III-45 - AVALIAÇÃO DO PROCESSO DE BIOESTABILIZAÇÃO ANAERÓBIA DE RESÍDUOS SÓLIDOS Wilton Silva Lopes (1) Mestrando em Saneamento Ambiental pelo PRODEMA (Programa Regional de Pós- Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente) da Universidade Federal da Paraíba/Universidade Estadual da Paraíba. Químico Industrial pelo Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual da Paraíba. Valderi Duarte Leite (foto) Doutor em Hidráulica e Saneamento pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Química da Universidade Estadual da Paraíba. José Tavares de Sousa Doutor em Hidráulica e Saneamento pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Química da Universidade Estadual da Paraíba. Endereço (1) : Rua Papa João Paulo II, 325 - Nova Brasília - Campina Grande - PB - CEP: 5813-6 - Brasil - Tel: (xx83) 322-58 - e-mail: wslopes@bol.com.br. RESUMO O processo de biodigestão anaeróbia da fração orgânica putescível dos resíduos sólidos urbanos apresenta-se como uma alternativa viável de tratamento para estes tipos de resíduos e deve ser melhor estudada objetivando a otimização do processo em termos de adequação tecnológica e da relação custo benefício. Neste trabalho, empregou-se o processo de bioestabilização anaeróbia da fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos urbanos inoculada com rúmen bovino em reatores de batelada. O trabalho foi realizado num sistema experimental constituído basicamente por quatro reatores anaeróbios de batelada, com capacidade unitária de 2 litros e foram monitorado durante um período de 365 dias. Os reatores foram alimentados com substrato constituído pela fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos urbanos mais rúmen bovino nas proporções de 5, 1 e 15% (percentagem em peso) da massa total, mais o reator testemunha. O desempenho do processo foi acompanhado através dos parâmetros: ph, alcalinidade total (AT), alcalinidade à bicarbonatos (AB), condutividade elétrica (k), ácidos graxos voláteis (AGV) e da relação AGV/AT. Os resultados obtidos demonstram que o inóculo utilizado influenciou todos os parâmetros estudados, principalmente o ph e a relação AGV/AT. PALAVRAS-CHAVE: Tratamento Anaeróbio, Resíduos Sólidos, Reator de Batelada, Inóculo, Rúmen Bovino. INTRODUÇÃO A biodigestão anaeróbia é um processo bioquímico que ocorre na ausência de oxigênio molecular livre, onde diversas espécies de microrganismos interagem entre si de forma simbiótica para converter compostos orgânicos complexos em CH 4,compostos inorgânicos como CO 2, N 2, NH 3, H 2 S e traços de outros gases e ácidos orgânicos de baixo peso molecular. Durante o processo de bioestabilização anaeróbia da fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos orgânicos existem vários parâmetros que podem ser monitorados para verificar a eficiência do processo em termos de produção de metano. Os mais utilizados no monitoramento dos reatores anaeróbios são: ph, alcalinidade total (AT), alcalinidade à bicarbonatos (AB), ácidos graxos voláteis (AGV) e relação AGV/AT. O ph é um termo usado para expressar as condições de acidez ou alcalinidade de um meio através da medida da concentração do íon H +. Nos processos anaeróbios o valor ideal situa-se na faixa de 6,5 a 7,5. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 1
Valores baixos de ph podem significar uma concentração alta de ácidos graxos voláteis e portanto uma inibição da metanogênese, valores acima de 8, podem indicar a formação de hidrogênio, sulfeto de hidrogênio e de amoníaco (KUBIAK & DUBUIS, 1985). O ph pode afetar o processo de biodigestão anaeróbia de forma direta, quando afeta as atividade enzimáticas ou de forma indireta quando influencia na toxicidade de algum composto (LETTINGA et al., 1996 apud CHERNICHARO, 1997). Nos processos anaeróbios devido as reações de hidrólise ocorre uma grande produção de ácidos, e isto tende a baixar o valor do ph. A