1 IV ENCONTRO SALMOS 97, 85, 40, 123 DEUS SALVA NO MEIO DA DOENÇA E DA FRAGILIDADE 1. Introdução As próximas reuniões decorrerão a 31 de Janeiro, 28 de Fevereiro e 28 de Março. Nesta nova etapa vamos concluir o ciclo do Natal e entrar em novos ciclos temáticos. Depois desta última etapa, porventura mais turbulenta e incerta, é ocasião de renovar o compromisso da oração. Não interessa se já rezei muito ou pouco, se fui fiel ou não: interessa tentar de novo e afirmar com a minha liberdade a vontade de seguir o caminho da oração. Para isso, definir o espaço e o tempo, bem como revisitar o método. Os novos temas põem em debate várias experiências da vida humana nas suas contradições e tensões, com o poder e a vontade de Deus. Até à Páscoa, os salmos que nos conduzirão serão muito intensos, com linguagem muito forte e existencial. Num percurso através dos salmos, são possíveis muitos itinerários. Os salmos têm uma riqueza e diversidade que lhes permite traçar vários caminhos de oração. O que temos vindo a fazer é apenas um deles que nos pede a humildade de nos deixarmos conduzir. A recitação e meditação dos salmos não pretende que adquiramos muitas ideias ou memorizemos frases importantes. A oração a partir dos salmos faz germinar internamente uma sabedoria espiritual, moldada com os sentimentos e afirmações de fé dos textos. É nesta sabedoria que o Espírito Santo trabalha. Na oração dos salmos desenvolve-se também o sentido comunitário da oração. Muitas vezes estamos a rezar a rezar sentimentos e acontecimentos que não são os do nosso presente. Mas são os de muitos irmãos nossos que, sem fé ou com fé, os vivem e sentem. Rezá-los põe-nos em comunhão com eles e como seus portas voz. 2. Salmo 97 O salmo 97 é um hino de louvor e de aclamação a Deus, como rei e juiz do universo. Todo o salmo decorre num estilo jubiloso e laudativo, cheio de intensidade musical. Ele é um convite permanente a entrar no louvor de Deus. Assim nos indicam as repetições dos verbos cantar e exultar, ajudados
2 pelos verbos aclamar e aplaudir. A repetição do nome de Deus Senhor faz-nos perceber o movimento do louvor que conflui para Deus. A primeira parte do salmo canta a acção de Deus no meio da história humana e a sua vinda cheia de poder e força ( a sua mão e o seu santo braço ). Deus fez maravilhas e ofereceu a salvação e a justiça. Todos estes dons de Deus são, em primeiro lugar, bondade e fidelidade para com o seu Povo eleito, a casa de Israel ; mas eles são dados a conhecer a todos os confins da terra e, por isso, estendem-se e destinam-se a todos os povos. Por isso, a segunda parte do salmo é o acolhimento de Deus expresso pelo cântico novo, pelo cântico perfeito que é o cântico onde todos intervêm. O salmista enumera os cantores deste cântico: terra inteira, mar, rios, montanhas. É um imenso coro que destaca a importância do louvor e a universalidade da acção de Deus. Este salmo é muito indicado para rezarmos nesta semana da epifania: a manifestação de Jesus a todos os povos simbolizada na adoração dos magos, é a realização e expressão da vinda do rei justo anunciada no salmo. Por isso mesmo, o salmo põe-nos a aclamar esta vinda que nós reconhecemos em Jesus. Concluímos o tempo no Natal em louvor e alegria por podermos contemplar Jesus como o Rei que Deus nos enviou. Sabemos que Ele vem ao nosso mundo e à nossa vida para a governar com justiça. Ele vem cheio de força, para nos ajudar a combater todas as adversidades e nos salvar. Mas esta força, em Jesus, é bondade e fidelidade : Jesus não vem destruir nem esmagar, mas sim para trazer a justiça e a salvação. A promessa do salmo começa a realizar-se na vinda do Filho de Deus. Mas, a vinda do Rei é para todos os povos: a todos se destina a salvação e, por isso, todos serão envolvidos neste cântico novo. Em tempo de Natal laicizado, quando muitos dos nossos contemporâneos já não conhecem Jesus e já não esperam nenhuma salvação, este salmo enche-nos de alegria porque Deus quer estender a sua salvação a todos os homens. O cântico novo será o cântico em que se reconhece Jesus como salvador, mas será também o cântico que finalmente incluirá todos os homens. Actualmente ele já é expressão disso: nos quatro cantos do mundo o nome de Jesus é reconhecido e aclamado e a Igreja cresce com homens de todas as raças. Por tudo isto, precisamos de cantar, exultar, bater palmas. Nunca se pode esgotar este cântico novo porque a vinda de Jesus é definitiva e completa. Este cântico é sempre novo porque a vida do Senhor não é um acontecimento do passado, guardado na história, mas é sempre do presente porque Ele é fiel. Deus, em Jesus Cristo, na vida da Igreja, continua a vir para governar. E, governando a Igreja, Ele estende o seu domínio de amor a todos os povos porque a Igreja é o seu sacramento de salvação.
