FORMAÇÃO JURÍDICA II ANO

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3 FORMAÇÃO JURÍDICA II ANO Organizadora ÂNGELA KRETSCHMANN Autores Celso Augusto Nunes da Conceição Dartagnan Ferrer dos Santos Emerson de Lima Pinto Fabiana Prietos Peres Guilherme Damásio Goulart Guilherme de Oliveira Feldens Jaqueline Mielke Silva Kelly Lissandra Bruch Maria Lúcia Baptista Morais Ney Wiedemann Neto Roberta Magalhães Gubert Renato Selayaram Rio Grande do Sul 2014 Florianópolis 2014

4 Editora CONCEITO EDITORIAL Presidente Salézio Costa Editores Angela Kretschmann Evanisa Helena Maio de Brum Assistente Editorial Lourdes Fernandes Silva Capa e Diagramação Paulo H. Benczik Revisores Ana Marson Celso Augusto Nunes da Conceição Valdnei Martins FerreiraCesar Conselho Editorial Álvaro Oxley da Rocha (PUC/RS) André Karam Trindade (IMED/RS) Angela Kretschmann (CESUCA/RS) Antônio Maria Rodrigues de Freitas Iserhard (TJRS / CESUCA) Carla Eugênia Caldas Barros (UFSE) Celso Augusto Nunes da Conceição (CESUCA/RS) Daniel Achutti (UNILASALE/RS) Elaine Harzheim Macedo (PUC/RS) Guilherme de Oliveira Feldens (CESUCA/RS) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (UFSE/PA) Ingo Wolfgang Sarlet (PUC/RS) Jaqueline Mielke Silva (IMED/RS) Kelly Lissandra Bruch (CESUCA/RS) Leonel Pires Ohlweiler (TJRS/ UNILASALLE/RS) Paulo Antônio Caliendo Velloso da Silveira (UNISINOS/RS) Catalogação na Publicação: Bibliotecária Cristina G. de Amorim CRB-14/898 F723 Formação Jurídica: II ano / Organizadora: Ângela Kretschmann - Florianópolis: Conceito Editorial, ISBN Curso de Direito 2. Prática Jurídica 3. Educação Jurídica 4. Teoria do Direito I. Ângela Kretschmann (organizadora). CDU 340 Este exemplar foi produzido com o apoio da Faculdade Inedi, Cesuca, que detém os direitos autorais da obra, sendo decisão do titular distribuir, gratuitamente ou não, exemplares da obra, até esgotar a edição. Venda Proibida. Copyright 2014 Impresso no Brasil / Printed in Brazil Faculdade Inedi - CESUCA Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha - RS. Rua. Silvério Manoel da Silva, Bairro Colinas Fone: (51) Conceito Editorial Rua Hipólito Gregório Pereira, 700 3º Andar Canasvieiras Florianópolis/SC CEP: Editorial: Fone (48) editorial@conceitojur.com.br Comercial: Fone (48) comercial@conceitojur.com.br

5 SUMÁRIO PREFÁCIO UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM Celso Augusto Nunes da Conceição 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO Guilherme de Oliveira Feldens 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA Guilherme de Oliveira Feldens 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO Guilherme Damasio Goulart 5

6 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Roberta Magalhães Gubert 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA MODERNO CONSTITUCIONAL Emerson de Lima Pinto 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA Maria Lúcia Baptista Morais 9 TUTELA DE URGÊNCIA Jaqueline Mielke Silva 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres 11 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO DO TRABALHO Dartagnan Ferrer dos Santos 12 ANTROPOLOGIA E DIREITOS HUMANOS Ângela Kretschmann - Renato Selayaram 6

7 PREFÁCIO Este livro nasceu de um esforço conjunto dos professores do Curso de Direito do Cesuca, com o firme propósito de ser tão somente uma forma de aproximação entre Mestres e Aprendizes. Porém, quando um livro, ou quando um texto resolve experimentar a vida por conta própria, acontece de produzir efeitos que não eram imaginados. Nesse sentido, cabe aqui umas poucas palavras acerca dos motivos pelos quais o livro, que nasceu de um projeto singelo, conseguiu transformar-se em um instrumento de aproximação e diálogo entre os alunos, professores e o aprendizado. Ele representa uma continuidade do Formação Jurídica 1o. Ano, mas ao mesmo tempo traduz-se em um amadurecimento em termos de abordagens e um enriquecimento em relação à participação de novos professores com seus textos vinculados às disciplinas que ministram. Agora o livro não se concentra quase que totalmente sobre matérias propedêuticas, ele vai além, abraçando questões mais concretas, de disciplinas eminentemente práticas, que vêm sempre fundamentadas nas questões de fundamento para você, aluno do Curso de Direito do Cesuca. Aqui já começamos a pensar na prática jurídica real, na percepção de uma controvérsia, na definição de um litígio e nas possibilidades de uma conciliação. Agora enfrentamos de maneira ainda mais contundente a importância da linguagem para o jurista e salientamos que sem uma boa bagagem repleta de palavras não se vai muito longe, mas, mais do que isso, ressaltamos que nada adianta uma bagagem repleta de palavras se não se sabe o que fazer com elas, sequer onde se deseja chegar. Daí porque insistimos de modo incansável com as propostas da disciplina de Direito e Linguagem e, logo a seguir, de Argumentação Jurídica. Este é um convite a cada aluno do Curso de Direito no sentido de também realizar uma autoavaliação de sua própria caminhada, ques- 7

8 tionando e percebendo principalmente seus limites. Essa é uma tarefa que é realizada de modo muito frágil pelas provas, pelas avaliações e pelos trabalhos. Conhecer os próprios limites profundamente, a fim de investir na apropriação de melhores condições, é uma resposta individual que apenas a reflexão pessoal pode trazer: a reflexão que acontece de modo silencioso, respeitoso e, por que não dizer, apaixonado pelo silêncio aterrador do desconhecido. Este livro, portanto, pretende auxiliar nessa caminhada pessoal, de cada aluno e aluna, num sentido de encorajamento e de apoio que é carinhosamente oferecido pelos professores do curso a seus alunos para que sintam que essa caminhada, ainda que muito pessoal, possui apoiadores e mestres silenciosos que desejaram escrever os capítulos estimulados pela própria confiança que depositam, não apenas em cada aluno e aluna que se dedicará a essa leitura, mas no que cada aluno e aluna representam para o futuro de nossa comunidade. Temos a sincera confiança do papel fundamental que está destinado a nossos alunos na sociedade. Infelizmente ainda são raros os juristas militantes que se preocupam com a definição do direito. Essa constatação vem de Chaïm Perelman 1, que ressaltou que a falta de interesse por essa questão parece residir em torno de um consenso sobre o que depende ou não do direito e que o ensino acabaria fundamentado nessa evidência. Ora, o aluno já sabe que o direito não se identifica com o direito positivo. Buscar o direito nos textos legais é apenas uma parte da árdua tarefa do jurista, que necessita desenvolver o hábito da ação prudencial e desenvolver a virtude por excelência do jurista: a prudência, lembrando que nas palavras de Aristóteles a virtude é um hábito que se adquire com a prática. Quem, afinal de contas, desconhece o que é justo? Parece que todas as pessoas desenvolvem uma noção, ainda que singela, do que seria justo em um determinado caso. Porém, é necessário perceber que existem muitas formas de se conceber a própria Justiça. Para alguns, ela poderá estar vinculada a um bem comum a ser alcançado para o máximo número de pessoas. Para outros, a justiça poderá residir na máxima liberdade de cada indivíduo de poder decidir seu próprio destino. E há 1 PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Martins Fontes: São Paulo,

9 também os que entendem que a justiça estará calcada no desenvolvimento de habilidades próprias, como a virtude. Dependendo do caso, o Estado deverá intervir mais ou menos ou não intervir em hipótese alguma. Cada um precisa perceber em si mesmo sua própria tendência na compreensão dos aspectos diversificados do que pode ser justo em uma situação concreta. Para a pergunta, por exemplo, se a tortura pode ser aceita em determinadas circunstâncias, argumentos prós e contras são trazidos com base em concepções distintas de Justiça 2. Assim, existem muitas situações que não dependem simplesmente da análise e aplicação fria da lei, mas também de uma concepção de moralidade e de um critério de justiça que deve ser levado em conta. Sandel traz inúmeros exemplos de dilemas morais que exemplificam bem essa situação. 3 Quando o aprendiz consegue identificar isso nos mais variados casos concretos, desenvolve uma habilidade que não possuía antes ou que não sabia existir. Mas isso não é fácil de se alcançar, é necessário muito estudo, muita leitura e muita reflexão. E como diz o sociólogo e filósofo, Pedro Demo, em um vídeo imperdível, 4 o conhecimento adquire-se pelo cérebro e não pelo ouvido, ou seja, precisamos pensar, refletir e criar, só assim realmente se aprende alguma coisa: de aprendiz, é possível tornarse mestre. Aqui temos o desejo de que o aluno critique o conhecimento, que tenha condições de produzi-lo e que não fique simplesmente escutando aula, pois Aula é defunto, não vale a pena enfeitar, melhor enterrar, como diz Pedro Demo. Temos o desejo de salas de aula, mas repletas de estudantes, não de alunos, que só escutam, ou no máximo olham o que está acontecendo, sem refletir. Estudantes são natural- 2 A respeito, o livro de SANDEL, Michael J. Justiça O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Como exemplo agudo: Armin Meiwes, em 2001, na Alemanha, queria que alguém o matasse e que o comesse. Publicou um anúncio e o acordo foi fechado com Brandes, que consumou o plano e foi condenado à prisão perpétua (este e inúmeros outros casos em SANDEL, Michael J. Justiça O que é fazer a coisa certa. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013). Afinal, não é apenas uma questão legal com a qual se deparam os juristas, há também a própria análise das condições do contrato, da função social do contrato, além de outros valores e princípios que efetivamente foram violados. É possível defender Brandes com base em algum dos critérios distintos? E qual o condena? 4 Vídeo do educador e filósofo Pedro Demo: acesso em 14 de maio de

10 mente pesquisadores, e por isso a pesquisa está sendo tão fomentada em nossa instituição. Pretende-se que o aluno tenha realmente habilidade para desconstruir o argumento de autoridade e construir a autoridade do argumento. Espera-se que este livro possa auxiliar, de alguma forma, ainda que singela, nesse processo, onde a aula tradicional sofre gradativamente uma transformação onde o estudante passa a ser o centro da produção do conhecimento, não o professor. Por tudo isso, no Curso de Direito do Cesuca, muitas mudanças foram realizadas pensando na melhoria do ensino e aprendizado jurídico. 5 Há uma permanente preocupação com os limites legais impostos para mudanças estratégicas que possam permitir maior desenvolvimento crítico sobre os fundamentos do Direito, em meio às necessárias provas públicas a que os graduados serão submetidos, como a própria prova da OAB. Para conciliar as exigências teóricas e práticas, de modo interdisciplinar e produtivo, os alunos possuem não apenas um cartório simulado, desde o terceiro semestre, mas, na sequência, um escritório modelo que permite também a prática da conciliação. O aluno depara-se com uma espécie de residência jurídica, enfrentando diretamente os problemas sociais de sua comunidade, buscando soluções para elas e acompanhando todo o processo, seja litigioso ou como conciliador. É importante também a percepção da sua função no contexto de um paradigma de Estado que sofreu uma radical alteração. O Estado não é mais o centro das relações, o centro agora está voltado para o ser humano, com novas exigências que trazem a mediação de conflitos e a arbitragem como fundamentais para essa nova realidade. Reforçam a quebra de paradigma que se apresenta agora como a nossa realidade a ser vivida. E indicam de modo muito sutil mudanças pelas quais também a profissão do jurista tende a passar. Na atualidade, nesse contexto, o aluno precisa se emancipar de todas as amarras e tornar-se cidadão autônomo, com competência para emancipar aqueles que ainda restam sob qualquer tipo de opressão 5 Mais a respeito na publicação de KRETSCHMANN, Angela; OHLWEILER, Leonel Pires. O ensino jurídico entre condicionamento e criatividade: desafios para superação. IN Revista Diálogos do Direito, v.4, n. 6, jul/ago Disponível em: dialogosdodireito/article/view/

11 para isso é necessária uma educação emancipatória para que o aluno possa ter o destino em suas próprias mãos. Desde o princípio os depoimentos dos que primeiro passaram pela experiência do nosso escritório modelo, o SAJUG, foi de uma espécie de dor, mas uma dor positiva, pois o enfrentamento do desconhecido traz logo a percepção da capacidade de aprender, de lidar com as mais variadas nuances que a vida traz para o jurista e enxergar e experimentar de modo muito íntimo as mazelas, tristezas e dores das pessoas que buscam auxílio. E depois vem uma sensação que, dizem alguns, é difícil de definir, pois não se pode ter tanta alegria, nem tanta tristeza, depois de experimentar resolver uma situação concreta de injustiça ou de desacordo. O que surge é um amadurecimento necessário. O que se forma é a consciência do cuidado, outro adjetivo que se pode bem utilizar para uma boa prática jurídica. A presente obra vem justamente compor mais uma parte de um projeto maior, que tentar conciliar tantos interesses que envolvem o aluno do Curso de Direito, mas sempre procurando a aproximação entre aqueles que são os Mestres e seus Aprendizes, procurando dar condições para que também, através do desenvolvimento de pesquisas, os Aprendizes façam o caminho de aproximação em direção aos Mestres. E os resultados têm sido excelentes, pois estudantes pesquisadores têm trazido resultados, com a aprovação de suas próprias produções, suas pesquisas, seus artigos, suas apresentações orais em Mostras e Congressos, com artigos também aprovados para publicação em Revistas muito qualificadas. Não é demais lembrar que o livro tem origem no apoio a um projeto de pesquisa denominado ABC do Direito, e já no seu primeiro número o Ano I veio com o propósito de tornar acessível, de modo gratuito, material de estudo a alunos do Curso de Direito. Porém, desejando fugir da mesmice dos manuais e do todo que se encontra a um clique do aluno, a obra é muito mais do que um material didático. Ela procura na realidade conversar com o Direito, trazendo para o leitor para o diálogo o leitor que é nosso estudante de Direito que pela primeira vez conhece o mundo jurídico-acadêmico, e por isso os textos procuram estabelecer uma ponte entre o professor, a aula e o aluno. É importante que se compreenda bem o significado dessa ponte. Isso pode ser percebido através da leitura do livro Formação Jurídica, 1o. Ano, publicado em

12 Nesse sentido, com este novo livro, Formação 2o. Ano, além de representar uma ponte entre o aluno e o aprendizado, pretende-se que sirva como instrumento adicional para o estudo acadêmico-jurídico. Em uma palavra, o projeto se resume em um convite. Um convite para que o aluno se sinta à vontade e, preferencialmente, com mais vontade de ficar e aprofundar seus conhecimentos no Direito. O projeto inicial envolve assim uma coleção de volumes para introduzir alguns tópicos fundamentais aos alunos. A base é um tópico especial do conteúdo programático de cada disciplina, mas trabalhada de modo muito pessoal pelo professor e dirigido a seus estudantes para ser objeto de reflexão com o grupo. Assim como o próprio livro, cada texto pretende-se humilde, na sua pretensão de exposição, mas ao mesmo tempo arrojado por buscar estabelecer uma ponte real entre pessoas que estão buscando compreender realmente o Direito, não simplesmente conhecê-lo, mas experimentá-lo. Como já foi dito na publicação do primeiro ano, são vários os objetivos da proposta, mas principalmente permitir que o aluno tenha uma porta de entrada facilitadora, possibilitar que o estudante tenha maior proximidade com o professor através do texto e criar condições, através dos textos, de cativar os alunos para o estudo e aprofundamento dos temas. Além disso, através dos textos, o aprendiz possa conhecer o professor e a professora de uma outra forma. Conhecer o modo como aquele professor desenvolve um determinado tema, como ele pensa e expressa sua concepção sobre uma determinada matéria e como ele compreende e aprova, ou não, determinada doutrina. Aqui é o professor com coragem de se mostrar abertamente na sua forma de pensar. Aqui é o convite sincero para que seu aprendiz venha conhecer também esse lado de seu professor. O lado do professor autor, que pensa, reflete, escreve e publica aquilo em que acredita. Aqui o professor também dá o exemplo aos alunos. Convida-os para caminharem juntos. Mostra sua forma não apenas de se expressar sobre um determinado tema, mas de refletir sobre ele, e o aluno tem o privilégio de receber esse exemplo para também se iniciar no exercício da reflexão, da crítica e da produção literária. E isso é realizado de modo mais intenso através dos projetos de pesquisa. O grupo de pesquisa sobre ensino jurídico tem produzido muitos artigos e tem trazido maior 12

