O pó da sombra João de Mancelos. Contracapa
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- Cecília Vilaverde Lopes
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1 O pó da sombra João de Mancelos Contracapa O pó da sombra, o quinto livro de poemas de João de Mancelos, resulta de quase década e meia de trabalho. Na primeira parte, o autor percorre a latitude da paixão, desde a perda ao júbilo, passando pela incerteza. Na segunda, evoca cidades de vários continentes, da mítica Atlântida às metrópoles da antiguidade, e capta, em fragmentos de rara beleza, o génio de cada lugar. A sua obra é habitada por adolescentes solitários, amantes que vivem na dúvida, poetas na busca incessante da palavra exata, ou figuras conhecidas das letras, que aqui regressam à vida. Tratase, em suma, da confirmação de um poeta capaz de dominar, com invulgar engenho, a musicalidade, a metáfora e a imagem. Referência: Mancelos, João de. O pó da sombra. Lisboa: Edições Colibri, ISBN: Índice primeira parte ars poética nada que saibas mil novecentos e oitenta e cinco canção para um navio distante havia um casal a sombra do pó humildemente poetas suburbanos interdição morre-se no verão desassossegado confissão do assassino apaixonado senhora da terra navegando de mastros amputados há mais de quinze anos
2 relâmpago aluga-se a alma antes de ti, depois de ti metáfora velha para uma jovem imaginada depois do amor três da manhã limbo submissão variações sobre uma noite de insónia pedidos de empréstimo de corpo em corpo a primeira a regressar borboletas sylvia plath lolita vive com as mãos manchadas de azul quando dormes de coração descoberto para que a morte seja jovem outra vez sussurra o meu nome verdadeiro rumo à rocha fulminante segunda parte babilónia, meu amor varsóvia pompeia veneza hiroshima lamento da sereia de Copenhaga lisboa sarajevo petra timor bona 2
3 tóquio londres ventos alíseos grécia tessalónica açores bucareste budapeste dunas do saara atlantis alentejo berlim nimir srebrenica bergen nowhere Sobre o autor João de Mancelos, nome profissional de Joaquim João Cunha Braamcamp de Mancelos, nasceu em Coimbra, em É doutorado em Literatura Norte-Americana, pós-doutorado em Literaturas Comparadas, e possui uma agregação em Estudos Culturais. Lecionou na Universidade Católica Portuguesa (Viseu), e na Universidade de Aveiro. Atualmente, é professor na Universidade da Beira Interior. É autor de vários livros de poesia, conto e ensaio. Principais obras 1998 As fadas não usam batom (2.ª ed.) 1998 Foi amanhã 2001 Línguas de fogo 2006 O que sentes quando a chuva cai? 2009 O marulhar de versos antigos: A intertextualidade em Eugénio de Andrade 2009 Introdução à escrita criativa (5.ª ed.) 2012 Manual de escrita criativa (2.ª ed.) 2013 Uma canção no vento: A poesia de Eugénio de Andrade 3
4 2013 Manual de guionismo (2.ª ed.) 2014 Magia negra: A obra de Toni Morrison 2014 O pó da sombra 2015 Mulheres fatais, detetives solitários e criminosos loucos: Estudos sobre cinema 2015 Todas as cores da América: A literatura multicultural 2016 O teu nome incendiado de azul Alguns poemas do livro Aos que beijaram o pó da sombra, a caminho do sol ars poetica os pequenos incidentes dos dias não são mais do que dobras e vincos. poema a poema, passo a alma a ferro. mil novecentos e oitenta e cinco nesse tempo, deus existia ainda e tudo quanto era frágil respirava loucamente. havia sempre música para os cleptomaníacos do coração, cada menina, uma letra incompleta. os rapazes cresciam com olhos prateados e totens erguidos nas dunas. debaixo da saia das raparigas havia flores rasgadas e sonhos de cavalos bêbedos. 4
5 tão jovem, só o vento e as revoluções do amor que beijo a beijo atraiçoávamos. canção para um navio distante o teu corpo brilha na noite, como um navio clandestino, à deriva pelo sono. às vezes, na escuridão, se a maré muda e o medo desperta, o teu corpo ancora a meu lado. abre no meu ser incandescente uma ferida, uma ilha de sal, uma passagem para o mar. e sílaba a sílaba, meigamente, verto o azul frio do lume no meu peito naufragado. à hora do vento, à hora da maré, o teu corpo é sempre o mais belo navio de cada noite. há mais de quinze anos vivíamos trocando beijos envenenados e discussões em círculos, há mais de quinze anos. durante a noite, no lavatório, uma torneira contava o silêncio gota a gota, 5
6 e mantinha-me fiel ao ódio a ti, que cheirava a cigarros e corpos secos de amor. quando te foste embora, não me espantei, não consertei a torneira, nem o silêncio. só tive saudades do ódio, de que tanto precisava para poder dormir em paz. relâmpago se os dias tivessem côdea, a infância saberia a sementes ou doce de amora, no final de uma tarde de verão. a vida nesse tempo era feita de coisas simples, como perseguir os gatos, pé ante pé, sobre os muros coroados de vidro verde, ou ser mais azul nas asas das andorinhas, que sossegavam a melancolia na luz de manhãs onde sangrar era impossível. não havia dor nem palavra inútil, nem adão nem eva nem serpente, nem a solidão vadia dos cães pelo pomar. nada acontecia, os deuses repartiam a eternidade com os humanos, o vento lavrava a seara e mentia-lhe sobre a morte. 6
7 depois do amor às vezes, depois do amor, quando feras dóceis rondam o nosso sono, e afastam os passos dos teus amantes, às vezes, quando me encosto à nudez, exausto, e tomo o peso às tuas palavras, e fico sempre devedor, às vezes, quando me inventas um nome para que a madrugada chegue e eu não tenha de morrer nunca mais, às vezes, penso no deus que te perdeu, e choro, às escondidas, por ele. pedidos de empréstimo toda a noite, as vozes de poetas mortos me emprestaram versos e canções, numa insónia ardida até à madrugada. whitman e pessoa, os mais insistentes, cintilavam poemas distantes, ecos de júbilo e melancolia a jovens bárbaras. poderei devolver o vinho doce a quem não o pedi? quantas moedas vale um verso roubado? toda a noite tapei os ouvidos e supliquei ao cão que uivasse, até o silêncio doer e a manhã voltar o rosto para leste. 7
8 lolita naquela idade, ela é uma flor de fogo, tão bela e maldita quanto o amor. aparelho nos dentes, beijos de menta, desvanece-se como o balão de um chiclete, os lábios feridos de sangue. para atravessar a noite contigo, a alma e só a alma é o mínimo que te pede. vive a poesia vive de palavras descalças e de praias onde as pegadas são tão leves quanto o sal. vive do som de punhais deslizando pela noite, e de madrugadas florindo como a cauda de um pavão. vive de desertos onde a música é porcelana ao vento, e de jovens que cantam o vinho do sonhador. vive da aflição de memórias morrendo com a chuva, e de anjos que lavam a dor de cada noite. a poesia vive em ti, mas não por ti. a poesia és tu, o teu nome, um verbo, cada sílaba, migalha de luz. 8
Eis que chega meu grande amigo, Augusto dos Anjos, ele com seu jeitão calado e sempre triste, me fala que não irá existir palavra alguma para
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