O (DES)USO DO VERBO HAVER EXISTENCIAL

Documentos relacionados
A Competição Ter, Haver e Existir na Escrita Escolar

Realizações do sujeito expletivo em construções com o verbo ter existencial na fala alagoana

Elyne Giselle de Santana Lima Aguiar Vitório. 1. Introdução

Variação linguística e ensino de Língua Portuguesa: aspectos inovadores na escrita escolar

VARIAÇÃO NÓS E A GENTE NA FALA CULTA DA CIDADE DE MACEIÓ/AL

UM ESTUDO SOBRE A VARIAÇÃO TER E HAVER EXISTENCIAIS NA

A CONCORDÂNCIA VERBAL DE TERCEIRA PESSOA DO PLURAL NO PORTUGUÊS POPULAR DA COMUNIDADE RURAL DE RIO DAS RÃS - BA

AS CONSTRUÇÕES EXISTENCIAIS NA FALA E NA ESCRITA

A REALIZAÇÃO DO SUJEITO PRONOMINAL DE REFERÊNCIA ARBITRÁRIA NA COMUNIDADE LINGUÍSTICA DE VITÓRIA DA CONQUISTA *

LHEÍSMO NO PORTUGÛES BRASILEIRO: EXAMINANDO O PORTUGÛES FALADO EM FEIRA DE SANTANA Deyse Edberg 1 ; Norma Lucia Almeida 2

Variação nós e a gente na posição de sujeito na escrita escolar Variation nós and a gente at subject position in the scholar written

as construções existenciais e a representação do sujeito pronominal

A VARIAÇÃO NÓS E A GENTE NA POSIÇÃO DE SUJEITO NA FALA DE CRIANÇAS DA CIDADE DE MACEIÓ/AL

VARIAÇÃO PRONOMINAL EM CONCÓRDIA SC. Lucelene T. FRANCESCHINI Universidade Federal do Paraná

VARIAÇÃO NO USO DAS PREPOSIÇÕES EM E PARA/A COM VERBOS DE MOVIMENTO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

ESTRUTURAS COM TER E HAVER EM TEXTOS JORNALÍSTICOS: DO SÉCULO XIX AO XX.

GRAMATICALIZAÇÃO DO PRONOME PESSOAL DE TERCEIRA PESSOA NA FUNÇÃO ACUSATIVA

UMA ANÁLISE SOCIOFUNCIONALISTA DA DUPLA NEGAÇÃO NO SERTÃO DA RESSACA

ANÁLISE DA OCORRÊNCIA DE ARTIGOS DEFINIDOS DIANTE DE POSSESSIVOS PRÉ-NOMINAIS E ANTROPÔNIMOS EM DADOS DE FALA* 1

ANÁLISE DA ELEVAÇÃO DAS VOGAIS MÉDIAS PRETÔNICAS SEM MOTIVAÇÃO APARENTE 1. INTRODUÇÃO

A VARIAÇÃO DO MODO SUBJUNTIVO: UMA RELAÇÃO COM O PROCESSO DE EXPRESSÃO DE MODALIDADES

Ter e haver existenciais: gramática versus uso

As construções existenciais e o problema da avaliação linguística

A ELISÃO DA VOGAL /o/ EM FLORIANÓPOLIS-SC RESULTADOS PRELIMINARES

ELEMENTOS ANAFÓRICOS NA COORDENAÇÃO 1

CRIAÇÃO LEXICAL: O USO DE NEOLOGISMOS NO PORTUGUÊS FALADO EM DOURADOS

O OBJETO DIRETO ANAFÓRICO E SUAS MÚLTIPLAS REALIZAÇÕES NO PORTUGUÊS BRASILEIRO

O PRONOME A GENTE NA FALA MACEIOENSE: UM ESTUDO SOCIOLINGUÍSTICO

A FLEXÃO PORTUGUESA: ELEMENTOS QUE DESMISTIFICAM O CONCEITO DE QUE FLEXÃO E CONCORDÂNCIA SÃO CATEGORIAS SINTÁTICAS DEPENDENTES 27

Adriana Gibbon (Universidade Federal de Santa Catarina)

A CONCORDÂNCIA VERBAL: A RELEVÂNCIA DAS VARIÁVEIS LINGÜÍSTICAS E NÃO LINGÜÍSTICAS

A realização dos pronomes nós e a gente na função de sujeito e nas funções de complemento e adjunto na cidade de Maceió/AL

A VARIAÇÃO/ESTRATIFICAÇÃO DO SUBJUNTIVO EM ORAÇÕES PARENTÉTICAS

AQUISIÇÃO DE CLÍTICOS E ESCOLARIZAÇÃO

DOMÍNIOS DE Revista Eletrônica de Lingüística Ano 1, nº1 1º Semestre de 2007 ISSN

Nonada: Letras em Revista E-ISSN: Laureate International Universities Brasil

REFLEXÕES SOBRE O APAGAMENTO DO RÓTICO EM CODA SILÁBICA NA ESCRITA

ANÁLISE VARIACIONISTA DO PROCESSO DE MONOTONGAÇÃO NO BREJO DA PARAÍBA

TÍTULO DA PESQUISA: O ir e vir das preposições - um estudo diacrônico dos complementos dos verbos ir e vir no português mineiro de Uberaba.

A SUBSTITUIÇÃO DE HAVER POR TER EM CONTEXTOS EXISTENCIAIS: ECOS DA MUDANÇA NA REMARCAÇÃO DO PARÂMETRO DO SUJEITO NULO

CRENÇAS E ATITUDES LINGUÍSTICAS QUANTO AO USO DOS PRONOMES NÓS E A GENTE NA CIDADE DE MACEIÓ/AL

Avaliar o comportamento das crianças DEL no que concerne ao valor dado à informação de pessoa em Dmax e no afixo verbal;

Variação pronominal e escolaridade

V SEMINÁRIO DE PESQUISA E ESTUDOS LINGUÍSTICOS

QD IDOD H QD HVFULWD GD YDULHGDGH ULRSUHWHQVH

A VARIAÇÃO NÓS/ A GENTE NO PORTUGUÊS FALADO DE FEIRA DE SANTANA: COMPARAÇÃO ENTRE FALARES DO PB

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

Mayara Nicolau de Paula 1 Elyne Giselle de Santana Lima Aguiar Vitório 2

Comentários a respeito do artigo: Gramática, competição e padrões de variação: casos com ter/haver e de/em no português brasileiro, de Juanito Avelar

