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Em algum lugar de mim (Drama em ato único) Autor: Mailson Soares A - Eu vi um homem... C - Homem? Que homem? A - Um viajante... C - Ele te viu? A - Não, ia muito longe! B - Do que vocês estão falando? C - De um viajante! B - Alguém conhecido? A - Não, não deu pra ver, estava muito distante. C - Ia só? B - Por que você quer saber? A - Era só um ponto distante, dava pra ver que era um homem, ia só... B - Quem vai querer café? C - Eu prefiro chá! E você também! A - Eu já tenho o que beber... A terra está seca, faz tempo que não chove, pouca coisa se consegue tirar... B- Não sei porque você ainda insisti. C- A dispensa está praticamente vazia! B - Não damos conta disso tudo. C - Foi todo mundo embora... Eu vou dormir. B - Esse calor que não passa, parece que está cada dia mais quente. C - Será que ele volta? B - Quem? C - O viajante!

B - Esquece isso! C - Foi todo mundo embora... Boa noite! B - Eu também vou me deitar. Boa noite! A - Foi todo mundo embora... Foi todo mundo embora... Você não ia dormir? C - Tá quente!... Eu gostava quando a gente era feliz. A - Por que isso agora? C - O que a gente vai fazer? A - Vai dormir, vai! C - Vou tomar um copo de leite! B - Todo mundo perdeu o sono? C - Vim tomar um copo de leite, você quer? B - Não, obrigada, vim só tomar um copo de água! Você entregou a carta? C - Esqueci! B - Do que se trata? A - Coisa sem importância! B - É mais u?... A - É! C - Se nós fôssemos sair amanhã, eu gostaria de comprar uma roupa nova! B - Você tem cada ideia! C - Por que aconteceu isso conosco? B - Não pensa nisso! C - Eu não consigo. Eu não entendo como vocês... B - Psiu, dorme! C - Antes de dormir, eu rezo. B - Eu gosto de cantar! C - Acorda, acorda!

B - O que é?... C - Vai chover! B - Deixa chover... C - As janelas lá de cima estão abertas! B - Deixa ficar abertas. C - Vai molhar o quarto da mamãe e do papai! B - Deixa molhar, eles estão mortos... C - Não fala assim! B - Pelo menos eles não estão aqui passando por isso! C - Ah! B - Por que você não dorme? C - Não consigo dormir quando chove desse jeito! B - Não dorme e também não me deixa dormir. C - Desculpa! A - O que você tá fazendo? C - Não consigo dormir com esse tempo. A - Tem medo de trovão, é? C - Tenho... A - Você não tem mais idade pra ter medo! B Ninguém mais dorme aqui? C - Você não estava dormindo? B - Esqueceu que você me acordou?... Que tempo hein?... Tanto tempo que não chovia... C - Vocês escutaram um barulho estranho lá fora assim que começou a chover? B - Eu só ouvi a chuva! A - Você tem muita imaginação! C - Se a nossa vida tivesse tomado outro rumo, se não tivesse acontecido o que aconteceu, vocês já imaginaram o que nós estaríamos fazendo? B - Eu, com certeza, namorando!

C - Eu gostaria de estar trabalhando. E você? A - Dormindo. B e C - O quê? A - Se as coisas não tivessem tomando o rumo que tomaram, à uma hora dessas eu estava dormindo! B - Cada um faz o que quer! C - Às vezes, eu fico pensando... E se a nossa vida fosse de outro jeito!... A - Eu não peco tempo com isso. B - Por quê? Você não tem medo? A - Medo de que? B - De sonhar, tem gente que tem medo de felicidade (sabia)? A - Você demonstra saber tanta coisa, pena que não aplicou isso na sua vida! B - Eu falo do que vejo! C - Eu acho que ouvi de novo! B - O que? C - O barulho do qual eu falei antes! A - Você enlouqueceu? Que barulho é esse que só você escuta? Olha! Vê alguma coisa? C - Não... A - Idiota! C - Tá parando de chover... B - Lembra que nós cultivávamos umas flores nessa janela? C - Lembro... B - Eram amarelas, brilhavam como o sol! C - Eu gostaria que a mamãe e papai estivessem aqui... A - Mas eles não estão, então deixa de tolice. A realidade é essa. Agora vai dormir. C - Não. Eu sei que as coisas vão melhorar! A - E se piorarem?