3 3. Salmo 85 O salmo 85 é uma oração de súplica no meio da adversidade. É uma oração individual, carregada de serenidade e de confiança em Deus. Aliás, destaca-se essa intensa serenidade de alguém que está no meio do sofrimento. O salmista apresenta-se como pobre e desvalido mas também como fiel e servo, o que nos indica um homem profundamente crente em Deus a passar por uma situação difícil na sua vida. A denominação de servo, filho da vossa escrava é indicadora de familiaridade com Deus: era usada para indicar alguém adoptado como filho pelo chefe de família. O desenvolvimento do salmo corroborará esta apresentação do salmista. Este salmo é muito querido ao Judaísmo e é rezado na Festa do Yom Kipur (Festa da Expiação). A primeira parte do salmo é a súplica intensa a Deus por alguém que está a viver uma provação. Pede mesmo a Deus que Se incline sobre ele, escute a sua oração, atenda a sua súplica e devolva a alegria à sua alma. Esta parte do salmo insiste com Deus mas na confiança de quem reconhece que Ele é bom e indulgente e cheio de misericórdia para quem O invoca. A segunda parte é o coração deste salmo: o salmista aclama a centralidade do Senhor no meio do mundo e proclama-o como único. Por isso, o salmista evolui para uma súplica mais profunda e desconcertante: ele pretende apenas seguir o caminho do Senhor e concentrar o coração no temor de Deus. Este homem que vive a provação não se fica por aí, nem sequer põe nas dificuldades da vida o mais importante da sua oração, mas sim a necessidade de ser fiel ao Senhor e de andar na sua presença. Por isso, esta parte do salmo termina com um momento de louvor e acção de graças a Deus. A terceira parte do salmo volta à súplica pela adversidade: pede piedade, força, benevolência, socorro e consolo. Nesta terceira parte do salmo, o destaque vai para a violência dos inimigos que se voltaram contra o salmista. Depois de termos rezado o louvor e a aclamação pela vinda de Deus como rei e juiz em Jesus Cristo, vamos agora rezar as contrariedades da vida, provocadas pelas muitas adversidades que encontramos a cada passo. Todavia, o segredo deste salmo não está nas contrariedades mas sim na imensa confiança em Deus. É isso mesmo que o salmo nos pretende ensinar: no meio do turbilhão das dificuldades concretas da vida, o nosso rumo certo é voltar os olhos para Deus. Mas o salmo vai ainda mais longe porque pedir a Deus ajuda e força não é o mais importante. Acima de tudo é preciso viver em Deus, ou seja, concentrar o coração em Jesus e aprender os seus caminhos. Todas as adversidades, sejam elas quais forem, não se podem sobrepor a este caminho mais precioso de todos que é viver a partir de Deus e para Deus. Aliás, é isso que nos pode fazer caminhar de forma mais segura e fecunda no meio dos sofrimentos.