ESTARÁ O PORTUGUÊS BRASILEIRO DEIXANDO DE SER LÍNGUA DE SUJEITO-PREDICADO? *

UM ESTUDO VARIACIONISTA SOBRE O PREENCHIMENTO DA POSIÇÃO DO SUJEITO EM DADOS DE FALA

A SELEÇÃO ARGUMENTAL NA AQUISIÇÃO DE PORTUGUÊS ESCRITO POR SURDOS

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

Denise Porto Cardoso CAPÍTULO

Raquel Pereira Maciel PG/UFMS. Justificativa

AQUISIÇÃO DAS RELATIVAS PADRÃO EM PB DURANTE A ESCOLARIZAÇÃO

A ORDEM DE AQUISIÇÃO DOS PRONOMES SUJEITO E OBJETO: UM ESTUDO COMPARATIVO 10

SOBRE SALVADOR: RESULTADOS DE TRÊS ESTUDOS VARIACIONISTAS

USO DO FUTURO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO EM BLOG JORNALÍSTICO: UM ESTUDO PRELIMINAR SOBRE A GRAMATICALIZAÇÃO DO ITEM IR

O USO CORRENTE DA VARIEDADE NÃO-PADRÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA: UM ESTUDO DE CASO DA COMUNIDADE DA DERRADEIRA MUNICÍPIO DE VALENÇA

A ORALIDADE E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A EXPRESSÃO DA 1PP EM CONTEXTOS SINTÁTICOS DE COMPLEMENTAÇÃO E ADJUNÇÃO E O PROBLEMA DE AVALIAÇÃO LINGUÍSTICA EM MACEIÓ/AL

O APAGAMENTO DO RÓTICO EM POSIÇÃO DE CODA SILÁBICA: INDICADORES LINGUÍSTICOS E SOCIAIS

OS PRONOMES PESSOAIS-SUJEITO NO PORTUGUÊS DO BRASIL: NÓS E A GENTE SEGUNDO OS DADOS DO PROJETO ATLAS LINGÜÍSTICO DO BRASIL

A REPRESENTAÇÃO DO SUJEITO PRONOMINAL NA FALA DE NATAL: evidências de um processo de mudança?

FALA, VITÓRIA! - A VARIAÇÃO DO IMPERATIVO EM VITÓRIA/ES E SUA POSIÇÃO NO CENÁRIO NACIONAL

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

UMA INVESTIGAÇÃO DO VOCÁBULO COISA : MÚLTIPLAS FUNÇÕES SINTÁTICAS E SEMÂNTICAS, NUMA PERSPECTIVA VARIACIONISTA

TRABALHO COM OS GÊNEROS / ENSINO DA LÍNGUA PADRÃO

PARÂMETROS SOCIOLINGUÍSTICOS DO PORTUGUÊS DE NATAL. Palavras-chave: variação lingüística; sociedade; conectores coordenativos

(2) A rápida publicação deste livro pela editora foi um bom negócio.

A VARIAÇÃO NÓS E A GENTE NO PORTUGUÊS CULTO CARIOCA

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

CONCORDÂNCIA NOMINAL: ANÁLISE DA VARIAÇÃO EM MACEIÓ

ATITUDES E IDENTIDADE LINGUÍSTICA: MUITO CHÃO PELA FRENTE

Sobre variação e mudança no português do Brasil

Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos

AQUISIÇÃO DA ESCRITA DO PORTUGUÊS POR SURDOS

Os aspectos da marcação de concordância verbal na língua falada em Serra Talhada - PE

Variação pronominal tu/você em Concórdia-SC: o papel dos

A VARIAÇÃO DE PLURALIDADE NO SN E O ENSINO DA VARIEDADE PADRÃO (THE VARIATION OF PLURALITY IN THE SN AND THE TEACHING OF THE STANDARD VARIATION)

A CATEGORIA VERBAL DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS- LIBRAS

OS CLÍTICOS, PRONOMES LEXICAIS E OBJETOS NULOS NAS TRÊS CAPITAIS DO SUL.

VARIAÇÃO ENTRE TU E VOCÊ NA CONVERSAÇÃO DE NATAL: UM CASO DE ESPECIALIZAÇÃO POR ESPECIFICAÇÃO?

Concordância verbal, variação e ensino

A CRISE BRASILEIRA NO ENSINO DA NORMA CULTA OU ESTILO FORMAL Universidade de Salvador

A REALIZAÇÃO DAS FRICATIVAS ALVEOLARES NAS CAPITAIS DA REGIÃO SUDESTE: UM ESTUDO A PARTIR DOS DADOS DO ATLAS LINGUÍSTICO DO BRASIL (ALiB)

A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PORTUGUÊS NO BRASIL E O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

VARIANTE CÊ E SUA GRAMATICALIZAÇÃO: UM ESTUDO FUNCIONAL ATRAVÉS DA LINGUÍSTICA DE CORPUS

A LIBRAS FALADA EM VITÓRIA DA CONQUISTA: ORDEM DOS CONSTITUINTES NA SENTENÇA 39

ANÁLISE DESCRITIVA DOS ASPECTOS SEMÂNTICO-PRAGMÁTICOS QUE PREJUDICAM A INTERCOMPREENSÃO DOS ALUNOS TIMORENSES DA UNILAB

A ESCOLHA DO PRONOME POSSESSIVO DE TERCEIRA PESSOA DO SINGULAR NO PROCESSO DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA

Conscientização sociolinguística

UMA ANÁLISE (SOCIO) FUNCIONALISTA DO VERBO CHEGAR EM PERÍFRASES VERBAIS: O PROBLEMA DA AVALIAÇÃO

A EXPRESSÃO DE MODALIDADES TÍPICAS DO SUBJUNTIVO EM COMPLETIVAS, ADVERBIAIS E RELATIVAS DE DOCUMENTO DO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI

