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Transcrição:

CONTO: DE REPENTE, A FLORESTA FICOU SEM GENTE Paulo Sergio de Sena Numa escola de uma cidade encravada num vale sob montanhas cobertas por florestas, a professora Mariana falava à classe sobre o lobo-guará, a jaguatirica, o macaco mono carvoeiro, a onça pintada... e como esses animais viviam e emitiam sons para se comunicar. A tia Mariana, como era carinhosamente chamada pelos alunos da quarta série, pendurou, em um quadro de feltro na sala de aula, algumas gravuras desses animais e de outros que viviam na região. No entanto, as crianças que viam as figuras de animais e ouviam as histórias deixavam transparecer certa desconfiança sobre aquelas informações. Havia um clima de confusão que resultava em risadas e comentário que beiravam a ridicularização da professora, porque nunca em suas vidas haviam visto aqueles animais ou qualquer outro sequer. Para muitas dessas crianças, não era possível acreditar que existissem tais criaturas no mundo ou pelo menos nas redondezas. Apesar de gostarem da professora, havia sempre um olhar que a julgava problemática, não muito digna de confiança, pois não havia na cidade alguém que se dispusesse toma-la como esposa, talvez porque estava perturbada, diziam que sua cabeça estava cheia de macacos, lobos e onças... para povoar sua solidão. Com o passar do ano letivo e a insistência da tia Mariana em mostrar a fauna local, um de seus alunos, Pedrinho começou a ser visitado por animais durante seus sonhos. Havia uma espécie de geração espontânea, quando meias, chinelos, blusas... se transformavam naqueles animais mostrados em classe e que alimentavam as fantasias daquela criança de dez anos. Pedrinho era uma criança que vivera até então sem contato com qualquer tipo de animal, como todas as crianças da cidade. A sensação ao acordar de manhã, para Pedrinho, era muito gratificante, o que o fazia chegar à escola muito ansioso para contar seus sonhos para as outras crianças... como suas meias, chinelos, blusas... se transformavam naqueles animais da tia Mariana. Pedrinho, uma criança pouco convencional para a cidade, era meio que franzina, meio amarela, com dentes meio tortos e uma insistente renite que lhe fazia espirrar e escorrer o nariz quase que o tempo todo. Seus colegas de classe o chamavam por vários apelidos: magrelo, amarelo, boca torta entre outros. Apesar de Pedrinho ser uma criança com um aspecto pouco sadio, tudo lhe fazia feliz e alegre, uma rachadura em um muro, uma lua minguante no céu, o vestido da professora... até mesmo sua aparência pouco convencional, enfim tudo o que existia lhe parecia engraçado. As manhãs na escola eram sempre iguais, ao entrarem na sala de aula, Pedrinho começava a contar a todos um novo sonho, até que seus colegas passaram a evita-lo e diziam-lhe para parar com as histórias, que já estavam ficando chatas e absurdas. Mas Pedrinho não parava, e cada vez mais as histórias iam se construindo e os animais se multiplicando.

Marta, filha de Rita e Antônio, ambos feirantes, que sentava ao lado de Pedrinho ficava muito incomodada com o tratamento que seus colegas dispensavam a ele e constantemente o aconselhava a continuar sonhando, com animais, lugares, pessoas, mas que não perdesse tempo em ficar contando. Não valia a pena. Pedrinho respondeu a Marta que ela não estava entendendo. Seus sonhos só tinham sentido se fossem contados às outras pessoas. Parecia que o sonho só terminava quando ele contava aos colegas. Uma daquelas manhãs, sem que os outros colegas soubessem de seu último sonho, Pedrinho fugiu da sala de aula e cruzando a cidade, que não era muito grande, entrou na floresta. Ficou lá durante uns três dias. Sua família e colegas ficaram preocupados e o procuraram, mas não o encontraram, mesmo porque ninguém entrava na floresta. Quando todos já haviam desistido de procurá-lo, até sua família, ele voltou, mais magro, sujo, arranhado e machucado... mas muito eufórico e não parava de sorrir, de gritar e de correr pela cidade. Parecia estar doente, não falava de forma clara. Passou a viver na rua, esfarrapado, descalço e com o nariz escorrendo. Não era mais possível frequentar a escola por causa de sua euforia. O médico esperava que fosse uma condição passageira, uma espécie de trauma que deve ter acontecido quando, na floresta, encontrou com alguma coisa que o tivesse assustado ou abalado, era uma questão de tempo, afinal ele entrou na floresta proibida e lá deveria ter passado por algum tipo de punição. A cidade era cinzenta, havia um ar de tristeza no ar. No entorno, montanhas que sustentavam