AUTORES: JOSÉ RICARDO CUNHA, CAROLINA DE CAMPOS MELLO E PAULA SPIELER 4ª edição ROTEIRO De CURSO 2009.1
Aula 17: Direitos Humanos e a questão da criança e do adolescente NOTA AO ALUNO A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 1989 e vigente desde 1990 é o tratado de direitos humanos que mais se aproxima da ratificação universal. Abrangendo tanto direitos civis e políticos quanto direitos econômicos, sociais e culturais, a Convenção estabelece, como regra geral, que criança é o ser humano com menos de 18 anos de idade. Além de enumerar direitos específicos à criança, a Convenção estabelece um princípio regedor de toda a normativa protetiva: o melhor interesse da criança: Artigo 3 1. Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por autoridades administrativas ou órgão legislativos, devem considerar, primordialmente, o interessa maior da criança. Para o monitoramento das obrigações, a Convenção estabeleceu ainda o Comitê sobre os Direitos da Criança, o qual recebe relatórios periódicos dos Estados. Não há previsão da sistemática de comunicações interestatais e de petições individuais. Tendo em vista o zelo por determinadas questões que afligem crianças em todo o mundo, foram aprovados pela Assembléia Geral, em 25 de maio, dois Protocolos: o Protocolo Facultativo sobre a Venda de Crianças, Prostituição e Pornografia Infantis e o Protocolo Facultativo sobre o Envolvimento de Crianças em Conflitos Armados; ambos assinados pelo Brasil em 2000. No âmbito interno, o constituinte já havia consolidado no Texto Constitucional todo o debate acerca da necessidade de uma proteção especial às crianças e aos adolescentes. Não somente reservou um capítulo à família, à criança, ao adolescente e ao idoso, como estabeleceu a proteção da criança e do adolescente como prioridade absoluta: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, deverá subisidiar e integrar a apresentação do grupo. Considerado um dos documentos que melhor espelha os direitos elencados na Declaração sobre os Direitos da Criança, o ECA constitui um marco na normatização de direitos no Brasil. Cumpre ao professor ressaltar a opção brasileira, clara tanto na Constituição Federal quanto no ECA, de designar a denominação de criança aos seres 109
humanos até 12 anos incompletos e de adolescente para a idade entre 13 e 18 anos incompletos. Ao entrar em vigor, o ECA revogou o Código de Menores, derrubando tal nomenclatura e adequando o ordenamento jurídico nacional aos imperativos internacionais e constitucionais. Implementou a Doutrina Jurídica da Proteção Integral (art. 1º), designando uma nova condição jurídica à criança e ao adolescente: passa a ser sujeito de direitos, igual em dignidade e respeito a todo adulto, que precisa de proteção especial em virtude de ser uma pessoa em desenvolvimento, não sendo mais considerada como mera extensão da família. Discutir a aplicação das normas internacionais e internas exige o recorte de algumas situações que poderão ser abordadas pelo grupo: Maus tratos: muito embora vigore hoje em dia o princípio do melhor interesse da criança, trata-se de uma conquista recente, que está diretamente ligada à evolução histórica do conceito de pátrio poder. Isto porque em uma sociedade na qual o pai tem poder ilimitado em relação ao filho, não há que se falar em melhor interesse da criança, já que esta, nesse contexto, não tem voz. No primitivo direito romano, o pai tinha poder disciplinar absoluto em relação ao filho, tendo total liberdade para aplicá-lo o castigo que julgasse pertinente, podendo, inclusive, matá-lo 126. Foi apenas com o cristianismo e com o desenvolvimento da sociedade que se foi exigindo moderação no uso do poder disciplinar. Hoje, o pátrio poder é encarado como complexo de deveres em relação aos pais, instituído no interesse dos filhos e da família, havendo denominação até de pátrio-dever 127. Sendo assim, os meios de disciplina e correção não são mais absolutos, possibilitando a convivência do princípio do melhor interesse com a figura do pátrio poder. Todavia, a desestruturação da família pode levar a atos violentos e agressivos contra a criança e o adolescente, mais conhecido como violência doméstica, que se exterioriza como abuso de poder disciplinar e de correção, tendo duração variável (dias, meses, anos). Tais violações não são levadas ao conhecimento de agências oficiais de proteção, tal como o Conselho Tutelar, uma vez que predomina na família a lei do silêncio 128. Ressalte-se, por oportuno, que todos os cidadãos têm o dever de denunciar os casos de maus tratos de que tenha conhecimento aos Conselhos Tutelares de sua localização, conforme arts. 13 e 245 do ECA. Em relação aos maus tratos, especificamente, cumpre salientar em primeiro lugar sua configuração como crime. Dispõe o art. 136, do Código Penal (CP): Art. 136, CP Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena detenção, de dois meses a um ano, ou multa. 