A língua falada em AlAgoAs: coleta e transcrição dos dados

VARIAÇÃO NO USO DAS VOGAIS PRETÔNICAS [e] E [o] E DO PLURAL METAFÔNICO NO PORTUGUÊS FALADO EM DOURADOS

O MEIO QUE NA MÍDIA: UMA ABORDAGEM FUNCIONAL DA LÍNGUA

A DISTRIBUIÇÃO DO PROCESSO DE APAGAMENTO DO RÓTICO NAS QUATRO ÚLTIMAS DÉCADAS: TRÊS CAPITAIS EM CONFRONTO

POSSESSIVOS DE TERCEIRA PESSOA EM TEXTOS ESCRITOS 1 THIRD PERSON POSSESSIVES IN WRITTEN TEXTS

Transcrição:

O (DES)USO DO VERBO HAVER EXISTENCIAL Elyne Giselle de Santana Lima Aguiar Vitório (UFAL) 1 elyne.vitorio@gmail.com RESUMO: Focalizamos as realizações das construções existenciais com ter e haver, a fim de observar o que de haver ainda encontramos na fala e como ocorre a sua recuperação na escrita. Para tanto, utilizamos um modelo de estudo da mudança linguística a Teoria da Variação e Mudança (LABOV, 2008[1972]), associado a estudos linguísticos sobre as construções existenciais no português brasileiro. Os resultados mostram que ter é o verbo existencial preferido na fala, mas, na escrita, há uma redução no seu percentual de uso, aumentando a frequência de haver, que é condicionado pelo verbo no tempo passado, quando o argumento interno é [+ abstrato], entre os falantes mais escolarizados e mais velhos. PALAVRAS-CHAVE: ter existencial; haver existencial; língua falada; língua escrita. ABSTRACT: We focus on the achievements of existential constructions with ter and haver, to observe what of haver we still find in the speech and how occurs his recovery in the writing. For this, we use a study model of linguistics change the Theory of Variation and Change (LABOV, 2008[1972]), joint to linguistics studies on existential constructions in the Brazilian Portuguese. The results show that ter is the prefered existential verb in the speaking, but, in the writing, there is a reduction in his percentage use, increasing the frequency of haver, which is conditioned by the verb in past tense, when the internal argument is [+ abstract], among the more educated and older speakers. KEYWORDS: existential ter ; existential haver ; speech language, writing language. 1. Introdução Tendo em vista que, no Brasil, fala e escrita não se diferenciam apenas pelo maior ou menor grau de planejamento, mas também por caracterizarem duas gramáticas: uma gramática da fala, que é fruto do processo de aquisição da linguagem, com formas conservadoras e inovadoras, consequência de mudanças naturais na história das línguas e uma gramática da escrita, que é uma mistura de traços da gramática lusitana [...] somada a traços do português brasileiro que se implementam aos poucos na 1 Professora da Universidade Federal de Alagoas Campus Sertão. Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas. elyne.vitorio@gmail.com. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 228

escrita (DUARTE, 2013, p. 15), analisamos o uso de ter e haver em construções existenciais em dados de fala e escrita. Nosso intuito é não só observar como ter e haver em sentenças existenciais se comportam em dados de língua falada e língua escrita produzidos por informantes alagoanos dos ensinos fundamental, médio e superior, mas também buscar evidências da implementação, na escrita, de mudanças observadas na fala e, ao mesmo tempo, refletir sobre a forma como a língua escrita tende a recuperar formas gramaticais ausentes no processo de aquisição da linguagem das crianças brasileiras, como é o caso, por exemplo, do verbo haver em construções existenciais (Cf. AVELAR, 2006b; VITÓRIO, 2010). Para a descrição e análise dos dados, propomos as seguintes questões: qual a frequência de uso de ter e haver na fala e na escrita aqui analisadas? Que fatores linguísticos e/ou sociais motivam as realizações dessas construções na fala e na escrita? Qual o papel da escrita na recuperação e manutenção de haver, tendo em vista que, no português brasileiro falado, ter é o verbo existencial preferido? Nossa hipótese básica é a de que ter seja o existencial da fala, mas, na escrita, haver seja o existencial selecionado, mostrando, assim, que as normas convencionais da escrita reprimem as inovações da fala e fazem o falante voltar às formas eliminadas, ou no limiar do desaparecimento (Cf. KATO, 1996, 1999). Nosso trabalho está organizado da seguinte forma: na seção 1, apresentamos os pontos que serviram de base para o desenvolvimento deste estudo; em seguida, na seção 2, apresentamos o quadro teórico que norteia nossa análise; na seção 3, caracterizamos os dados analisados e as amostras utilizadas neste trabalho; na seção 4, descrevemos e analisamos os resultados obtidos para as realizações de ter e haver na fala e, por fim, na seção 5, descrevemos e analisamos os dados obtidos para as realizações de ter e haver na escrita. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 229

2. A supressão de haver em contextos existenciais Estudos linguísticos mostram que, no português brasileiro, ter é o existencial canônico (CALLOU; AVELAR, 2000; DUARTE, 2003; MARTINS; CALLOU, 2003, VITÓRIO, 2011). Esses trabalhos apresentam que, apesar da preferência por ter na fala, há fatores que ainda favorecem o uso de haver, a saber, argumento interno com traço [+ abstrato], verbo no tempo passado, falantes mais velhos e mais escolarizados. Na escrita, devido à pressão normativa, haver é o existencial selecionado, mas estudos de Callou e Duarte (2005), Avelar (2006b) e Vitório (2012; 2013) já mostram a implementação de ter existencial. No trabalho De verbo funcional a verbo substantivo: uma hipótese para a supressão de haver no português brasileiro, Avelar (2006a), seguindo alguns pressupostos da Morfologia Distribuída (HALLE; MARANTZ, 1994; EMBICK; NOYER, 2004), argumenta que a baixa frequência de haver e as restrições ao uso em alguns contextos existenciais, como Tem/*Há pão, decorrem de uma mudança na funcionalidade desse verbo. O verbo haver teria deixado de compor o acervo de itens funcionais e migrado sua matriz para o acervo de itens substantivos, residindo ao lado de itens como existir, acontecer, ocorrer. Tal mudança levou haver a alguma forma de especialização semântica, caso que não ocorre com ter, que é um verbo semanticamente neutro, não sendo mais possível, no português brasileiro, falar em variação ter e haver como competição entre duas formas funcionais. A variação ter e haver seria desencadeada pela alimentação da gramática periférica no processo de escolarização (em oposição à gramática nuclear, construída no processo natural de aquisição da linguagem [...] (AVELAR, 2006b, p. 101), não havendo, na gramática internalizada dos falantes, tal variação, com o verbo ter ocupando o posto de existencial canônico. [...] existem, de um lado, construções existenciais canônicas, construídas com o verbo ter, de outro lado, aparecem construções NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 230

