pela ausência da variante na fala de informantes com esse grau de escolaridade, principalmente porque ela se encontra em alguns dos inquéritos do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta/Salvador (NURC/Salvador), como observado por Mota e Rollemberg (1997) e pode ser ouvida, ocasionalmente, em Salvador, na fala de informantes mais idosos. AS REALIZAÇÕES LARÍNGEAS [h, ] Confrontando as respostas monovocabulares às questões do QFF com ocorrências encontradas durante o diálogo entre informante e documentador em outros trechos do inquérito, observamos que, nos registros de dois informantes que cursaram até a 4 a. série do fundamental a informante feminina de Santo Amaro, já referida (inf. 25) e um informante masculino de faixa etária 2, de Salvador (inf. 07) e de duas informantes de nível universitário, uma de faixa etária 1 (inf.10) e outra de faixa 2 (inf.09), ocorre a realização [»mezmå] como resposta à questão 156 do QFF, registrando-se variantes com laríngea [ ] em outros trechos dos inquéritos, como nos exemplos: O terreno que é mais ruim é porque não dá [»me mu] (QMS, 22, inf. 07) Ficamos em casa [»me mu] (QMS, 34); Eu [»me mu] fui atropelada na porta (QMS, 39, inf. 25)... até o horário [»me mu] (QMS, 41, inf. 09) Era uma amizade bem social [»me mu] (Discurso semidirigido, inf. 10). A realização laríngea das fricativas não labiais, em coda silábica, freqüente no vocábulo mesmo, pode ser também documentada em outros vocábulos como desvio (QFF, perg. 15), desmaio (QFF, perg. 53), pescoço (QFF, perg. 37), fósforo (QFF, perg.93). Encontra-se, ainda, em distribuição intervocálica, podendo alternar com as fricativas sonoras alveolar ([ z ]), em formas como casa, fazenda, palatal ([ Z ]) em gente, e labial ([v]), em cavalo. Nas perguntas do QFF, especificamente dirigidas à apuração dessa variante (casa, fazenda, cavalo), isso não se verifica, registrando-se ca[z]a, fa[z]enda, ca[v]alo, em resposta às questões 01, 42 e 53, respectivamente. No entanto, no decorrer dos inquéritos aos informantes masculinos, de escolaridade 1, de faixa 1, de Santo Amaro (inf. 22) e de faixa 2, de Salvador (inf. 12), assim como a uma informante de Salvador, de faixa 2, de escolaridade universitária (inf. 09), registra-se a variante, em exemplos do tipo: Muita [»he)tsi] também fala: temporal retado que [»he)j) ] ali (QSL, 11, inf.22) [a»he)tsi»ta å] tudo conversando... (QMS, 39, inf. 22) [lehå)tu] cinco horas da manhã (QMS, 32, inf. 22) Antigamente, carnaval [a»he)tsi] (...) [a»ze)tsi] vinha andando... (QMS, 41, inf. 09) O brega ele num [»ta å så»be)nu] (Discurso semidirigido, inf. 12). FORMAS DE GERÚNDIO: ALTERNÂNCIA -ndo ~ -no A simplificação, por assimilação, do morfema identificador do gerúndio é também geral no português coloquial, documentando-se com freqüência, mesmo em falantes de escolaridade alta, como variação diafásica, em elocuções espontâneas, emitidas com maior velocidade. Nos inquéritos experimentais analisados, é interessante observar que, nas perguntas especificamente dirigidas à obtenção do fato, os informantes utilizam a variante com / d / (remando, fervendo, sorrindo), enquanto as variantes simplificadas ocorrem com muita freqüência a respeito de outras perguntas e, principalmente, nos discursos semidirigidos, excetuando-se apenas dois dos inquéritos com informante de nível universitário, onde não se documenta essa variação (a informante feminina de faixa etária 1, doutoranda, e a de faixa 2, dentista). Exemplificam o fato, entre outras, as ocorrências de cresceno, ganhano, andano, ouvidas ao informante 09, e desceno, esperano, apanhano, sabeno, correno, ao informante 12, nos trechos: Então aí o comércio vai [kre»se)nu], o povo vai [gå)j)»å)nu] mais dinheiro, tudo isso... (... ). Nessa época eu morava no Barbalho, ia... can... só ia [å»)då)nu] e voltava [å»)då)nu] pra escola, de noite, numa boa, né? (Discurso semidirigido, inf. 09). 73