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena reclusão, de um a quatro anos. 2º Se resulta a morte: Pena reclusão, de quatro a doze anos. 126 Acesso em: 01 maio 2004. Disponível em: http://www. dhnet.org.br/denunciar/tortura/textos/nilton.html. 127 Idem. 128 Idem. 110
3º Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (catorze) anos. Nesse sentido, é sujeito ativo do crime os pais ou responsáveis pela guarda ou vigilância da vítima, e sujeito passivo a criança ou adolescente que, na qualidade de filho ou sob custódia ou vigilância, for submetido a um dos tratamentos estabelecidos no artigo acima. Para a configuração do crime, é necessário ainda mais um elemento: expor a perigo a vida ou a saúde da criança ou do adolescente. Como exemplo de maus tratos, destaquem-se: o pai ou responsável que coloca o menor de joelhos por longo tempo a ponto de colocar em perigo a saúde da vítima; o pai ou responsável que dá pimenta-do-reino à criança como forma de castigo. Os maus tratos contra criança e adolescente são difíceis de serem identificados em virtude de uma série de fatores, dentre os quais a inexistência de dados confiáveis sobre a ocorrência dos mesmos no lar familiar no brasileiro, tornando difícil, por conseguinte, a atuação dos Conselhos Tutelares 129. Apesar da falta de dados nacionais a respeito, salientem-se dados de 1996 sobre São Paulo 130 : (i) a maior incidência de maus tratos ocorre contra crianças na faixa etária de 0 a 6 anos 60%; (ii) a autoria das agressões se distribui da seguinte forma: mãe 43%; pai 33%; mãe e pai 10%; responsáveis 14%; (iii) as principais causas são: alcoolismo 50%; desorganização familiar 30%; distúrbios psiquiátricos 10%; distúrbios de comportamento 10%. Entre os motivos para a falta de dados a respeito, tem-se a predominância da lei do silêncio, bem como as seqüelas deixadas na criança e no adolescente que os impossibilitam de denunciar: a vítima não fala e não anda 131. Participação de crianças e adolescentes em processos administrativos e judiciais: o art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança possibilita a oitiva da criança nos processos judiciais ou no âmbito administrativo. Paralelamente o 1.º do art. 28 e ao art. 45 do ECA referem-se expressamente a hipóteses em que a criança e o adolescente devem ser ouvidos. A Corte Interamericana de Direitos Humanos manifestou-se sobre o tema no contexto da Opinião Consultiva n. 19. Sugere-se a leitura de seu inteiro teor, uma vez que esse tribunal estabelece parâmetros a serem observados pelos Estados-partes da Convenção Americana de Direitos Humanos a respeito dos direitos da criança e do adolescente. 102. Em conclusão, o aplicador do direito, seja no âmbito administrativo, seja no judicial, deverá levar em conta as condições específicas do menor e seu interesse superior a fim de ajustar a participação deste, conforme seja adequado, na determinação dos seus direitos. Com esta consideração, procurar-se-á o maior acesso do menor, na medida do possível, na análise de seu próprio caso. Diante da inexistência de regras claras sobre a ponderação do melhor interesse da criança em face de processos administrativos e judiciais, Tânia da Silva Pereira enumera algumas condições objetivas que podem contribuir para o exercício deste direito de ser ouvido: 129 Acesso em: 01 maio 2004. Disponível em: http://www.redeamiga.org.br/noticia.php. 130 Acesso em: 01 maio 2004. Disponível em: http://www. cerebromente.org.br/n04/doenca/infancia/persona.htm. 131 Idem. 111