existenciais mais gerais, de uso normalmente apresentacional, com verbos como haver, aparecer, acontecer, surgir, etc. Assim, não estamos diante de uma variação a ser capturada como um fato de gramática interna do falante, a sua gramática nuclear, mas simplesmente de um padrão frásico do português contemporâneo que elege como a sua forma verbal prototípica o verbo ter. No âmbito da gramática naturalmente internalizada, portanto, não existe variação entre dois verbos existenciais no português brasileiro, mas entre um padrão canônico de gerar uma sentença existencial, para qual se recorre a um verbo funcional, e outros padrões diferenciados, com valores semântico-pragmáticos diversos que se valem de verbos nãofuncionais. (AVELAR, 2006b, p. 116). Outro fato apontado pelo autor diz respeito à razão de haver ter tido sua condição alterada, levando-o a argumentar que a supressão de haver e a emergência de ter em contextos existenciais se encaixam em um conjunto mais amplo de mudanças por que vem passando o português brasileiro. A entrada do verbo ter em contextos existenciais, que ocorreu em algum momento do século XIX, teve início entre os chamados contextos opacos, ou seja, em construções interpretadas como existenciais pelos falantes do português brasileiro contemporâneo, mas que, na verdade, consistem em verdadeiras construções possessivas, conforme podemos observar na construção (1). 1)...e asim diserão elles doadores que tinhão e em caza tres crianças emgeitadas que elles criarão Manoel Jozeph Pascoal os quais emcomendão aos Religiozos seos herdeiros os tenhão debaixo de sua propteção e os dotrinem como filhos juntamente com os mamalucos forros que em sua caza tem, em fé do qual assim o outrogarão,... 1632 (Extraído de Avelar, 2006a, p. 65) Segundo o autor, para um falante do português europeu contemporâneo, essa construção seria interpretada como possessiva, sendo possível indicar um sujeito para ter os Religiozos, mas para um falante do português brasileiro contemporâneo, a interpretação preferencial e talvez a única seria existencial. O mesmo equívoco pode ocorrer quando um falante do português brasileiro contemporâneo se defronta com uma construção do tipo (2) pronunciada por um falante do português europeu NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 231

contemporâneo, em que a sentença tinha uns bancos de madeira pode ter como sujeito nulo correferente uma tasca ou aquela tasca. 2) e depois fomos para UMA TASCA, meu, que era espectacular. então é AQUELA TASCA que eu já te contei, que era: tipo u[...], uma garagenzinha, estás a ver, e tinha uns bancos de madeira, tipo, umas tábuas de madeira em cima de tijolos (Década de 90 / Faixa Etária 1 Culto) (Extraído de Avelar, 2006a, p. 67) Tendo em vista esses dados, Avelar (2006a) defende a ideia de que tal equívoco está relacionado às restrições ao sujeito nulo. Com a redução do paradigma flexional no português brasileiro, o sistema perde a categoria pro-referencial, o que impossibilita ao falante atribuir uma interpretação possessiva ao sujeito nulo das sentenças formadas com ter pessoal, havendo, assim, uma reanálise das construções possessivas em construções existenciais, uma vez que estas dispensam a instanciação de um sujeito pleno e, em seguida, a perda de pro-expletivo contribui para a supressão de haver. O alto percentual de haver, na escrita, se justificaria não por ser um reflexo de procedimentos internos à gramática nuclear, mas do provimento da gramática periférica por elementos de prestígio na língua escrita (AVELAR, 2006b, p.118), com a escolarização exercendo um papel fundamental na manutenção/recuperação de haver, tendo em vista que no processo de letramento, a escola procura recuperar as perdas linguísticas, uma vez que as inovações são apropriadas para a fala, mas não para a escrita (KATO, 2005, p. 136). Haver seria um verbo existencial funcional da escrita, ainda que não rechace o uso de ter. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 232

3. Aporte teórico O quadro teórico que orienta esta pesquisa inclui um modelo de estudo da mudança linguística a Teoria da Variação e Mudança proposta por Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]) associado a estudos linguísticos sobre as construções existenciais no português brasileiro (CALLOU; AVELAR, 2000; CALLOU; DUARTE, 2005; AVELAR, 2006a; AVELAR; CALLOU, 2007; VITÓRIO, 2013), que permitem explicar que a substituição de haver por ter se encaixa em um conjunto mais amplo de mudanças por que vem passando o português brasileiro, o que teria levado ter a ser o verbo existencial canônico na fala, mas, na escrita, devido à pressão normativa, haver é o verbo existencial selecionado. Do modelo de estudo da mudança, interessa-nos que toda mudança pressupõe um período de variação e, quando consolidada, produz efeitos colaterais não casuais associados ao processo de mudança é a questão do encaixamento linguístico. Outro ponto diz respeito aos fatores que favorecem e desfavorecem dada variante durante esse processo. Dos trabalhos sobre as construções existenciais, consideramos que a implementação de ter tem relação com a remarcação do Parâmetro do Sujeito Nulo, ocasionando uma mudança no estatuto categorial de haver, que teria passado de verbo existencial funcional a verbo existencial substantivo, o que justificaria sua baixa frequência de uso e suas restrições em alguns contextos linguísticos. Também consideramos a proposta de Kato (2005), que argumenta que, no português brasileiro, há um descompasso entre a gramática adquirida durante o processo de aquisição da linguagem e a gramática que orienta o ensino formal, gerando uma enorme distância entre a gramática da fala e a gramática da escrita, e o trabalho de Avelar (2006b) que aponta que haver seria uma forma gramatical aprendida mais tardiamente, não fazendo parte da gramática internalizada dos falantes do português brasileiro. Logo, a variação ter e haver seria reflexo da competição entre duas gramáticas, com motivações sociolinguísticas (p. 99). NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 233

