*** I. Introdução: Ad Liberanda



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Transcrição:

Jerusalém há de ser liberada e Deus há de ser amado: Bernardo de Claraval entre a Segunda Cruzada e a Mística Cisterciense Jerusalem has to be free and God has to be loved: Bernard of Clairvaux between Second Crusade and Cistercian Mystic Matteo RASCHIETTI 1 Resumo: O século XII foi uma das épocas mais vivas, turbulentas e criativas da Idade Média. Iniciada na primeira metade do séc. XI, a reforma da igreja atingiu aqui o seu êxito, especialmente na esfera monástica. Bernardo de Claraval (1090-1153) grande homem de ação, encarnou o espírito religioso da sua época. Foi também um dos fundadores da mística medieval. Pregador da Segunda Cruzada, que resultou em um malogro, escreveu no De diligendo Deo a síntese de sua experiência mística, que é também a summa da experiência monástica como um todo. Abstract: The XIIth century has been one of the most lively, turbulent and creative time of Middle Age. The reformation of the church, begun on first half of the XIth century, reaches its result, most of all in monastic sphere. Bernard of Clairvaux (1090-1153) was a great action man, incarnating the religious spirit of his epoch, and one of the founders of medieval mystic too. Preacher of the Second Crusade, which failed, wrote on De diligendo Deo the syntheses of his mystic experience that is also a summa of monastic experience as a whole. Palavras-chave: Bernardo de Claraval Segunda cruzada Amor a Deus Mística. Keywords: Bernard of Clairvaux Second Crusade Love to God Mystic. I. Introdução: Ad Liberanda *** Segundo os historiadores, Bernardo de Claraval alcançou o ápice da sua popularidade e da sua autoridade durante o pontificado de Eugênio III (1145-1153), o primeiro cisterciense a ser eleito papa. O abade de Claraval foi encarregado por este de fazer as pregações na Borgonha, na Lorena, nos Flandres e, enfim, no vale do Reno, a fim de recolher consensos para a 1 Teólogo e Filósofo (Doutorado na Unicamp. E-mail: mbrasiliensis@hotmail.com). 61

Segunda Cruzada (1147-1149), tarefa que cumpriu fielmente, escrevendo, inclusive, numerosas cartas a príncipes e bispos, convidando-os a dar seu apoio ao empreendimento. Provavelmente Bernardo foi além dos limites que Eugênio III indicara, desejando uma cruzada substancialmente francesa guiada pelo rei Luis VII; mas o significado simbólico universal que anexava à figura do imperador o impeliu a procurar também Conrado III Hohenstaufen. A relutância inicial deste foi vencida pelo abade que, obtido seu compromisso de participar da cruzada, voltou para a França em 1147 continuando suscitar, ao longo do caminho, grandes entusiasmos populares. Bernardo estava presente na assembleia de Etampes no dia 16 de fevereiro de 1147, na qual Luis VII definiu o itinerário da expedição e nomeou como regente, durante a ausência dele, Suger de Saint-Denis. No mês sucessivo, o abade de Claraval estava na Dieta de Frankfurt, durante a qual foram tomadas decisões semelhantes relativas ao ambiente alemão e, para garantir a proteção do império, estabeleceu-se a organização de uma expedição também contra os povos eslavos pagãos que ameaçavam as fronteiras da Saxônia e da Morávia. Eugênio III, mesmo contrariado, teve que aceitar a presença de Conrado III. Para o monge cisterciense carioca Luis Alberto Ruas Santos, a tentativa de dar uma explicação plausível, nos dias de hoje, a esse tipo de empreendimento, é uma das coisas mais difíceis. Ao contrário, para os cristãos da época de Bernardo, ele não era apenas legítimo, mas também santo: Fazer-se cruzado ou cruzar-se era abraçar a cruz em obediência ao mandamento de Cristo que no Evangelho pedira aos discípulos para tomar a cruz e segui-lo. Bernardo acredita que os cavaleiros que se alistam podem penitenciar-se, através dessa boa obra a serviço da cristandade, de seus pecados e excessos passados. Mais que isso, julga que os cruzados ao oferecer suas vidas, participarão da paixão de Cristo. Em sua visão, que muitos poderão considerar ingênua, a cruzada é uma obra da misericórdia de Deus, pois, alistando todo tipo de gente, homicidas, perjuros, adúlteros e outros criminosos, dá a todos uma oportunidade de salvação. 2 2 SANTOS, Luis Alberto Ruas. Um monge que se impôs a seu tempo: pequena introdução com antologia à vida e obra de São Bernardo de Claraval. Rio de Janeiro: Musa Ed., 2001, p. 56. Ricardo da Costa tem uma posição diametralmente oposta. Cf. COSTA, Ricardo da. Há algo mais contra a razão que tentar transcender a razão só com as forças da razão? : a disputa entre São Bernardo de Claraval e Pedro Abelardo. In: LAUAND, Jean (org.). Anais do X Seminário Internacional: Filosofia e Educação - Antropologia e Educação - Ideias, Ideais e História. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP) / Núcleo de Estudos de Antropologia UNIFAI / Factash Editora, 2010, p. 67-78, Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/bernardo%20versus%20abelardo.pdf 62