uma rica floresta, nuvens e ventos que pouco atingia as poucas casas, algo em torno de cinquenta, espalhadas pelo vale. O vale fechado pelas montanhas apresentava uma espécie de fenda estreita, por onde passava o único caminho que conduzia para fora da cidade, mas era um lugar que ligava nada a lugar nenhum, não havia outra cidade nas redondezas, parecia que o mundo terminava ali, mais adiante da cidade. Era muito raro ver um viajante, um mendigo ou um mascate pelo caminho e que chegava à cidade. Ninguém permanecia muito tempo, no máximo uma ou duas noites, parecia que a cidade era amaldiçoada. Pairava um silêncio triste, angustiante que deixava ressoar tão somente o fluxo do rio, que perpassava pela cidade e perdia-se pela fenda, em meio às montanhas. Nenhum som de aves, insetos ou outros animais domésticos; nem mesmo uma voz mais alta dos moradores, visto que estes cochichavam entre si. A noite chegava e alimentava um cenário ainda mais sombrio, um silêncio negro e denso com uma lua, com aspecto triste, dependurada no céu, sem ninguém para uivar, trilar, coaxar ou suspirar. Há muitos anos que os animais haviam desaparecido da cidade. Alguns dos moradores mais velhos, ainda lembravamse de alguns sons de animais, como o cantar de galos, de pintassilgos... mas preferiam não lembrar, em geral calavam-se. Para os viajantes, mendigos ou

mascates que passavam por aí ficava a sensação de que os moradores tinham algum tipo de medo, de vergonha e até de saudade dos tempos partilhados com os animais. Pescadores e caçadores de outrora foram embora da cidade em busca de novas aventuras piscosas e de caça, ou como o velho Senhor José, um pescador como era conhecido, preferiu ficar na cidade e se deu a chance de virar lavrador. Vivia em sua pequena casa ao lado do rio, que não tinha mais peixe, e plantava algumas hortaliças, raízes e árvores frutíferas que não necessitavam de insetos ou pássaros para a polinização. Era uma plantação pobre e monótona, da qual, na solidão de sua vida, Senhor José assava algumas batatas em uma fogueira ao lado do rio, onde passava boa parte das noites conversando consigo mesmo ou com um espantalho que ficava de prontidão na plantação na expectativa de afastar alguma ave ou roedor que pudessem atacar sua plantação. Ainda em sua memória havia os sons e as formas dos animais que ali habitavam. Aprendera a fazer entalhes em madeira, trabalho que o ocupava dias a fio e que ao final resultava em algumas figuras de aves, cavalos, bois... Eram suas lembranças que podiam ser compartilhadas com as crianças da cidade, mais uma oportunidade dos meninos e meninas tomarem contato com aqueles animais que a professora Mariana mostrava na sala de aula. Para as crianças, que nunca tinham visto um animal, as formas chamadas de animais deixavam a impressão de que tanto a professora como o pescador, como era conhecido Senhor José, estavam alucinados pela solidão e que aquilo era contagioso. Marta tinha um grande amigo João, uma criança muito curiosa, porém medrosa. João era filho de Doralice, uma viúva e padeira que também não parecia muito lúcida, pois todas as tardes, jogava migalhas de pão na grama da praça da igreja na tentativa de atrair pássaros para a cidade, mas há muitos anos que essa estratégia não se mostrava suficiente. Doralice era mais um adulto da cidade que parecia saber de algo que lhes era proibido saber. Esses comportamentos dos adultos eram comentados, com muito cuidado, pelos dois amigos que se encontravam atrás da igreja e cochichavam e construíam segredos compartilhados durante alguns poucos minutos. Numa noite sem luar, João tomou coragem e perguntou à sua mãe sobre os motivos que levaram ao desaparecimento dos animais da cidade. Sua mãe, meio embaraçada, parou com o jantar que estava preparando, sentou-se em uma cadeira perto da janela da cozinha, que avistava o rio e a floresta do outro lado, com lágrimas nos olhos disse a João: meu filho, foi assim. Certa vez aconteceram aqui coisas de todo tipo. Coisas das quais não podemos nos orgulhar. É claro que nem todo mundo é culpado. E nós que somos culpados, não somos culpados na mesma medida. Retomando o fôlego e o momento, acho melhor não estender essa história, há muito tempo resolvemos não envolver nossos filhos nisso. Afinal, quem contou a você que um dia houve animais aqui? É uma dúvida que paira no ar. Pode ser que sim ou pode ser que nunca tenha existido animais aqui. Pois já se passou muito tempo, já esquecemos. É, esquecemos e pronto. A cidade não tem mais forças para lembrar. Pare de pensar nessas coisas e me ajude a terminar o jantar.