4 Tantas vezes se pretende apenas a resolução imediata e prática dos sofrimentos e se esquece a importância fundamental do caminho da alma ao encontro de Deus Mas este salmo é também ocasião para trazermos à nossa oração as adversidades concretas que estamos a viver na nossa vida actual. É muito importante torná-las conscientes e presentes na oração, apresentá-las a Deus em súplica confiante. As dificuldades podem ser interiores ou exteriores, da nossa responsabilidade ou provocadas por outros, mais fortes ou mais simples. Mas são as nossas e são aquelas que nos dificultam o caminho. Apresentá-las a Deus é deixar que Deus também seja interveniente nelas e nos indique o caminho. Mas esta oração de súplica implica dois elementos fundamentais que o salmo nos sugere: a humildade e a confiança. A humildade de quem não é autosuficiente e precisa de Deus para a resolução da sua vida. A humildade própria de quem sabe que a plena salvação e libertação apenas pode vir de Deus. A humildade de quem se reconhece frágil e precisa da força de Deus. Mas também a confiança de quem conhece a misericórdia e a fidelidade de Deus. Esta é a confiança num Deus que não é insensível, nem ausente, nem sequer indiferente às dificuldades e pesos do homem. É a confiança num Deus que faz questão de estar junto do homem e interveniente na sua história. Por isso, este é um salmo para rezarmos com verdade e confiança as nossas adversidades do momento. Seria muito bom nesta semana, enumerá-las. 4. Salmo 40 O salmo 40 introduz-nos no tema da provação provocada pela doença. Ele é a súplica de um homem doente que experimenta o peso da doença e a dureza da traição dos amigos. Este salmo é de alguém que vive o lado sombrio da sua doença e sente a amargura própria das consequências deste sofrimento. A primeira parte do salmo é uma bem-aventurança onde o salmista se revê: é feliz o homem que cuida do pobre porque será confortado e ajudado quando estiver em sofrimento. De certa forma, este é o perfil do verdadeiro amigo, onde não se encaixam os falsos amigos de que o salmista se queixa. Na segunda parte, o salmista volta-se para Deus, pedindo perdão pelos seus pecados: para o Povo de Israel, a doença é consequência e manifestação do pecado. Por isso, a dureza da doença provoca o salmista a pedir perdão, desejando de Deus a cura interior e exterior. Mas este homem doente queixase a Deus dos seus falsos amigos porque eles não estão a ser homens de paz no leito do seu sofrimento. Na língua hebraica, amigo tem como tradução literal homem de paz. No salmo, o autor revela que estes seus amigos só lhe trazem guerra, julgamento e dureza.
5 A terceira parte do salmo conclui pedindo a Deus que o conserve são e salvo e o estabeleça na sua presença para sempre. O sinal disso é a vitória sobre aqueles inimigos que não lhe dão a paz. A vitória de Deus é um sinal da bondade de Deus, mas também da sua amizade para com o salmista. Por isso, o salmo encerra com esta súplica a Deus carregada de confiança. Depois de rezarmos as várias contrariedades no salmo 85, este salmo 40 convida-nos a olhar para a experiência da doença. Nas pequenas ou grandes doenças, nos estados mais dolorosos ou nos mais permanentes de dor, esta é uma experiência que nos traz o lado negro e precário da vida e do mundo. Traz peso, inquietação, interrogação profunda, medo, desconforto, insegurança e tristeza. Em alguns casos, quando a doença em nós ou nos outros, atingiu graus de extrema gravidade e produziu um sofrimento muito profundo, emergiram interrogações intensas: o que fiz de mal para merecer este castigo? Que justiça existe nestes sofrimentos? Que destino e que sentido encontro nesta doença? Mas o salmo leva-nos ainda mais longe no sofrimento: pior do que a doença, pior do que o sofrimento físico, é a solidão. O salmo fala dessa solidão gélida que é o afastamento dos amigos ou a sua falta de cuidado. Quantos homens e mulheres enfermos, vivem o abandono, indiferença e desprezo dos seus amigos ou familiares, apenas porque agora são um peso e um empecilho? Mas é igualmente tenebrosa a presença de amigos que na doença trazem ilusões ou futilidades, agressões ou mentiras. Mas o salmo fala ainda dos nossos fantasmas diante do sofrimento: aqueles amigos que fazem maus prognósticos (no dizer do salmo) são uma parábola dos fantasmas que atacam o nosso coração. Estes fantasmas são a falta de esperança, a vida considerada apenas no seu sentido material, a vida vivida sem relação com os outros e apenas centrada em si próprio, as preocupações pelo nome e pela aparência. Por isso o salmo convida-nos a encontrar a paz no único que é nosso amigo para sempre: o Deus de Jesus Cristo. N Ele está o consolo que realmente necessitamos, porque Ele nos dá a salvação e a vida eterna. É Ele que perdura e caminha connosco, qualquer que seja a dificuldade. Ele não vende sonhos nem soluções fáceis, mas faz caminho de amor e comunhão. Ele faz connosco um caminho ao encontro dos outros, porque aí estará a verdadeira paz. A cura de Deus para o doente está precisamente nos passos que este der para se abrir mais aos outros e amá-los com doçura; mas estará também no que os seus amigos tiverem de presença, esperança, ternura e fidelidade. Este salmo é também um convite a vivermos em comunhão com quem está profundamente doente. A comunhão expressa-se em primeiro lugar na presença junto do doente e no amor por ele. Mas ela expressa-se igualmente na oração que fazemos pelo doente e em nome do doente. Este salmo ajudanos a penetrar nos sentimentos do doente e a sermos a sua boca orante.
