CONFLITOS DE USO DA TERRA EM LAGUNA: ÁREAS URBANAS VERSUS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS PRÉ-HISTÓRICOS. Guilherme Linheira 1



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CONFLITOS DE USO DA TERRA EM LAGUNA: ÁREAS URBANAS VERSUS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS PRÉ-HISTÓRICOS Guilherme Linheira 1 RESUMO Os sítios arqueológicos pré-históricos do município de Laguna, SC têm sofrido intenso processo de descaracterização, especialmente nas últimas três décadas. Apesar da legislação que os protegem, os sítios têm sido altamente impactados principalmente por ações relacionadas à urbanização. Através da construção e análise de mapa de cobertura e uso da terra, podemos verificar a relação espacial entre os sítios arqueológicos e áreas urbanas. Além disso, o mapa pode fornecer a localização de áreas prioritárias às ações de proteção. Palavras-chave: Laguna. Sítios arqueológicos pré-históricos. Urbanização. Uso da terra. ABSTRACT The prehistoric archaeological sites of the city of Laguna, SC have suffered intense process of distortion, especially in the last three decades. Despite laws that protect them, the sites have been heavily impacted by actions primarily related to urbanization. By constructing and analyzing coverage map and land use, we can see the spatial relationship between the archaeological sites and urban areas. Moreover, the map can provide the location of priority areas for protection actions. Keywords: Laguna. Prehistoric archaeological sites. Urbanization. Land use. 1 Geógrafo/CREA-SC. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN/SC, Rua Conselheiro Mafra, XXX. E-mail: glinheira@hotmail.com. 246

INTRODUÇÃO Estudar, compreender e atuar sobre a cidade é vital para a nossa sociedade, visto ser o espaço onde vive parcela crescente da população mundial. Além disso, é no espaço urbano que os investimentos do capital são maiores e ainda onde os conflitos sociais se evidenciam com maior intensidade. 2 Uma das abordagens da Geografia no fenômeno das cidades é o estudo dos padrões espaciais. Para isso, identifica, explica e localiza a distribuição de fenômenos, tanto físicos quanto humanos, observando suas semelhanças e contrastes. 3 É preciso ressaltar que o termo genérico cidade tornou-se impreciso para expressar as produções sociais que surgiram a partir da década de 40 no espaço urbano. Essa mudança ocorre a partir do surgimento de moradias em locais desprovidos de infraestrutura e serviços, esquecidos pelo poder público, composto por população de pobres e excluídos, chamada de cidade clandestina ou cidade fora da lei, que resulta em formas, funções e estruturas incomparáveis com as das cidades formais. 4 Um dos padrões espaciais que podem ser abordados é o de cobertura e uso da terra. Segundo o IBGE 5, o Levantamento da Cobertura e Uso da terra indica a distribuição geográfica da tipologia de uso, identificada através de padrões homogêneos da cobertura terrestre. A partir da construção de mapa de Cobertura e uso da Terra do município de Laguna, buscou-se identificar os conflitos de uso solo entre sítios arqueológicos préhistóricos e as áreas urbanizadas. 1. Características e ocupação da área de estudo O município de Laguna se localiza na região do litoral sul catarinense, distando aproximadamente 120 km (malha viária) da capital Florianópolis. Faz divisa com os municípios de Imbituba, Imaruí, Capivari de Baixo, Gravatal, Jaguaruna e Tubarão. 2 CORRÊA, R. L.,O espaço urbano, 1989. 3 CLARK, D., Introdução a Geografia Urbana, 1985. 4 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA IPEA, Instrumentos de planejamento e gestão urbana em aglomerações urbanas: uma análise comparativa, 2002. 5 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA IBGE, Manual de cobertura e uso da terra, 2006. 247

Figura 1: Mapa de localização do município de Laguna, SC. Fonte: Elaboração do autor. A população do município de Laguna é de 51.562 habitantes, apresentando um crescimento de 8,23% entre os anos de 2000 e 2010. Destes, 40.655 (78.85% do total) residem em área urbana, ao passo que 10.907 (21.15% do total) residem em área rural. 6 O município é subdivido em quatro regiões. Ao Sul, a denominada Ilha de Laguna, na porção nordeste o Distrito do Ribeirão, na porção centro-oeste o Distrito da Pescaria Brava, na região central Distrito Sede. Laguna, assim como São Francisco do Sul e Florianópolis, são os núcleos urbanos mais antigos de Santa Catarina. Diante deste fato, são os locais onde os impactos da ocupação humana são observados de modo mais profundo quando comparado a outros municípios do litoral catarinense. De forma sintética, o fenômeno da urbanização pode ser entendido como o crescimento físico e populacional das cidades. Já o termo desenvolvimento urbano denota uma melhoria nas condições dessa urbanização tanto em aspectos de infraestrutura urbana quanto em aspectos sociais. O patrimônio arqueológico pré-histórico conhecido até agora em Laguna consiste em 56 sítios. 7 6 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE), Censos demográficos do Brasil - 2000 e 2010. 7 FARIAS, D. S. E.; KNEIP, A., Panorama Arqueológico de Santa Catarina, 2010. 248