Aí, eu vinha [de»se)nu] com o cigarro (...), maior farra! Aí, quando eu chego na esquina, tá meu pai, assim, [ISpER»å)nU], né? Aí, a primeira coisa que ele fez foi me dar uma tapa na cara pra eu engoli cigarro e tudo.(...). Na frente de todo mundo e vim [åpå)j»)å)nu] lá de cima até em casa. (Discurso semidirigido, inf. 12). Além dos fatos analisados, outros podem ser vistos como exemplos de variação diafásica, tanto no nível fônico quanto no morfossintático. Entre esses últimos, podemos citar: (a) a ausência do morfema de plural em alguns dos constituintes do sintagma nominal, como em caíam assim com as perna aberta, voando, pareciam uns bonequinho (...) minhas perna não respondiam mais... os carro, ouvidos à informante de nível universitário de faixa 2 (inf. 09), no relato de um desastre que ela havia presenciado; (b) a ocorrência flexionada do determinante menos, documentada à informante de nível universitário de faixa etária 1 (inf.10), ao descrever as festas de antigamente (QMS, 46): uma coisa com menas vontade de vender a imagem, embora, essa mesma informante, tenha emitido a forma sem flexão, quando solicitada a comparar a força de dois indivíduos na questão 32 do QMS ( Luís tem menos força do que Paulo ). CONSIDERAÇÕES FINAIS A ocorrência de variantes diafásicas, documentadas em diferentes tipos de discurso mostra-nos a consciência do falante, que adapta o desempenho à situação imediata do ato de fala, mostrando a sua multidialetalidade, independentemente de seu grau de escolarização. Um outro ponto a ser considerado, na metodologia de trabalhos que requerem o levantamento de dados empíricos, é o controle rigoroso, em fichas específicas, dos dados dos indivíduos que fornecem as amostras de fala naturalidade, profissão, ocupação, atividades religiosas, contato com os meios de comunicação, rede de contatos sociais, etc. de modo a que se possa analisar, do ponto de vista sociolingüístico, a variação encontrada. Pode-se ainda discutir a classificação de certas variantes como estráticas e, conseqüentemente, os limites entre o diastrático e o diafásico. Variantes como me[ ú ]mo, fazeno, etc. podem caracterizar, pela freqüência com que ocorrem, um determinado estrato, mas se distribuem por todos os estratos sócio-culturais, em situações de fala descontraída. Ressalta-se ainda a importância de utilização de tipos diversos de questionário em pesquisas geolingüísticas, uma vez que a interrogação especificamente dirigida para a obtenção de determinado fenômeno lingüístico faz aflorar, às vezes, variantes não utilizadas no cotidiano ou utilizadas com menor freqüência em elocuções informais, espontâneas. Vale também ressaltar o fator velocidade de fala, ainda pouco estudado, embora de grande importância para a realização de algumas variantes. E, por fim, observamos, mais uma vez, que os inquéritos experimentais, além de representarem um procedimento importante na metodologia do Projeto ALiB, tem fornecido elementos para uma análise preliminar de variantes lingüísticas do português do Brasil, contribuindo para um maior conhecimento da realidade lingüística brasileira REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUILERA, Vanderci. Atlas Lingüístico do Paraná. Curitiba, 1996. AGUILERA, Vanderci; ARAGÃO, Maria do Socorro; CAR- DOSO, Suzana; MOTA, Jacyra; KOCH, Walter; ZÁGARI, Mário Roberto. Atlas Lingüístico do Brasil Questionários 2001. Londrina: Editora UEL, 2001. AGUILERA, Vanderci; ARAGÃO, Maria do Socorro; CAR- DOSO, Suzana; MOTA, Jacyra; KOCH, Walter; ZÁGARI, Mário Roberto. Projeto Atlas Lingüístico do Brasil. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2002. Digitado. ELIZAINCÍN, Adolfo; THUN, Harald. Atlas Lingüístico Diatópico y Diastrático del Uuruguay (ADDU). T. I: Consonantismo y vocalismo del español. Fasc. A.1. Lateral palatal y fricativa mediopalatal. Lleísmo, yeísmo Seísmo y Zeísmo en el español uruguayo. T. I: Consonantismo y vocalismo del portugués. Fasc. A.1. Lateral palatal y fricativa mediopalatal. Laterales y palatales. Kiel: Westensee Verl., 2000. FERREIRA, Carlota; FREITAS, Judith; MOTA, Jacyra; ANDRADE, Nadja; CARDOSO, Suzana; ROLLEMBERG, Vera; ROSSI, Nelson. Atlas Lingüístico de Sergipe. Salvador: Universidade Federal da Bahia; Fundação Estadual de Cultura de Sergipe, 1987. MOTA, Jacyra; ROLLEMBERG, Vera. Variantes africadas palatais em Salvador. In: HORA Dermeval da (Org.). Diversidade lingüística no Brasil. João Pessoa: Idéia, 1997. p. 131-140. THUN, Harald. La géographie linguistique romane à la fin du XXe. siècle. In: CONGRÈS INTERNATIONAL DE LINGUISTIQUE ET DE PHILOLOGIE ROMANES, 22., 1998, Bruxelles. Actes... Tübingen: Max Niemeyer, 2000. v. 3. p. 367-388. 74