13 consciência do papel do professor e do aluno, da diferença entre escutar aula e fazer, ou seja, produzir conhecimento. Daí a importância dos ambientes de aprendizagem, tanto presencial quanto virtual, lembrando que as tecnologias de informação e comunicação vieram para ficar. E se constituem em um excelente instrumento de criação que pode e deve ser bem aproveitado. O projeto de pesquisa Aluno Autor tem essa finalidade de modo específico, e em breve apresentará resultados para nossa comunidade acadêmica. Outros projetos, como os Vulneráveis do Direito Privado trabalha em conjunto com o curso de Psicologia e com o SAJUG (Serviço de Assistência Judiciária Gratuita) da faculdade. Os projetos de pesquisa e grupos de pesquisa pretendem motivar os alunos. Eles causam um reflexo imediato nas aulas do professor, de modo que as aulas tornam-se ambientes cada vez mais propícios à produção do conhecimento e não apenas a sua transmissão, que é algo que já está desgastado e nem professor nem aluno aguentam mais essa forma de ensino, mormente em aulas que possuem cerca de 3 horas de duração daí por que se fala em buscar o aprendizado no lugar de, apenas, o ensino. Por fim, quero expressar meu profundo agradecimento a todos que apoiaram este projeto, todos os professores que carinhosamente colaboraram com seus textos e também à Faculdade Inedi Cesuca, que financiou todo o projeto que se transformou nessa segunda publicação, que é doada gratuitamente aos alunos matriculados no Curso de Direito do Cesuca do ano de A versão on-line da obra pode ser acessada livremente pelo público em geral e está disponível no site do Curso de Direito. A todos, o desejo de que este livro possa inspirar nossos professores no desenvolvimento de seus textos, de sua produção qualificada, e que esta possa inspirar nossos alunos e motivá-los a participar cada vez mais dos projetos de pesquisa que a cada dia mais se multiplicam e se fortalecem em nossa faculdade. Cachoeirinha, novembro de 2014 Profa. Dra. Ângela Kretschmann 13

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15 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM Celso Augusto Nunes da Conceição 1 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO Conteúdo programático com mudança de paradigma de ensino Filosofia na disciplina de Direito e Linguagem A volta dos conectivos logo e porque na argumentação válida e inválida Argumentação válida: silogismo Argumentação inválida: sofisma Pragmática: os princípios cooperativos na comunicação Revista Diálogos do Direito: contribuição para a disciplina através dos artigos Contribuição linguístico-semiológica para leitura de Warat - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. INTRODUÇÃO: por que mais uma disciplina de linguística no direito? Seria necessária mais uma disciplina da área da linguagem no Direito? Por quê? Dessas duas indagações, a segunda parece gerar a in- 1 Professor das disciplinas de Português Jurídico e Direito e Linguagem no Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/RS (Cesuca). Mestre e doutor em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). celsoconceição@cesuca.edu.br. 15

16 Celso Augusto Nunes da Conceição ferência de que é preciso justificar bem a primeira em função de que o curso já estava contemplado com a disciplina de Português Jurídico. Partindo da premissa de que o povo brasileiro carece de uma formação adequada em sua língua materna e que o conhecimento de linguagem não se restringe à consciência linguística para a compreensão leitora e a produção textual, com o fundamento da aplicação das regras e suas nuances estruturais, a necessidade de uma disciplina que envolvesse os processos comunicativos de outro nível era premente e imperiosa. Por quê? Premente porque o aluno do curso de Direito estava com limitações quanto ao entendimento da aplicabilidade das relações do conhecimento jurídico com os processos linguísticos nos níveis sintático-semântico-pragmáticos, principalmente na relação lógica das ideias, bem pontuados pelos professores das disciplinas afins. E imperioso porque o outro nível ultrapassa a barreira da língua como código, estrutura e questões semânticas para atingir a esfera da linguagem como capacidade para a comunicação. Mesmo o fato de a disciplina de Português Jurídico estar cumprindo o seu papel nas abordagens gramático-coesivas e aspectos textuais, fundamenta-se basicamente em dar um tratamento inverso em relação ao seu ensino. Ao invés do estudo gramatical isolado de contextos, como é a maioria do ensino de língua portuguesa no primeiro e segundo graus, o foco é desviado para a compreensão de textos e como os elementos linguísticos se articulam dentro dele, ou seja, a gramática é extraída desses próprios textos. Com isso, a consciência linguística para a compreensão de sua língua amadurece a cada leitura e escritura. Acrescente-se a isso o fato de que o aluno conclui essa disciplina com a certeza de que sua relação com a gramática da língua portuguesa, especificamente o português brasileiro, não será a mesma de quando entrou para cursá-la porque ele aprendeu a vivenciar o tratamento linguístico como algo prático e objetivo. Mas, claro, este é o primeiro passo, aquele que sedimenta e estrutura a superfície linguística para voos mais altos. Estamos falando do próximo passo da linguagem: a Filosofia da Linguagem 2. 2 AUROUX, na sua Introdução O que é a Filosofia da linguagem?, destaca o problema conceitual referente à indeterminação do campo da filosofia da linguagem: A filosofia da linguagem não corresponde a uma unidade conceitual muito clara, ainda que esta expressão possa entrar na 16

17 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM Por que a inclusão da Filosofia da Linguagem ao programa? Porque é a interface que dará à disciplina Direito e Linguagem o alicerce argumentativo, com sua pluralidade de relações entre as diversas áreas do conhecimento sociocientífico. Até chegar à efetividade da disciplina no currículo do Direito, muitas tratativas e estudos para estruturar o conteúdo ao propósito do curso ocorreram, mas o aluno ficou cético em relação a isso, pois entendia que seria um Português Jurídico 2. Era natural pensar isso em função de que o professor que ministraria a disciplina seria da área da Linguística. Na sua primeira edição, I semestre de 2014, a dúvida começou a se desfazer, uma vez que foram apresentados conteúdos que abrangiam a tipologia textual enfatizando os gêneros narrativo, descritivo e dissertativo; as máximas da comunicação; noções do convencionalismo e naturalismo da linguagem; e a Lógica clássica com sua argumentação voltada à validade e invalidade dos argumentos. Hoje é notória a diferença entre uma disciplina e outra. Enquanto uma é puramente linguística, a outra é mais linguístico-filosófica (ou filosófico-linguística? Essa é para reflexão!). Além disso, é uma disciplina necessária para o entendimento da que vem na sequência do semestre: Argumentação jurídica. As razões serão explicitadas ao longo deste capítulo Conteúdo programático com mudança de paradigma de ensino O programa da disciplina tem na sua ementa as noções lógico -linguísticas para entender textos pelos níveis da compreensão e da interpretação. Com uma tipologia textual 3 voltada à narração, descrição e argumentação, o aluno consegue enxergar a estrutura juntamente com descrição de programas universitários ou dar lugar a títulos de obras. O autor acrescenta que por meio dela é possível designar várias coisas diferentes. Destacamos a mais importante para a disciplina: i) As reflexões que se encontram sobre a natureza da linguagem antes do aparecimento das tradições linguísticas positivas e autônomas (por exemplo, nos pré-socráticos, em Platão, Aristóteles ou nos estoicos). Note-se que a tradição linguística ocidental tem suas raízes nos filósofos que começaram a distinguir as classes de palavras (nomes e verbos, onoma e rhêma em Platão e Aristóteles) por necessidade de uma teoria da argumentação.auroux, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora da UNICAMP, p FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. 17. ed. Rio de Janeiro: ED,

18 Celso Augusto Nunes da Conceição suas especificidades linguísticas, que o fazem distinguir com clareza as suas diferenças, aplicando o conhecimento adquirido na disciplina básica de português a partir do estudo da coesão e da coerência para a produção textual. Inclui-se a essa ementa a argumentação 4 como recurso lógico -persuasivo. Nesse caso, a argumentação com suporte na lógica aristotélica e na dos sofistas provocam uma maior atenção e concentração para entender os processos de causa e consequência com o uso dos conectivos logo e porque. Extraem-se daí vários equívocos de entendimento, causando em alguns casos certa indignação por saber que a resposta não é aquela que ele concluiu. Mas com a aplicação de exercícios em dinâmicas de grupo o assunto toma outro rumo: o dos argumentos prós e contras para uma boa resposta à tarefa. Por último, a intencionalidade do Ato de Fala, conteúdo de uma das teorias linguísticas: Pragmática. Esta com um diferencial porque envolve os processos de comunicação em que princípios cooperativos conversacionais devem ser obedecidos para que o diálogo entre os falantes se estabeleça. Aparentemente parece fácil, mas não é em função de que as pessoas sonegam informações para poderem se comunicar, ou seja, são pessoas que dizem algo querendo outro, e os outros, ouvintes, entendem.. Quando chega esse momento, a maioria dos alunos já estão esperando pelos desafios cognitivos, envolvendo-se na viagem pelo raciocínio até atingir a meta: elaborar diálogos em que são violadas máximas da comunicação para poder implicar algo; qual seja, fazer uso dos diálogos pragmáticos. E como trabalhar esse conteúdo todo visando ao resultado cognitivo que satisfaça o aluno? Assim como na disciplina de Português Jurídico, o método utilizado em sala de aula é praticamente o interativo, em que o aluno é convidado o tempo todo a fazer as relações de uma informação com outro assunto que aparentemente não teria sentido. Certamente esse tipo de procedimento acadêmico causa algum desconforto cognitivo, uma vez que a tradição de ensino é a aula expositiva, em que o professor passa esse conhecimento de forma oral ou escrita, cobrando do aluno não o raciocínio, mas sim a famosa decoreba. Essa alteração na maneira de 4 KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez Editora,

19 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM tratar o assunto exige de ambos, professor e aluno, uma atenção especial: sintonia o tempo todo, não se desviando para qualquer outro fato que o motive a deixar a concentração. Essa alteração paradigmática na forma de ensinar é a que resulta em uma performance efetivamente compreensiva. Há problema nisso? Sem dúvida que sim, porque o aluno está acostumado a sentar e aguardar aquela tradicional aula expositiva. E como ele reage a essa mudança? Alguns com certa indignação, chegando inclusive a chamar a atenção do professor em relação ao encaminhamento da aula. Perguntas ou afirmações do tipo: Vim aqui para receber conhecimento e não para responder perguntas de algo que não conheço, Não entendo qual a relação nisso ou até mesmo Vá direto ao assunto!. Certamente, há outras que se referem ao mesmo processo de ensino. É claro que a ação docente deve ser contínua para que o aluno se acostume a esse tipo de aula. Tal dinâmica requer paciência de ambas as partes, e que o aluno deve estar disposto e preparado para os desafios deste nível: raciocinar a partir do que é tratado. O desconforto no aprendizado vai desaparecendo à medida que o raciocínio começa a tomar forma e que as conclusões aparecem. Na verdade, essa mudança de paradigma faz com que o aluno aprenda a aprender. E gradativamente ele vai percebendo que exercita o raciocínio a partir das perguntas e que isso o incita a buscar mais respostas e a questionar mais. Bem, isso já era feito na Grécia antiga, com os grandes filósofos que até hoje são lembrados: Sócrates, Platão e Aristóteles. Mas um em especial: o primeiro, Sócrates, o mestre dos mestres, sem exageros. E para ilustrar esse processo reflexivo, a seção XX indica uma leitura para compreender a relação pergunta/resposta como binômio de causa e consequência na vida do indivíduo Filosofia na disciplina Direito e Linguagem A necessidade da Filosofia, especificamente a da Linguagem, ficará mais evidente nesta seção do capítulo. Há muito tempo foi criado por mim o rótulo SPA Filosófico, sigla que representa, pela ordem, Sócrates, Platão e Aristóteles 5. Por que estão aqui? Logicamente 6 pela 5 Esses três filósofos nasceram e viveram na Grécia nos séculos V-IV a.c. 6 Nesse caso, o significado da palavra não se restringe à Lógica aristotélica, mas sim ao conhecimento 19

20 Celso Augusto Nunes da Conceição sua contribuição milenar para as questões que envolvem a linguagem, principalmente porque foi com Sócrates as primeiras reflexões sobre a sua origem. Trata-se aí da referência em três níveis: Sócrates com a sua metodologia baseada na maiêutica, que era um processo no qual ele, por meio de perguntas, fazia o seu interlocutor responder algo que não imaginava saber; Platão, seu discípulo, escreveu sobre seus questionamentos e raciocínios, estabelecendo um referencial no que tange às ideias inatas, as noções de causa/consequência, condicionalidade, temporalidade, entre outras; por último Aristóteles, que contrariando seu mestre Platão, afirmava que nada existe no espírito humano que antes não tenha passado pelos sentidos. Por que esses três são destacados neste capítulo? Porque serão retomados por Locke 7 no famoso debate da tábula rasa, posicionando-se pelas ideias de Aristóteles, e o seu debatedor, Leibniz, retomando Platão. Esse SPA torna-se aqui um background para entender o posicionamento de Locke em relação ao Direito e à Linguagem. Para instigar os alunos às questões filosóficas, é indicada uma pintura na parede que está no saguão do prédio do Cesuca. É uma representação da Escola de Atenas, obra pintada pelo italiano Rafael Sanzi entre 1509 e 1510 na Stanza dela Segnatura, sob encomenda do Vaticano, e uma das mais famosas pinturas do Renascimento. O objetivo é fazer com que pesquisem quem foi o pintor, quem são os dois que estão no arco de entrada e onde está Sócrates. Após essa provocação para a pesquisa, e todos com as necessárias informações, a aula expositivo-interativa começa com perguntas como: Quem foram eles?, Quais são suas contribuições filosóficas?, entre outras. Naturalmente que a pesquisa já os tinha estimulado, notandose claramente o envolvimento da turma. Naquele momento, o nível de abstração começava a tomar conta do ambiente. Passavam de uma aula com um conteúdo de certa forma conhecido para raciocínios de outra natureza. Os cérebros começavam a fazer mais relações e as dificuldades para materializarem as questões de nível abstrato se faziam presente. É notório que as reações eram diversas: alguns brilhando os olhos como dicionarizado de bom senso, naturalmente, obviamente e até mesmo racionalmente, HOUAISS ELETRÔNICO. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, Filósofo britânico do século XVII que teve (e tem) muita influência na área jurídica, principalmente na definição de contrato social. 20