O mapa a seguir mostra a distribuição destes sítios na área do município. Figura 2: Mapa de localização dos sítios no município de Laguna, SC. Fonte: Elaboração do autor. A ocupação do território hoje ocupado pelo município de Laguna remonta a préhistória, sendo os sítios arqueológicos o registro dessa ocupação. Os testemunhos mais antigos são chamados de sambaquis. As datações mais antigas obtidas no município são de aproximadamente 5.000 anos A.P. 8 9 8 A.P. refere-se a antes do presente e tem como referência o ano de 1950, quando foram iniciadas as datações radiocarbônicas. 9 FARIAS, D. S. E.; KNEIP, A., op. cit., 2010. 249

Os sambaquis constituem um tipo de sítio arqueológico pré-histórico de excepcional exuberância, pois destacam-se na paisagem uma vez que são resultados da acumulação de diversos tipos de conchas, ossos e outros materiais, chegando a atingir dezenas de metros de altura. Por este motivo, seus construtores receberam o nome de Sambaquieiros. As motivações de construção dos Sambaquis e o sua função ao homem préhistórico é ainda amplamente discutido na comunidade científica. O que fomenta essa discussão são as informações extraídas dos vestígios materiais resgatados em escavações sistemáticas e que, gradativamente, permitem que a pré-história regional seja conhecida. No município de Laguna, além dos sítios do tipo sambaqui, são encontrados sítios líticos e cerâmicos, todavia estão relacionados à ocupações mais recentes, aproximadamente 2.000 anos A.P. e seus testemunhos normalmente encontram-se em superfície ou subsuperfície. Dos 56 sítios registrados por Farias e Kneip 49 foram atribuídos a cultura Sambaquieira, outros 7 atribuídos às culturas ceramistas. de Já a ocupação no período conhecido como histórico, isto é, após contato entre nativos e europeus, data de 1684, quando então foi fundada a vila de Santo Antônio dos Anjos de Laguna por Domingos de Brito Peixoto. Nesse período houve apenas uma pequena urbanização na área com a construção de uma igreja e do paço municipal. Desde então, o território vem sofrendo sistematicamente com o acelerado e desordenado processo de urbanização. Entre 1748 e 1756 a coroa portuguesa inicia um plano de adensamento populacional, incentivando diversos casais da Ilha dos Açores a imigrarem para Laguna. Este aumento populacional gerou a ocupação de novos espaços e a construção de diversas edificações. Não há como relatar a história do município de Laguna sem citar movimento separatista que resultou na independência da República Juliana, cuja capital era em Laguna. A República Juliana foi declarada independente do Brasil em 24 de julho de 1839, durando até 15 de novembro de 1839 quando declinou sob forte intervenção militar do Império. A presença do porto natural, fez com que rapidamente Laguna assimilasse a dinâmica portuária. Ao longo do século XIX diversos produtos foram escoados pelo 250