4. Procedimentos metodológicos O que propomos neste estudo é uma análise das realizações das construções existenciais formadas com os verbos ter e haver produzidas por informantes alagoanos dos ensinos fundamental, médio e superior, como podemos observar em (3), a fim de observar o que de ter e haver encontramos em dados de língua falada e língua escrita, tendo em vista que estudos linguísticos tendem a mostrar que, na fala, há uma preferência pelo uso do verbo ter, mas, na escrita, haver é o verbo existencial preferido. 3) Tem / Há um menino na sala ao lado. Para tanto, seguimos os pressupostos metodológicos da Teoria da Variação e Mudança (CAMPOY; ALMEIDA, 2005; GUY; ZILLES, 2007) e analisamos duas amostras diferenciadas. Para a análise da língua falada, consideramos uma amostra sincrônica da fala alagoana composta de 72 informantes e estratificada segundo as variáveis escolaridade, sexo e faixa etária (Cf. VITÓRIO, 2014), e, para a análise da língua escrita, utilizamos uma amostra composta de 180 textos produzidos por alunos do ensino fundamental, médio e superior da cidade de Maceió e estratificada de acordo com as variáveis escolaridade e sexo. Utilizamos, para a análise estatística dos dados, o programa computacional GOLDVARB X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005) e controlamos os seguintes grupos de fatores tempo verbal, traço semântico do argumento interno, tema da produção textual, modalidade de uso da língua, escolaridade, faixa etária e sexo. Nossa hipótese básica é a de que o verbo haver em construções existenciais será mais frequente nos seguintes contextos: língua escrita, informantes mais velhos, mais escolarizado e do sexo masculino, verbo no tempo passado e argumento interno com traço [+ abstrato]. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 234

5. Ter e haver na fala Após a análise dos dados, contabilizamos 772 construções existenciais formadas com os verbos ter e haver, que estão distribuídas da seguinte forma: 735 realizações com o verbo ter e 37 realizações com o verbo haver. Esses dados representam percentuais de 95% de ter contra apenas 5% de haver, conforme ilustramos no gráfico 1, o que indica que, na comunidade estudada, ter é o verbo existencial selecionado. Gráfico 1. Percentuais de ter e haver na língua falada Os dados obtidos não só mostram que, na fala alagoana, ter é o existencial preferido, como também vão ao encontro das pesquisas sociolinguísticas (DUTRA, 2000; CALLOU; AVELAR, 2000; SILVA, 2001; DUARTE, 2003; VITÓRIO, 2011) que mostram que, nas variedades do português brasileiro falado, ter é o verbo existencial canônico. Diante desses dados, uma questão emerge para interpretação dos dados: que fatores linguísticos e/ou sociais ainda condicionam o uso de haver na comunidade estudada? Após a análise e rodada dos dados, o programa GOLDVARB X selecionou as seguintes variáveis independentes como estatisticamente significativas na variação em NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 235

estudo, a saber, tempo verbal, traço semântico do argumento interno, escolaridade e faixa etária. Nosso ponto de partida na análise desses grupos de fatores é o de que as parcas realizações do verbo haver serão favorecidas nos seguintes contextos: verbo no tempo passado, argumento interno com traço [+ abstrato], falantes mais escolarizados e mais velhos. 5.1 Tempo verbal O tempo verbal foi a primeira variável linguística selecionada pelo GOLDVARB X como estatisticamente relevante na variação em estudo. Para a nossa análise, trabalhamos com os fatores tempo passado e tempo presente e partimos do pressuposto de que as formas verbais expressas no passado serão mais favoráveis às realizações de haver (Cf. CALLOU; AVELAR, 2000; VITÓRIO, 2011), como podemos observar em (4) e (5). 4) houve um imprevistozinho e num deu pra gente ir (L19L2797) 5) não havia necessidade de tirá de removê elas daí entendeu? (L4L6080) Tempo verbal Ter Haver Passado 135 / 153 / 88%.23 18 / 153 / 12%.77 Presente 600 / 619 / 97%.57 19 / 619 / 3%.43 Tabela 1. Realizações de ter e haver na variável tempo verbal De acordo com os resultados obtidos, verificamos que ter é o verbo existencial preferido tanto no tempo passado quanto no tempo presente. Em relação às parcas realizações de haver, obtivemos percentuais de 12% no tempo passado contra apenas NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 236

3% no tempo presente, mostrando que o fator passado favorece mais as realizações de construções existenciais formadas com o verbo haver na fala alagoana. Os pesos relativos confirmam os resultados percentuais obtidos, mostrando que enquanto o fator passado favorece a realização de haver.77, o fator presente tende a desfavorecê-la.43. Esses resultados também confirmam a nossa hipótese e vão na mesma direção dos estudos de Callou e Avelar (2000), Silva (2001) e Vitório (2011) que mostram que o passado constitui um fator linguístico que ainda favorece a realização do verbo haver. 5.2 Traço semântico do argumento interno A segunda variável linguística estatisticamente significativa na variação ter e haver na fala alagoana diz respeito ao traço semântico do argumento interno. Para a análise dos dados, trabalhamos com os fatores argumento interno com traço [+ concreto] e argumento interno com traço [+ abstrato] e partimos do pressuposto de que este fator é mais favorável ao uso de haver do que aquele (DUARTE, 2003; VITÓRIO, 2011), como observamos em (6) e (7). 6) por trás desse empreendimento há um interesse em capitá verbas (L58L7280) 7) ali há cultura sendo valorizada levada adiante (L70L8855) Argumento interno Ter Haver [+ concreto] 363 / 373 / 97%.59 10 / 373 / 3%.41 [ + abstrato] 372 / 399 / 93%.40 27 / 399 / 7%.60 Tabela 2. Realizações de ter e haver na variável traço semântico do argumento interno NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 237

De acordo com os resultados obtidos, verificamos que tanto no fator [+ concreto] quanto no fator [+ abstrato] ter é o verbo existencial selecionado. No entanto, também observamos que as parcas realizações de haver estão distribuídas em 10 ocorrências no fator [+ concreto] e 27 ocorrências no fator [ + abstrato], mostrando, assim, que o fator [+ abstrato] favorece mais as realizações dessa variante 7% versus 3% no fator [+ concreto]. A análise dos pesos relativos mostra que enquanto o fator [+ concreto] desfavorece a realização de haver.41, o fator [+ abstrato] tende a favorecer a realização dessa variante.60. Esses dados confirmam os resultados apresentados por Callou e Avelar (2000), Dutra (2000) e Vitório (2011), que mostram que argumentos internos com traço [+ abstrato] são mais favoráveis à aplicação de haver em construções existenciais. O cruzamento das variáveis tempo verbal e traço semântico do argumento interno mostra, conforme gráfico 2, a relevância dos fatores tempo passado e argumento interno [+abstrato] na manutenção de haver na fala alagoana, pois essa variante apresenta um percentual de 17% em construções existenciais formadas com o verbo no tempo passado e quando o argumento interno é do tipo [+ abstrato], como observamos em (8) e (9). Gráfico 2. Percentuais de haver nas variáveis tempo verbal e traço semântico do argumento interno NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 238

