Tratamento cirúrgico do pé torto congênito grave, negligenciado e nunca tratado no paciente adulto
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- Antônio Bardini Moreira
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1 Tratamento cirúrgico do pé torto congênito grave, negligenciado e nunca tratado no paciente adulto Técnica pessoal RICARDO MALAQUIAS DE MIRANDA 1, JARDÉLIO MENDES TORRES 2, HÉLIO SEBASTIÃO SOARES DE CAMPOS 3, ALBERTO EDUARDO PERES 4 RESUMO Os autores apresentam nova opção para o tratamento do pé torto congênito nunca tratado no paciente adulto. Trabalho realizado entre 1985 e 1997 com 12 pacientes e 21 pés operados. Realizam a correção cirúrgica em dois tempos. No primeiro tempo fazem liberação diferenciada das partes moles com seccionamento dos ramos superficial e profundo do ligamento deltóideo. No segundo tempo realizam artrodese tríplice com pequenas cunhas de ressecção óssea corrigindo o varismo, adução e eqüinismo do pé. Destacam a importância fundamental do ligamento deltóide como mantenedor da deformidade. O bom resultado estético e funcional dos pés operados parece bastante satisfatório, inclusive a médio prazo. SUMMARY Surgical treatment of severe congenital clubfoot in adults never treated before The authors present a new option for congenital club foot treatment never carried out in grown-up patients. This procedure has been conducted in 12 patients and 21 operated 1. Chefe do Serv. de Cirurg. do Pé da Santa Casa de Miseric. de Belo Horizonte, 2. Chefe do Serv. de Cirurg. do Pé do Hosp. Universit. São José, Belo Horizonte, 3. Assist. do Serv. de Cirurg. do Pé da Santa Casa de Miseric. de Belo Horizonte, 4. Assist. do Serv. de Ortop. da Santa Casa de Miseric. de Belo Horizonte, Endereço para correspondência: Ricardo Malaquias de Miranda, Rua Grão Pará, 648, São Lucas Belo Horizonte, Tels. (031) (residencial) ou (031) (consultório). feet between 1985 and Surgical correction is accomplished in two sessions. In the first session, a differential release of the soft tissue is made, as well as a section of the superficial and deep branches of the deltoid ligament. In the second session, a triple arthrodesis with small wedges of bone resection is made, thus correcting the deformities. The fundamental significance of the deltoid ligament as a keeper of the deformity is emphasized. The good esthetic and functional results of the operated feet seem far satisfactory, including for medium term results. INTRODUÇÃO O pé torto congênito constitui, até hoje, um sério problema de tratamento, mesmo seguindo as diretrizes de instituílo o mais precoce possível (9,17). Apesar disso, nosso país é pródigo em produzir casos não tratados, quando o paciente adulto procura pela primeira vez a solução de sua deformidade (15). Para as formas inveteradas de pé torto, Davis descreveu em 1892 uma ressecção óssea cuneiforme da zona médiotarsiana, cuja base é dorsolateral e o ângulo é a região interna do pé (2). A partir dessa época, as artrodeses com ressecções ósseas evoluíram bastante, permitindo bom apoio plantígrado. Após o domínio das osteotomias, tenta-se hoje melhorar a função e a estética do pé, através de inúmeras variações cirúrgicas (1,5, 7,10,12-16). A astragalectomia total, pura ou associada a artrodeses e osteotomias, atualmente, passou a ser muito utilizada (1,7,13, 14,16). Tem como objetivo o pé mais livre, apoio plantígrado e melhor função (16). Nossa experiência em astragalectomia é pequena. Sempre nos impressiona o tamanho da agressão cirúrgica e da modificação anatômica, apesar de os resulta- 544 Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 7 Julho, 1998