porto, entre eles o gado oriundo do Planalto Catarinense posteriormente o carvão oriundo da Região Carbonífera Catarinense. A intensificação dos fluxos de comércio possibilitou a origem de uma classe social com maior poder aquisitivo, que por sua vez construiu casas mais sólidas, alavancando o processo de urbanização. O início do século XX foi o momento onde o processo de desenvolvimento urbano foi mais intenso desde sua fundação. Surgiram nesta época a sede do primeiro jornal, a Biblioteca Popular, o primeiro hotel, hospital, o Teatro Sete de Setembro e o Mercado Público. Segundo o IBGE 10 até o ano de 1966 o município de Laguna enquadrava-se na classificação de centro de atração regional, cuja área de influência se estendia principalmente por Tubarão, Jaguaruna, Imaruí, Imbituba e Garopaba. Após 1966 perdeu a posição para o município de Tubarão, melhor localizado em relação aos fluxos de pessoas, serviços e capital. Após um período de estagnação uma nova atividade econômica desenvolve-se em Laguna: o turismo de veraneio. Neste sentido, diversos loteamentos foram implantados nos balneários. Esta ocupação foi completamente imposta, diferente de outros bairros da cidade que se expandiram naturalmente. 2. Impactos e ameaças ao patrimônio arqueológico Diante da falta de legislação e fiscalização eficiente, os impactos dessa ocupação histórica resultaram em grandes descaracterizações da paisagem, em especial os sítios arqueológicos pré-históricos. Impactos e conflitos Sobre os impactos sofridos nessas regiões Bonetti 11 observa que é o desenvolvimento turístico que tem implicado as maiores alterações sócio-ambientais da região. Com diferentes graus de intensidade, toda a faixa costeira tem experimentado intensas transformações a partir do crescimento urbano e da exploração turística, na maioria das vezes comprometendo o meio ambiente, a paisagem e as estruturas urbanas preexistentes. 10 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE, Censo demográfico do Brasil, 2000. 11 BONETTI, T., Discutindo a gestão urbana das áreas costeiras: O caso do Farol de Santa Marta, 2011. 251

que Quanto ao rápido crescimento urbano e aumento populacional a autora defende vem se desenvolvendo à margem de um efetivo processo de planejamento que integre ações individuais em um projeto coletivo de cidade, dada a fragilidade dos planos e formas de controle existentes, levando a problemas urbanos e ambientais. Em estudo realizado por Farias 12 identificou-se como fatores que contribuem para a degradação dos sítios arqueológicos na região do município de Laguna: a) a urbanização desenfreado e sem planejamento; b) obras de infraestrutura sem estudos arqueológicos; c) a falta de comprometimento da comunidade local, de órgãos públicos e de profissionais da área ambiental; d) ausência de políticas públicas municipais para a preservação do patrimônio arqueológico. Outro fator que possibilita a destruição dos sítios arqueológicos é a ausência de um zoneamento urbano municipal que proteja o sítio. Esta ausência possibilitou durante muitos anos a instalação de diversos empreendimentos imobiliários e casas em áreas de sítios arqueológicos e no seu entorno, causando diversos conflitos de uso da terra. 13 3. Cobertura e uso da terra O mapa a seguir mostra a Cobertura e Uso da Terra no município de Laguna, sistematizado através de software de Sistema de Informações Geográficas (SIG). 12 FARIAS, D. S. E. de., Relatório final do estudo de preservação e proteção para o Parque Arqueológico do Sul, 2009. 13 CITTADIN, A. P., Laguna, Paisagem e Preservação: o patrimônio cultural e natural do município, 2010. 252

Figura 3: Mapa de cobertura e uso da terra, Laguna, SC. Fonte: Elaboração própria. Ao analisarmos o mapa de uso e cobertura da terra, podemos verificar que as principais áreas urbanizadas do município estão no Distrito Sede e nas faixas adjacentes a BR-101. Outras manchas urbanas são visíveis ainda nas margens das lagoas e nas reentrâncias do litoral, em especial nos balneários de Santa Marta, Galheta, Ipoã, Teresa e Praia do Sol. 253

Com relação aos usos conflitantes, o mapa nos mostra que ocorrem com maior intensidade na área dos balneários, porém existem ocorrências em todas as regiões do município. Aparentemente, estes conflitos são de natureza semelhante, isto é, os núcleos urbanos expandiram-se e ocuparam as áreas dos sítios ou o seu entorno. No entanto, existem duas realidades bem distintas. A primeira ocorre nos balneários da Galheta, Ipoã e Farol de Santa Marta. Apesar da ocupação destes locais terem se iniciado por núcleos de pescadores, atualmente são formadas quase que totalmente por moradias de veraneio de bom padrão construtivo. Neste sentido, o atrativo à ocupação destes espaços foi a proximidade das praias e a beleza cênica do local. Vale ressaltar que em alguns casos esta ocupação não respeitou a legislação ambiental, sendo objeto de litígio jurídico até os dias atuais. 254