Uma história muito parecida havia sido contada para Marta, por sua mãe Rita, mas seu pai Antônio acrescentou que era prudente que aquela conversa não saísse de sua casa, deveria ser esquecida, enfim, seria como se nunca tivesse acontecido. Os outros pais preferiam negar qualquer história que envolvesse esse assunto. Ou contornavam o assunto e o revestiam de silêncio, principalmente na presença de crianças. Silenciosa, triste e cinza a cidade continuava sua cotidianidade de sempre: de manhã os homens e mulheres saiam para seus trabalhos e as crianças iam para a escola. Após o almoço a crianças brincavam pela cidade e à tardinha voltavam para suas casas, que junto com seus pais esperavam o anoitecer, fechavam as janelas, trancavam as portas, jantavam e dormiam para esperar o dia seguinte... Numa dessas manhãs, Marta e João estavam a caminho da escola, cochichavam sobre o silêncio de seus pais quanto ao ocorrido antigamente na cidade, e resolveram desviar o caminho e foram até o rio, onde suas margens se estreitavam e as pedras criavam uma espécie de ponte para o outro lado. De pé diante do rio e mais adiante a floresta, os dois amigos estremeceram quando ouviram o sussurrar do vento por entre as folhas das árvores de grande porte que compunham a floresta. Pensaram em voltar, mas ficaram ali, conversando e observando aquele cenário, durante toda a manhã, comeram seus lanches que levariam para a escola e ao meio-dia, voltaram para a cidade e foram para casa almoçar. Estavam espantados como o que viram e com a coragem que tiveram de chegar tão próximo da floresta proibida. No outro dia, quarta-feira, Marta e João começaram a esboçar um plano para adentrar a floresta proibida, mas a cada passo do plano um grande medo tomava conta de seus corpos. Eles não sabiam e ninguém lhes contava porque era uma floresta proibida. Para eles, todo tipo de criatura do mal ali habitava e tão somente a noite eles adentravam a cidade para aterrorizar as pessoas. Mas o plano continuava sendo arquitetado mesmo com tantas dúvidas e medos. Passados os outros dias da semana, sábado e domingo, na segundafeira, desviando-se novamente do caminho da escola, Marta e João iniciaram o plano de entrar na floresta proibida. De frente para o estreitamento do rio, tomaram coragem e atravessaram as águas limítrofes entre a cidade e a floresta. Do outro lado do rio, a floresta se erguia, era tudo muito estranho, havia árvores enormes e que faziam sombra, deixando os espaços internos da floresta um tanto escuro. Marta sussurrou para João: estou com medo, será que devemos entrar? Lembra o que aconteceu com o Pedrinho? João concordou com Marta e disse: é eu me lembro... os adultos diziam que Pedrinho havia encontrado com o mal e por isso estava sendo castigado. Por um momento, Marta e João pensaram em voltar e esquecer tudo isso. Mas, nesse momento ouviram um

som, muito melodioso e que os confortou e aguçou ainda mais suas curiosidades. De pronto começaram a andar em direção à floresta, traçaram uma linha reta e foram caminhando, estava escuro, muitas árvores e de repente, uma clareira cheia de pedras que deixava do lado direito uma fenda. Ao entrarem na fenda, esperando que fosse uma passagem, perceberam que era uma gruta e mais ao fundo, havia restos de fogueira. Marta falando bem baixinho disse com ar de dúvida: quem esteve aqui antes de nós, será que foi o Pedrinho? Saíram da gruta e continuaram a caminhar pelo outro lado, ainda se ouvia o barulho do rio, o que lhes dava a referência para voltar. Continuaram mais um pouco, e aquele som melodioso continuava... eles já haviam identificado parcialmente, acreditavam ser um pássaro, pois era parecido com os sons mostrados pela professora Mariana, durante suas aulas. Mas, não tinham idéia do tamanho ou das cores desse pássaro, nem se era um animal que pudesse atacá-los e transformá-los em refeição. Seria este o encantamento que assustava as pessoas da cidade e atacou Pedrinho? Já passava do meio-dia, o lanche já tinha acabado e era hora de voltar para casa, até para não preocupar ou assustar seus pais... então trilharam o caminho de volta ouvindo o rio. A esperança era que outro dia voltariam. Quando voltavam, tomaram, sem querer, outro caminho e saíram em outra parte do rio. Não sabiam se estavam mais a frente ou mais para trás da passagem estreita do rio. Continuaram o caminho nas margens do rio até que descobriram que estavam mais além, pois encontraram uma placa de proibido o acesso de pessoas, você está na Unidade de Conservação Parque Nacional da Floreta Negra, sob