UM OLHAR SOBRE O DOENTE Dizem que os olhos são as janelas da alma. É nisso em que minha mente se fixa a cada instante desde que você adoeceu. Parece-me tão próximo, e ainda me lembro: um dia, de repente, notei, inadvertidamente, que seus olhos já não eram os mesmos. Aquele seu jeito peculiar de avaliar quem chegava à porta do quarto, a cabeça levemente tombada para o lado, cílios, ah! os cílios!, sempre tão curvos e de um tom negro penetrante, acariciavam com doçura a sobrancelha que, de tão desenhada, parecia até mesmo pertencer à figura de um livro, desses que a gente compra só para pensar em como seria se as imagens do mundo correspondessem às maravilhas que podíamos contemplar nas páginas. Aquele ato, o simples observar, olhar, lançar os olhos sobre o outro, fosse quem fosse, trazia 251
consigo ainda mais um detalhe mágico: os olhos, que de tão grandes, tão redondos, davam a impressão de uma esfinge, tão infinitamente indecifráveis se mostravam...hoje, porém, já não são os mesmos aqueles olhos, seu olhar também já não o é, explicado talvez pelo brilho que se perdeu, pela vida que insiste em permanecer apesar...do tumor! Esse tumor maldito que lhe suga a vida, melhor dizendo, que a suga da vida. Na verdade, apesar das terapias, e remédios, e consultas...a despeito dos sonhos, da vida e da morte...não obstante adoecer seja, de certa forma, um re-come-çar, na medida em que obriga a enfrentar, a lutar, a assumir e a assumir-se, a doença vem roubando o que você tem de mais belo: a vontade de descobrir. E nesses tempos de torpor extremo pela minha impotência extrema, tento me lembrar por que motivo 252
escolhi a Medicina como profissão. As memórias me trazem à tona uma série sucessiva de lembranças e imagens e sons e aromas e toques...todos tão nítidos, muito embora tão abstratos agora... como no dia em que, sendo ainda criança, disse em alto e bom som, com o peito inchado de orgulho, que queria fazer algo pela humanidade. Frustro-me, agora, pois percebo que minhas mãos podem até mesmo arrancar com bravura seu câncer, vovó, mas ainda assim permaneço impotente, pois nem tônicos, nem manobras, nem intervenções cirúrgicas, nada posso fazer que traga de volta o brilho de seus lindos olhos verdes, veementes, vorazes de vida... Constato, aqui, então, que meu erro foi esquecer que, para nós, sua doença tinha significados diferentes, e na minha transgressão pequei ainda mais por me esquecer de que, para você, mais do que alcançar o estado de saúde pleno, ou ao menos 253
restaurado, era urgente viver um tempo, ainda que breve, de velhice majestosa, digna, cujo mérito foi alcançado à custa de uma lida diária dura, muitas vezes brutal, cruel, incompreendida... Perdoe-me, vovó, ou simplesmente vó, como nos bons tempos de infância eu costumava chamar aos gritos, em minhas dores e manhas, carências e birras de criança que se sabe amada, cuidada, protegida e amparada... sua médica particular tem agora que assumir que, de todos os erros, o mais grave foi o de ignorar o fato de que partimos de ideais de vida diferentes. No meu caso, quis para você uma saúde de mocinha, o que na verdade nada mais reflete do que meu desejo incontido de eternizá-la tão gigantesco é meu amor por você. No seu, apenas ter qualidade de vida, vida de verdade, não mantida pela química ou pelos experimentos que a modernidade traz. Mais importante, vó, entender que por trás de sua 254
inabalável força física se esconde uma força maior, que transcende a compreensão científica, força esta que não se acaba como se finda a nossa própria matéria. E é nisso que me apego agora...na sua perenidade! Porque sei, agora sei!, que você é perene, eterna, inesquecível... Dizem que os olhos são as janelas da alma. É nisso em que minha mente se fixa a cada instante, mas já não penso que você adoeceu. Apenas busco na memória seus olhos, e, inusitadamente, constato: eles sempre foram os mesmos...porque os olhos são a janela da alma e da vida! E a vida, vó, está em você! E ela prescinde das circunstâncias. 255