21 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM se estivessem saindo da Caverna de Platão 8, e outros resistindo ao conhecimento novo. Isso é normal em cada grupo, pois toda mudança, historicamente, provoca mais ansiedade em uns do que em outros. Claro que o registro de que temos de ir mais longe do que foi solicitado é uma das marcas da disciplina. Uma história sobre eles, inclusive o porquê de Sócrates ter sido condenado e suas contribuições para o processo discursivo do que não se sabe o que já se sabe é uma afirmação que chama a atenção pelo aparente jogo de palavras. Esse pano de fundo para estabelecer a ligação entre as duas áreas já está pronto para discorrer sobre como Locke se posiciona em relação às duas áreas. O melhor resultado dessas indagações linguístico-filosóficas em sala de aula foi um artigo apresentado na Mostra de Iniciação Científica do Cesuca 9, com o título: Por que Locke é naturalista em relação ao Direito e convencionalista quanto à linguagem?, escrito por dois professores e por duas alunas da disciplina 10. Como se percebe, o filósofo Locke é uma das interfaces entre o Direito e a Linguagem. E para despertar mais a curiosidade para a leitura, eis o resumo desse artigo: O presente artigo faz uma provocação de nível conceitual em relação à dicotomia naturalismo/convencionalismo em Locke: o primeiro está para o Direito, e o segundo para a Linguagem. Por que Locke não segue a mesma lógica? O objetivo geral é fundamentar o aluno dessa área para o objetivo específico, que é o de promover discussões acadêmicas dentro das salas de aula a partir desse questionamento. Metodologicamente, há o confronto de definição dessa dicotomia para o melhor entendimento da diferença dessas ciências. O resultado é a geração inferencial para possíveis reavaliações conceituais do próprio Locke. (KRETSCHMANN et al, 2013). Já se falou em Sócrates e Platão, faltando Aristóteles para demonstrar a base do raciocínio clássico: o silogismo. Ele conseguiu demonstrar como a relação de causa e consequência se estabelece a partir de premissas. Contudo, antes de abordar as ideias do filósofo, é necessário traçar um paralelo com o ensino da gramática tradicional no uso 8 É um nome metafórico para a parábola da caverna na obra A República, de Platão. 9 Cf. no site: 10 Autores e coautores: Prof a. Dra. Ângela Kretschmann; Prof. Dr. Celso Augusto Nunes da Conceição; alunas Eliane Krupp e Vanessa Jamille Herber da disciplina Direito e Linguagem, I sem

22 Celso Augusto Nunes da Conceição das conjunções coordenadas e subordinadas. Para o conectivo logo não há problema porque esse está listado como conjunção que introduz uma consequência. Já o porque, que aparentemente estabelece uma simples relação, complicará os indivíduos que dele se utilizam em suas construções argumentativas. Pelo lado sintático, pode esta conjunção estabelecer uma relação coordenada explicativa e subordinada causal. Mas o problema maior não está somente na compreensão se é coordenada ou subordinada, está em que acreditam introduzir uma ideia de consequência. Não são todos, mas a maioria. Nada melhor do que partir para a prática, para o uso nas situações reais de comunicação, traçando paralelos sintáticos, semânticos e lógicos. Esses conectivos serão lembrados por esses aspectos quando da sua aplicabilidade na argumentação formal. Os alunos entrarão em outro nível de compreensão lógica A volta dos conectivos logo e porque na argumentação válida e inválida Como a sintaxe é a área da linguística que trata somente da sentença em sua forma estrutural e não semântica, com significado somente das partes, as conjunções 11 doravante serão tratadas com o nome de conectivos porque sua função será mais importante para as relações proposicionais. Depois de serem apresentados para as relações coesivas sequenciais no Português Jurídico, os alunos, agora com mais conhecimento dos fundamentos linguísticos, deparam-se com as inferências provocadas pelas relações proposicionais em que os conectivos logo e porque estão presentes. O propósito desse estudo é entender o que o interlocutor disse quando manifestou sua afirmação. E como se faz isso? Para responder questionamentos como esse, é preciso ilustrar com frases que contenham o conectivo que introduz um argumento. Por exemplo: João é inteligente porque estuda. Independentemente da questão semântica dos predicados, qual a generalização inferida logicamente? Quem estuda é inteligente ou Quem é inteligente estuda? Inicialmente parecia simples, mas, diante dessa duplicidade de resposta, a dificuldade começa a criar certo desconforto intelectual. Outro exemplo, agora com o conectivo logo, é necessário para se estabelecer outro parâmetro 11 Utiliza-se a classificação de conjunção para o nível morfológico e conectivo para o sintático. 22

23 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM de resposta, lembrando de uma afirmação do século XVII, produzida por Descartes depois de raciocinar sobre a verdade de sua existência: Penso, logo existo. E vem a famigerada pergunta sobre a generalização gerada por essa frase: Quem pensa existe ou Quem existe pensa? Essa recuperação não garante que o produtor da proposição complexa (duas proposições ligadas por conectivo 12 ) tenha gerado um silogismo, ou até mesmo um sofisma, inadvertida ou intencionalmente. A resposta para ter seu caráter irrefutável necessariamente deve passar pela Lógica aristotélica, também conhecida como clássica. E para uma aplicação mais didática, os exemplos acima serão retomados nas subseções posteriores Argumentação válida: silogismo O termo argumentação merece uma atenção especial, mas não será nesta subseção porque a finalidade é estabelecer a relação do conectivo porque e o logo na Lógica clássica, a de Aristóteles. Foi ele quem formulou as regras da lógica formal, que se mantêm até os dias de hoje sem qualquer reparo às suas propostas de apresentar a maneira de como o ser humano raciocina. Em Charboneau (1986, p. 19), é possível verificar uma das definições da lógica aristotélica mais sucintas e precisas: A lógica formal distingue os raciocínios verdadeiros dos raciocínios falsos, independentemente do seu conteúdo. Não se preocupa com a matéria sobre a qual se apoia o raciocínio, mas apenas com a forma. Daí o nome formal. Para que um raciocínio seja válido em sua forma é preciso que não se deixe contradizer por uma transformação dissimulada das definições de que se partiu. É, portanto, formalmente proibido introduzir no curso do raciocínio uma nova definição. Mesmo com toda a clareza da definição, é importante destacar a diferença entre forma e conteúdo, em que a primeira é a regra e a outra fazendo relação com o significado tanto das palavras quanto das sentenças, ou seja, a lógica não se preocupa com a semântica dos termos, somente com a sua estrutura. Dizendo de outra forma, a lógica não tem 12 Pela abordagem gramatical. 23

24 Celso Augusto Nunes da Conceição compromisso com a semântica. Se as proposições têm problema com seus significados, a discussão será no nível da significação e não da forma. Especificamente quanto ao silogismo, trata-se de um argumento composto de três proposições, em que as duas primeiras são premissas e a última a conclusão, e esta é decorrente das outras duas. E um exemplo clássico, precedido de uma breve definição, é apresentado por Charboneau (1986, p. 24): O silogismo é um raciocínio que, a partir de duas proposições que são aceitas como verdadeiras, chega de maneira necessária a uma terceira proposição. Exemplo: Todos os homens são mortais; Ora, somos homens. Logo, somos mortais. Propositadamente fez-se uso do termo argumento enquanto que Charboneu (1986) utiliza raciocínio ; e a outra diferença é o uso de proposições e premissas. O argumento faz uso do raciocínio, e toda premissa é uma proposição e não o inverso. Por último, a palavra necessária para a terceira proposição é em função de a regra ser a do Modus Ponens: a afirmação do termo antecedente (homens) da premissa maior PMa (Todos os homens são mortais) na premissa menor PMe (somos homens) conclui o termo consequente da premissa maior (mortais). É importante esclarecer que em cada proposição há um sujeito e um predicado, sendo o sujeito o termo antecedente e o predicado o consequente. Retomando os exemplos da subseção 2.4, João é inteligente porque estuda e Penso, logo existo, os dois conectivos porque e logo estabelecem relação de causa e consequência; porém, a ordem proposicional se inverte por razões lógicas entre elas. No exemplo João é inteligente é estabelecida a relação de consequência e estuda a relação de causa. Essa proposição complexa 13 constitui-se como um entimema 14, gerando a inferência de que a premissa maior está implícita. Como se processa esse raciocínio? Percebe-se no silogismo que a conclusão é pre- 13 Pode-se dizer que se trata de uma sentença composta por duas proposições. 14 Argumento em que uma premissa está implícita ou, como dizem alguns, oculta. 24

25 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM cedida do conectivo logo. Estruturando essa proposição no formato da Regra do Modus Ponens RMP, tem-se João estuda (PMe) João é inteligente (Conclusão), faltando aí a PMa. Aplicando a RMP, em que a afirmação do termo antecedente conclui o seu consequente, estuda é o termo antecedente na PMa e inteligente é o seu consequente, logo a PMa é: Todos os que estudam são inteligentes. Para ficar mais ilustrativo, abaixo está o argumento completo: Quem 15 estuda é inteligente. (PMa) Ora, João estuda. (PMe) Logo, João é inteligente. (Conclusão) O mesmo processo causal no entimema Penso, logo existo gera a inferência da PMa: Todos os que pensam existem. Como foi tão fácil raciocinar e concluir essa generalização? O conectivo logo introduz a conclusão, então Penso é PMe. Remontando a regra, introduzindo o sujeito desinencial Eu, tem-se: Eu penso (PMe) Eu existo (Conclusão). Pela mesma RMP, o predicado penso deriva da afirmação do termo antecedente da PMa e o predicado existo na conclusão deriva dessa afirmação, logo: Quem pensa existe. (PMa) Ora, eu penso. (PMe) Logo, eu penso. (Conclusão) Ressalta-se que enquanto os argumentos são válidos ou inválidos, as proposições são verdadeiras ou falsas. Nesta subseção, tratamos da validade do argumento baseado na lógica clássica, a aristotélica. Na seguinte, o sofisma fará uso da RMP para gerar as falácias. 15 Esse termo faz a mesma função do quantificador lógico Todos. 25

26 Celso Augusto Nunes da Conceição Argumentação inválida: sofisma Existem vários argumentos invalidados pela lógica. Aqui faremos uso somente de uma: a da RMP, em que uma sutil alteração no ato de afirmar provocará a sua invalidade. Com base no silogismo, a sutileza está em que a afirmação não será do termo antecedente da PMa, mas sim do seu consequente. Retomando novamente os exemplos da subseção 2.4, João é inteligente porque estuda e Penso, logo existo o processo será inverso. Estruturando os dois entimemas na sua forma lógica, tem-se: João estuda. (PMe) João é inteligente. (Conclusão) Eu penso (PMe) Eu existo (Conclusão). Nesses dois casos o processo falacioso da RMP acontece porque a afirmação não será mais do termo antecedente, mas sim do consequente. Em 1), a falácia da RMP fica assim: Quem é inteligente estuda (PMa) João estuda. (PMe) João é inteligente. (Conclusão) Nesse caso, a afirmação do termo consequente (estuda) conclui o termo antecedente (inteligente). Nota-se que houve a inversão no ato de afirmar, parecendo que a conclusão é derivada de um raciocínio lógico. Também em 2) Quem existe pensa (PMa) Eu penso (PMe) Eu existo (Conclusão), aconteceu o mesmo processo, gerando aí um argumento aparentemente válido. A pessoa que não conhece os fundamentos da Lógica aceita argumentos ou raciocínios como esses, questionando somente o conteúdo dos predicados em relação a eles mesmos, mas quanto à forma, não consegue nem enxergar a falácia. 26

27 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM Não são somente as inferências lógicas que são necessárias a um bom argumento, há também as que resultam da comunicação nos atos de fala. São diálogos em que a pessoa que fala não precisa explicitar o que está querendo dizer porque o seu interlocutor entende a sua intenção e responde o que o outro pretendeu. Trata-se aí de um outro nível de comunicação inferencial: a Pragmática Pragmática: os princípios cooperativos na comunicação A linguagem em uso causa certa estranheza nos alunos pelo simples fato de que eles não estão familiarizados com aulas interativas, aquelas em que são questionados a responder e não são apresentados ao assunto para poder responder às perguntas. E uma das áreas da Linguística que mais aplica os conceitos dos processos de comunicação é a Pragmática. Essa disciplina, inserida como conteúdo no Direito e Linguagem, pretende gerar no aluno a curiosidade de como se comunicar sem que o que é pretendido é dito na sua fala. A provocação já começa quando o professor Celso pergunta: Você tem horas?. Já familiarizados com o tipo de aula e sabedores dos processos coesivos textuais com suas respectivas ambiguidades, o aluno não responde de imediato, parecendo pensar qual a intenção da pergunta. Sua resposta é : Tenho!. Faço expressão de surpresa e pergunto: Por que você não me disse as horas?, no que ele responde: Porque você perguntou se eu tinha e não qual é a hora., e eu faço um novo questionamento: Se vocês não me conhecessem, responderiam assim?. Não!, dizem eles. Peço para esquecerem que me conhecem, criando assim um contexto normal de fala, e pergunto novamente: Vocês tem horas?, e eles olham o relógio e respondem a hora. Surpreendentemente, pergunto: Por que você me disse a hora se eu não perguntei?. Bem, instaura-se aí uma aparente conversa de louco. Na verdade, eu já estava aplicando os conceitos da Pragmática de forma subliminar. A intencionalidade, objeto da disciplina, já estava sendo experienciada. Mas a provocação não parava por aí. Novas perguntas como: É possível alguém entender o que o outro disse sem que ele tenha dito?, É possível uma pessoa pedir algo sem que esteja explicitado na sua fala? e É possível identificar a intencionalidade na fala do outro? 27

28 Celso Augusto Nunes da Conceição os incitam a raciocinar bastante. A curiosidade do aluno aumenta a cada questionamento dessa natureza. E para exemplificar, eu os faço perguntar para mim: Professor Celso, o que é realmente Pragmática?, e eu respondo: Há um livro na Biblioteca que fala sobre isso. A primeira reação é a de que eu estava sendo mal educado. Pergunto novamente: Respondi à sua pergunta? e alguns dizem que sim e outros dizem que não. Mais discussões se instauram. Aproveito a oportunidade para provocar os raciocínios a fim de que argumentem sobre cada resposta. Criado o contexto comunicativo para que os conceitos fossem assimilados pelo uso, começo a formatar o conteúdo pragmático solicitando que novamente acessem o material fornecido na aula anterior, pressupondo a leitura feita por todos. Como é de costume, a maioria dos alunos não lê, por n razões, mas uma delas em especial: é cultural. Paradoxalmente ao termo cultural, é porque o aluno já se acostumou a não ler. Ele aguarda o professor começar a exposição do assunto. Ledo engano, a aula é expositivo-interativa, com maior ênfase na interatividade. São apresentadas as máximas da comunicação nas quais a sua violação é a causa da geração de inferências do que se pretende, ou seja, o fato de violar um princípio da comunicação é disparada a sua intencionalidade, que é entendida pelo interlocutor. Segundo Costa (2008, p. 48), a trajetória de Grice 16 (1975) começa em 1956: Os primeiros textos importantes de Grice surgiram em 1956 e Meaning (1957) tornou conhecida a sua teoria da comunicação através dos conceitos de significação natural e não-natural (meaning-nn), tão decisivos na origem dos trabalhos sobre Pragmática em especial no de Searle. Foi, entretanto, com seu artigo Logic and Conversation, que apareceu nas conferências realizadas pela Universidade de Harvard em 1967, em homenagem a William James, que Grice provocou um dos maiores impactos teóricos na história das pesquisas sobre Pragmática. Publicado em 1975, esse texto, de menos de vinte páginas, apresenta um sistema conceitual extremamente eficaz para o tratamento das complexas questões que envolvem o problema da significação na linguagem natural. O tratamento inferencial de Grice (1957) lança as bases para inferência comunicativa. Diferentemente da implicação lógica, ele gera uma 16 Teórico que formalizou o cálculo conversacional para entender como ocorre a intencionalidade do ato de fala. 28

29 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM nova terminologia chamada de implicatura, tanto convencional como conversacional. A primeira está presa ao significado convencional das palavras, e a outra não depende da significação usual, sendo determinada por certos princípios básicos do ato comunicativo. Costa (2007, p.?) faz um breve comentário sobre ele: Antes, contudo, de analisar o conceito de implicatura conversacional, é preciso que se faça um breve comentário sobre a Teoria da Comunicação de Grice. Para ele, quando dois indivíduos estão dialogando, existem leis implícitas que governam o ato comunicativo. Isso significa que, mesmo inconscientemente, os interlocutores trabalham a mensagem linguística de acordo com certas normas comuns que caracterizam um sistema cooperativo entre eles, para que as informações possam ser trocadas o mais univocamente possível. Grice chama, a esse conjunto de regras, princípio de cooperação. Não é possível, nem imaginável, segundo ele, que um ato comunicativo pudesse ser totalmente livre, a ponto de o falante e o ouvinte perderem o controle do próprio jogo. Ao contrário, as regras do ato comunicativo talvez tenham sido aprendidas concomitantemente à aquisição da língua, de tal forma que um falante competente do português também conhece os efeitos de sentido que uma mensagem em português pode adquirir pela ação das regras do jogo comunicacional a que está submetido. Não é por outra razão, aliás, que se fala muito, ainda hoje, numa teoria de competência comunicativa. E foi além, introduzindo um cálculo conversacional de natureza cognitiva para dar conta da intencionalidade do ato de fala. Demonstrou-o, a partir das máximas específicas, o que ocorre no ato enunciativo. A fim de que se tenha noção de como esse diálogo acontece: um falante A pede x querendo y a B. Este entende o que está implicado e responde y. Levinson (2007, p. 19) apresenta esse cálculo na sua forma original: F quis dizer (significado-nn) z ao enunciar E se e apenas se: (i) F pretendia que E causasse algum efeito z no receptor O (ii) F pretendia que (i) fosse conseguida simplesmente pelo fato de O reconhecer esta intenção (i). E como são essas máximas no Princípio de Cooperação? São apresentadas em forma de categorias, conforme O Princípio da Cooperação - Máximas e Implicaturas Categoria da Quantidade 29