responsabilidade federal. Marta e João voltaram o mais depressa possível, atravessaram o rio e foram para suas casas. Marta chegou a sua casa e logo sua mãe a repreendeu perguntando, por que demorou tanto? Já estava ficando preocupada e quase fui até a escola para saber se você havia ficado de castigo após a aula. Marta se desculpou e disse que havia tomado outro caminho para casa, junto com o João, por isso havia demorado. Resposta que parece ter convencido sua mãe. No entanto, João também foi interpelado por sua mãe sobre a demora e sua resposta foi somente que estava com a Marta e que demoraram a chegar para o almoço. Sua mãe Doralice não ficou convencida, mas também não alongou a conversa. Marta e João agora tinham um grande segredo de verdade. Encontraramse à tarde atrás da igreja, lugar comum de seus encontros, e cochichando falaram sobre o que viram e que não sabiam o que era a tal da Unidade de Conservação. Estavam tão curiosos que procuravam de todas as formas encontrar as respostas. Lembraram que havia uma pessoa na cidade que talvez fosse mais confiável, o Padre Júlio, mas este não morava ali e vinha todo domingo rezar missa na igreja. Era muito tempo para esperar até domingo, eles precisavam de respostas mais imediatas. Outro personagem da cidade surgiu

em suas mentes, o professor aposentado, que lecionava antes da professora Mariana, era o Senhor Osvaldo, parecia ser alguém confiável e esclarecido. Então foram até sua casa. A casa do professor Osvaldo era a última, ou talvez a primeira, da rua principal da cidade, ficava praticamente na entrada da cidade. Era uma casa amarela, com janelas e portas cinza e um jardim cercado por uma cerca também cinza. Após o almoço o professor Osvaldo tirava um tempo para cochilar um pouco, acordando por volta das 15 horas. Nesse tempo, Marta e João tomaram coragem e foram conversar com o professor. Ao chegarem à casa amarela do final da rua, encontraram o professor Osvaldo sentado na varanda lendo um livro e o chamaram. Professor! Podemos conversar com o senhor? O professor logo se colocou à disposição, levantou-se, deixou seu livro sobre a cadeira e foi atendê-los. Entrem, sejam bem vindas crianças. Obrigado professor, disseram as crianças. O que trouxe vocês à minha casa? Deve ser algo muito sério! É professor Osvaldo, achamos que é muito sério e precisamos de sua ajuda. Enquanto isso, o professor convencido da seriedade das crianças tentou criar um clima mais agradável para a conversa, ofereceu aos dois um copo de suco e alguns biscoitos, o que foi aceito pelas crianças. Sentados na varanda, os olhos fixos um aos outros, perguntou o professor: Então o que é tão sério? Marta começou a falar, acho que fizemos algo muito grave e gostaríamos que o senhor não contasse para nossos pais. O professor ficou incomodado, visto que poderia ser um ato de traição para com os pais e uma conivência para com o erro das crianças, mas resolveu escuta-las e depois pensar no que fazer. Então Marta, pode contar, disse senhor Osvaldo. Professor, disse Marta, eu e o João entramos na floresta proibida. O professor franziu a testa e acrescentou, é vocês foram ousados. Usou esta expressão para não intimidá-los. E aí, o querem saber? Perguntou o professor. João tomou a palavra e perguntou, por que é uma floresta proibida? Por que na cidade não há animais? Por que nossos pais não falam sobre isso conosco? O que é Unidade de Conservação e Parque Nacional Floresta Negra? O professor Osvaldo ficou atônito e sem fôlego, mas se conteve para não assusta-los e com calma foi tentando se esquivar e não falar sobre o assunto. Isso aconteceu há muito tempo e nossa cidade quer esquecer qualquer referência a este episódio. Foi um tempo de muita tristeza. Preferia não falar sobre isso, até porque seria uma traição a um acordo que fizemos outrora, de nunca mais nos envolvermos com esse assunto. As crianças ficaram decepcionadas e tentaram insistir, mas o professor Osvaldo continuava irredutível. Não posso contar, não quero lembrar, esqueçam tudo isso e fiquem longe da floresta. Marta e João agradeceram a acolhida ao professor Osvaldo e foram embora. Há algo estranho em tudo isso, disse Marta a João, o que todo mundo quer esquecer ou não quer contar para ninguém? João acrescentou, parece que não querem contar principalmente para nós as crianças. Vamos voltar para casa, temos tarefas para fazer, para amanhã na aula de matemática. É Marta, disse João, precisamos voltar à escola amanhã, se não vamos levantar suspeitas sobre nossas explorações. Até amanhã Marta, até amanhã João.