2 TRATAMENTO CIRÚRGICO DO PÉ TORTO CONGÊNITO GRAVE, NEGLIGENCIADO E NUNCA TRATADO NO PACIENTE ADULTO Fig. 1 Via de acesso para o tendão calcaneano Fig. 2 Alongamento do tendão calcaneano sem sutura Fig. 3 Via de acesso submaleolar interno dos serem rápidos e proporcionarem um apoio plantígrado indolor (16). A conduta em nosso serviço sempre foi a liberação ampla de partes moles, do tipo Codivilla (3), seguido de trocas de aparelhos gessados corretivos e como segundo tempo cirúrgico, artrodese tríplice retirando-se cunhas ósseas para total correção do pé (12). A experiência, novos conceitos de biomecânica da marcha e inúmeros trabalhos (4,8,11,18) mostraram-nos que a liberação ampla das partes moles é um tempo cirúrgico longo e muito do que se faz, em nossa opinião, não é necessário para um pé que será submetido a posterior artrodese tríplice. Introduzimos algumas modificações intervindo em estruturas consideradas intocáveis por alguns (como o ligamento deltóideo), deixando de liberar outras por julgar desnecessário (8,18). A partir de 1985, desenvolvemos uma correção dinâmica e menos agressiva, cuja base fundamental permanece a mesma: liberação seletiva e diferenciada das partes moles; aparelhos gessados corretivos; artrodese tríplice econômica nas ressecções das cunhas ósseas; e aparelhos gessados corretivos após artrodese. CASUÍSTICA No período de 1985 a 1998, o Grupo de Pé do Setor de Ortopedia de nosso hospital operou 12 pacientes, totalizando 22 pés tortos congênitos negligenciados e nunca submetidos a tratamento algum. Todos foram operados pela mesma equipe, realizando-se a correção cirúrgica em dois tempos. MÉTODO Pacientes 12 Sexo masculino 9 Sexo feminino 3 Pós-operados 21 Bilateral 9 Unilateral 3 Idade na data da cirurgia 18 a 27 anos Média de idade 21 anos O tratamento cirúrgico é dividido em dois tempos: Primeiro tempo: incisão em S itálico sobre o tendão calcaneano (fig. 1). Alongamento em Z do tendão calcaneano (sem tenografia) (fig. 2), capsulotomias posteriores, tibiotalar e talocalcaneana. Liberação da sindesmose tibiofibular, seccionando-se o ligamento tibiofibular posterior e anterior com osteótomo fino. Segunda incisão pequena (± 3cm) retro e submaleolar interna (fig. 3), tenotomia do tendão tibial posterior e flexor comum dos dedos (fig. 4). A seguir, seccionam-se os ramos superficiais e profundos do ligamento deltóideo (fig. 5). Fechamento das duas incisões cirúrgicas. Colocação de bota gessada. Semanalmente realiza-se a troca de aparelho gessado, melhorando-se a posição do pé, seme- Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 7 Julho,
3 Fig. 4 Tenotomia do tibial posterior e flexor comum dos dedos Fig. 5 Secção dos planos superficiais e profundos do ligamento deltóideo Fig. 6 E.F.O., 20 anos aparelho gessado após artrodese tríplice. Detalhe: pé em eqüinismo. Fig. 7 E.F.O., 20 anos bloqueio ósseo mecânico da flexão dorsal. lhante à técnica de Kite (9). Após a terceira ou quarta troca de gesso, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico: artrodese tríplice clássica (em cunha) para correção do eqüino, varo e aduto (2,5,12). Realizamos a incisão submaleolar externa até a cabeça do astrágalo (Kocher), que fornece excelente visão das articulações a serem artrodesadas. Extirpam-se então com osteótomo largo as cunhas ósseas de cada uma dessas articulações, o necessário para correção do varismo (principalmente talocalcaneana), eqüinismo (talocalcaneana, talonavicular e calcâneo-cubóide), eqüinismo (principalmente talocalcaneana) e adução (principalmente a cunha calcâneo-cubóide). A adução do pé deve ser totalmente corrigida. Fixação do retropé com dois fios de Kirschner, mantendo livre a articulação tibioastragalina. Bota gessada corretiva na melhor posição possível. Não preocupar-se com o eqüinismo (fig. 6). Nessa artrodese não há necessidade da