30 Celso Augusto Nunes da Conceição Relacionada à quantidade de informação que deve ser fornecida numa mensagem. A ele correspondem duas máximas: A. Faça com que sua mensagem seja tão informativa quanto necessária para a conversação. B. Não dê mais informações que o necessário. Categoria da Qualidade Relacionada inicialmente à supermáxima, Procure afirmar coisas verdadeiras e, indiretamente, a duas máximas mais específicas: A. Não afirme o que você acredita ser falso. B. Não afirme algo para o qual você não possa fornecer evidência adequada. Essas máximas precisam ser violadas para que a intencionalidade aconteça. Um dos exemplos foi quando o aluno perguntou: Professor Celso, o que é Pragmática?, e eu respondi que havia um livro na Biblioteca com a intenção de gerar a inferência do que era para que ele começasse a pesquisar e aprender a buscar o conhecimento e não a recebê-lo pronto. Outra situação é o respeito por uma máxima, em que necessariamente deve ocorrer uma violação. O exemplo pode ser parecido, trocando somente Pragmática para Engenharia nuclear. Eu, pelo fato de não saber o que significa, indico onde buscar a resposta a tal pergunta. Violei aí princípio da quantidade porque não respondi o que ela esperava, mas foi para respeitar o da qualidade, em função de que eu não sabia a sua definição. Muitos exemplos são criados nas dinâmicas de grupo. Essa aplicabilidade do conteúdo teórico de forma interativa gera um resultado além do satisfatório: aprendizado com a linguagem em uso Revista Diálogos do Direito 17 : contribuição para a disciplina através dos artigos Uma forma simples e prazerosa de aplicar os conhecimentos desta disciplina é buscar na leitura dos artigos dessa revista relações além do que é estudado em sala de aula. Os objetos linguísticos e a área li- 17 A Revista Diálogos do Direito nasceu com a criação do Curso de Direito do Cesuca, a partir do Projeto Jardim do Curso de Direito. O Jardim merece ser, na proposta dos filósofos gregos do epicurismo, um lugar muito privilegiado, e raro, de liberdade, ou, na proposta dos estoicos, uma busca de serenidade. O diálogo parte, assim, de obras literárias, escolhidas pelos professores do Curso. 30

31 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM terária estabelecem um eixo de reciprocidade que leva o leitor a uma compreensão de mundo, às vezes de forma lúdica e outras com fins específicos, para a vida acadêmica. Obviamente que se essa leitura for obrigatória é somente porque o aluno necessita de certa motivação para ter a oportunidade de ser apresentado a algo que lhe será, no mínimo, útil para a sua caminhada profissional e de vida. É importante destacar que o binômio Direito e Literatura tem um vínculo de interdependência que o faz necessário para uma melhor compreensão, tanto dos fatos jurídicos como dos fenômenos sociais. A cultura é depreendida de sua leitura como também a familiarização com a linguagem é aplicada em seus textos. Com essa interface, pretende-se fazer com que o aluno não se limite ao conteúdo de sua leitura, mas principalmente busque pensar o Direito de outra forma. E para despertar o interesse intelectual do aluno do Cesuca, cada revista é disponibilizada em acesso aberto e livre, podendo ser lido a qualquer momento. Ressalta-se que os textos com motivacão linguística dialogam com os textos específicos do Direito, que por sua vez dialogam com os clássicos da literatura mundial Contribuição linguístico-semiológica para leitura de Warat 18 Um dos nomes mais proeminentes da área do Direito, Luiz Alberto Warat 19, jurista argentino que veio para o Brasil no período da ditadura, era preocupado com a significação das leis, assunto problemático desde a antiguidade. Buscou na Filosofia da Linguagem as teorias linguísticas, semiológicas e semióticas, procurando embasar-se em seus estudos, principalmente em Hermenêutica, e talvez por sua curiosidade em áreas de conceitos movediços. Escreveu O Direito e sua linguagem, em que nomes como Saussure (1975), Barthes (1964) e Peirce (2003) são evocados ao longo de suas especulações teóricas. O primeiro é linguista, o segundo é semiólogo, e o último semioticista. 18 WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua Linguagem. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, As suas iniciais são LAW, que significam lei na língua inglesa. Costumava brincar com isso dizendo-se predestinado para atuar no Direito. 31

32 Celso Augusto Nunes da Conceição A leitura de seu livro demanda um esforço intelectual muito grande, exigindo do leitor uma capacitação linguístico-semiológica apurada, principalmente para poder entender determinadas afirmações que geram equívocos de compreensão. Isso acontece em função de o assunto ser muito complexo e porque as definições dependem de quem as apresentou e dos contextos em que foram produzidas. E por que esse livro está presente neste capítulo? Será o aluno um leitor ideal para entender uma obra desse nível? Bem, o estudante de Direito precisa ter consciência do que o circunda em relação ao conhecimento jurídico e quais são os fundamentos necessários à compreensão de cada material jurídico a estudar. Como a significação é uma representação mental do que é perceptível pelos sentidos, necessita de uma forma para compreendê-la. Parece algo simples, mas exige uma capacidade de abstração como a própria linguagem o é. Pensando nisso, a disciplina Direito e Linguagem acrescentará, no segundo semestre de 2014, essa obra para ser lida e entendida a partir dos fundamentos linguísticos. Certamente a compreensão leitora se fará presente e dará ao aluno ferramentas didático-metodológicas para buscar outras obras dessa natureza. Para tornar mais didático o que acima é exposto, e também a proposta em esclarecer linguisticamente o que demanda uma melhor explicação, serão extraídos alguns excertos para o seu esclarecimento. Warat (1995, p. 12) afirma que Na constituição dos diferentes sistemas sígnicos das linguagens naturais, Saussure elege, como modelo analítico, a linguística (teoria dos signos verbais). Percebe-se, então, que a linguística cumpre, na proposta saussuriana, um duplo papel: por um lado, é proposta como parte da semiologia, ficando, assim, ligada a um domínio mais amplo e melhor definido no conjunto dos signos humanos; por outro lado, é vista como um eixo em função do qual se constituem categorias analíticas translinguísticas, que servem de princípio ordenador por extensão à compreensão dos demais sistemas sígnicos. A linguística, para Saussure, tem um papel privilegiado, pois apenas mediante suas categorias analíticas torna-se possível a constituição da semiologia, e deixa clara a complexidade do que realmente Saussure propõe. A afirmação de que a sua proposta cumpre esse duplo papel é uma inferência dos que o estudam. Cumpre esclarecer que a obra de Saussure foi 32

33 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM escrita por três de seus alunos: Charles Bally, Albert Sechehaye e Albert Riedlinger. Os dois primeiros a organizaram a partir de seus apontamentos em sala de aula, e o último participou em caráter de colaboração. Deram-lhe o nome de Curso de Linguística Geral, publicado em 1916, depois de sua morte. Será que, a exemplo do que Platão escreveu sobre o que Sócrates falava, leva para a escrita o que realmente o autor pretendia? Uma das maiores celeumas é quanto ao suporte para a Teoria Geral dos Signos, se a Linguística ou a Semiologia. Ainda com relação à citação anterior, Warat (1995, p.12) expressa sua percepção no excerto: Percebe-se, então, que a linguística cumpre, na proposta saussuriana, um duplo papel: por um lado, é proposta como parte da semiologia. Possivelmente repete o que está inserido em uma retrospectiva que Roland Barthes 20 (1964, p. 7), faz ligando essas duas áreas: A história da Semiologia é curta e, todavia, já bastante rica. Em sua forma francesa, nasceu ela há cerca de uns quinze anos, quando se retomou a postulação feita por Saussure no seu Curso de Linguística Geral, a saber: que pode existir, que existirá uma ciência dos signos, que tomaria emprestado da Linguística seus conceitos principais, mas da qual a própria Linguística não passaria de um departamento. Ocorre que o mesmo Barthes (1964, p. 13) entende que a inversão à proposição saussuriana é uma questão de tempo: É preciso, em suma, admitir desde agora a possibilidade de revirar um dia a proposição de Saussure: a Linguística não é uma parte, mesmo privilegiada, da ciência geral dos signos: a Semiologia é que é uma parte da Linguística; mais precisamente, a parte eu se encarregaria das grandes unidades significantes do discurso. Acredito que um leitor da área do Direito, quando lê o livro de Warat, depara-se com problemas epistemológicos da Filosofia da Linguagem. É claro que ele pressupõe um leitor ideal, aquele que conhece os fundamentos conceituais dessa área. Mas mesmo assim é necessário que haja uma explicação mais didática e que a apresente com pelo menos um exemplo para cada definição. 20 BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 15. ed. São Paulo: Cultrix, Ele é um dos semiólogos mais relevantes de sua época e é referido em vários momentos no livro de Warat (1995). 33

34 Celso Augusto Nunes da Conceição Fala-se muito em signo, verbal e não verbal, linguagem, língua, fala, representação, conceito, significante, significado, concreto, abstrato, objeto etc. Como ler ou escrever essas palavras e as entender sem que haja certo desconforto intelectual? Lendo os teóricos e suas respectivas definições sobre o mesmo objeto. Sim, definições do mesmo objeto porque depende da lente teórica, juntamente com seus fundamentos, para apresentar cada proposta. Nesse sentido, alguns excertos das especulações de Warat (1995, p ) são apresentados para servirem como referências da dificuldade de entendimento e posteriormente às elucidações a partir dos fundamentos semânticos dos termos que causam os equívocos de compreensão: 1) Para distinguir o signo, como dado empírico, de sua manifestação, como objeto da ciência, Saussure nos propõe as categorias de Fala e Língua. Esta distinção fundamental do pensamento de Saussure permite verificar que, para ele, o objeto da linguística é a língua e não as linguagens, vistas apenas como manifestações ontológicas do real; 2) O primado da língua sobre a fala é o que nos permitirá encontrar, segundo Saussure, uma ciência dos signos em sentido estrito; 3) A fala é reconhecida a partir de uma teoria construída para a sua compreensão. A língua, neste nível, seria o objeto científico da linguística. Não se constitui em uma síntese das diferentes linguagens naturais do mundo, mas em seu significado como sistema. A fala, no ato de seu conhecimento, existe no interior da língua. Ou seja, a realidade sígnica é reconstruída na língua, que nasce por oposição à fala. Retomando a seção 2.7 deste capítulo, em que cada artigo contribui linguisticamente com os clássicos da literatura, especificamente na subseção : uma visão linguística para entendimento da NOVAFALA, há um breve histórico das primeiras reflexões sobre a origem da linguagem. Lá, está Saussure aplicando sua teoria com bases filosóficas desde a Antiguidade Sócrates, Platão e Aristóteles, passando pelo famoso debate da tábula rasa no século XVII Leibniz e Locke. O conhecimento é cumulativo e sempre sujeito a novas aplicações e convém fazer leituras do mesmo objeto com prismas diferentes. Agora voltando aos excertos de Warat (1995), é possível entender o que está escrito por ele? Signo, linguagem, língua, fala, significado, objeto, nominalismo e naturalismo exigem significações precisas para compreender o propósito da teoria. 34

35 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM Primeiramente, destaca-se a diferença de signo verbal e não verbal. O verbal é da área da linguística, distinguindo-se do não verbal por estar em outras categorias de signo (visual, tátil, auditivo, olfativo e gustativo etc). Esse último pode ser da semiologia ou semiótica 21. Segundo Santaella (1983, p. 9), Antes de tudo, cumpre alertar para uma distinção necessária: o século XX viu nascer e está testemunhando o crescimento de duas ciências da linguagem. Uma delas é a Linguística, ciência da linguagem verbal. A outra é a Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem. Ressalta-se a distinção dada à linguagem 22 por Saussure (1975, p. 16) como base introdutória para sua teoria: A linguagem tem um lado individual e um lado social, sendo impossível conceber um sem o outro. O primeiro refere-se à fala e o outro à língua, constituindo-se aí a primeira dicotomia linguística. Para ele, a linguagem era igual à fala mais a língua (linguagem = fala + língua), e como o seu objetivo era a língua porque era social e convencionada pelo povo de uma dada comunidade, foi possível sistematizá-la a partir do signo e sua estrutura estrutura tanto do signo quanto das sentenças. Dizendo de outra forma, para ele a língua era composta de linguagem menos a fala (língua = linguagem fala), produto matemático na troca dos lados. No seu sistema, o estudo foi dirigido para a estrutura, desconsiderando a fala por ser individual, em que suas idiossincrasias não dificultariam o signo como a arbitrarie- 21 NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica : de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995 (Coleção E; 3); (p. 23), em seu texto Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce, esclarece essas duas áreas. Como essa distinção não é o real objeto desta seção, uma breve nota de rodapé é o suficiente: O maior rival terminológico de semiótica tem sido semiologia. Para designar uma teoria geral do s signos o termo já havia surgido alguns decênios antes que Locke, em 1690, postulasse uma doutrina dos signos com o nome de Semeiotiké. Já em 1659, o filósofo alemão Johannes Schulteus falou de uma doutrina geral do signo e do significado, sob o título Semeiologia Metaphysiké. No nosso século, o termo semiologia ficou ligado à traição semiótica fundada no quadro da linguística de Ferdinand de Saussure e continuada por semioticistas como Louis Hjelmslev ou Roland Barthes. [...] Sob essas influências, semiologia permaneceu durante muito tempo como o termo preferido nos países românicos, enquanto autores anglófonos e alemães preferiram o termo semiótica. Alguns semioticistas, porém, começaram a elaborar distinções conceituais entre semiologia e semiótica: semiótica, designando uma ciência mais geral dos signos, incluindo os signos animais e da natureza, enquanto semiologia passou a referir-se unicamente à teoria dos signos humanos, culturais e, especificamente, textuais. 22 Para melhor distinção, entenda-se linguagem como uma abstração ou capacidade inata do indivíduo para a prática da fala, que posteriormente se constituiu em um sistema linguístico: a língua. 35

36 Celso Augusto Nunes da Conceição dade entre o significante e o significado, uma das quatro dicotomias que formam o seu sistema linguístico com caráter científico. A significação a partir da palavra tem nesse signo dicotômico significante/significado 23, um dos grandes problemas de inversão de significado. Imagine um círculo em que a metade de baixo é o significante (a imagem acústica do som) e a parte de cima o significado (conceito, ideia ou compreensão). Como se criou o problema? Em vez de somente estar escrito conceito, ideia ou compreensão, está desenhada a representação que o significante gera no significado. Exemplo: o significante casa, na demonstração imagética do signo linguístico, é uma imagem de casa no lugar do significado. Acredito que os seus alunos representaram a ideia de que o significante gerava essa imagem para facilitar o entendimento, mas criou mais problema porque as pessoas que estudam esse signo não entendem o significado de conceito, ideia ou compreensão como algo abstrato. Como esse processo é mental, Saussure (1975) acrescenta que esse signo é uma entidade psíquica de dupla face, em que um não existe sem o outro e vice-versa e complementa com uma frase que fica depositada no cérebro de todos os indivíduos que estudam Linguística: Trata-se de um tesouro depositado pela prática da fala em todos os indivíduos pertencentes à mesma comunidade, um sistema gramatical que existe virtualmente em cada cérebro ou, mais exatamente, nos cérebros dum conjunto de indivíduos, pois a língua não está completa em nenhum, e só na massa ela existe de modo completo. (SAUSSURE, 1975, p. 21) O arbitrário como propriedade do signo linguístico é justificado em função de que não há correspondência da palavra com as entidades do mundo físico a que elas se referem. Na verdade, o que refere tem correspondência no referido objeto de estudo da Lógica, mas no caso a palavra representa um conjunto de propriedades que definem o objeto que as tem. Dito de outra forma, esse conjunto de propriedades vão compor o conceito ou uma ideia do que o significante significa. Outra propriedade desse signo é a imutabilidade da relação entre o Se/So porque é preciso que assim o sejam para que o sistema seja entendido por toda a comunidade que fala aquela língua. 23 Abrevia-se como Se/So. 36