No dia seguinte, de manhã, quando todos estavam acordando e se preparando para trabalhar, estudar, cuidar da casa... Marta e João se encontraram indo para a escola, se juntaram com as outras crianças, que os observavam há tempos e diziam entre eles que Marta e João estavam namorando... Coisas de crianças... Caçoavam dos dois e até apostavam quando teria sido ou seria o primeiro beijo... Marta e João estavam tão envolvidos com suas explorações e dúvidas que nem se importavam com os incômodos comentários. As aulas seguiram até pouco antes da hora do almoço, haveria uma reunião na escola para prepara a festa da cidade e assim, as crianças seriam liberadas mais cedo. E logo Marta e João se dirigiram para suas casas para almoçar e se encontrarem para mais uma tarde juntos. No entanto, ao chegarem próximo da casa de Marta, João morava mais adiante, viram o professor Osvaldo conversando com a mãe de Marta, dona Rita, que esboçava um ar que transitava entre a surpresa e a preocupação. Marta puxou João e se esconderam entre as árvores tortuosas da praça. Veja João, disse Marta, o que o professor Osvaldo está fazendo em minha casa, com minha mãe? Ele nunca nos visitou antes. Será que ele está contatando para minha mãe sobre nosso segredo? João ficou muito assustado, pois sua mãe poderia ficar sabendo e lhe aplicaria um castigo daqueles. Logo em seguida, o professor se despediu e foi embora. Marta chegou em casa e sua mãe a abraçou e a beijou e disse que havia recebido muitos elogios sobre sua inteligência e educação e que estava muito orgulhosa disso, porque quem lhe falou foi o professor Osvaldo, quando passava em nossa rua e em frente a nossa casa. Ele comentou que na tarde de ontem você e o João fizeram-lhe uma visita e que havia sido muito agradável. Acrescentou ainda, que há muito não conhecia crianças tão especiais. Parabéns filha... Continue assim. Mas o que vocês foram fazer na casa do professor Osvaldo ontem? Perguntou Rita sua mãe. Nada de mais, respondeu Marta, estávamos com dúvidas sobre história e fomos conversar com aquele que conhece tudo de história. É foi uma boa escolha filha. Concordou sua mãe. Ah, o professor disse que se quiserem voltar a sua casa hoje, ele tem mais histórias para contar. É mãe, que bom, vamos sim, disse Marta, eufórica e com um sorriso largo no rosto. Logo após o almoço, Marta correu até a casa de João e contou a ele sobre o convite do professor Osvaldo. João também ficou eufórico e disse, nossa que bom que ele guardou nosso segredo. Vamos até a casa dele, disse Marta. E sua mãe não desconfiou de nada Marta? Perguntou João. Não, respondeu Marta, eu contei a verdade para ela. João ficou branco e perguntou: o que? Fique tranqüilo, acrescentou Marta, disse à mamãe que procuramos o professor porque tínhamos dúvidas sobre história, e que ele era a pessoa mais indicada para nos contar. Minha mãe concordou. Então vamos, a história nos espera, disse João. Atravessaram a cidade e chegaram à casa no fim, ou seria no começo da rua, enfim na casa do professor Osvaldo, que os esperava na varanda com suco e biscoitos. Entrem crianças. Que bom que receberam meu recado, disse o

professor. Mais que depressa entraram e sentaram-se diante do professor, do suco e dos biscoitos e ficaram atentos aos olhos do senhor Osvaldo. Vocês devem estar confusos sobre meu convite, visto que ontem lhes mandei embora, dizia o professor Osvaldo, mas nosso encontro de ontem me incomodou muito e pensei muito sobre o assunto de vocês e acho que foram muito longe para que voltem de mãos vazias, assim vou contar-lhes uma história. Tudo começou muito antes que vocês crianças da cidade tivessem nascidas, no tempo em que até mesmo seus pais ainda eram crianças e não puderam compreender o que estava acontecendo em nossa região. Houve um tempo que nós os mais velhos vivíamos em numa espécie de vila, numa clareira dentro da floresta negra. Nesse momento as crianças se assustaram, mas o professor as tranqüilizou, fiquem calmos, nós vivíamos bem. Continuando, vivíamos dos frutos da floresta, da caça de animais silvestres, da pesca, quando o rio não era poluído e os peixes se amontoavam nas margens, enfim era uma relação muito fraterna entre nós, as pessoas e a floresta. Um dia, chegaram algumas pessoas vestidas de algo entre o verde e o marrom e diziam ser do governo e que precisavam falar conosco. Naquele momento, várias perguntas estavam fervilhando nas cabeças dos moradores: Quem eram aquelas pessoas? Quem era o governo? O que aquelas pessoas queriam de nós? Foram dias difíceis para nossa vila. No dia seguinte, aquelas pessoas uniformizadas e com armas na cintura nos convocaram para uma reunião. Havia uma clareira perto de nossa vila, onde ficava uma gruta, e lá nós, cinqüenta e sete pessoas, entre velhos, jovens, adultos e crianças passamos a ouvir sobre o que aquelas pessoas queriam nos dizer em nome do tal governo. Diziam eles que aquela floresta era muito importante para a região, coisa que nós já sabíamos, e que precisavam deixá-la intacta, pois do outro lado da montanha, da floresta, no outro vale estava sendo construída uma usina nuclear para gerar energia para toda a região. Marta e João fizeram uma expressão de que nada tinham