8) não havia nenhuma necessidade agora no momento (L4L6083) 9) eu acho que não houve tanta melhora não (L68L8352) 5.3 Escolaridade Partindo do pressuposto de que a escola gera mudanças na fala e na escrita das pessoas que as frequentam e das comunidades discursivas (VOTRE, 2003, p. 51), analisamos a variável escolaridade com o intuito de verificar se com o aumento do nível de escolarização dos falantes, há um aumento na aplicação do verbo haver. Para tanto, consideramos três níveis de escolarização, a saber, ensino fundamental (EF), ensino médio (EM) e ensino superior (ES), e acreditamos que são os falantes do ES que mais utilizam o verbo haver. Escolaridade Ter Haver EF 182 / 183 / 99%.88 1 / 183 / 1%.12 EM 239 / 245 / 98%.54 6 / 245 / 2%.46 ES 314 / 344 / 91%.23 30 / 344 / 9%.77 Tabela 3. Realizações de ter e haver na variável escolaridade De acordo com os resultados obtidos, verificamos que os percentuais de ter nos EF e EM são quase categóricos 99% e 98%, respectivamente. Já no ES, ter apresenta um percentual de 91%, mostrando, assim, que são os falantes desse nível de escolarização que apresentam um percentual maior de realização de haver 9% versus 1% e 2% para os falantes dos EF e EM, respectivamente. Analisando especificamente a aplicação de haver, obtivemos pesos relativos de.12 para o EF,.46 para o EM e.77 para o ES, mostrando que os falantes mais escolarizados tendem a utilizar mais o verbo haver em construções existenciais. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 239

Esses resultados não só confirmam a nossa hipótese de que quanto mais escolarizado o falante maior é a probabilidade de realização do verbo haver, como também corroboram as afirmações de Dutra (2000), Silva (2001) e Vitório (2011), que mostram que com o aumento do nível de escolarização dos usuários da língua, há um aumento no percentual de uso de haver, ou seja, quanto maior a escolarização, maior é a realização da variante conservadora. 5.4 Faixa etária Com o objetivo de verificar se a variação ter e haver na fala alagoana representa um processo de variação estável ou de mudança em curso, consideramos a variável faixa etária, tendo em vista que esta variável caracteriza-se como um grupo de fatores de grande relevância para os estudos sociolinguísticos, pois torna possível o esboço do estágio que uma regra variável desempenha, em tempo aparente, dentro do sistema linguístico. Dessa forma, se ter é existencial mais utilizado na fala alagoana, objetivamos analisar se a aplicação desse verbo é maior entre os falantes mais jovens. Para tanto, dividimos nossa variável em três fatores, a saber, F1 (15-29 anos), F2 (30-44 anos) e F3 (acima de 44 anos) e partimos do pressuposto de que a frequência de ter será maior entre os falantes mais jovens, o que implica considerar que haver será mais frequente entre os falantes mais velhos. Faixa Etária Ter Haver F1 251 / 253 / 99%.80 2 / 253 / 1%. 20 F2 239 / 253 / 94%.35 14 / 253 / 6%.65 F3 245 / 266 / 92%.31 21 / 266 / 8%.69 Tabela 4. Realizações de ter e haver na variável faixa etária NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 240

De acordo com os resultados obtidos, verificamos não só que são os falantes da F1 que mais utilizam o verbo ter, apresentando, assim, um uso quase categórico 99%, como também que, com o aumento da faixa etária, há uma redução na aplicação dessa variante. Em relação às parcas realizações de haver, obtivemos percentuais de 6% na F2 e 8% na F3, o que revelam que com o aumento da faixa etária dos falantes, há um aumento no uso desse verbo. Os percentuais de ter e haver em construções existenciais na fala alagoana chamam a atenção para o fato de que todas as faixas etárias já atingiram um percentual de 90% de uso de ter, mostrando que há uma preferência, em todas das faixas analisadas, pela variante inovadora. No entanto, também verificamos que, com a aumento da faixa etária, há uma redução no percentual de uso dessa variante, mostrando, assim, de acordo com Labov (1996), que os falantes mais velhos favorecem mais a manutenção da variante conservadora. Ao analisarmos a aplicação de haver, obtivemos índices de.65 para a F2 e.69 para a F3, que mostram que, nessas faixas etárias, há um favorecimento no uso dessa variante, ao passo que, na F1, temos um peso relativo de.20, desfavorecendo, assim, tal uso. Esses dados indicam um processo de mudança em curso, pois se o uso da variante inovadora for mais frequente entre os jovens, decrescendo em relação à idade dos outros informantes, você terá presenciado uma situação de mudança em progresso (TARALLO, 2003, p. 65). Ainda com o objetivo de checar a atuação das variáveis extralinguísticas escolaridade e faixa etária na variação ter e haver na fala alagoana, realizamos o cruzamento desses dois grupos de fatores e constatamos, conforme gráfico 3, que são os falantes das F2 e F3 que possuem o ensino superior (ES), que mais fazem uso do verbo haver. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 241

Gráfico 3. Percentuais de haver nas variáveis escolaridade e faixa etária Esses resultados também mostram que os falantes mais jovens (F1) dos três níveis de escolarização usam categoricamente o verbo ter, apresentando uma semelhança no comportamento linguístico. Na F2, atingimos um percentual de 11% de haver entre os falantes mais escolarizados (ES) e, na F3, um percentual de 13%, indicando que a escolarização é um fator social determinante na manutenção dessa forma verbal. No entanto, também fica claro que, mesmo habilitados a usarem o verbo haver, os falantes o empregam de forma parcimoniosa, utilizando com muito mais frequência o verbo ter na fala. 6. Ter e haver na escrita Com o levantamento dos dados, contabilizamos, na língua escrita, 186 construções existenciais formadas com os verbos ter e haver, que estão distribuídas da seguinte forma: 89 realizações com o verbo ter e 97 realizações com o verbo haver. Esses dados representam percentuais de 48% de ter e 52% de haver, conforme ilustramos no gráfico 4, o que nos mostram uma competição acirrada entre ter e haver em construções existenciais na escrita. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 242