37 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM Para concluir a base de sua teoria, as duas dicotomias que faltam são igualmente importantes porque têm relação com as demais: sincronia/diacronia e relações sintagmáticas/paradigmáticas. A sincronia 24 é o estudo da língua em um dado período, exigindo dessa forma a propriedade da imutabilidade do signo. Por outro lado, a diacronia 25, que estuda as mudanças da língua em períodos, tem como propriedade, diferentemente da sincronia, a mutabilidade do signo porque tanto o significante quanto o significado podem ser alterados. Diferentemente da compreensão filosófica da proposta dessa seção, a última dicotomia fica somente no nível da estrutura da língua, em que as relações sintagmáticas são elementos ou estrutura com mais de uma palavra, mas que não constituem estrutura frasal de sujeito/predicado, exemplificando com sintagmas adverbiais, preposicionais, adjetivos etc. Nas paradigmáticas, são classes de palavras que se opõem mutuamente, constituindo, juntamente com a sintagmática, o sistema de uma língua. Esta seção desenvolveu-se em função da abordagem de Warat (1995) concentrar, em seus fundamentos linguístico-filosóficos, o foco predominante na teoria de Saussure (1975), mas não se pode prescindir de fazer alguma relação com a semiótica e semiologia também referidas por ele para suas reflexões. Então, um breve apontamento de Peirce (2003) em relação ao seu signo tricotômico, também conhecido como triângulo semiótico, se faz valer. A função desse triângulo nessa seção é para reforçar a ideia de que o signo linguístico é totalmente psíquico. Tanto o significante quanto o significado são mentais, apesar de muitos estudiosos entenderem ser o significante a própria palavra e o que é mental é somente o significado. Cabe, então, uma passagem de Peirce (2003, p. 52) para fundamentar a relação triádica do signo 26, que faz relação com o linguístico: 247. De acordo com a segunda tricotomia, um Signo pode ser denominado Ícone, Índice e Símbolo. Um ícone é um signo que se refere ao Objeto que denota apenas em virtude de seus caracteres próprios, caracteres que ele igualmente possui quer um tal Objeto realmente exista ou não. [...] Qualquer coisa, seja uma qualidade, um existente 24 Do grego syn (juntamente) + cronos (tempo): no mesmo tempo. 25 Do grego dia (através) + chrónos (tempo): através do tempo. 26 São três tricotomias em sua teoria, mas somente a segunda é necessária para fazer a relação com o linguístico. 37

38 Celso Augusto Nunes da Conceição individual ou uma lei, é Ícone de qualquer coisa, na medida em que for semelhante a essa coisa e utilizado como um seu signo. Faltando, para completar essa segunda tricotomia, o Índice e o Símbolo, mas que dispensam definições porque não têm correspondência para o exemplo que será apresentado aqui. A relação da tricotomia semiótica com a dicotomia linguística deixará mais clara a noção do signo saussuriano como entidade psíquica. Usaremos o exemplo de casa para o significante e o seu conceito ou ideia para o significado. Vamos fazer um exercício de abstração do triângulo e seus vértices. No vértice à esquerda, temos o som c-a-s-a ; no vértice à direita, um ícone de casa (é uma imagem ou desenho de casa), que é o objeto representado; no vértice de cima, o signo linguístico representado pelo se/so (entidade psíquica); quando o interlocutor produz fisicamente o som c-a-s-a, esse som vai para o cérebro do ouvinte e, se tiver correspondência com o significante, o significado será entendido. Vejamos outro exemplo: o interlocutor produziu o som s-t-y-p-w, que foi ouvido pelo outro; como não houve correspondência linguística, a comunicação não aconteceu, inclusive sem uma representação icônica. Esse foi um exercício linguístico-semiótico baseado em uma palavra que não faz referência direta ao objeto porque representa uma classe das coisas que têm as propriedades que compõem o objeto casa. Poderíamos criar palavras que não têm correspondência com imagens, como calma, alegria e outras de mesma natureza. Bem, esse já é outro estudo de linguagem em uso. Fica para as próximas edições. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como o objetivo deste capítulo é apresentar a disciplina como ela é e como pode ser implementada em sala de aula, deixo aqui a curiosidade para aqueles que ainda não a cursaram, mas que estão lendo esta edição, para conhecerem as disciplinas de seu curso e também os respectivos professores. Aos que estão cursando, é o momento de ir experienciando todo o processo no mesmo semestre. E aos que já cursaram, é uma leitura retrospectiva, reforçando o que já conhecem e com o desejo de buscar mais a partir do que já aprenderam. 38

39 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM É importante retomar algumas passagens que são aplicadas no dia a dia do aluno. Inegavelmente, há problemas de vários níveis: alguns partem do conhecimento novo e outros passam pela reorganização mental em termos de aprendizado linguístico, mas a preocupação com o desempenho nas provas continua de forma natural, talvez pela história escolar desde o início de seu aprendizado. O foco é a nota que ficará registrada no seu currículo universitário em detrimento do conhecimento como a meta a ser atingida. Dizendo de outra forma, a causa de seu estudo é a nota e o conhecimento a consequência. Dentre todo o conteúdo trabalhado, um em especial promove uma mudança no pensar o conhecimento como processo cognitivo: a Lógica na relação de causa e consequência. Não para o conteúdo, mas aplicá-la na vida. Não podemos pensar na prova como causa para conseguir uma boa nota, temos de pensar no conhecimento como causa e deixar a nota como consequência natural do desempenho acadêmico. E essa relação causal é estendida para o nosso dia a dia, para nossa vida. Quanto à resistência ao entendimento a partir de novos questionamentos baseados mais nas perguntas do que nas respostas, a satisfação do aluno quando começa a entender, tanto o processo como a própria aquisição do conhecimento, é visível e relaxante em termos de missão cumprida; uma vez que ele não sai com a sensação de que aprendeu, ele sai com a certeza de que sabe como buscar mais. E, para finalizar, o meu primeiro aforismo: Vocês não sabem o que vocês já sabem!, que se constitui, inicialmente, como uma ironia no entendimento do aluno, é assimilado já no decorrer do semestre para alguns e, no fim, para outros. Essa máxima é a forma de garantir ao aluno que ele não precisa fazer a prova dos nove a cada informação adquirida: Se já está depositado em seu cérebro, então deixa lá para quando for solicitado o seu resgate. O outro aforismo é De nada vale a informação se não a transformarmos em conhecimento, que os levará a entender que o conhecimento advém da relação do que é transmitido pelo professor com o que já conhecemos, na verdade, é o resultado de nosso raciocínio e conclusões. Entendam a proposta metodológica da disciplina! Isso os fará pensar o conhecimento como saber e não como algo estéril. 39

40 Celso Augusto Nunes da Conceição REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUROUX, Sylvain. A Filosofia da Linguagem. São Paulo: Editora da UNICAMP, BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. 15. ed. São Paulo: Cultrix, CHARBONNEAU, Paul-Eugène. Curso de Filosofia: Lógica e Metodologia. São Paulo: EPU, COSTA, Jorge Campos. A relevância da pragmática na pragmática da relevância. Porto Alegre: EDIPUCRS, DASCAL, M. (org.) ( ). Fundamentos Metodológicos da Linguística. São Paulo: Unicamp. DUCROT, Osvald & TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da linguagem. São Paulo: Perspectiva, FIORIN, José Luiz; SAVIOLI, Francisco Platão. Para entender o texto: leitura e redação. 17. ed. Rio de Janeiro, GRICE, H. P. Logic and Conversation. In: Cole & Morgan (1975: 41-58). (part of Grice ). Tradução de Port. Geraldi, J, W. 1982: ) In: Dascal (ed.) (1957). Meaning. Philosophical Review, 67. Reprinted in Steinberg Jakobovits (1971: 53-9) and in Strawson (1971: 39-48). HENRIQUES, Antonio. Prática da Linguagem Jurídica. 2 ed. São Paulo: Editora Atlas AS, HENRIQUES, Antonio & DAMIÃO, Regina Toledo. 8.ed. Curso de Português Jurídico. São Paulo: Editora Atlas AS, HOUAISS ELETRÔNICO. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, KRETSCHMANN, Ângela et al. Por que Locke é naturalista em relação ao Direito e convencionalista quanto à Linguagem? Anais da Mostra Científica no Cesuca. Cachoeirinha: 2013, disponível em: ojs.cesuca.edu.br/index.php/mostrac/article/view/

41 1 UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO E LINGUAGEM KRETSCHMANN, Ângela (org). Formação Jurídica: primeiro ano. Cachoeirinha: Verbo Jurídico, KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. São Paulo: Cortez Editora, NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica : de Platão a Peirce. São Paulo: Annablume, 1995 (Coleção E; 3). PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, PINKER, Steven. Tábula Rasa: A negação contemporânea da natureza humana. Tradução de Laura Teixeira Motta. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, SANTAELLA, Lúcia. O que é semiótica? São Paulo: Brasiliense, SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. 7. ed. São Paulo: Cultrix, WARAT, Luís Alberto. O Direito e sua linguagem. 2. ed. aum. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,

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43 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Angela Kretschmann 1 - Ney Wiedemann Neto 2 SUMÁRIO: 2.1. INTRODUÇÃO O que é Argumentação Jurídica e por que ensiná-la Argumentação e crise do direito Teóricos importantes da argumentação jurídica Chaïm Perelman Theodor Viehweg Ronald Dworkin Robert Alexy Argumentação e hermenêutica discursiva: sugestão de exercícios CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Introdução Ao Estudo Da Argumentação Jurídica O capítulo trata da argumentação jurídica em suas múltiplas facetas, enfatizando a sua atualidade e importância para o jurista. O espírito crítico é elemento fundamental da prática jurídica, e assim como 1 Pós-doutorado em Direito pela Universidade de Münster, Alemanha (2012), Doutora em Direito pela UNISINOS (2006); Diretora de Pesquisa do CESUCA. Professora de Teoria Geral do Direito, Argumentação Jurídica e Inovação e Propriedade Intelectual do CESUCA, e de Direito da Propriedade Intelectual da UNISINOS. Advogada. angelak@cesuca.edu.br 2 Mestre em Poder Judiciário pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ). Professor de Argumentação Jurídica da Faculdade Inedi do Complexo de Ensino Superior de Cachoeirinha/ RS - CESUCA. Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. neyneto@ cesuca.edu.br 43

44 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto não é inato, também não é adquirido com facilidade. Adquirir e desenvolver a habilidade implica em ir além de um pensamento matemático. É necessário raciocínio lógico, mas também dialético, permeado por conhecimentos culturais gerais, que permitam o máximo possível o estabelecimento de relações para a análise, formação e conclusão acerca de uma determinada abordagem e a justiça de um. determinado caso. A abordagem desenvolve-se levando em conta a história e a filosofia do direito, e contextualiza a argumentação na crise do dogmatismo jurídico do momento atual, em que a consciência da fragilidade em torno de verdades absolutas se desvela, e na qual o convencimento e a persuasão ganham espaço e merecem ser abordadas dentro de um contexto teórico crítico e ético. Da retórica antiga à nova retórica, e indo além dela, a abordagem da argumentação jurídica é trazida pelas mãos de vários autores que se dedicaram ao tema, pontuando-se aspectos da hermenêutica e da prática da argumentação jurídica que são úteis para a efetividade do discurso e para a busca de convencimento sobre uma controvérsia, sem perder de vista a busca da justiça do caso concreto inserido no contexto de um Estado Democrático de Direito, que tem por base uma Constituição compromissória e dirigente O que é Argumentação Jurídica e por que ensiná-la Antes de refletirmos sobre o que é a argumentação jurídica, propriamente dita, é importante analisarmos o que é argumentação, em sentido amplo. A ideia de argumentos traz logo a impressão de persuasão, e essa relação não é gratuita. Efetivamente, antes mesmo de ingressar na argumentação, é necessário esclarecer o que é retórica, o que também não é fácil, dado que a palavra assumiu muitos sentidos, sendo o pejorativo o que mais se estabeleceu. Nesse sentido, elogiar a retórica de alguém pode ser compreendido como um insulto, quando poderia o emissor da mensagem estar a elogiar uma capacidade comunicativa. A redescoberta da retórica só começou após meados do século XX, com Charles Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, e foi vista como o estudo da arte de argumentar, com o objetivo de convencimento e persuasão (aqui neste texto privilegiaremos o aspecto do convencimento ). 44

45 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA De qualquer modo, nem todo o argumentar é jurídico, ainda que o argumentar, no sentido geral, faça parte da vida de todos. É importante saber identificar quando uma argumentação é simplesmente política, religiosa ou ética. E essa argumentação jurídica leva em conta um tipo de racionalidade em especial, uma razão jurídica que servirá de fundamento para uma decisão, ou seja, argumentos jurídicos que se encontram nos contextos tipicamente jurídicos. Por outro lado, os juristas lidam com contextos argumentativos de diálogo; e os temas que são discutidos no campo do direito não são exclusivamente jurídicos, pois englobam aspectos políticos, econômicos, sociais, culturais, religiosos, biológicos etc. Assim, a argumentação jurídica não se reduz à mera argumentação sobre o direito, e não se desenvolve exclusivamente por juristas. Se a retórica pode ser definida como uma arte de persuadir pelo discurso, nem todo discurso visa à persuasão, como o caso da poesia, da comédia, do romance, informações técnicas (REBOUL. 2000, p. XIV). Além disso, ressalta a importância de distinguir persuadir de convencer, porém, ela é bastante sinuosa e complexa. Em um primeiro momento é importante destacar que a persuasão pode dar-se por ameaça, ou por argumentos, e por isso a importância de mostrar que a persuasão retórica tem relação com levar a crer, de modo que voluntariamente alguém passa a acreditar em algo, foi convencido, e não levar a fazer algo, que pode envolver outra condição, como a ameaça, a promessa ou o uso de violência. Historicamente, a retórica chegava a ser confundida com a argumentação, e, nesse sentido, quando a retórica atingiu um sentido pejorativo, levou com ela também a argumentação. Já com a recuperação da retórica e o seu desenvolvimento como nova retórica, acabou também legitimando o retorno da própria argumentação. Lentamente, os termos foram sendo distinguidos; porém, a argumentação não deixa de ser um esforço retórico, que pode repousar na boa retórica ou não, daí a importância de definir os limites da Argumentação Jurídica da disciplina de currículos no Ensino Jurídico. Ora, sendo a retórica tão estreitamente vinculada à argumentação, por que não chamamos a disciplina Argumentação Jurídica de Retórica Jurídica? Agora, parece plausível, mesmo diante do pouco que já foi dito, que se pode, sem maiores dificuldades, nominar a dis- 45