Após os preparativos, os cruzados partiram. O insucesso foi total. Dificuldades logísticas, tensões antes com os Bizantinos e, depois, entre Alemães e Franceses, erros militares de vário tipo fizeram com que a cruzada se concluísse sem contribuir para aliviar a pressão muçulmana nas proximidades dos Lugares Sagrados, e a volta dos cruzados na Europa foi acompanhada por uma grande decepção e por críticas que acabaram envolvendo o próprio Bernardo. Na realidade, sua atitude diante da cruzada sempre fora dirigida a privilegiar os aspectos religiosos e místicos, pelo que se depreende das suas cartas escritas em 1146 (não se conhecem os textos da sua pregação). O abade cisterciense sempre insistira no fato que a cruzada era uma ocasião de salvação, uma graça, uma possibilidade de conversão, de fazer penitência, de colocar-se ao serviço de Cristo, de obter o perdão dos pecados. Bernardo não se preocupava com os aspectos políticos e institucionais e representava o cruzado, como fizera com os Cavaleiros do Templo anos antes, como uma espécie de monge temporário, dedicado à própria conversão espiritual. No segundo livro da Consideratio, dedicada a Eugênio III, escrito após o fracasso da cruzada, tentou com muita coragem uma explicação teológica daquele acontecimento. O malogro do empreendimento, que certamente Deus demonstrara querer, foi somente por causa dos pecados dos cruzados e da conversão incompleta deles: tudo acontecera porque Deus quisera submeter à prova a fé dos cristãos através da incompreensibilidade aparente dos acontecimentos. Interpretando a cruzada segundo essa lógica, o desencorajamento geral não atingiu Bernardo, que tentou convencer Eugênio III a proclamar imediatamente outra, em vão. O malogro da segunda cruzada e a presença frequente de Bernardo nas várias cortes europeias dão azo a uma análise crítica da personalidade do abade de Claraval. Afinal, não é um paradoxo o fato de este homem declarar paixão pelo recolhimento e pelo silêncio e, ao mesmo tempo, passar a maior parte de seu tempo longe do claustro? Quem por primeiro apontou esse paradoxo foi o próprio Bernardo que, na Carta 250, escreveu sobre si mesmo chamando-se a quimera da Europa, nem clérigo e nem leigo, monge pelo hábito, mas outra coisa pela conduta. Como explicar esta personalidade polivalente em um homem como Bernardo? II. De diligendo Deo A obra, que é uma das fontes melhores para compreender a doutrina espiritual e a teologia mística de Bernardo, não se apresenta como um tratado 63

sistemático sobre esses temas, e tampouco pode ser considerada uma biografia espiritual de seu autor. A origem do escrito pode inclusive ser considerada ocasional, em resposta a um pedido do cardeal Haimeric, e na primeira parte conserva o estilo do gênero literário epistolar. Embora originada por um pedido, a obra não foi certamente improvisada: expressa temas meditados longamente e ligados a reflexões que Bernardo desenvolvera alhures, além de ser construída com equilíbrio mantendo um caráter homogêneo apesar da inserção de uma carta aos Cartuxos, que constitui sua última parte. O abade expõe as linhas fundamentais da sua espiritualidade mística também em outras obras, onde os vários temas se encontram espalhados, em particular nos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos; mas, nesse caso, a visão unitária e a clara exposição contribuem para tornar a obra singular; talvez, justamente por isso o De diligendo Deo teve uma ampla difusão e foi lido por um público mais amplo daquele do âmbito cisterciense; a tradição manuscrita, bastante homogênea, atesta que se trata de um dos escritos de Bernardo mais copiados (existe em sessenta manuscritos antigos) e indica sua imediata divulgação nas áreas francesa, inglesa, italiana e alemã. O De diligendo Deo é constituído de uma introdução e quarenta capítulos ou parágrafos, e pode ser dividido conceitualmente em três grandes partes: 1ª parte (I,1-VII,22): é a resposta, com várias digressões, ao duplo quesito do cardeal Haimeric sobre os motivos e os modos do amor do homem para Deus; 2ª parte (VIII,23-XI,23): descreve os quatro graus da escala do amor. 3ª parte (XII,34-XV,40): é a carta aos Cartuxos, na qual é examinada a lei do amor como lei universal de todo ser, inclusive de Deus. É na 1ª parte que se encontram as referências ao infiel, também identificado com judeu e pagão : Quibus haec palam sunt, palam arbitror esse et cur Deus diligendus sit: hoc est, unde diligi meruerit. Quod si infideles haec latent, Deo tamen in promptu est ingratos confundere super innumeris beneficiis suis, humano nimirum et usui praestitis, et sensui manifestis. Para aqueles que têm clareza nessas coisas, penso que esteja claro também o porquê Deus há de ser amado, ou seja, por que Ele mereceu ser amado. Se os 64