alcalinidade fornece a medida da capacidade de tamponamento no reator, já que o valor do ph só diminuirá depois que toda a alcalinidade for consumida. A alcalinidade nos processos anaeróbios pode ser devida a presença do sistema carbono (alcalinidade à bicarbonato) ou a presença dos ácidos graxos voláteis. No entanto, apenas a alcalinidade à bicarbonatos é que realmente atua como tampão durante o processo. Segundo VAN HAANDEL & LETTINGA (1994), devido a presença significativa de sistemas ácido/base fracos, durante a determinação da alcalinidade uma parte do ácido forte adicionado será usada para associação com a base conjugada (acetato), formando ácido. O presente trabalho teve o objetivo de avaliar a influência do rúmen bovino (utilizado como inóculo) no processo de bioestabilização anaeróbia da fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos urbanos em reatores de batelada alimentados com alta concentração de sólidos. METODOLOGIA O trabalho foi realizado no Laboratório de Saneamento Ambiental do Centro de Ciências e Tecnologia da UEPB, durante um período de 365 dias. O substrato tratado anaerobiamente era constituído da fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos urbanos inoculada com diferentes percentagens de rúmen bovino. Os parâmetros operacionais que foram utilizados são apresentados na Tabela 1. TABELA 1. Parâmetros operacionais dos reatores. Parâmetro Reator Proporção RSU/Rúmen Massa de RSU(kg) Massa de Rúmen(kg) Massa Total (kg) Carga Orgânica Aplicada (kg.m -3 ) A 1/ 8.5. 8.5 425 B 95/5 8..5 8.5 425 C 9/1 7.6.9 8.5 425 D 85/15 7.2 1.3 8.5 425 Para a realização do trabalho experimental foram construídos, instalados e monitorados quatro reatores de 2 litros de capacidade unitária. Em cada reator foram construídos e instalados os seguintes dispositivos: dispositivo para coleta de percolado (ponto 1) dispositivo para recirculação de água (ponto 2) dispositivo para coleta de biogás (ponto 3) medidor quantitativo de biogás (ponto 4) ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 2
Na Figura 2, mostra-se o esquema geral de um dos reatores utilizado no trabalho experimental. FIGURA 2. Esquema geral de um dos reatores utilizado no trabalho experimental. O monitoramento do sistema experimental foi realizado nos líquidos percolados produzidos durante o processo de bioestabilização anaeróbia através dos seguintes parâmetros: ph, AT, AB, AGV e K. As análises foram realizadas quizenalmente em consonância com os métodos preconizados pelo Standard Methods for Examination of the Water and Wastewater, 19 th ed. (1995), com exceção da alcalinidade à bicarbonatos que foi determinada utilizando-se a equação 1. AB = AT-,83 x,85 x AGV equação (1) onde: AB = alcalinidade à bicarbonatos (mg CaCO 3.L -1 ) AT = alcalinidade total (mg CaCO 3.L -1 ) AGV = ácidos graxos voláteis (mg ác. acético.l -1 ),83 = fator de conversão de ácido acético em alcalinidade,85 = fator que leva em consideração que até ph 4, apenas 85% dos AGV foram determinados. RESULTADOS E DISCUSSÕES Na Tabela 2 são apresentados os resultados da caracterização físico-química dos substratos orgânicos "in natura" utilizados no carregamento dos reatores. TABELA 2. Resultados da caracterização físico-química dos substratos aplicados aos reatores. Parâmetro Reator * TU(%) ST(%) STF(%) STV(%) COT(%) NTK(%) PT(%) DQO(%) ph A 8,83 19,17 14,97 85,3 47,24 1,12,24 37,28 5,6 B 8,37 19,67 14,25 85,75 47,64 1,2,21 41,1 5,74 C 81,82 18,18 14,21 85,79 47,66 1,26,27 39,95 5,88 D 81,6 18,94 15,91 84,9 46,72 1,32,27 41,1 6, * TU = teor de umidade ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 3