46 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto ciplina de Retórica Jurídica, no lugar de Argumentação Jurídica. De todo modo, devemos considerar que a Argumentação Jurídica, para ser plausível, há de ligar-se a uma lógica, que não será a lógica formal. Vincula-se à distinção entre raciocínio analítico e dialético, proposta por Aristóteles, e irá vincular-se à aceitabilidade das premissas. Assim, há uma lógica, há um raciocínio que deve ser levado em conta, e há uma base para compreender e ser compreendido. A lógica jurídica seria um ramo da retórica jurídica, e a argumentação jurídica seria para a retórica em geral um verdadeiro paradigma (ATIENZA, 2003, p. 75), pois ela envolve uma controvérsia e as partes precisam chegar ao seu final, com uma decisão. Enquanto isso, nas demais ciências humanas, como na filosofia, a argumentação não leva a um acordo e cada um pode permanecer com seu argumento, sem chegar a um ponto comum, ou que mesmo não sendo comum, defina e acabe com a controvérsia. Por isso os filósofos se interessaram muito pela argumentação jurídica, pois ela precisou desenvolver-se a ponto de solucionar as controvérsias. Com isso, o uso da designação Argumentação Jurídica lança mão de argumentos que poderão esclarecer os motivos, que poderão auxiliar no desvelamento do significado que se imprime com argumentos, e, ainda, fazer crer ou convencer por meio de argumentos racionais por que um nome é preferível ou mais adequado que outro. É possível, desde já, pensar que pode não existir uma resposta única e absoluta para a pergunta, mas podem existir, dentro de um contexto próprio, várias respostas razoáveis e uma resposta mais adequada. O primeiro argumento que se traz para isso é de razão histórica. Na realidade, a retórica tem seu nascimento na antiga Grécia, pelo menos em termos de sistematização. E, entre os gregos, a retórica era considerada fundamental, ainda mais dada à prática da democracia (embora poucos pudessem se considerar cidadãos). Ali a retórica assume um caráter pragmático, de persuasão, e será principalmente com os sofistas que se tornará famosa; porém, junto com a fama dos sofistas, de retóricos, também a retórica assume um contorno pejorativo. De fato, como destaca Reboul, para os sofistas o discurso não pretende ser verdadeiro e nem mesmo verossímil, eles só visavam à eficácia do mesmo, não no sentido de convencer, mas no sentido de vencer, a deixar o interlocutor sem réplica. Como destaca o autor (REBOUL, 46

47 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA 2000, p. 10), a finalidade dessa retórica não é encontrar o verdadeiro (ou o razoável), mas dominar por meio da palavra, que está devotada ao poder e não ao saber. A marca desse relativismo vinha do relativismo dos sofistas, como Górgias e Protágoras. De Górgias partiu o famoso e muito criticado ensinamento: Primeiramente, nada existe: em segundo lugar, mesmo que exista alguma coisa, o homem não a pode apreender; em terceiro lugar, mesmo que ela possa ser apreendida, não pode ser formulada nem explicada aos outros. É evidente que essa afirmação provoca inúmeras contrariedades e possibilita uma grande discussão, com uma profusão imensa de argumentos contrários. O dito mais conhecido de Protágoras é muito mais conhecido: O homem é a medida de todas as coisas. Com tais fundamentações acerca do nada, tal relativismo permitiu o desenvolvimento de uma retórica da eficácia dos argumentos, ou seja, não importa a correção ou razoabilidade de um argumento, mas vencer uma disputa. Justamente com Aristóteles, a retórica irá assumir outra postura (mas não só com ele, pois Isócrates já tinha dado um rumo à retórica, distinto da dos sofistas), tendo por objeto o verossímil ou o provável (e não o verdadeiro). Depois de um grande desenvolvimento, inclusive na Alta Idade Média, a retórica vai sendo lentamente reduzida a uma arte de produzir apenas belos discursos. O mais grave, porém, acontece com a ascensão da ciência moderna, uma vez que ali toda a arte discursiva se perde, dado o cientificismo moderno, que no direito irá gerar as várias espécies de positivismos, entre eles o formalismo legal. É possível compreender de onde provém o senso comum teórico dos juristas desde as lições de Aristóteles. Em especial porque ele dividia os argumentos em dois tipos ou duas estruturas: o exemplo (que vai do particular ao geral, do fato à regra, uma indução), e o entimema, que vai do geral ao particular, tratando-se de uma dedução, sendo que as premissas do entimema se distinguem do silogismo demonstrativo, uma vez que não são proposições evidentes, mas geralmente admitidas, e por isso, verossímeis (REBOUL, 2000, p. 154). E como explicita Warat (1995, p. 89), as premissas entinemáticas fundamentam-se não somente nas opiniões populares, mas também mesclam um universo 47

48 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto específico de crenças, que ele vai denominar de senso comum teórico dos juristas. 3 A retórica foi abolida do ensino no fim do século XIX, e o termo foi riscado dos programas, mas como destaca Reboul (2000, p. XXII) como em geral acontece no ensino, em se apagando a palavra não se suprimiu a coisa. O que aconteceu foi que a retórica continuou, porém desarticulada, apagada, deslocada da unidade que mantinha com a gramática e a dialética. Enquanto gramática, a dialética e a retórica eram partes de um todo, se esclerosaram quando se separaram (REBOUL, 2000, p. XXI). É no século XX, apenas, que a retórica renascerá como uma teoria da argumentação, em especial com Perelman, que fez mais, pois mostrou que a própria lógica tem um caráter retórico. Afinal, a lógica é fundamental para convencer. É claro que também nos servimos da lógica para convencer, mas não exclusivamente dela. Ou seja, ele fez questão de esclarecer que a lógica formal não compete com a retórica, pelo contrário. Foi quando o raciocínio matemático atingiu seu ápice que os argumentos quase lógicos foram acusados de fracos (PERELMAN, 1993, p. 73 e 96), mas recuperaram seu prestígio no decorrer do século XX, ainda que, para convencer, precisassem do complemento dos argumentos baseados na estrutura do real (que em geral apelam para ligações de sucessão, como relações de causa e efeito, por exemplo, alegar as consequências boas que de uma lei podem advir; e de coexistência, da pessoa e dos seus atos). Com isso, a teoria da argumentação passou a ser reconhecida como Nova Retórica, e só não levou o nome de Dialética para não ser confundida com a Dialética de Aristóteles, fortemente disseminada. Mas trata-se, enfim, de argumentação. A retomada ocorre porque a Nova Retórica ou teoria da argumentação ressurge para voltar a, através de argumentos, buscar convencer ou persuadir, quando tinha sido 3 WARAT observa que em virtude de seus efeitos de enunciação, o entimema produz a persuasão e não a demonstração. Assim, o questionamento principal constitui-se no fato de que o silogismo retórico seduz o homem, o determina e controla, mas não serve, e inclusive perturba, a ordem das demonstrações lógicas. O entimema é um silogismo truncado pela supressão, em sua enunciação, de uma proposição retórica (não demonstrada), cuja realidade encontra-se guardada no espírito do homem comum, que a vive como incontestável. (WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. versão, com colaboração de ROCHA, Leonel Severo. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, p.89). 48

49 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA reduzida a uma simples arte de bem falar. Com o ápice da modernidade e cientifização, a única linguagem capaz de convencer era a da lógica, que Perelman fez questão de diferenciar da argumentação ou da retórica, justamente porque a lógica leva a uma conclusão necessária, enquanto que a argumentação leva a uma conclusão verossímil. Reboul (2010, p. XVIII) entende a retórica como arte, como techné da tradição grega antiga, destacando que a argumentação é uma das funções da retórica ou da arte de persuadir. O autor divide o discurso persuasivo da retórica em argumentação e oratória. Ou seja, a persuasão se utiliza dos meios racionais e afetivos, considerando os argumentos como meios racionais, que também se dividem em dois tipos: os entinemas (argumentos que se integram no raciocínio silogístico) e os que se fundamentam no exemplo. Os afetivos tem vínculo com o caráter do orador, as emoções do auditório, gestos etc. Esse aspecto afetivo também é chamado de oratória. Porém, além da função persuasiva (que envolve a argumentação e a oratória), a retórica também possui função hermenêutica, heurística e pedagógica. 4 Para Perelman (1996, p. 505) a formação de jovens juristas exige que o curso de lógica seja completado por um curso de retórica, que não é arte de falar bem, num sentido empolado: é arte persuadir e de convencer, e isso pode manifestar-se por um discurso ou texto escrito, mas ao fim e ao cabo, trata-se de usar a argumentação. Nesse sentido, define (Perelman, 1996, p. 684) o papel da retórica como uma teoria da argumentação, e esta envolve também a dialética dos antigos, de Sócrates, Platão e Aristóteles, buscando precaver-nos contra o uso abusivo das noções confusas, e entre essas noções confusas indica o senso comum, que são as primeiras noções que todos os homens têm igualmente das mesmas coisas, e a própria justiça. Quanto ao senso comum, cabe ao fi- 4 Conforme Reboul, a função hermenêutica na retórica considera que o orador nunca está sozinho quando fala ou escreve para convencer, ele precisa saber com quem está falando, compreender o discurso do outro, etc. A retórica tem a função de uma teoria que visa compreender. Já na função heurística, no sentido de que a função da retórica também é a de descobrir, encontrar alguma coisa, pois aquele que participa do discurso deve estar aberto, também, para as novas descobertas que ocorrem durante a troca discursiva. Na função pedagógica ensina a compor um plano, encadear argumentos de modo coerente, cuidar do estilo, construções apropriadas. Na sua função pedagógica, a retórica tem relação inclusive com a cultura geral, que possibilita escrever de modo vivaz, sem ser monótono, sem confundir tese com argumento, nem expor de forma desconexa. REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, p. XXII. 49

50 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto lósofo assumi-lo, mas também elaborar, precisar e definir suas noções, aclarar seus princípios e fornecer critérios que justifiquem uma escolha, uma decisão (PERELMAN, 1996, p. 240). O estudo do direito não se situa no plano do puro subjetivismo, como na concepção de Protágoras. Ele não leva a resultados que contenham a mesma exatidão racional (COMPARATO, 2006, p ), das leis naturais (vinculadas a uma tradução simbólica da realidade, cuja essência independe da vontade humana ) ou dos enunciados matemáticos (que se relacionam com entes ideais ou abstratos). O estudo do direito envolve valores, sentimentos, e se realizam por uma decisão de vontade, o que não significa por si só na impossibilidade de chegar a uma resposta correta, mas as teorias da argumentação vão diferir nesse sentido. Com uma Constituição Federal permeada de compromissos, o argumentador possui diante de si um conjunto de direitos e garantias incorporados no sistema como uma verdadeira terra fértil para defender determinada posição, contra ou a favor do MST, do aborto de fetos anencéfalos, sobre política de cotas ou fidelidade partidária (ASENSI, 2010, p. 83). As dificuldades contemporâneas expressas pela complexidade do fenômeno jurídico e sua compreensão recebem um importante auxílio a partir da argumentação jurídica, a fim de se chegar a uma decisão razoável, considerando que em direito há pouco ou nenhum espaço para verdades evidentes (essas, na maior parte das vezes resultam de imposições arbitrárias, e, muitas vezes, violentas) Argumentação e crise do direito Não é fácil falar em argumentação jurídica em meio a uma crise do direito que se alastra há décadas. É até mesmo paradoxal, porém, é necessário contextualizar os propósitos do estudo da argumentação jurídica no contexto do Curso de Direito, mesmo em meio a uma crise do direito que teve sua nervatura exposta pelo desgaste da dogmática jurídica. Agora o que se fala é da crise de tudo, do direito, do ensino, do Judiciário, do Estado. E a argumentação jurídica, nesse plano, parece um non sense, ou então, poderia representar o próprio reflexo dessa crise. A crise do direito, portanto, também passa pelo caminho das práticas discursivas argumentativas, sendo fundamental que se procure 50

51 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA enfrentar o discurso dogmático no que ele tem de mais danoso e de influência nessa crise. É justamente o modo como se pretende, transparente, falando da lei como um lugar comum e indiscutível, de acesso imediato e natural a todos, o que leva ao que se denomina de senso comum teórico dos juristas, lembrando Warat, ou seja, as práticas hegemônicas que se perpetuaram ao longo das décadas e que se legitimaram como discurso, quando, na realidade, apenas perpetuam a crise. Tudo isso porque, no discurso jurídico, ainda são poucos os que reconhecem a linguagem como instituinte, como sujeito, e não como instrumento banalizado do uso de argumentos. Daí porque se fala, com razão, que a crise envolve a superação do paradigma da filosofia da consciência e da metafísica clássica, a fim de trazer para o discurso jurídico aquele horizonte de sentido que é dado pela compreensão, e na qual a linguagem, conforme a viragem linguística de cunho ontológico -pragmático nos ensina, El ser que puede ser comprendido es lenguaje, como expressa Gadamer, é a única coisa que pode ser compreendida (GADAMER, 1996, p. 495 e 597). Sendo o direito sempre a expressão de um poder, mais razão há para que se insista em um argumento jurídico correto, que mantenha a integridade do sistema, e não simplesmente mais um em meio a uma pluralidade de argumentos, mas que se tenha em mente que com uma Constituição Federal é possível a melhor resposta, ainda que não a única. Há uma decisão que terá maior coerência normativa, explicitada pelo argumento adequado. Se não se pode acreditar nisso, então sequer há razões para lutar pela força, sensatez, coerência e justiça de um argumento, entre tantos outros. De fato, pode parecer um problema se o sistema admite muitas respostas. Nesse caso, muitos argumentos. Isso não é de estranhar e também pode ser visto como uma decorrência normal de um Estado Democrático que se fundamenta em princípios. É necessário que não se omita a integridade do direito e aí o respeito à Constituição Federal, que não se pode pluralizar, trata-se de uma e bastante palpável Constituição Federal, que possui uma história própria, dentro de uma história constitucional e de um histórico Estado que passou pelas mais diversas crises de poder. O paradigma formalista do direito, vinculado ao dogma da completude e da segurança jurídica, é herança da modernidade, da razão 51

52 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto iluminada. Pode parecer estranho ao estudante de direito de hoje pensar que um dia se viveu uma ânsia por segurança jurídica, uma busca desesperada por cientificidade na ciência jurídica que pudesse trazer respostas firmes e irrefutáveis devido às verdades claríssimas que a metodologia jurídica seria capaz de revelar. O aumento das críticas ao excesso de formalismo do sistema foi se acumulando a partir do século XIX, ligando-se a movimentos metodológicos que passaram a insistir numa orientação mais prática, como, por exemplo, o movimento do Direito-livre, a Jurisprudência dos Interesses, os sociologismos, e, mais especialmente ainda, a Jurisprudência dos Valores. O que antes era descartado passou a ser central, passou a fazer parte da problemática jurídica: passa a existir um compromisso do direito com problemas práticos, valores, fins e interesses, deixando de ser meramente forma (direito posto) para ser também conteúdo (direito material) 5. Na realidade, como destaca Baptista da Silva (2009, p. 7), a consequência óbvia da transferência do Direito para o campo das ciências experimentais (em especial com Spinoza e Leibniz), com esse desejo de cientifização e segurança foi a proscrição dos juízos de verossimilhança, e outra consequência foi a eliminação da retórica forense; como diz o autor, sob o ingênuo argumento de que a função dos juízes não deveria ir além da pura e exclusiva revelação do que dissera o legislador. E este era capaz de ser entendido por todos, de modo automático e independentemente de qualquer auxílio ou esforço de interpretação. Com a restrição do direito ao que estava contido na letra da lei, os elementos argumentativos eram rechaçados, nada poderia questionar o sentido e o alcance da lei. Isso reforçou a ideia da exclusividade do direito e do dogmatismo. Nesse momento o direito não aceitava partilhas, negando os saberes e conhecimentos de outros sistemas e estigmatizando explicações que não partissem dele próprio. Nessa perspectiva o direito se desenvolveu em diferentes formas de positivismos: como o legalista, o exegético e o científico. São as várias tendências positivistas 5 Cf. NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica - problemas fundamentais. Coimbra Editora: Coimbra, 1993, p. 29. Para deixar de ser apenas direito posto e discutir igualmente o direito pressuposto, (nas palavras de GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p.54), lembrando com Bobbio, que o direito posto ligado ao direito positivo surge já em Grócio. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico lições de filosofia do direito. Ícone: São Paulo, p