B - Para! C - Eu espero morrer depressa. E você? A - Cala a boca! B - Parem com isso! A - Escuta uma coisa... C - Escuta você! B - Parem com isso, agora! A - Fala, fala, termina o que você ia dizer! C - Você não é forte! Eu tive um sonho: nele eu via um caminho de pedra, todo ensanguentado, vermelho, tinha cheiro, cor de sangue, sangue escorrendo, coagulado, em pedaços, e nós três andando sobre ele, e o sangue era nosso, escorria da gente. Você se feriu! A - Me deixa! B - Você tá sangrando! A - Sai você também! B - Calma! C - Mas... B - Deixa, é preciso. C - Me abraça bem forte! B - Lembra daquele riacho que nós costumávamos ir nos banhar quando criança? C - Ele secou... B - Você lembra? C - Lembro. B - Eu costumava ir lá quando estava triste, ficava ali... Só ouvindo a água correr, murmurar, lavava o rosto e voltava, pronto, o dia era outro! C - Ele não existe mais! B - Ele corre aqui dentro. C - E se nós partíssemos? B - Isso não vai devolver o que nós tínhamos.

C - Eu sei que nada vai trazer de volta o que nós vivemos! B - Você sabe o que está acontecendo. Não é fácil mudar. C - Eu sei... Ah, voltou a chover! B - Calma, foi apenas um relâmpago, e chuva não mata ninguém... Lembra o que a mamãe fazia quando nós éramos crianças e o papai viajava e à noite trovejava que nem agora? Ela nos levava pro quarto e fazia a gente dormir, na mesma cama. Parecia que ali nada de mal poderia acontecer! C - Às vezes, eu gostaria que ela estivesse aqui... Mas ai eu penso: a minha mãe aflita, passando por tudo isso, tentando nos proteger e eu vendo o medo nos seus olhos... Não, não... A - Você não dorme? Ainda está com medo da chuva? C - Eu não tenho medo da chuva, tenho medo de trovão. E eles me assustam menos que você. A - Você é uma criatura patética, não sei como é que pode ter algum vínculo de sangue comigo! C - Olha as minhas mãos calejadas. Vê o que sou capaz de fazer. Uma criatura tão insignificante teria as mãos tão marcadas? A - Olha as minhas mãos! C - O que permite irmandade entre as pessoas não é sangue, é amor! A - No fundo, você fala como se não reconhecesse tudo o que eu faço. Trabalho, dor, sacrifício, tudo pra nos manter, você não reconhece o meu esforço. Olhe pra mim e mire-se no que você pode ser! C - Eu quero mais do que viver de lembranças amargas! A - O que você faria no meu lugar? C - Tudo, menos mentir! A - Olha nos meus olhos: Me diz o que eu posso fazer? C - Sentir menos medo... A - Você não está em condições de me julgar! C - Estou ao seu lado! B - Vocês estavam brigando novamente?... C - Parece que essa noite vai ser longa... Você não devia ter levantado! B - Se esta noite não passar, eu não vou dormir nunca mais! C - Por que você tá falando isso? Tudo passa!

B - A vida passa... Parou de chover, eu vou lá fora! C - Não, está escuro, e tá tudo encharcado, faz muito frio, você não pode! B - Psiu! Tranca a porta quando eu sair! A - O que está acontecendo aqui? B - Eu fui lá fora... A - Você enlouqueceu? B - Lá fora está muito frio. A - Por que você não impediu isso? C - Eu tentei, mas... A - Você não podia ter saído! Vai pegar um cobertor. Eu vou pegar um pouco de chá pra você! B - Pega um pouco de bebida pra mim. C - O quê? B - Isso que você entendeu, anda! A - O que é isso? B - Eu que pedi! A - Você vai beber chá! B - Não, eu vou beber o que eu quero! C - Faz bem, esquenta... A - O que você foi fazer lá fora? B - Tudo o que eu quero é que isso acabe logo!... C - O que você tá pensando? B - Lembrando... Viva, viva intensamente. No futuro o que vai te restar são as lembranças. C - Do que você está lembrando? B - De muitas coisas... Poucas realmente possuem algum valor. A - O que você está fazendo? C - Arrumando as minhas coisas.

A - O que? C - Eu não vou ficar aqui! A - Você não pode nos deixar neste momento! B - O dia está clareando... A - O que você está fazendo de pé? C - Você consegue ficar de pé!... Então vem comigo! B - Não, eu não dou conta da viagem, você sabe disso, eu vou ficar, você vai!... Vai! A - Você está fugindo! C - Chame do que você quiser! B - Eu vi um homem lá fora! C - O quê? A - Você está delirando! B - Bem, estava escuro, eu acho que era um homem, enfim, alguém... Você ainda pode alcançá-lo! C - Eu volto, pra te buscar! A - Isso é loucura! B - Eu vou ficar rezando! Agora vai Fim.