infiéis mantêm encobertas essas coisas, Deus tem à disposição os meios para confundir os ingratos a partir dos seus inumeráveis benefícios, concedidos para a utilidade do ser humano e manifestos aos sentidos (II,2). Quis vel infidelis ignoret, suo corpori non ab alio in hac mortali vita supradicta illa necessaria ministrari, unde videlicet subsistat, unde videat, unde spiret, quam ab illo, qui dat escam omni carni (Psal. CXXXV, 25); qui solem suum oriri facit super bonos et malos, et pluit super justos et injustos? (Matth. V, 45.) Quem, mesmo infiel, poderia ignorar que aquelas coisas acima mencionadas e necessárias para o corpo nessa vida mortal, quer dizer, para existir, para ver, para respirar, não são fornecidas senão por Aquele que dá alimento a toda carne (Sl 135,25), que faz nascer o sol sobre os bons e sobre os maus, e chover sobre os justos e os injustos? (Mt 5,45) (II,6). Meretur ergo amari propter se ipsum Deus, et ab infideli: qui etsi nesciat Christum, scit tamen seipsum. Proinde inexcusabilis est omnis etiam infidelis, si non diligit Dominum Deum suum ex toto corde, tota anima, tota virtute sua. Deus, portanto, merece ser amado por causa dele mesmo, inclusive pelo infiel que, se não conhece Cristo, pelo menos conhece si mesmo. Por conseguinte, não há desculpa para aquele que, mesmo infiel, não ama o Senhor Deus com todo seu coração, com toda sua alma, com toda sua virtude (II,6). CAPUT III. Christiani quantos habeant stimulos amandi Deum prae infidelibus. 7. Contra quod plane fideles norunt, quam omnino necessarium habeant Jesum, et hunc crucifixum: dum admirantes et amplexantes supereminentem scientiae charitatem in ipso, id vel tantillum quod sunt, in tantae dilectionis et dignationis vicem non rependere confunduntur. Facile proinde plus diligunt, qui se amplius dilectos intelligunt: cui autem minus donatum est, minus diligit. Judaeus sane, sive paganus, nequaquam talibus aculeis incitatur amoris, quales Ecclesia experitur, quae ait, Vulnerata charitate ego sum: et rursum, Fulcite me floribus, stipate me malis, quia amore langueo (Cantic. II, 4, 5). CAPÍTULO III. Quantos estímulos têm os cristãos para amar a Deus em relação aos infiéis. 7. Os fiéis, ao contrário, sabem claramente o quanto seja necessário Jesus, o crucificado: enquanto admiram e abraçam a caridade, que nele é maior do que a ciência, envergonham-se por não retribuir aquele pouquinho que são em troca de tamanho amor e consideração. Porque amam mais facilmente aqueles que compreendem ser mais amados: mas para quem foi dado menos, também ama menos. Certamente um judeu ou um pagão de maneira nenhuma é estimulado pelos acúleos do amor, que a Igreja experimenta quando diz: Estou ferida pela caridade, e ainda: Sustentai-me com flores, enchei-me de maçãs, porque estou doente de amor (Ct 2,4-5) (III,7). 65