Durante o processo de bioestabilização anaeróbia da fração orgânica putrescível dos resíduos sólidos com alta concentração de sólidos, ocorre a produção de percolado resultante das reações de hidrólise e da própria umidade residual do material orgânico. As características do percolado produzido oferecem subsídios para avaliar o desempenho do processo de biodigestão anaeróbia. A quantidade de percolado produzida pelo processo de bioestabilização anaeróbia do substrato foi medida continuamente e os valores da produção acumulada durante o período de monitoração do sistema experimental são apresentados na Figura 2. Produção acumulada de percolado (L) 3 25 2 15 1 5 FIGURA 2. Produção acumulada de percolado durante o período de monitoração do sistema experimental. Analisando o comportamento da Figura 2, observa-se que a maior produção de percolado ocorreu no reator D (15 % de inóculo), com 27,4 litros, uma produção 184 % maior quando comparada ao reator A. Isto demonstra que o inóculo utilizado apresentou influência na hidrólise do substrato tratado anaerobiamente. Na Figura 3 mostra-se o comportamento da evolução temporal do ph nos líquidos percolados dos quatro reatores ao longo do período de monitoração do sistema experimental. 8 7 6 ph 5 4 3 FIGURA 3. Evolução temporal do ph nos líquidos percolados dos reatores monitorados. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 4
O comportamento da Figura 3 mostra que os menores valores de ph nos líquidos percolados foram alcançados aos 11 dias de monitoração do sistema experimental. Dos 11 aos 237 dias de monitoração os valores de ph nos líquidos percolados foram similares para todos os reatores. Após os 237 dias de monitoração os valores de ph nos líquidos percolados dos reatores A, B e C apresentaram comportamentos semelhantes, enquanto no reator D os valores apresentaram um aumento contínuo até atingir o patamar de 7,2 no 292º de monitoração, mantendo-se na faixa de 7, a 7,2 até o final do experimento. O comportamento da evolução temporal da condutividade elétrica dos líquidos percolados é mostrado na Figura 4. Condutividade elétrica à 2ºC (ms/cm) 4 35 3 25 2 15 1 5 FIGURA 4. Comportamento da evolução temporal da condutividade elétrica nos líquidos percolados. A Figura 4 mostra que os valores da condutividade elétrica nos quatro reatores apresentaram comportamento similares ao longo do período de monitoração do sistema experimental. No entanto, os valores da condutividade elétrica apresentaram-se menores à medida que o percentual de inóculo foi aumentado. No final do período de monitoração o líquido percolado do reator D apresentou condutividade elétrica de 3,4 ms.cm -1, enquanto no reator A o valor foi de 8,7 ms.cm -1, demonstrando que o processo de bioestabilização anaeróbia da matéria orgânica foi mais representativo no reator D. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 5
Na Figura 5 mostra-se o comportamento da alcalinidade total presente nos líquidos percolados dos reatores monitorados. 15 Alcalinidade Total (mg/l) 12 9 6 3 FIGURA 5. Comportamento da evolução temporal da alcalinidade total nos líquidos percolados. Observando-se a Figura 5, verifica-se que a alcalinidade total também foi influenciada pelo percentual de inóculo utilizado na preparação do substrato. Os valores de alcalinidade total nos líquidos percolados dos quatro reatores mantiveram-se próximos até o 11º dia de monitoração. Entre 11 e 25 dias de monitoração os valores apresentaram discrepâncias entre si. No final do período de monitoração a alcalinidade total dos líquidos percolados dos reatores B, C e D estavam próximos a 2. mg.l -1, enquanto no reator A a alcalinidade total era de 4.8 mg.l -1. A alcalinidade à bicarbonatos fornece a capacidade de tamponamento real que o sistema tem para controlar o ph durante a produção de ácidos nas primeiras etapas dos processos anaeróbios. A concentração da alcalinidade à bicarbonatos presente nos líquidos percolados dos reatores monitorados durante a fase experimental é mostrada na Figura 6. Alcalinidade à Bicarbonatos (mg/l) 5 4 3 2 1-1 -2-3 -4-5 FIGURA 6. Comportamento da evolução temporal da alcalinidade à bicarbonatos nos líquidos percolados. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 6