6 5. Salmo 123 Este salmo está no grupo dos salmos de peregrinação, quando se subia para Jerusalém. Era rezado pelos peregrinos já na etapa final da peregrinação. É um salmo de acção de graças pela libertação que Deus operou ao longo da história de Israel, muito provavelmente referindo-se à libertação do exílio. O salmo destaca como a acção de Deus evitou a total aniquilação do Povo de Israel. Para isso socorre-se de uma linguagem forte, cheia de imagens, que dão densidade à intervenção salvadora de Deus. Todo o salmo mostra como este Povo estava diante de grandes perigos e adversidades que são destacados por imagens fortes: águas impetuosas, presa dos seus dentes, torrente, homens que se levantaram contra nós, armadilha. Mas todo ele é uma resposta a estes problemas: Deus evitou o mal e foi capaz de o superar. E a experiência foi de tal forma forte, que é preciso repetir para guardar na memória: Se o Senhor não estivesse connosco. Por isso, o salmista destaca que Deus não abandona o seu Povo: Ele é capaz de quebrar as armadilhas que nos prendem ao sofrimento e dar-nos a liberdade. A conclusão do salmo é, nesse sentido, o cântico que ecoa nos peregrinos a caminho de Jerusalém, agradecidos pelo dom da salvação: A nossa protecção está no nome do Senhor. Este salmo tem a sua expressão máxima na própria oração de Jesus: Ele foi quem atravessou todos os males e adversidades em união com o Pai. Ele pode dizer, depois de ressuscitado, que o Pai é bendito porque não o abandonou como presa da morte. É Jesus que nos traz permanentemente o testemunho e a garantia da protecção do Senhor. Por isso, podemos rezar com Ele esta gratidão. Depois de rezarmos os salmos 85 e 40 e meditarmos as adversidades, concluímos esta etapa com um salmo de gratidão. Os anteriores eram de súplica e este responde-lhes propondo-nos a gratidão a Deus. Aliás, a gratidão a Deus é sintoma de estarmos centrados n Ele e não em nós, de estarmos mais disponíveis para o que Ele nos dá do que propriamente para o que exigimos da vida e dos outros. Por isso, este salmo ajuda-nos a agradecer a intervenção de Deus: já experimentámos situações dolorosas na vida, mas a nossa vida não se extinguiu porque Deus esteve connosco. E o que teria sido da nossa vida, se a presença de Deus não fosse tão forte e actuante? Temos mesmo de dizer com o salmo: Se o Senhor não estivesse connosco Experimentámos até situações limite que nos fizeram ir ao limite da nossa razoabilidade e do nosso olhar de fé. Todavia, Deus não nos deixou presos na armadilha. Sabemos que Deus está do lado dos frágeis, permanece firme junto das vítimas e combate pelos oprimidos. Esse é o lugar de Deus!
7 Este salmo insiste na gratidão reconhecida à acção de Deus na nossa história humana. Tantas vezes, a gratidão é muito menos intensa e duradoura do que a súplica. Este salmo, apesar de pequeno, quer pôr em nós de forma permanente a gratidão como sentimento fundamental. Quanto mais olhamos para a nossa história pessoal, mais reconhecemos a intervenção de Deus. A gratidão é o reconhecimento dessa mesma intervenção salvadora e amorosa de Deus. Esta gratidão faz emergir a afirmação conclusiva do salmo: A nossa protecção está no nome do Senhor. A gratidão ajuda-nos a enfrentar o futuro com a certeza da protecção de Deus. Por isso mesmo é que o caminho por entre as adversidades é o caminho de buscar o nome do Senhor: só aí encontramos a protecção contra tudo e contra todos, e aí seremos inteiramente livres. Este é um salmo que quer excitar em nós a alegria pela presença e acção de Deus. Rezá-lo ao longo da semana é entrar nesta cadência de alegria e gratidão, que não queremos nunca esquecer, seja em relação ao passado, seja na vivência do presente, seja ainda para enfrentar o futuro.