53 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA que se apresentam desde o século XIX, 6 fundadas na dogmática jurídica, ou na sociologia ou na psicologia. Seja qual for o aspecto exclusivamente positivista da época, ao juiz cabia dizer o direito. Agora já deve, entretanto, considerar a consciência da sociedade, como refere Perelman (1996, p. 527), pois seu papel é estabelecer a paz judiciária que só é estabelecida quando ele houver convencido as partes, o público, seus colegas, seus superiores, de que julgou de forma equitativa. A respeito da insuficiência da lógica formal e do mero silogismo jurídico para embasar a decisão do juiz, é valioso lembrar do ensinamento de Beneti (2003, p ): muitas vezes a matéria não se exaure no exame da legislação, assim como, no sistema anglo-americano, a interpretação não estanca na análise dos precedentes. (...) Se nisso consistisse toda a nossa profissão, haveria nela muito pouco interesse intelectual. Nesse sentido, o seguinte exemplo trazido por Perelman mostra que não é possível restringir-se à lei e que é necessário deixar que a própria linguagem diga algo (PERELMAN, 1996, p ): na Alemanha imperial de antes de 1914 havia uma lei que punia com pena de prisão aqueles que, em primeiro de maio, desfilassem em passeata atrás de uma bandeira vermelha. E em um primeiro de maio a polícia prendeu algumas pessoas e confiscou a bandeira. No tribunal percebeu-se que a bandeira era lilás. Cumpre ao juiz decidir se, pela situação em si, poderia considerar que aquele lilás equiparava-se ao vermelho. No mesmo sentido, o exemplo mais simples de uma placa que proíba a entrada de veículos num parque. O guarda terá que decidir se um carrinho de bebê é um veículo, se uma criança com seu automóvel elétrico pode passar, e ainda o caso de uma ambulância que vem auxiliar alguém que teve um ataque cardíaco. Ainda, como fica se chamam um táxi para recolher uma crian- 6 Tendências aqui usando as palavras de Larenz, no sentido de que podem não ser ainda positivismo jurídico, adiante in Metodologia da ciência do direito, apesar de ser criticado duramente por Wieacker porque Larenz distinguiria pouco entre positivismo científico, filosófico e naturalista, cfe. História do direito privado moderno, ob. cit., p A verdade é que são de fato tendências positivistas, ou seja, imbricadas de positivismo, seja científico, filosófico ou naturalista, como passamos a destacar WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Local: editora, ano. p

54 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto ça que quebrou uma perna? Ou seja, não basta a clareza da lei, pois mesmo quando ela é muito clara, é necessário recorrer a outras técnicas. Para o aluno de hoje, que está vivendo a época da efemeridade e instantaneidade, pode realmente parecer estranho ler textos que dão conta de uma época em que a legislação visava pôr ordem no caos do direito primitivo e de fornecer ao Estado um instrumento eficaz para intervenção na vida social e assim vai surgir uma teorização sobre a ordem jurídica, exigindo unidade a um conjunto de normas jurídicas fragmentárias (BOBBIO, 1995, p.120 e 198). Tudo o que era fragmentado deveria ser organizado, cadastrado, controlado, sistematizado, classificado. Do contrário, normas soltas representariam um risco permanente de incerteza e de arbítrio teoria que seria o clímax ou vocação máxima do movimento juspositivista, encontrando sua máxima expressão em Kelsen. A questão atinente à justiça ou injustiça deixava de ter sentido, já que o direito se identificava com a ordem jurídica imposta pelo Estado. Oportuna é a reflexão de Azevedo (1979, p. 188) a esse respeito: também digno de nota é o despreparo dos juízes, imbuídos puramente do positivismo e de seus ingredientes correlativos o relativismo cético e o método que lhe é peculiar. Nesse caso, sempre que o resultado fosse mau a culpa seria do procedimento lógico da aplicação da lei, e não daquele que a deve vivificar, humanizando-a ao adaptá-la ao caso concreto. (AZEVEDO, 1979, p.188). E no fundo, como refere Baptista da Silva, alguma coisa dessa época insiste em se imiscuir entre as teorias contemporâneas, como é o caso de teorias que ainda sonham em assegurar, pela via do direito, uma única resposta correta para os problemas práticos (BAPTISTA DA SILVA, 2009, p. 8). Como o direito não tem por objeto as verdades necessárias, mas sim as contingentes, isso implica em aceitar juízos de razoabilidade, de verossimilhança, e não em rechaçar tudo o que não seria científico ou provado por experimentos, ao mesmo tempo em que não significa afirmar que não existe possibilidade de encontrar uma solução que se revele razoável e correta, que atenda às exigências da justiça antes de atender às exigências da política. É nesse sentido que a lei (e sua interpretação) deve ser vista: a serviço da justiça e não do poder político. A lógica do dogmatismo revelou-se absolutamente formal, não admitindo anomalias ou gradações. Assim, a lógica formal conferiu 54

55 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA pouca importância para o papel da argumentação jurídica. Ao tentar encaixar fenômenos complexos em molduras rígidas, o direito desconsidera as peculiaridades e especificidades do mundo real. Não considera o contexto de produção da norma ou as relações de força que se estabelecem no seu interior (ALEXY, 2011, p.250). O fracasso político do positivismo abriu caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem algumas ideias de justiça além da lei e de igualdade material mínima, advindas da teoria crítica, ao lado da teoria dos direitos fundamentais e da redefinição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica. Abre-se o espaço para a argumentação jurídica. Como refere Monteiro (2006, p. 01): O paradigma da razão prática no Direito foi construído a partir das insatisfações geradas pela hegemonia da racionalidade cartesiana. Na sequência dessa hegemonia, o neopositivismo levou a culpa pela eliminação do pensamento prático, concentrando-se nas análises formais do fenômeno jurídico; e depois teorias estruturais delimitaram seu objeto de uma forma excessivamente restritiva: a norma jurídica. Para a autora, é a moderna Teoria da Argumentação Jurídica que reabilita a filosofia prática e desloca a reflexão exclusiva sobre a norma para a argumentação. No mundo contemporâneo, de efemeridade e instantaneidade, todos os paradigmas são atacados e testados. A própria ideia de verdade também tem sido problematizada. O argumento se apresenta como a principal forma de interação social nas diversas situações em que os indivíduos se encontram, recebendo destaque o argumento mais persuasivo e não necessariamente o mais razoável e que leva em conta aspectos de verossimilhança. Afinal, não se trabalha com o conceito de verdade, mas de verossimilhança, e de qualquer modo, o argumento deve ser racionalmente organizado. A substituição do critério de verdade pelo critério de razoabilidade permitiu a valorização do diálogo como recurso para determinar qual argumento deve prevalecer. A esse respeito, vale mencionar a observação de Cunha (2010, p ), no sentido de que não vivemos sob o império de verdades absolutas, capazes de levar ao convencimento o mais intransigente dos indivíduos, ao contrário, a argumentação é o 55

56 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto conjunto de recursos lógico-formais e de linguagem, pelos quais alguém tenta convencer o outro de que certa tese é a melhor solução de um problema ou uma dificuldade. No contexto argumentativo, o embate de argumentos definirá qual prevalecerá no caso concreto. O argumento que prepondera é o mais razoável, o que recebe maior adesão dos interlocutores, porque racionalmente, e após o embate com os demais argumentos, parece merecer maior atenção e apoio. Para tanto, veja-se o caso (MOOTZ, 2011, p. 57), por exemplo, de um pai biológico de uma criança, nascida de uma mulher que era casada com outro homem, que pode não ter qualquer direito legal como pai, ainda que as provas científicas sobre a paternidade sejam conclusivas nesse sentido. Na dicção de Asensi (2010, p. 08), a argumentação conduz a transformação do direito, como bem ponderou em sua obra: O campo do direito tradicionalmente se constituiu a partir de uma lógica binária de sim e não, certo e errado, lícito e ilícito etc. Com a inserção da argumentação jurídica, passou-se a pensar o campo do direito em termos de gradações, níveis, camadas, redes etc. Com isso, a argumentação tem permitido a transformação das concepções de direito de forma gradual, sem necessariamente provocar um rompimento com as concepções anteriores, já que se encontra guiada por uma racionalidade. (...) A argumentação permite estabelecer parâmetros e referenciais de como deve operar a transformação do direito no mundo contemporâneo. A interpretação é indispensável para a compreensão do direito. Ela mantém o debate em forma de diálogo, cujos argumentos não precisam ser provados ou demonstrados, bastando que sejam aceitos para que o aplicador possa encontrar a melhor solução para o caso. O raciocínio jurídico lida com valores que vão além da lógica formal. Eis porque se deve buscar um acordo sobre o que é mais razoável para o caso concreto. Por isso as discussões jurídicas envolvem valores que são apresentados em técnicas de argumentação, num processo persuasivo. O problema é cair no outro extremo, em um ativismo judicial. Além disso, para ingressar no estudo da Argumentação Jurídica é necessário enfrentar os desafios da interpretação, uma vez que é impensável o direito sem a interpretação, já que ela constitui sua dimensão própria. O que se deve ter em mente é a necessidade de superação, 56

57 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA tanto do dogmatismo mórbido quanto do decisionismo, que é o outro lado do impasse da crise do direito a que o país está submetido. Quer dizer, no intuito de fugir de um paradigma sufocante, corre-se para o outro extremo em apoio ao que se denominou discricionariedade judicial, a ponto de se chegar a aberrações interpretativas. Na verdade, vale aqui o conselho de Morin (2005, p. 16), para quem está na hora de os juristas aprenderem a navegar em um oceano de incertezas diante de um arquipélago de certeza. E a argumentação jurídica, calcada em uma historicidade e em uma compreensão de sentido, pode auxiliar nesse aprendizado. Os exemplos de Lênio Streck (2014, p. 422) são dignos de nota, indicando que a ponderação vem servindo mais para legitimar decisões pragmatistas do que para resolver com qualidade: há decisões deferindo o direito ao aluno do curso de biologia a não dissecar animais (qual o direito fundamental que estaria violado?), assim como decisões que, por vezes deferem e por vezes indeferem remédios.... É chegado o momento em que se pretende a superação de velhas metodologias de interpretação, com a superação da própria metodologia, a partir da compreensão de que interpretar é aplicar, e que o compreender vem antes da atribuição de sentido. É fundamental enfrentar as Teorias da Argumentação para compreender se o contexto de todo o esforço de superação hermenêutico encontra-se nelas presente, e de que forma, sem que se possa simplesmente fazer um jogo de palavras em que a subsunção é substituída pela ponderação, trocando apenas as palavras para se manter confortável no grupo apático do senso comum Teóricos importantes da Argumentação Jurídica Para argumentar é necessário, antes de tudo, inserir-se no contexto de um tema. Alguém argumenta porque pretende ou acredita em algo. Assim, antes da argumentação vem a compreensão. Antes de argumentar é necessário perguntar, ainda mais se a intenção é fazer crer em uma determinada resposta. Afinal, o argumentar pressupõe o interesse em defender alguma hipótese. Para tudo, a pergunta vem por primeiro, presume-se a compreensão sobre o que se pretende convencer. Por outro lado, percebe-se uma manipulação das consciências e vontades no nosso dia a dia. Saber se comunicar bem sempre foi tam- 57

58 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto bém um sinônimo de boa educação e inteligência. A filosofia é uma espécie de preparação para a eloquência. Para se alcançar o domínio da linguagem é necessário antes o domínio da história e das leis. É necessário, antes de tudo, situar-se dentro da Teoria do Direito para que se possa, com maior tranquilidade, movimentar-se em um determinado campo teórico. A ideia de que a solução jurídica não pode partir apenas da dedução lógica, mas de uma problematização global de argumentos, levou alguns juristas a se familiarizarem com as regras e pressupostos da argumentação jurídica. Eles também irão invocar uma referência a juízos de valor, a regras de argumentação, a argumentos jurídicos específicos, seja no quadro da interpretação da lei, da valoração dos precedentes ou da dogmática. Entre os teóricos contemporâneos, conhecidos também como teóricos do pós-positivismo, estão Ronald Dworkin, Chaim Perelman, Theodor Viehweg e Robert Alexy, sustentando que o direito deve se debruçar sobre os problemas e os casos empíricos particulares e não exclusivamente sobre a regra jurídica, de modo subsuntivo, como antes se enfatizava de diversas formas nos variados vieses de positivismo jurídico. (ASENSI, 2010, p.11). Porém, como destaca Atienza (2003, p. 118), enquanto a tópica de Vieweg e a nova retórica de Perelman fazem com que tais autores se situem entre os que mostram que a concepção lógico-dedutiva tem seus limites, e pretender reconstruir a argumentação jurídica a partir dela é um equívoco e por isso, devido a outras críticas, analisadas a seguir, os dois não apresentariam uma teoria satisfatória de argumentação jurídica. Vieweg e Perelman seriam os precursores das atuais teorias, entre as quais se destacam Dworkin e Robert Alexy. Dworkin teria uma teoria ultrarracionalista do Direito, com sua tese da existência de uma única resposta correta para cada caso; mas existem as teorias irracionalistas, como a de Alf Ross, para quem as decisões jurídicas são essencialmente arbitrárias, produto da vontade e não da razão (ATIENZA, 2003, p. 119). Já as concepções como a de MacCormick e Alexy, ainda segundo Atienza (2003, p. 160), não pretendem apenas elaborar uma teoria que possa distinguir entre bons e maus argumentos (teoria normativa da argumentação jurídica), mas uma teoria que também penetre na estrutura dos argumentos (teoria analítica) e incorpore elementos de tipo empíri- 58

59 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA co (teoria descritiva). De todo modo, o fato é que foi a insuficiência da lógica formal e dedutiva que teria dado origem, a partir da década de 1950, às teorias da argumentação jurídica (ATIENZA, p. 211). É importante lembrar que a solução dos problemas que envolvem a aplicação do direito nem sempre poderá ser deduzida do relato da norma, mas terá que ser construída indutivamente, tendo em conta fatos, valores e escolhas (BARROSO, 2013, p ). Lembra, ainda, o autor, que todos os participantes do processo apresentam argumentos e a fundamentação é o requisito essencial da decisão judicial; e que as diferentes teorias da argumentação jurídica têm por objetivo estruturar o raciocínio jurídico, de modo que ele seja lógico e transparente, aumentando a racionalidade do processo de aplicação do direito e permitindo um maior controle da justificação das decisões judiciais. O que segue são abordagens ou resumos muito simplificados das concepções de alguns autores, que servem apenas para dar uma ideia geral das teorias, no intuito de possibilitar o início de uma discussão em sala de aula e a organização de pesquisas mais profundas, que devem incluir, sobretudo, outros teóricos aqui não abordados Chaïm Perelman Perelman teria publicado, em 1945, um estudo cético em relação à possibilidade de se chegar a um conhecimento no âmbito da ética. Porém, depois, vai buscar uma fundamentação, concluindo, em 1965, que esses conhecimentos são possíveis ao examinar o conceito de Justiça como objetivo de tais conhecimentos (LARENZ 1997, p. 205). Através disso chega-se a uma definição de justiça formal (BOBBIO, 1995, p. 32) 7, segundo a qual os seres da mesma categoria ontológica devem ser tratados do mesmo modo. O argumentar pressupõe que há interesses diversos. De um auditório, por exemplo, para o qual o que será dito depende de argumentos. Aliás, Perelman & Olbrechts-Tyteka (2005, p. 23) já tinham advertido que o cuidado com o auditório transforma certos capítulos dos antigos 7 Daí a crítica de Norberto Bobbio referindo que Perelman apresenta uma definição formal de justiça, mas uma negação às concepções formalistas de ciência jurídica e interpretação judicial. Daí porque fala (Bobbio) também de um contínuo retorno ligado ao conceito de forma, ao formalismo jurídico, ligando à exigibilidade de se afirmar a função estabilizadora do direito. BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo jurídico. Fontamara: Barcelona, p