entendido... Assim, o professor Osvaldo, com toda sua experiência com crianças, percebeu e disse: estou indo muito depressa. Vamos mais devagar. Primeiramente, acreditem atrás da montanha o mundo continua e precisa de energia para se manter, não era possível, na concepção que se tinha de crescimento e desenvolvimento para a região que se continuassem usando luz de vela ou de lampião como nós usamos. Assim, era necessário pensar em uma grande estrutura para produzir energia para alimentar as casas, as vendas, as igrejas, as praças... que precisavam de luz, água quente no inverno... e outras coisas mais. A usina nuclear é uma dessas estruturas que pode gerar esse tipo de energia. Entenderam crianças? Sim, acho que sim, disse Marta. O professor pediu desculpas e tomou um pouco de suco. Continuou a contar a história. Um dos homens uniformizados, um tal coronel Oliveira tomou a palavra e disse que aquela floresta seria transformada em Unidade de

Conservação, um pré-requisito para que a usina nuclear fosse construída e que não teria como voltar atrás. Como vocês crianças, as pessoas da vila e até eu que era um professor recém formado não estava inteirado do que era uma Unidade de Conservação e o que aquilo tinha a ver conosco. O coronel Oliveira nos disse que a Unidade de Conservação era um lugar protegido por lei que iria guardar todos os recursos naturais, animais, plantas, minerais, água... que poderiam ser usados no futuro para manter a vida humana no planeta. Ficamos muito felizes com essa decisão, pois a nossa floresta negra seria protegida para o futuro. No entanto, havia uma bomba para explodir sobre nossas cabeças, ou melhor, sobre nossa vila. O coronel ordenou que nós nos retirássemos da floresta negra e que seríamos removidos para uma área próxima e que não poderíamos mais viver dos recursos daquele lugar, agora Unidade de Conservação Parque Nacional Floresta Negra. Houve um alvoroço, a vila reunida falou alto, gritou, esperneou, mas fomos removidos, à força para este vale, depois do rio. Se vocês perceberem, as casas de nossa cidade são todas iguais, com o tempo pintamos de cores diferentes, mas quando viemos para cá era tudo igual, tudo branco de janelas e cercas azuis. Esse foi o primeiro trauma de nossa cidade, fomos expulsos de nossa terra, de nossa floresta. Colocaram-nos neste lugar, com status de cidade, mas sob controle de tudo aquilo que fazíamos: o que poderíamos plantar e os animais que deveríamos criar. Na verdade nossos pomares e hortas não poderiam atrair nenhum tipo de inseto ou aves para que não contaminássemos a floresta; bem como não poderíamos ter nenhum dos animais domésticos como cachorros, gatos, cabritos, bois e similares, pois poderiam entrar na floresta e comprometer a integridade da mesma. Foi aí que perdemos os animais, e com eles foram também os amigos que caçavam, tiveram que fazer outra coisa ou ir embora para além floresta. Os pescadores ainda usavam o rio, mas este ficou sujo, uma vez que passou a ser usado pela usina e da cidade em seu entorno, do outro lado da montanha. Sobrou para nós, somente essa água escura e com espuma na margem, sem peixe ou qualquer outro tipo de vida. Isso tudo, crianças, aconteceu quase que do dia para noite. Não tivemos tempo para pensar ou lutar por um lugar na floresta. No início, havia um policiamento ostensivo para que não voltássemos para a floresta, foi nos informado de forma categórica: vocês estão proibidos de entrar na floresta negra, vocês fazem mal para a floresta e nossa missão é manter esse ambiente preservado para o futuro. Já era tarde, estava quase escurecendo e o professor despediu as crianças, mas como todo adulto daquela cidade, as advertiu de que não falasse sobre aquela conversa com ninguém, aquela conversa não existiu, e que seria um segredo dos três... Assim, insistiu que pensassem sobre aquilo e voltassem quando quisessem, para questionar ou desabafar qualquer coisa. As crianças foram embora, caminharam pela rua principal da cidade com um olhar triste, com milhares de perguntas fervilhando em suas cabeças, mas

estavam calados. Entraram cada qual em sua casa, e como sempre fecharam as janelas e as portas para que mais uma noite escura e triste pudesse passar. Ainda era noite, Marta acordada resolveu olhar pela janela e visualizar a rua. Era um silêncio inercial de dar desespero. Não havia nada lá fora, somente silêncio, escuridão e a solidão que passeava pelas ruas há muito tempo. De repente, uma sombra aproximava-se, de pronto, Marta se recolheu atrás da cortina da janela de seu quarto, não se furtando do olhar para a rua, fazia um esforço para saber que sombra era aquela que se espreitava pela escuridão silenciosa da cidade. Não tardou, viu Marta que a sombra era de Pedrinho, que perambulava contente pela cidade, era um constante ir e vir da cidade para a floresta e viceversa. Marta queria tanto conversar com Pedrinho, mas seria difícil naquele momento, qualquer deslize de sua parte a colocaria, juntamente com João sob a mira da cidade, como alguém que queria trazer as lembranças que todos queriam esquecer. Assim, era melhor ter prudência e deixar seu vício de perguntadeira para outro dia, outra hora... O sono já estava chegando, era hora de se