Analisando o comportamento da Figura 6 pode-se observar que a partir dos 124 dias de monitoração o reator D apresentou alcalinidade à bicarbonatos entre 738 e 1.668 mg.l -1, enquanto nos demais reatores a maioria dos valores obtidos foram negativos, o que indica uma predominância de alcalinidade devido aos ácidos graxos voláteis. Os ácidos graxos voláteis são constituídos principalmente pelos ácidos acético, propiônico, butírico, valérico e isovalérico que são formados nas duas primeiras etapas dos processos anaeróbios: hidrólise e acidogênese. O comportamento da concentração de ácidos graxos voláteis presente nos líquidos percolados dos reatores monitorados está mostrada na Figura 7. Ácidos Graxos Voláteis (mg/l) 18 15 12 9 6 3 FIGURA 7. Comportamento da evolução temporal dos ácidos graxos voláteis nos líquidos percolados. Analisando o comportamento da Figura 7, observa-se que a concentração de ácidos graxos voláteis sofreu mais rápida redução no percolado do reator D. A partir dos 95 dias de monitoração as concentrações de ácidos graxos voláteis no reator D apresentaram-se sempre inferiores as concentrações dos demais reatores. Isto ocorreu pelo fato dos ácidos graxos voláteis serem utilizados pelas bactérias acetogênicas para produção de acetato, dióxido de carbono e hidrogênio que posteriormente são convertidos em metano pelas bactérias metanogênicas, o que vem a evidenciar a influência do inóculo para o bom desempenho do processo. Outro parâmetro utilizado para avaliar a eficiência dos processos anaeróbios refere-se a relação AGV/AT, onde valores próximos a,5 são ideais para o processo. Na Figura 8 mostra-se o comportamento da relação AGV/AT nos líquidos percolados dos reatores monitorados. Relação AGV/AT 4 3.5 3 2.5 2 1.5 1.5 FIGURA 8. Comportamento da evolução temporal da relação AGV/AT nos líquidos percolados. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 7
Observando-se a Figura 8, verifica-se que apenas os líquidos percolados do reator D apresentaram valores da relação AGV/AT próximos a,5 a partir dos 265 dias de monitoração, atingindo o patamar de,16 no final do período de monitoração. CONCLUSÕES! O inóculo utilizado apresentou ph 8,4 e teor de nitrogênio total de 1,4 que serviram para equilibrar o ph e a relação carbono/nitrogênio do substrato in natura tratado anaerobiamente;! Os reatores B e C apresentaram comportamentos similares com relação aos valores de ph, condutividade elétrica, relação AGV/AT e produção de percolado;! O inóculo utilizado apresentou influência em todos os parâmetros monitorados. Principalmente no ph, haja visto, no reator D a partir dos 265 dias de monitoração os valores terem mantido-se entre 6, e 7,2 e na relação AGV/AT que a partir do mesmo período apresentou valores próximos a,5, o que não ocorreu com os líquidos percolados dos demais reatores;! A aplicação de 15% de rúmen bovino tornou-se viável, haja visto, ter produzido substrato com melhores condições operacionais, quanto ao ph e relação C/N e ter contribuído para o aumento da quantidade de microrganismos anaeróbios presente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. APHA, AWWA, WPCF. Standard Methods for Examination of the Water and Wastewater. 19 th ed. Washington, 1995. 2. CHERNICHARO, C. A. de L. - Reatores anaeróbios. Vol. 5, Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da UFMG. Belo Horizonte, 1997,p. 245. 3. KUBIAK, C. & DUBUIS, T.. Valorização dos dejetos e dos efluentes agrícolas, industriais e domésticos. In: SCRIBAN, R. (coord.). - Biotecnologia. Tradução de Maria Ermaritina Galvão Gomes Pereira et al.. Editora Monole LTDA, São Paulo, 1985, p. 41-426. 4. VAN HAANDEL, A., LETTINGA, G. Tratamento anaeróbio de esgotos - um manual para regiões de clima quente. Campina Grande, 1994, 125p. ABES - Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental 8