Figura 4: Casas de bom padrão construtivo edificadas na área de entorno de sítio arqueológico no balneário da Galheta em Laguna-SC. Fonte: Arquivo IPHAN/SC. Uma segunda realidade está relacionada a assentamentos urbanos subnormais, como no caso das comunidades do Morro do Peralta e do Perrixil. A ocupação destes espaços decorre da necessidade de assentamento de populações de baixa renda, que sem ter opções acabam ocupando qualquer área, causando significativo impacto ao ambiente e eventualmente ao patrimônio arqueológico. Figura 5: Casa edificada em área de sítio arqueológico na comunidade do Morro do Peralta, no Distrito Sede de Laguna-SC. Fonte: Arquivo IPHAN/SC. É importante compreender essas duas realidades distintas, pois cada uma delas requer estratégias próprias, de acordo com as especificidades de cada local. Como já citado, em ambos os casos os conflitos ocorreram devido a ausência de planejamento urbano no âmbito municipal. É importante ressaltar que até a década de 70, as politicas de planejamento e gestão urbana no âmbito nacional consistiam em pequenos programas dos quais 255

participavam apenas estados ou municípios que tivessem condição de assumir grandes financiamentos. Somente a partir da Constituição Federal promulgada em 1988 o planejamento urbano ganhou embasamento jurídico através dos artigos 182º e 183º. Já no ano de 2001, foi aprovada a Lei 10.257/01, mais conhecida como Estatuto das Cidades. Dentre a normatização estabelecida, vale destacar: Art. 2º: A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...) XII proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico. Uma outra grande contribuição do Estatuto das Cidades foi o estabelecimento da obrigatoriedade do Plano Diretor para municípios com mais de 20 mil habitantes. Dessa forma, delegou aos municípios a responsabilidade de gerir o seu crescimento. Vale ressaltar que o objetivo principal do Plano Diretor não é o de executar ações que busquem solucionar de imediato os problemas da cidade. Pelo contrário, o Plano busca estabelecer estratégias que combatam os problemas e que evitem sua recorrência em longo prazo. Atualmente, o Plano Diretor do município de Laguna encontra-se em fase de votação. Apesar da lei do Estatuto das Cidades ter sido promulgada em 2001, até o ano de 2012, isto é, 11 anos depois, o município de Laguna ainda não aprovou o seu plano. Neste sentido, a regulamentação de uso da terra em Laguna é ainda definida pela lei municipal nº 4 de 6 de março de 1979, que estabeleceu o zoneamento urbano do município. O zoneamento classifica as áreas dos sítios arqueológicos como Zona de Proteção Permanente (ZPP). O Plano Diretor que está em fase de votação por parte do poder público reserva uma atenção mínima ao patrimônio arqueológico, não condizente com a realidade do município, que até o presente momento possui 56 sítios registrados em seu território. O Plano Diretor é tão falho que, ora aponta a existência de 24 ora aponta a existência de 44 sítios arqueológicos no município, sendo que ambas as informações estão defasadas da realidade. Conforme já citado, um dos objetivos do Plano Diretor é o de estabelecer estratégias para a resolução de problemas municipais, como os conflitos de uso da terra. 256

No entanto, com relação aos conflitos relacionados aos sítios arqueológicos, o Plano não cita nenhuma estratégia, nem para resolver os conflitos atuais como para evitar o surgimento de novos conflitos. Vale lembrar que os sítios arqueológicos pré-históricos são protegidos por diversas leis, entre elas destacam-se: Constituição Federal de 88 (Art.215 e 216), Lei Federal 1961, Resolução CONAMA 01/86, Portaria SPHAN 07/88, Portaria IPHAN 230/02. Apesar de toda a normatização já existente, do conhecimento da importância de conservação dos sítios arqueológicos pré-históricos, esses espaços não são respeitados e tão pouco protegidos pelo poder público municipal. Pelo contrário, a ausência se sua ação e fiscalização tem permitido que os sítios sejam sistematicamente descaracterizados e gerando como consequência mais grave a impossibilidade de estudo da pré-história da região. REFERÊNCIAS BONETTI, T. Discutindo a gestão urbana das áreas costeiras: O caso do Farol de Santa Marta. 2011. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, UFSC, Florianópolis, 2011. CITTADIN, A. P. Laguna, Paisagem e Preservação: o patrimônio cultural e natural do município. 2010. 199 f. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, UFSC, Florianópolis, 2010. CLARK, D. Introdução a Geografia Urbana. São Paulo: Difel, 1985. CORRÊA, R. L. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 1989. FARIAS, D. S. E. de. Relatório final do estudo de preservação e proteção para o Parque Arqueológico do Sul. UNISUL, CEPAARQ, USP. 2009. FARIAS, D. S. E. de.; KNEIP, A. Panorama Arqueológico de Santa Catarina. UNISUL, 2010. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRÁFIA E ESTATÍSTICA IBGE. Manual de cobertura e uso da terra, 2006. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censos demográficos do Brasil - 2000 e 2010. 257