recolher. Parece que havia sido combinado, logo de manhã, Marta, a caminho da escola, se encontra com Pedrinho todo agitado, feliz, apesar de sujo e esfarrapado. Marta não perdeu a oportunidade, sentou-se na calçada e chamou Pedrinho, que assustado foi se achegando devagarzinho e também se sentou, afinal Marta era uma velha amiga. Pedrinho, disse Marta com uma voz acolhedora, como você está? Pedrinho olhando ao redor, como que verificando se não haveria perigo, respondeu: Estou muito bem. Marta continuou, mas você vive sozinho, sem banho, sem casa, sem roupas... Como você pode estar bem? Pedrinho deu um sorriso e olhando para os olhos de Marta respondeu: eu não estou doente, viver assim foi uma decisão minha, estava cansado dos deboches e provocações humilhantes de nossos colegas, das cobranças por uma postura que nunca entendi. Assim, um dia resolvi burlar todas as regras, entrar na floresta negra foi apenas uma consequência, pois eu já estava diferente, eu sonhava com o proibido e não tinha medo de contar sobre meus sonhos. Experimentei viver sem o deboche, sem a tristeza de meus pais e da cidade, conviver com a solidão... É claro que sinto falta de meus pais e de alguns amigos como você, mas conheci a liberdade e não posso mais abandona-la. Eu vivo a maior parte do tempo na floresta, em pouco tempo aprendi o código da floresta, a linguagem dos animais... Enfim estou feliz. Marta ficou impressionada com o discurso de Pedrinho, com sua coragem, mas quando foi lhe perguntar mais alguma coisa, um barulho de gente chegando assustou Pedrinho que saiu tão rápido que nem se despediu, correu em direção ao rio, provavelmente estava indo para sua casa na floresta. O barulho de gente chegando era real. Um grupo de crianças que estava indo para a escola estava passando e com eles estava o João, que chamou Marta e todos foram encontrar a tia Mariana, que já estava no portão da escola a esperar seus alunos. Todos olhavam para João e Maria e ficavam esperando o primeiro beijo em público, afinal havia uma aposta rolando entre seus colegas.

A manhã se passou. A hora do almoço já esperava as crianças em suas casas, Marta e João cumpriram com o compromisso de estar em casa com a família e de almoçarem todos juntos. Logo depois, na praça da cidade, lá estavam os dois, Marta e João, prontos para começar a seção de perguntas ao professor Osvaldo, que os esperava ansiosamente, afinal, não era todo dia que o velho professor tinha a chance de conversar com crianças tão espertas. E lá foram os dois para casa do professor. De longe, as crianças viram o professor Osvaldo no portão de sua casa e acenaram para ele, que retribuiu com toda discrição. Ao chegarem até o professor, este os convidou para entrar, mas desta vez, o professor havia preparado algo muito mais pedagógico. Sua casa fora construída, de modo que seu quintal terminasse às margens do rio e deixava a paisagem da floresta bastante à vista. Assim, o professor Osvaldo preparou em uma varanda na parte de trás da casa, mais próxima ao rio, uma mesa com biscoitos e suco e três cadeiras para acomodá-los. Marta e João chegaram e se sentaram, ficaram emocionados com a imagem que viam: o rio que corria por entre as pedras, margeado por uma mata ciliar que dava o tom de fronteira com a floresta, mas infelizmente manchada pela espuma poluidora. Marta exclamou: é tudo muito lindo! João e o professor Osvaldo concordaram. Ficaram, os três, por algum tempo, calados e imóveis contemplando aquela paisagem ao som do rio e do sussurro do vento. Havia até um odor úmido da floresta, muito familiar a Marta e João. Entre um suco e um biscoito, Marta não se conteve e contou para João e o professor que havia ficado acordada na noite anterior até mais tarde e que viu Pedrinho passeando pela cidade. De manhã, antes da escola teve uma conversa rápida com o Pedrinho, quando lhe perguntou se estava tudo bem? Se não lhe estava faltando alguma coisa? Coisas do gênero. Marta confessou que ficou com um sentimento que oscilava entre assustada e conformada, com a resposta de Pedrinho, e contou que ele disse já estar vivendo a maior parte do tempo na floresta; que não sentia falta de quase nada. Às vezes de seus pais. Também disse que tinha aprendido, em pouco tempo, o código da floresta, a linguagem dos animais... Enfim estava feliz, estava livre de todas as regras; de não entrar na floresta negra; de ser diferente; de sonhar com o proibido e não ter medo de contar sobre seus sonhos. Experimentou viver sem o deboche, sem a tristeza de seus pais e da cidade, de conviver sem a solidão... Marta, com um ar de dúvida perguntou ao professor, como pode ter acontecido isso com o Pedrinho? Como num sonho, dizia o professor Osvaldo, você, como o Pedrinho sai para caminhar e encontrar sua paisagem fervilhando de seres fantásticos. Pedrinho experimentou, em sonho, viver entre animais em uma floresta, mesmo que sob sua forma de criar a relação. Era uma coisa nova e proibida, o que ele não entendia. Foi tão bom em seu sonho que fugia de sua compreensão os motivos que poderiam tê-lo levado a ter um sentimento ou uma relação proibida. Vejam vocês, há uma postura de compreender o proibido, a boa relação... Isso é o que entendemos ser racionalidade.