Gráfico 4. Percentuais de ter e haver na língua escrita Esses resultados mostram que a pressão normativa em favor de haver coloca esse verbo como primeira opção, recuperando com êxito uma variante tão distante da fala e revelando uma competição entre ter e haver na escrita, quase inexistente na fala, o que nos levam a hipótese de Avelar (2006b) de que a variação ter e haver pode ser vista como uma competição entre duas gramáticas: uma gramática da fala que seleciona ter como verbo existencial e uma gramática da escrita que não só elege haver, mas também implementa nos textos escritos uma forma linguística não prescrita pela tradição gramatical. Os dados não só sugerem que estamos diante de uma mudança linguística na fala que causa efeitos na escrita, o que nos remetem a discussão de Duarte (2013), como também que a realização de haver é percebida pelos letrados brasileiros como uma variação estilística. Haver seria o verbo existencial funcional da escrita, ainda que essa modalidade de uso da língua não rechace por completo o uso de ter. Resta-nos observa que fatores linguísticos e/ou sociais condicionam o aumento da frequência de haver na língua escrita. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 243

6.1 Traço semântico do argumento interno Para a análise desta variável, consideramos os fatores argumento interno com traço [+ concreto] e argumento interno com traço [+ abstrato] e partimos do pressuposto, seguindo os trabalhos de Callou e Avelar (2000), Duarte (2003) e Vitório (2011), de que argumentos internos com traço [+ abstrato] são mais favoráveis à realização de haver em construções existenciais, constituindo, assim, um contexto linguístico que influência na manutenção e recuperação dessa variante, como observamos em (10) e (11). 10) Há necessidade de melhorias no ensino e aprendizado. (ESF) 11) quando ele chegou em casa houve uma recepção, então comemoramos o meu aniversário e a recepção dele no mesmo dia. (EFF) Argumento interno Ter Haver [+ concreto] 46 / 73 / 63%.64 27 / 73 / 37%.36 [ + abstrato] 43 / 113 / 38%.42 70 / 113 / 62%.58 Tabela 5. Realizações de ter e haver na traço semântico do argumento interno De acordo com os resultados obtidos, verificamos que, na escrita, as frequências de uso de ter e haver são diametralmente opostas em relação ao traço semântico do argumento interno. Quando o argumento interno é do tipo [+ concreto], temos um percentual maior de realização de ter 63% versus 38% de haver, mas quando o argumento interno é do tipo [+ abstrato], haver apresenta um percentual maior de realização 62% versus 37% de ter, o que confirma a nossa hipótese que este fator tende a ser mais favorável a realização de haver. Esses dados percentuais são confirmados pela análise dos pesos relativos que mostram que enquanto o argumento interno com traço [+ concreto] tende a desfavorecer NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 244

a realização de haver, com peso de.36, o argumento interno com traço [+ abstrato] favorece a realização dessa variante, com peso de.58, corroborando as análise que mostram ser este fator mais favorável à manutenção e recuperação do verbo haver em construções existenciais. 6.2 Escolaridade Para a análise da variável escolaridade, consideramos os fatores ensino fundamental (EF), ensino médio (EM) e ensino superior (ES) e partimos do pressuposto de que essa variável constitui um fator social significativo na manutenção ou exclusão das formas linguísticas, mostrando, assim, que pessoas mais escolarizadas tendem a usar mais as formas padrão de uso da língua, o que nos leva a seguinte correlação: maior escolaridade, maior uso das formas padrão; menor escolaridade, menor uso das formas padrão. Escolaridade Ter Haver EF 38 / 50 / 76%.77 12 / 50 / 24%.23 EM 21 / 41 / 51%.54 20 / 41 / 49%.46 ES 30 / 95 / 32%.34 65 / 95 / 68%.66 Tabela 6. Realizações de ter e haver na variável escolaridade De acordo com os resultados obtidos, confirmamos a nossa hipótese de que com a aumento do nível de escolarização dos alunos, há uma diminuição na aplicação de uso do verbo ter, aumentando, assim, o percentual de uso do verbo haver. Esses resultados mostram que no EF ter é o verbo selecionado 76% versus 24% de haver, no EM, há uma competição acirrada entre ter e haver 51% versus 49%, respectivamente, e no ES, haver é o verbo existencial selecionado 68% versus 32% de ter, dado confirmado NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 245

pela análise dos pesos relativos que mostram que o fato ES é o único que favorece a realização de haver.66. Esses resultados mostram que a variável escolaridade constitui um fator social significativo na recuperação e manutenção do verbo haver, mostrando, assim, que, no início do processo de escolarização, os alunos transferem o seu conhecimento gramatical da fala para a escrita e é a submissão às regras gramaticais que faz com que o verbo haver, quase ausente na fala, apareça na escrita e aumente o seu percentual de uso à medida que aumenta o nível de escolarização dos alunos, chegando a superar o uso de ter na escrita de alunos do ES. Conclusão Neste estudo, focalizamos as realizações dos verbos ter e haver em construções existenciais em dados de fala e escrita e, de acordo com os resultados obtidos, verificamos que, diferentemente do que ocorre na língua falada em que há um uso quase categórico do verbo ter, na língua escrita, haver é o existencial preferido, o que nos leva a argumentar que, em termos de frequência de uso, ter é o existencial preferido na fala, mas, na escrita, haver é o verbo selecionado. No entanto, também verificamos que apesar do aumento da aplicação do verbo haver na língua escrita, há um percentual alto de uso do verbo ter. Na escrita, temos uma competição acirrada entre ter e haver que pode ser entendida como uma competição entre uma gramática inovadora e uma gramática conservadora, que se relaciona a questões sociolinguísticas e à pressão social de uma norma padrão, o que nos mostra que, na escrita, há um embate entre a gramática que falamos e a gramática que nos serve de modelo no processo de ensino e aprendizagem, ou seja, na escrita, diferentemente da fala, verificamos um conflito acirrado entre o que se fala e o que se aprende na escola. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 246