Caeterum infidelis non habens Filium, nec Patrem proinde habet, nec Spiritum sanctum. De resto, o infiel que não tem o Filho em seu íntimo, não tem de consequência nem o Pai e nem o Espírito Santo (V,14). 3 Há ainda uma referência ao ímpio (impius) relacionado com o servo (servus impius, II, 5) ou com aqueles que in circuitu impii ambulant, naturaliter appetentes unde finiant appetitum, et insipienter respuentes unde propinquent fini nesse descaminho os ímpios perambulam, cobiçando por lei natural onde levar a cabo a ambição, mas afastando tolamente o modo de aproximar-se do fim (VII,19), assim como aos injustos (injustos, na citação evangélica de Mt 5,45). Contudo, há de se convir que essas referências podem ser relacionadas também aos maus fiéis. Em relação aos judeus, entretanto, Ricardo da Costa destaca uma atitude singular do abade de Claraval: pouco antes da Segunda Cruzada, preocupado com os pogroms (movimentos populares de violência dirigidos contra os judeus) que vinham ocorrendo na Europa, escreveu uma carta aos arcebispos da França oriental e da Baviera, manifestando sua apreensão: Não se deve perseguir, nem trucidar, nem mesmo expulsar os judeus. Interrogai a quem conhece as divinas páginas, que profetizam o salmo sobre os judeus, e o que diz a Igreja: Deus me mostrou respeito aos meus grandes inimigos, para que não os mates, para que não se esqueçam de meu povo (Sl 58, 12). Eles são para nós uma memória viva que nos representam a Paixão do Senhor. Por isso vivem dispersos pelas regiões, e ao chorar por onde quer que estejam as justas penas de um crime tão grande, são testemunhos perenes de nossa redenção. Por isso, a Igreja acrescenta a esse mesmo salmo: Dispersai-os e derrubai-os com Tua virtude, Senhor, nosso protetor (Sl 58, 15). E assim aconteceu: estão dispersos, estão humilhados, e não suportam esse cativeiro sob os príncipes cristãos. Mas se converterão à tarde, e a seu tempo serão vistos com benevolência (Sab 3, 6). E, finalmente, quando for reunida a plenitude dos gentios, diz o apóstolo (Rm 11, 25-26), Israel se salvará. Enquanto isso, o que morre permanece na morte (Jo 3, 14). 4 3 BERNARDUS CLARAVALLENSIS. De diligendo Deo (trad.: Matteus Raschietti), p. 326 (o grifo é nosso). Está para ser publicada a tradução completa da obra pela Editora Vozes. 4 COSTA, Ricardo da. Então os cruzados começaram a profanar em nome do pendurado. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo conde Emich II von Leiningen ( c.1138) contra os judeus renanos, segundo as Crônicas Hebraicas e cristãs. In: LAUAND, 66

Apesar das palavras de Bernardo, os ímpetos antijudaicos das massas se manifestaram com toda violência e atrocidade. IV. Conclusão É sempre difícil emitir um juízo sobre um autor como Bernardo que viveu há mais de novecentos anos. O pensamento contemporâneo não hesitaria em mover críticas contra ele, principalmente quanto às formas e aos meios com os quais procurou atingir suas metas. Os coevos dele, entretanto, consideraramno um santo, e não lhes pareciam contraditórios os diferentes papéis que assumira: monge, contemplativo, homem de ação, propagandista da cruzada. O próprio monge tinha consciência disso quando, diante das críticas pelo fracasso da segunda cruzada, no Livro II, 4 da Consideratio, desabafa: Importa-me minimamente o que julgam de mim (1Cor 4, 3) aqueles que chamam mal ao bem e bem ao mal, trevas à luz e luz às trevas. (Is 5, 20) Se é preciso escolher, prefiro que os homens murmurem de mim, não de Deus. Para mim é bom servir-lhe de escudo. Acolho com boa vontade as detratoras línguas maledicentes (Pr 25, 23) e os venenosos dardos blasfemos de meus detratores, contanto que não cheguem até Ele. Suporto qualquer inglória para que a glória de Deus não sofra menosprezo. Sentir-me-ia glorificado se pudesse dizer: Por ti suportei opróbrios, a confusão cobriu meu rosto. (Sl 68, 8) Para mim é uma glória compartilhar a sorte de Cristo, que disse: Os opróbrios com que te insultam caem sobre mim (Sl 68, 10). 5 Bernardo, filho de seu tempo, carregando em si tantas contradições, não nos exime de descobrir os tesouros ocultos na personalidade do grande homem de Deus que foi e na mensagem de liberdade radical que quis deixar à posteridade: Proinde ubi jam non erit miseriae locus, aut misericordiae tempus; nullus profecto esse poterit miserationis affectus. Jean (org.). Filosofia e Educação Estudos 8. Edição Especial VIII Seminário Internacional CEMOrOc: Filosofia e Educação. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP) Factash Editora, 2008, p. 35-61. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/malembernardo.htm. Acesso em: 21 de fevereiro de 2010. Os grifos são nossos. 5 BERNARDO DE CLARAVAL. Ao papa Eugenio, Da Consideração (1149-1152), Livro II, 4 (trad. Ricardo da Costa). Internet, http://www.ricardocosta.com/textos/bernardo3.htm 67