Essa ideia de liberdade, continuou o professor, é um pouco contraditória, pois Pedrinho deixou as regras da cidade e se submeteu às regras da floresta... Mas, há algo muito interessante nesta fala de Pedrinho, quando ele consegue viver e falar a linguagem da floresta, é o mesmo que encontrar o mundo de seus antepassados, que na realidade era o mundo de seus pais, amigos de seus pais... Enfim, era o nosso mundo. Esse modo de responder à floresta e aprender seus códigos é uma forma de sabedoria... Acho que o Pedrinho conseguiu dizer aquilo que há muito nós aqui na cidade não conseguimos dizer... Talvez, se tivéssemos mostrado essa sabedoria de Pedrinho na ocasião da criação da Unidade de Conservação, não teríamos sido expulsos e acomodados do lado de fora de nosso mundo. Nesse momento, um silêncio se fez... Uma lágrima se formou no canto dos olhos do professor Osvaldo... Sim ele chorou quando descobriu que era possível expressar a paisagem habitual de seu sonho, a floresta. João que estava quieto e espantado com aquela situação encerrou aquele momento com questionamentos de alguém que queria recuperar o sonho da cidade: Como era a floresta negra sem nossos avós e pais? A floresta negra seria o que é sem a ajuda de nossos pais, avos...? Nesse tempo, sem nós, a floresta voltou a ser aquilo que era antes de nossa vida com ela? Nós temos saudades da floresta... Será que a floresta sente saudades de nós? Precisamos reencontrar nossa história... nossos sonhos... nossa floresta... afinal, de repente a floresta ficou sem nós... e virou essa tal de Unidade de Conservação. Que LUGAR é esse que não gosta da gente e diz que guarda a floresta para o futuro? Atento para essa fala tão madura para uma criança, Professor Oswaldo respirou fundo, olhou para os olhos de João e Marta que expressavam um misto de indignação e sofrimento e iniciou sua fala com um tom conciliador: Crianças sei que pode parecer estranho, mas depois de todos esses anos sem a floresta e vizinho da Unidade de Conservação creio que posso pensar em algo que vá além da indignação, da exclusão e até da tristeza da perda... quando fomos removidos da floresta e impedidos de ali entrar estava se desenhando um Lugar para não humanos... era um Lugar para as plantas e os animais... No entanto, esse não Lugar humano foi se configurando como um Lugar de Poder sobre nossa comunidade, era nossa fronteira entre o ser humano e o ser nãohumano... vejam o que resultou de tudo isso... o não Lugar humano da Unidade de Conservação está se constituindo em um elemento dinamizador social, estamos eu e vocês discutindo nossas histórias, nossas estratégias de conviver com o não Lugar humano, enfim estamos refletindo sobre nossos destinos. Apesar da tristeza de nossa comunidade, da saudade da floresta do medo exercido pelo poder da Unidade de Conservação ao longo de nossas vidas, um Lugar Humano vem se formando em nossa comunidade e até na própria Unidade de Conservação... é o Lugar do pensar humano, da reivindicação humana, da

organização social em torno de um objetivo... como conviver com a Natureza... talvez nossa história seja apreciada um dia como uma estratégia humana para que o homem exista como Espécie nas Unidades de Conservação. A tarde ia se findando, o sol já estava se esquivando do outro lado do vale, a cidade já estava voltando para casa e João e Marta, um pouco mais animados. Comeram o último biscoito, tomaram o resto de suco, abraçaram o professor Osvaldo e foram embora pelas ruas da cidade. Havia um pensamento em comum que passava pelas mentes de Marta e João, a floresta novamente faz parte de nossas vidas... não viver dentro dela não significa não tê-la... é um exercício de pensar que a floresta é muito mais que um Lugar de plantas e animais, é um signo que ultrapassa as fronteiras institucionais criadas pela natureza (ambiente florestal) e pelo homem, a Unidade de Conservação. João e Marta entraram em suas casas, cumprimentaram seus pais, sentaram-se à mesa para o jantar e iniciariam uma nova vida... viver o sonho de floresta de seus antepassados e conviver com o sonho de Unidade de Conservação de seu tempo. Ao fim de mais um dia, as janelas fecharam-se, as portas trancaram-se, Pedrinho perambulava pelas ruas carregando o sonho de floresta de seus pais e a cidade iria dormir para acordar para talvez um novo sonho... o sonho de ser uma comunidade organizada, feliz, próspera e vizinha da floresta de suas histórias. Adaptado de OZ, AMÓS. De repente, nas profundezas do bosque. São Paulo: Cia das Letras, 2007. Este conto foi desenvolvido para compor o Prólogo da Tese de Doutorado em Ciências Sociais - Antropologia, PUC-SP: A Manutenção da Separatividade Sociedade-Cultura-Natureza no Não-Lugar Antropológico das Unidades de Conservação de Proteção Integral, em 2008.