1. Adaptar os procedimentos com vistas a garantir a manifestação autêntica da vontade da criança ou do adolescente; 2. Criar condições que facilitem a expressão espontânea da criança, evitando situações de angústia e linguagens técnicas incompreensíveis; 3. Favorecer a intervenção de profissionais especializados que possam interpretar, de maneira apropriada, a palavra da criança e do adolescente, permitindo-lhe expressar seus interesses e conflitos com maior liberdade; 4. Fornecer à criança e ao jovem todas as informações relativas à sua situação e ao assunto sobre o qual deverá emitir sua opinião ; 5. Não forçá-los a se exprimirem ou se manifestarem caso não estiverem preparados; 6. Convocá-los a participar dos procedimentos de mediação familiar destinados a solucionar conflitos que envolvam sua pessoa e seus interesses; 7. Considerar seus sentimentos e pensamentos na solução dos conflitos que lhes digam respeito; 8. Assumir a Curadoria Especial como a alternativa de interferir nos procedimentos para fazer valer os direitos de seu representado; 9. Evitar a convocação da criança e do adolescente como testemunha de um dos pais contra o outro; sua oitiva deve representar uma forma de expressar sua opinião e preferência sobre a situação conflitante; tal depoimento nunca deverá ser prestado na presença dos pais. 132 Meninos de Rua : uma terceira sugestão de assunto a ser abordado pelo grupo trata dos meninos de rua, realidade cada vez mais presente nas grandes cidades brasileiras. Tal ponto retoma a discussão travada na Aula 1, por ocasião do filme Ônibus 174. Sugere-se que o debate ocorra tendo como ponto de partida a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos referente ao caso Villagrán Morales e Outros versus Guatemala, ou Niños de la Calle, de 19 de novembro de 1999. Cumpre destacar ainda a sentença de reparações, de 26 de maio de 2001. Trata-se de caso de seqüestro, tortura e assassinato de menores e omissão dos mecanismos do Estado guatemalteco em oferecer o acesso à justiça aos familiares das vítimas. A decisão constitui um marco na proteção da criança e do adolescente em todo o continente, uma vez que: a) enfatiza a peculiaridade de tais sujeitos no aspecto jurídico, assim como no social, político e econômico; b) destaca a indivisibilidade dos direitos civis e políticos e os direitos econômicos, sociais e culturais; e c) determinam a especial gravidade das práticas sistêmicas de violência contra crianças e adolescentes em situação de risco. Cabe destaque a seguinte passagem, constante do Voto concorrente Conjunto dos Juízes A.A. Cançado Trindade e A. Abreu Burelli: 3. O direito à vida não pode continuar sendo concebido restritivamente, como foi no passado, referido apenas à proibição da privação arbitrária da vida física. Cremos que há diversos modos de privar uma pessoa arbitrariamente da vida: quando é 132 SILVA PEREIRA, Tânia. O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 31. 112
provocada sua morte diretamente pelo fato do homicídio, assim como quando não se evitam as circunstâncias que igualmente conduzem à morte de pessoas como no cas d espèce. No presente caso Villagrán Morales versus Guatemala, atinente à morte de meninos por agentes policias do Estado, há a circunstância agravante de que a vida dos meninos já carecida de qualquer sentido; quer dizer, os meninos vitimados já se encontravam privados de criar e desenvolver um projeto de vida e de procurar um sentido para sua própria existência. 134 O estudo de tal decisão apresenta semelhanças intransponíveis com o caso da Chacina da Candelária, de 1990, a qual transferiu o Rio de Janeiro do noticiário internacional de turismo para o de violação de direitos humanos. MATERIAL DE APOIO Textos: Leitura obrigatória: PIOVESAN, Flávia; e PIROTTA, Wilson Ricardo Buquetti. Os direitos humanos das crianças e dos adolescentes no direito internacional e no direito interno. In: PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003. pp. 277-297. Leitura acessória: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva n. 17, de 28 de agosto de 2002 (www.corteidh.or.cr). DELLORE, Maria Beatriz Pennachi. Convenção dos Direitos da Criança. In: ALMEIDA, Guilherme de; e PERRONE-MOISÉS, Cláudia (orgs.). Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Atlas, 2002. pp. 76-86. SILVA PEREIRA, Tânia. O melhor interesse da criança:um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. Le g i s l a ç ã o: Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança Constituição Federal Estatuto da Criança e do Adolescente 134 Acesso em: 04 julho 2005. Disponível em: http://www. corteidh.or.cr/seriec/index_ c.html. Villagrán Morales vs. Guatemala. Voto concorrente Conjunto dos Juízes A.A. Cançado Trindade e A. Abreu Burelli. 113