Quando não haverá mais lugar para a infelicidade ou tempo para a compaixão, certamente não haverá mais o sentimento da piedade (XV,40). 6 *** Fontes BERNARDUS CLARAVALLENSIS. Obras completas. Madrid: BAC, 1983-1993. Esta é a publicação mais acessível aos leitores de língua portuguesa, preparada pelos monges cistercienses da Espanha, em oito volumes. Trata-se de um texto crítico bilíngue (latimespanhol), com excelentes introduções e notas. BERNARDO DE CLARAVAL. De diligendo Deo Deus há de ser amado. Tradução de: M. RASCHIETTI. Está para ser publicada a tradução completa da obra pela Editora Vozes. ISBN 978-85-326-3959-2. COSTA, RICARDO da (trad.). Carta de Bernardo a Roberto, seu sobrinho, que mudou da ordem cisterciense para a cluniacense. Internet, http://www.ricardocosta.com/textos/bernardo.htm. Sermão 80 sobre o Cantar dos Cantares. Internet, http://www.ricardocosta.com/textos/bernardo4.htm. Ao papa Eugenio, Da Consideração (1149-1152). Internet, http://www.ricardocosta.com/textos/bernardo2.htm LAUAND, J. Sermão sobre o conhecimento e a ignorância. (Sermão 36 sobre o Cântico dos Cânticos). Internet, http://www.hottopos.com/mp4/gazali_mplus4.htm#serm Bibliografia COSTA, Ricardo da. Há algo mais contra a razão que tentar transcender a razão só com as forças da razão? : a disputa entre São Bernardo de Claraval e Pedro Abelardo. In: LAUAND, Jean (org.). Anais do X Seminário Internacional: Filosofia e Educação - Antropologia e Educação - Ideias, Ideais e História. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP) / Núcleo de Estudos de Antropologia UNIFAI / Factash Editora, 2010, p. 67-78, Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/bernardo%20versus%20abelardo.pdf COSTA, RICARDO da. A transcendência acima da imanência: a Alma na mística de São Bernardo de Claraval (1090-1153). In: Revista Anales del Seminario de Historia de la Filosofía. Madrid: Publicaciones Universidad Complutense de Madrid (UCM), vol. 26 (2009), p. 97-105. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/ashf0909110097a.pdf COSTA, Ricardo da. Duas imprecações medievais contra os advogados: as diatribes de São Bernardo de Claraval e Ramon Llull nas obras Da Consideração (c. 1149-1152) e O Livro das Maravilhas (1288-1289). In: PONTES, Roberto, e MARTINS, Elizabeth Dias (orgs.). Anais do VII EIEM - Encontro Internacional de Estudos Medievais - Idade Média: permanência, atualização, residualidade. Fortaleza/Rio de Janeiro: UFC / ABREM, 2009, p. 624-630. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/advogados.htm COSTA, Ricardo da. Querer o bem para nós é próprio de Deus. Querer o mal só depende de nosso querer. Não querer o bem é totalmente diabólico : São Bernardo de Claraval (1090-1153) e o mal na Idade Média. In: Anais do II Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião, Belo Horizonte, ISTA/PUC Minas, 2007. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/emich.htm 6 BERNARDUS CLARAVALLENSIS. De diligendo Deo. Op. cit. 68

COSTA, Ricardo da. Então os cruzados começaram a profanar em nome do pendurado. Maio sangrento: os pogroms perpetrados em 1096 pelo conde Emich II von Leiningen ( c. 1138) contra os judeus renanos, segundo as Crônicas Hebraicas e cristãs. In: LAUAND, Jean (org.). Filosofia e Educação Estudos 8. Edição Especial VIII Seminário Internacional CEMOrOc: Filosofia e Educação. São Paulo: Editora SEMOrOc (Centro de Estudos Medievais Oriente & Ocidente da Faculdade de Educação da USP) Factash Editora, 2008, p. 35-61. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/malembernardo.htm MESCHINI, M. San Bernardo e la Seconda Crociata. Milano: Mursia, 1998. RICHÉ, P. Vida de São Bernardo. Tradução do original francês. São Paulo: Loyola, 1991. SANTOS, L. A. R. Um monge que se impôs a seu tempo: pequena introdução com antologia à vida e obra de São Bernardo de Claraval. Rio de Janeiro: Musa Ed., 2001. 69