Quanto aos fatores linguísticos e sociais que ainda condicionam as parcas realizações de haver na língua falada, verificamos a influência dos contextos tempo verbal no passado, argumento interno com traço [+ abstrato], falantes mais velhos e mais escolarizados, na língua escrita, verificamos que os contextos argumento interno com traço [+ abstrato] e alunos mais escolarizados são mais favoráveis à aplicação de haver, confirmando que tanto na fala quanto na escrita os mesmos fatores linguísticos e sociais tendem a favorecer a realização de haver. Desejamos não só ter contribuído para esclarecer as restrições que se correlacionam à variação dos verbos ter e haver em dados de fala e escrita, como também esperamos que os resultados aqui expressos, aliados a outros sobre as construções existenciais nas variedades do português brasileiros, possam contribuir para os estudos na área de sociolinguística e auxiliar as pesquisas relacionadas a descrições e análises do português brasileiro. Referências AVELAR, J. De verbo funcional a verbo substantivo: uma hipótese para a supressão de haver no português brasileiro. Letras de Hoje, v. 41, n. 1, p. 49-74, 2006a. AVELAR, J. Gramática, competição e padrões de variação: casos com ter/haver e de/em no português brasileiro. Revista de Estudos da Linguagem, 4, p. 99-144, 2006b. AVELAR, J.; CALLOU, D. Sobre a emergência do verbo possessivo em contextos existenciais no português brasileiro. In: CASTILHO, A. et al. (Org.) Descrição, história e aquisição do português brasileiro. São Paulo: Editora Pontes, 2007, p. 375-402. CALLOU, D.; AVELAR, J. Sobre ter e haver em construções existenciais: variação e mudança no português do Brasil. Revista Gragoatá, n. 9, p. 85-100, 2000. CALLOU, D.; DUARTE, E. A fixação do verbo ter em contextos existenciais. In: Actas do XX Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística, Lisboa, APL, 2005, p. 149-155. CAMPOY, J.; ALMEIDA, M. Metodología de la investigación sociolingüística. Granada: Editorial Comares, 2005. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 247

DUARTE, E. O sujeito expletivo e as construções existenciais. In: RONCARATI, C.; ABRAÇADO, J. (Org.). Português brasileiro: contato lingüístico, heterogeneidade e história. São Paulo: 7 Letras, 2003, p. 123-131. DUARTE, Eugênia. O papel da sociolinguística no (re)conhecimento do português brasileiro e suas implicações para o ensino. Revista LETRA, p. 15-10, 2013. DUTRA, C. Ter e haver na norma culta de Salvador. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. EMBICK, D.; HALLE, M. Word formation: aspects of the latin conjugation in Distributed Morphology. Ms, 2004. GUY, G.; ZILLES, A. Sociolingüística quantitativa: instrumental de análise. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. HALLE, M.: MARANTZ, A. Some key features of Distributed Morphology. MIT Working Papers in Linguistics, v. 21, p. 275-288, 1994. KATO, M. Português brasileiro falado: aquisição em contexto de mudança lingüística. In: DUARTE, I.; LEIRIA, I. (Org.). Actas do Congresso Internacional sobre o Português. V. II, p. 211-237, 1996. KATO, M. Aquisição e aprendizagem da língua materna: de uma saber inconsciente para um saber metalingüístico. In: MORAES, J.; GRIMM-CABRAL, L.. (Org.). Investigações à linguagem: ensaios em homenagem a Leonor Scliar-Cabral. Florianópolis: Editora Mulher, p. 201-225, 1999. KATO, M. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. In: MARQUES, M. et al. (Org.). Ciências da linguagem: trinta anos de investigação e ensino. Braga, CEHUM (U. do Minho), 2005. LABOV, W. Principios del cambio linguístico. Volumen 1: factores internos. Madrid: Editorial Gredos, 1996 [1994]. LABOV, W. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008 [1972]. MARTINS, L.; CALLOU, D. Mudança em tempo aparente e em tempo real: construções ter/haver existenciais. In: ENCONTRO DO CELSUL, 5, 2003, Curitiba. Anais... Curitiba: 2003, p. 820-825. SANKOFF, D. et al. Goldvarb X: a variable rule application for Macintosh and Windows. Department of Linguistics, University of Toronto, 2005. SILVA, R. Variação ter/haver na fala pessoense. Dissertacão (Mestrado em Língua Portuguesa) Curso de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2001. TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. São Paulo: Editora Ática, 2003. VITÓRIO, E. Um estudo sobre a variação ter e haver existenciais na escrita de alunos dos ensinos fundamental e médio da cidade de Maceió. Revista Eletrônica Via Litterae, v. 2, n. 1, p. 75-87, jan. / jun. 2010. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 248

VITÓRIO, E. A alternância de ter/haver existenciais na fala maceioense. Interdisciplinar Revista de Estudos de Língua e Literatura. Ano VI, V. 14, p. 77-85, 2011. VITÓRIO, E. A alternância dos verbos ter e haver em construções existenciais na escrita jornalística. In: SINIEL, 2012b, Recife. Anais... Recife: 2012, p. 434-450. VITÓRIO, E. As construções existenciais com ter e haver: o que tem na fala e o que há na escrita. Revista Domínios de Lingu@gem. V. 7, n. 2, p. 71-89, 2013. VITÓRIO, E. A língua falada em Alagoas: coleta e transcrição dos dados. In: FREITAG, R. (Org). Metodologia de Coleta e Manipulação de Dados em Sociolinguística. São Paulo: Blucher, 2014. Disponível em: http://blucheropenaccess.com.br/issues/details/2. Acesso em 18 Ago 2014. VOTRE, S.. Relevância da variável escolaridade. In: MOLLICA, C.; BRAGA, L. (Org.). Introdução à Sociolingüística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2003, p. 51-57. WEINREICH, U. et al. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2006[1968]. Recebido Para Publicação em 17 de outubro de 2015. Aprovado Para Publicação em 02 de fevereiro de 2015. NUPESDD UEMS Web-Revista SOCIODIALETO Mestrado Letras UEMS/Campo Grande, v. 6, nº 17, nov. 2015 249