correção completa do varismo e eqüinismo. Troca de gesso semanal para correção do varismo e eqüinismo residual. Isso é possível devido às amplas liberações realizadas no primeiro tempo cirúrgico. Os fios de Kirschner são retirados em 30 dias. Estes não impedem a manipulação do tálus na articulação tibiotársica. Bota gessada de marcha com salto, continuando-se a correção do varismo e eqüinismo. Em mais ou menos 60 dias, após a artrodese, o pé alcança o máximo de sua correção. Radiologicamente, notamos em perfil que o navicular toca a região anterior da tíbia (fig. 7). Manutenção do aparelho gessado de marcha por mais 30 dias. 546 Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 7 Julho, 1998
4 TRATAMENTO CIRÚRGICO DO PÉ TORTO CONGÊNITO GRAVE, NEGLIGENCIADO E NUNCA TRATADO NO PACIENTE ADULTO Fig. 8 E.F.O., 20 anos pé esquerdo com apoio após correção completa. Detalhe: discreto valgismo do retropé. Após a retirada do gesso usa-se meia elástica compressiva do tipo Venosan de média compressão. Fisioterapia para conseguir o máximo da flexo-extensão do tornozelo e adaptação da marcha. Uso de calçados com o salto posterior elevado. (Os pacientes preferem tênis ortopédicos de salto mais alto). RESULTADOS O tempo de seguimento médio foi de seis anos (o mínimo de 1 ano e 6 meses e o máximo de 13 anos). Limitação da amplitude de flexo-extensão da articulação do tornozelo média de 10º (todos) Eqüinismo do pé entre 5º e 15º (todos) Valgismo discreto do retropé (todos) Encurtamento dos pés operados, notado principalmente nos pacientes submetidos à cirurgia unilateral (todos) Adução residual (5 pés) Necessidade de calçados especiais (3 pacientes) Consideramos a correção satisfatória nos pés plantígrados, indolores, com discreto eqüinismo residual e boa aparência estética. A correção foi considerada insatisfatória nos pés que tiveram necessidade de calçados especiais e adução residual importante. Obtivemos 16 pés com resultado satisfatório (72,7%) e 5 pés com resultado insatisfatório (27,3%), principalmente pela adução residual. Três pacientes necessitaram de calçados especiais. COMENTÁRIOS Os pacientes portadores de pé torto congênito inveterado apresentam alterações importantes tanto em nível ósseo como Fig. 9 E.F.O., 20 anos comparação do pé esquerdo, após correção final, com o pé direito antes de iniciar o tratamento. das estruturas ditas partes moles, sejam elas nas inserções musculares, ligamentares, de posicionamento e número das artérias, músculos e nervos (6,16,19). A técnica dinâmica visa a correção lenta e gradativa dessas estruturas, evitando problemas vasculonervosos. O bloco ósseo obtido na artrodese tríplice (talocalcâneo-cubóide-navicular) pode ser imobilizado como um todo dentro da articulação do tornozelo, corrigindo-se o varismo e eqüinismo residual. Devemos lembrar-nos que o tendão calcaneano não foi suturado, as cápsulas posteriores foram abertas, o tendão tibial posterior e tendões flexores comuns seccionados, além da liberação ampla do ligamento deltóideo. Sabemos que um pé normal submetido à tenotomia do tibial posterior e secção do ligamento deltóide invariavelmente cai em valgo acentuado do retropé (4,11,18). O astrágalo do PTC é diferente (16). Menor e muito lateralizado, ele não consegue desencravar-se do tornozelo. Seu máximo deslocamento medial produz pouco valgo, que possibilita excelente apoio plantar (fig. 11) (isso em se tratando do pé de paciente adulto e totalmente estruturado em varo). Como a cirurgia não libera a planta do pé, seus flexores curtos e fáscia plantar permanecem intactos, possibilitando um pé esteticamente muito bom, com arco longitudinal interno (figs. 10 e 11). A função dos flexores curtos compensa a ausência dos flexores comuns dos dedos. Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 7 Julho,
