Revista O GLOBO Cultura (p. 20-22) 5 de outubro de 2014 jornalista JOANA DALE fotos Fábio Seixo Deixa a tristeza pra lá DESGOSTOSO DEPOIS DE REJEITADO NA ABL, MARTINHO DA VILA GANHA CADEIRA NA VERSÃO MENOS GLAMOUROSA DA ENTIDADE, A ACADEMIA CARIOCA DE LETRAS PORTAS ABERTAS. O cantor e compositor na entrada da ACL. E m junho de 2010, Martinho da Vila concorreu à cadeira número 29 da Academia Brasileira de Letras (ABL), que vagara com a morte do bibliófilo José Mindlin. Eros Grau, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Muniz Sodré, ex-presidente da Biblioteca Nacional, e Geraldo Holanda Cavalcanti, diplomata, também estavam no páreo. Cavalcanti foi eleito com 20 dos 39 votos válidos Grau recebeu dez; Sodré, oito; e Martinho, zero. Desgostoso, o cantor e compositor prometeu para si mesmo que, a partir dali, só entraria em disputa de samba-enredo.
Quatro anos depois, mudou de ideia. No dia 25 de agosto, ele foi eleito para a Academia Carioca de Letras (ACL), a versão mais local e menos glamourosa da ABL. Recebeu 28 dos 38 votos válidos, desbancando o ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso e o engenheiro Gastão Rúbio de Sá Weyne. Em novembro (data a ser confirmada), o sambista vai sentar na cadeira 6 e vestir o colar acadêmico diferentemente da ABL, não há fardão na ACL, e sim uma corrente banhada a ouro e com o brasão da casa. A entrada de Martinho para a academia, uma instituição quase centenária, reflete uma mudança de mentalidade cultural na própria cidade. Ele é o primeiro negro a entrar para uma academia, lembrando que Machado de Assis e Mário de Andrade eram mulatos diz o ensaísta e crítico literário Paulo Roberto Pereira, titular da cadeira 19 da ACL. O Martinho ainda tem o viés popular. Ele vai trazer a academia do samba para a academia literária, é a ponte que liga a cultura popular à erudita. De início, a candidatura de Martinho para a academia que tem José de Anchieta como patrono fez torcer os narizes dos mais conservadores. Segunda-feira passada, no entanto, o autor de sucessos como Canta canta, minha gente foi recebido com afago pelos novos colegas. Era a primeira vez, desde que fora eleito, que o sambista visitava a sede da instituição. Nove dos 40 acadêmicos estavam lá para prestigiar a homenagem a Álvaro Moreyra, por ocasião dos 50 anos de sua morte, e a palestra A crônica do Rio: Lima Barreto e João do Rio, com os escritores Cláudio Murilo Leal e Gilberto Araújo. Ao fim, o pesquisador e crítico musical Ricardo Cravo Albin, presidente da ACL, anunciou a presença de Martinho da Vila com entusiasmo ao microfone: Martinho é muito bem-vindo. A sua presença acaba com o preconceito das pessoas que pensam que sambista vive nos bares tomando cerveja e falando bobagem. Ele é autor de 13 livros. A sua obra o puxa para a academia trazendo o bônus que é toda a sua carreira na MPB.
Ao centro da mesa, o presidente da ACL, o pesquisador e crítico musical Ricardo Cravo Albin, mostra um retrato de Álvaro Moreyra, antes de anunciar a presença de Martinho Martinho começou a escrever por acaso. Em 1986, a Editora Global o convidou para participar da coleção Quem canta, conta, ao lado de músicos como Rita Lee e João Bosco. Assim nasceu o infantojuvenil Vamos brincar de política?. Do primeiro para o segundo livro houve um hiato de seis anos. Em 1992, Martinho lançou Kizombas, andanças e festanças, que lembra o enredo Kizomba, a festa da raça, que embalou o título da Vila em 1988. Queria fazer um registro da Vila Isabel, escola que não tinha nada documentado. Fiz uma pesquisa enorme, desde a fundação, lembrando todos os sambas... Aí tomei gosto lembra. retratos de ex-presidentes da instituição
ROMANCE E MÚSICA A produção não parou mais, incluindo romances e publicações dedicadas à literatura musical. A obra mais recente é Sambas & enredos, que teve noite de autógrafos na quadra da Vila dez dias atrás. Escrevo sobre o meu mundo. Os lusófonos (2006), por exemplo, é um romance que tem os países da língua portuguesa como pano de fundo conta ele, que é considerado o embaixador cultural do Brasil em Angola. No mundo de Martinho, composições de sambas, criações de enredos e literatura convivem em harmonia. Eu não paro para escrever. Mas quando começo um trabalho, escrevo todos os dias. Nem que seja uma única folha. Escrever é um ato prazeroso quando termina conta Martinho. Além disso, vivo muito em hotéis. Viajo sempre na véspera quando tenho um show fora do Rio. Então tenho muito tempo ocioso. Aos 76 anos de vida e 45 de carreira, o sambista só teme não ter tempo livre para se dedicar à rotina da ACL. Tenho a vida muito ativa. Mas, daqui a um tempo, vou diminuir um pouco a atividade artística e poderei me dedicar mais à academia planeja o cidadão fluminense nascido em Duas Barras. ROTINA DA ACL Os encontros na sede da ACL acontecem às segundas-feiras, de 15 em 15 dias. A academia foi fundada em 1926 por um grupo de jovens intelectuais que promoviam debates sobre a cultura no Rio. Inicialmente, a instituição ganhou o nome Academia Pedro II, em homenagem ao imperador. Em 1929, enfim, virou Academia Carioca de Letras. As reuniões tiveram diversos endereços, entre salas de residências e pátios de colégios, até se basearem, em 1973, no terceiro andar do prédio do IHGB, que cedeu o auditório em caráter perpétuo à ACL. Os integrantes da confraria não são necessariamente cariocas. Último a ser eleito antes de Martinho, o advogado Bernardo Cabral, ex-ministro da Justiça, por exemplo, é amazonense. Entre escritores, professores e historiadores, quatro membros também ocupam cadeiras na ABL: Cícero Sandroni, Murilo Melo Filho, Antonio Carlos Secchin e Domício Proença Filho.
As semelhanças com a luxuosa academia sediada no Petit Trianon param por aí. O glamour da ACL fica restrito às 40 cadeiras de madeira nobre e estofado de couro, dezenas de livros antigos disponíveis na biblioteca e telas com os retratos dos antigos presidentes da instituição. Com recursos financeiros escassos, a ACL é mantida pelos próprios membros, que desembolsam R$ 600, cada, de anuidade para pagar contas de luz, água, gás, o salário dos dois únicos funcionários da casa e os croquetes servidos com café ao fim das conferências. A chegada de Martinho é vista como um sinal de esperança para um futuro mais próspero. Os acadêmicos esperam que, de carona na popularidade do sambista, novos apoios apareçam. Esta importante casa que pensa a cidade precisa ganhar mais evidência. O grande público precisa conhecer melhor a academia diz Martinho.