5 O paciente participa das correções gessadas. O ortopedista necessita, porém, o mesmo grau de paciência e dedicação como para atender uma criança recém-nascida de pé torto congênito. O nível de satisfação estética e funcional tem sido muito bom. REFERÊNCIAS Fig. 10 E.F.O., 20 anos pé esquerdo e direito após correção. Fig. 11 E.F.O., 20 anos pé esquerdo e direito após correção. Detalhe: o podoscópio mostra a presença de arco longitudinal interno. Este método é mais lento que as outras técnicas, porém a ressecção óssea é muito menor que a da correção total, no ato cirúrgico. O pé operado recebe o apoio livre do último gesso só 4 a 5 meses após o início do tratamento. Realizamos a correção do outro pé, quando bilateral, após o intervalo mínimo de 6 meses. CONCLUSÃO Os pés submetidos a esta técnica apresentam encurtamento menos acentuado que na liberação completa das partes moles e imediata artrodese, corrigindo-se totalmente a deformidade. É mais estética e anatômica que a astragalectomia. Não tivemos complicações de pele e nem vasculonervosas. 1. Bartolomei, B. & Vuono, M.: Astragalectomia no tratamento do pé torto inveterado. Rev Bras Ortop 6: 95, Campbell, W.C. & Crenshaw, A.H.: Anomalias congênitas, in Cirurgia ortopédica argentina, Editorial Intermédica, Cap. 25, p Codivilla, A.: Sulla cura del piede equino varo congenito: nuovo metodo di cura cruenta. Arc Orthop 23: 245, Dereymaeker, G. & Wounters, E.: Tibialis posterior insufficiency, in Foot diseases, Vol Duncan, J.W. & Lovell, W.W.: Hoke triple arthrodesis. J Bone Joint Surg [Am] 60: , Fernandes, T.D., Masagão, R.A., Silva, J.S. et al: Avaliação biométrica comparativa entre tálus no pé eqüinovaro congênito e no pé artrogripótico. Rev Bras Ortop 32: , Hungria Filho, J.S., Santin, R.A.L., Hungria Neto, J.S. et al: O tratamento das deformidades graves do pé adulto pela astragalectomia com artrodese tibiotársica. Rev Bras Ortop 11: , Ingle, D.A., Gross, R.H. & Sullivan, A.: Club foot release without sub talar release. J Pediatr Orthop 10: , Kite, J.H.: Principles involved in the treatment of congenital club foot. J Bone Joint Surg [Am] 21: , Monteiro, A.C., Laredo Filho, J. & Sodré, H.: Tratamento cirúrgico do pé torto congênito eqüinovaro recidivado ou inveterado pela associação das técnicas de Codivilla e Lichtblau. Rev Bras Ortop 28: , Mueller, T.J.: Acquired flat foot secondary to tibialis posterior dysfunction Biomechanical aspects. J Foot Surg 30: 2-11, Napoli, M.M.M.: Tratamento do pé eqüinovaro congênito recidivado e inveterado, Tese (Livre-Docência), Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, Napoli, M.M.M., Salomão, O. & Andrade, D.: Astragalectomia no tratamento do pé eqüinovaro congênito. Actualities Med Chir Pred 13: 67, Salomão, O., Carvalho Jr., A.E., Fernandes, T.D. et al: Astragalectomia no tratamento dos pés eqüinovaros congênitos (PTC) inveterados e recidivados. Rev Bras Ortop 28: , Santin, R.A.L., Mercadante, M.T., Roncatto, C.E. et al: Tratamento do pé torto congênito eqüinovaro pela técnica de Lichblau. Rev Bras Ortop 27: , Santos, S.F., Borges, M.A., Queirós, P.S.M. et al:astragalectomia total no tratamento do pé torto congênito inveterado: estudo crítico. Rev Bras Ortop 27: , Sodré, H.: Padronização do tratamento conservador do pé torto eqüinovaro congênito. Rev Bras Ortop 29: , Sodré, H., Adames, M.K. & Tamanaga, F.: Hipercorreção pós-operatória no pé torto eqüinovaro congênito. Rev Bras Ortop 31: , Sodré, H., Laredo Fº, J., Napoli, M.M.M. et al: Estudo arteriográfico em pacientes portadores de pé torto eqüinovaro congênito. Rev Bras Ortop 22: 43-48, Rev Bras Ortop _ Vol. 33, Nº 7 Julho, 1998
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