60 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto tratados de retórica em verdadeiros estudos de psicologia. Esse auditório sobre o qual muito insistiu Perelman, pode ser também o próprio sujeito em si (a deliberação consigo mesmo, como referiu PERELMAN & OLBRECHTS-TYTEKA, 2005, p. 45), que visa convencer a si próprio, e, aliás, considerando a psicanálise, visa evitar enganar a si próprio. Segundo Larenz (1997, p. 207) para Perelman é inquestionável, nesta altura, que os valores não são acessíveis ao conhecimento, mas apenas à crença pessoal - e isso porque o valor não resulta de uma necessidade lógica e nem de uma universalidade conforme a experiência - ele é arbitrário - e se todo valor é arbitrário não existe justiça absoluta, perfeita, fundada na razão 8. Enfim, sem descanso, Perelman pergunta como é que se fundamentam os valores e as normas e como é que se pode apreender conceitualmente a ideia de razão prática? É a partir da leitura de seu segundo ensaio que se percebe que o princípio formal da justiça conduziria à previsibilidade e à segurança, possibilitando o funcionamento coerente e estável de uma ordem jurídica. Segundo Perelman, uma justificação lógica dos valores tem como ponto de partida a teoria da argumentação. Tais argumentos seriam retirados de ações, crenças, valores, que são aprovados num dado momento e que por isso deixam de ser discutidos. Para Larenz (1997, p ), enfim, o mérito de Perelman é o de ter legitimado de novo a discussão do conceito de justiça com propósito cientificamente sério. Perelman (1979, p ) ressalta, em estudo recente, que sua conclusão em torno de uma justiça formal não o satisfez. Tal resposta implicava em uma renúncia a qualquer filosofia prática, e por isso não se satisfez, pois como ele próprio diz: Significava abandonar às emoções, aos interesses e, no final das contas, à violência, o controle de todos os problemas relativos à ação humana, especialmente à ação coletiva, todos aqueles relacionados tradicionalmente com a moral, o direito e a política. Para ir além das abordagens positivistas, recorreu à antiga dialética, que, como arte da discussão, considerando o método apropriado à solu- 8 Cf. LARENZ Se se transpuser isto na Jurisprudência, a conclusão só pode ser do teor de que só existem resoluções justas enquanto elas se representarem como a aplicação não defeituosa das normas do Direito positivo e dos valores que estão por detrás delas; não faz sentido questionar em si a justiça destas normas e das valorações que lhe subjazem. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed. Traduzida da 6. ed. do original alemão por José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p

61 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA ção de problemas práticos, que concernem aos fins da ação, que envolvem valores, pois os raciocínios dialéticos e retóricos visam estabelecer um acordo sobre os valores e sobre sua aplicação, quando são objetos de controvérsia. Nesse sentido sobressai a noção de acordo desprezada pelas filosofias racionalistas e positivistas, para quem o que importava era a verdade de uma proposição. Assim, a retórica visa persuadir por meio do discurso, e para tanto Perelman considerará diversos tipos de auditório nesse passo inovando, pois Aristóteles analisara detidamente os diferentes tipos de auditório, e pensando numa multidão reunida em praça pública salientou que a tarefa da retórica é conquistar a adesão de um auditório não especializado e incapaz de seguir um raciocínio complicado (diversos pela idade, fortuna) ou seja, detém-se mais no auditório universal, sendo que para este a razão utiliza argumentos convincentes que deveriam ser aceitos por qualquer ser racional. Já a nova retórica considera que a argumentação pode dirigir-se a auditórios diversos, não se limitando, como fazia a retórica clássica, ao exame de técnicas do discurso público, dirigindo-se a uma multidão não especializada. Mas se interessa também pelo diálogo socrático, pela dialética, tal como concebida por Platão e por Aristóteles, como a arte de defender uma tese e de atacar a do adversário numa controvérsia. Perelman (1979, p. 159) ressalta que a noção, por exemplo, de lugar comum, que faz parte de todas as teorias da argumentação e já analisada por Aristóteles, tem um papel análogo ao dos axiomas em um sistema formal podem servir de ponto inicial justamente porque os supomos comuns a todos os espíritos, ainda que o acordo sobre os lugares-comuns, tanto quanto o acordo sobre fatos e valores, não garante o acordo sobre sua aplicação concreta e conclusões. Eles constituem uma escolha efetuada em meio a uma massa de dados igualmente disponíveis. O problema surge, adverte Perelman (1979, p ), quando a adesão simultânea a vários valores ou regras redunda, em casos concretos, em incompatibilidades. Tome-se, por exemplo, os valores da liberdade e da justiça, que podem inúmeras vezes conflitar. Para Perelman, justamente daqui decorre a superioridade do pensamento jurídico sobre o pensamento filosófico, pois o direito é obrigado a considerar a solução das dificuldades aplicadas ao caso concreto, e, por fim, recomenda que 61

62 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto aqueles que se interessam pela filosofia prática, que se inspirem na maneira pela qual os juristas consideram tais problemas, ou seja, na busca por soluções concretas, não se satisfazendo com princípios como imperativo categórico (agir de modo à própria ação tornar-se lei de uma legislação universal), um princípio utilitarista (agir de modo a alcançar a maior utilidade para um maior número), ou ainda um princípio de responsabilidade civil (a ação danosa obriga o autor à reparação). Por isso, Perelman (1993, p. 14) também se situa dentro da análise do paradigma hermenêutico, mostrando que a razão tem aptidão para lidar com valores, desenvolvendo uma teoria da argumentação que permite uma maior compreensão da razão. A busca por fundamentos suficientes, relativos a um espírito ou sociedade é filosoficamente essencial para todos que, embora recusando o valor de critério absoluto, não se contentem com um ceticismo negativo e estéril. Foi assim, por exemplo, que para punir os crimes nazistas, diante da própria reação universal, os estados aliados foram levados a instruir o processo de Nuremberg interpretando o princípio nullum crimen sine lege em sentido não positivista, mas dentro de um sistema de consciência de todos os homens civilizados: A convicção de que era impossível deixar impunes aqueles crimes horríveis, mas que escapavam a um sistema de direito positivo, prevaleceu sobre a concepção positivista do fundamento do direito (PERELMAN, 1996, p ). Nesse sentido, a importância da obra de Perelman está em ter reabilitado a razão prática, ou seja, reintroduziu um tipo de racionalidade na discussão de questões concernentes à moral, ao direito, à política (ATIENZA, 2003, p. 77), dentro do contexto do terror advindo do pósguerra, pela necessidade de reabilitar princípios gerais do direito, ou seja, conciliar a segurança jurídica e a equidade com a solução do caso que não se resuma na aplicação fria da lei, mas que seja equitativa, razoável, aceitável. À critica que Atienza lança a Perelman (2003, p. 78), de que o pecado capital de Perelman é a falta de clareza de praticamente todos os conceitos centrais da sua concepção retórica, pode-se contrapor dizendo que, de todo modo, a própria concepção de noção confusa parece constituir um espaço de liberdade argumentativa na sua teoria. Teria faltado a Perelman levar em conta, além do receptor universal, também a instituição, como interlocutor direto (WARAT, 1995, p. 93): Em nossa sociedade, na maioria das vezes, o convencimento não é 62

63 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA gerado pela instituição que, ao voltar a enunciá-lo, o redefine, o adapta e permite a possibilidade de convencimento. Em um sentido praticamente denunciante, Warat também destaca que há uma tendência dos indivíduos a se adequarem psicologicamente às relações de dominação, mais pelos efeitos ideológicos da culpa jurídica do que pelo medo da sanção que pode ser imposta. E assim o direito estaria cumprindo funções do superego (WARAT, 1994, p. 26) Theodor Viehweg Enquanto uma perspectiva meramente teórica não basta para a concreta realização do Direito, assim como não é suficiente uma perspectiva apenas funcional, surge a necessidade de uma razão prática, o que será abordado por Thedor Viehweg, através de uma racionalidade tópico-retórica, ou como ficou conhecida, jurisprudência problemática, por concentrar-se antes nos problemas ou tópicos e depois no sistema. Viehweg (1984, p. 56) apresenta a seguinte questão: se o acento for sobre o sistema, se for considerado que só existe um sistema em que se poderia agrupar todos os problemas em solúveis e insolúveis, esses poderiam ser desejados como simples problemas aparentes, pois uma prova em contrário só seria possível a partir de outro sistema distinto. Por outro lado, se a tônica concentrar-se no problema, é ele (problema) que buscará um sistema que sirva de ajuda para encontrar a solução. 9 Como a definição de tópico é muito ampla, a associação que os autores fazem em geral é muito pessoal (VIEHWEG, 1984, p. 54). Mas, quando alguém pensa no problema inserindo-o dentro de um sistema, há um benefício, no qual o problema atua como um guia. E o que é um problema? Viehweg o define como toda questão que, aparentemente, permite mais de uma resposta e que requer, necessariamente, um entendimento preliminar, e de acordo com o qual se leva em conta o aspecto que se deve levar a sério e pelo qual hay que buscar una única respuesta como solución (...)... al problema. A proposta é que, por meio de uma formulação adequada, se introduzam uma série de deduções, mais ou menos 9 Para VIEHWEG El planteamiento de un problema opera una selección de sistema, y conduce usualmente a una pluralidad de sistemas cuya concibilidad dentro de un sistema omnicomprensivo no se demuestra. VIEHWEG, Theodor. Topica y jurisprudencia. Tradução de Luis Díez-Picazo Ponce de León. Madrid: Taurus,1984. p

64 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto explícitas e mais ou menos extensas, através da qual se obtém uma contestação e se a esta série de deduções chamarmos de sistema, podemos dizer com una fórmula más breve, que, para encontrar una solución, el problema se inordena dentro de un sistema (VIEHWEG, 1984, p. 54). E é assim que, com Viehweg, que vamos considerar a possibilidade de se buscar um processo que permita a solução de casos a partir dos dados materiais deles próprios, ainda que sem apoio de uma norma legal. Cabe, assim, abordar o problema a partir de inúmeros ângulos, confrontando-se pontos de vista obtidos a partir da lei ou de natureza extrajurídica, desde que possam apresentar alguma solução direcionada à justiça e que tragam um consenso entre os intervenientes - é chamado de processo de tratamento circular, para o qual foi recomendada a tópica. É um pensamento que se mantém nos limites traçados pelo problema, insistindo e regressando no problema, sem ir ao sistema, pois refere-se a uma pluralidade de sistemas, sem demonstrar sua compatibilidade a partir de um sistema total. Viehweg (1984, p. 61) vai referir que existem outros tópicos além daqueles universalmente aplicáveis tratados por Aristóteles, Cícero e outros seguidores. Afinal, o procedimento relativo à tópica pode ser concebido em algum sentido como ciência, ou seria algo distinto? Lembrando que Aristóteles havia estabelecido a diferença entre tecné (hábito de criar por reflexão racional) e epistemé (hábito de demonstrar a partir das causas primárias e últimas) demonstra que entre os juristas romanos não houve nenhuma discussão de teoria da ciência nesse sentido (VIEH- WEG, 1984, p ). Por fim, conclui Viehweg que, ainda que se quiséssemos aplicar a distinção aristotélica entre ciência e técnica, teríamos que situar o ius civile dentro da tecné. A jurisprudência não se distingue, segundo o autor, por lo menos en su estructura fundamental, da sofística, retórica e da aporética filosófica, de modo que o método científico procede da filosofia, ainda que não na filosofia sistemática. Assim, ainda que a tópica tenha prestado grandes serviços à jurisprudência, esta não pode ser convertida em método, pois só pode ser considerado método aquilo que é comprovável por meio de uma lógica rigorosa, ligando-se a um sistema dedutivo. A jurisprudência reduz-se, então, a um estilo que como qualquer estilo tem mucho de arbitrio amorfo y muy poco de com- 64

65 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA probabilidad rigurosa. O autêntico método, entretanto, só é encontrado em um sistema dedutivo (VIEHWEG, 1984, p. 115, , 141). Como destaca Gadamer (1996, p. 368), o direito resumir-se-ia em uma natureza tópica, na qual a Ciência do Direito é vista como um processo de discussão de problemas que constituiria uma forma segura de achamento da solução devido ao apoio de uma teoria da praxe. A jurisprudência problemática tem base, assim, na tópica, e a partir disso reavivou a retórica e o repensar da própria lógica jurídica, propondo soluções para integração de lacunas, especialmente insubordináveis à integração exclusiva. 10 Pontua muito bem Karl Larenz (1997, p ) que a jurisprudência problemática pôde assim readquirir brilho, a partir do enfoque centrado no direito como uma técnica de resolução de problemas. Por outro lado, Viehweg coloca em dúvida a estrutura sistemática do direito, especialmente enquanto sistema axiomático-dedutivo. O mérito de Viehweg, entretanto, foi apresentar a busca das verdades jurídicas em plano histórico, ao mesmo tempo em que clarificou as tarefas prático-morais e dos limites da construção conceitual e sistemática do direito (WIEACKER, p. 690). É certo, diz Larenz (1997, p ), que mesmo quando se argumenta de modo proximamente tópico, é obrigação da sentença fundamentar a decisão dentro de um processo intelectual ordenado, de modo que cada argumento tenha seu lugar dentro de uma inferência silogística: o apelo à tópica seria de reduzida valia, se não pudesse oferecer mais que isso 11. Nesse aspecto é importante lembrarmos a crítica de Canaris (1989, p. 251), no sentido de que a função dos tópicos, gerais ou especiais, é servir a uma discussão de problemas. Apesar de Viehweg aceitar expressamente a ligação entre tópica e pensamento problemático, nos termos postos por Aristóteles, é de salientar-se que em Aristóteles a tópica reconduz-se às chamadas conclusões dialéticas ; e assim, como 10 Vieheweg iniciou una nueva reflexión sobre la peculiaridad del conocimiento jurídico y se há reivindicado para ello el antiguo concepto retórico de la tópica. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método: fundamentos de una hermenéutica filosófica. Tradução de Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. 6. ed. Sígueme: Salamanca, p.368. v.ii. 11 LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3 ed,traduzida da 6. ed. do original alemão por José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p

66 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto conclusões dialéticas, operam sobre premissas que não podem ser comprovadas, apenas mostradas ou inteligidas, difere-se das conclusões apodíticas, que se podem obter a partir de postulados cuja veracidade é demonstrável Ronald Dworkin Dworkin também vai acompanhar a viragem ontológica da hermenêutica, referindo-se às questões da argumentação prática geral, partindo de um ponto de vista hermenêutico interno, com a jurisprudência como mediação (sem diferenciar conhecimento e aceitação), como refere Lamego (1990, p. 165). Essa ideia de direito como uma espécie de regra pressupõe a ideia de direito como instituição social (because only rules enacted or developed within such an institution can be laws). Para Dworkin, a controvérsia situa-se para além das proposições e das regras quando juízes e advogados dizem que há contradição no Direito, eles não estão apelando às regras, mas aos princípios: controversial propositions of law are therefore an embarrassment to the positivist. Assim, surge a doutrina da discricionariedade. O juiz teria dois poderes relevantes: além do poder de julgar qual das proposições é verdadeira, também a discrição para decidir entre uma e outra parte, se ele pensa que a política ou justiça assim exige, apesar do fato de aquela parte não ter direito legal para vencer 12. Para fazer um ataque geral ao positivismo, Dworkin toma Hart como exemplo e organiza sua estratégia em torno do fato de que, quando advogados discutem sobre direitos e obrigações legais, em especial nos chamados hard cases, eles costumam chamar a atenção para certos standards que não funcionam como normas, mas operam como princípios. O positivismo seria um modelo de sistema de e para regras, e força o esquecimento quanto a outros elementos, como princípios, que na verdade não se confundem com as regras DWORKIN, Ronald M. Is law a system of rules? In The philosophy of law Oxford readings in Philosophy. 1977, p Dworkin não reduz os elementos que se diferenciam das normas, a princípios, mas chama genericamente de princípios o que é princípio e o que é política, moral, etc. Política é aquele tipo de standard que fixa uma meta a ser alcançada, geralmente algum incremento em economia, política ou sociológica. Já o princípio é o elemento que deve ser observado porque se relaciona a uma questão de justiça ou alguma outra dimensão da moralidade. Ibid., p

67 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Assim, explica que a diferença entre princípios e regras é uma diferença lógica. As regras são aplicáveis em todo ou qualquer caso. Os princípios possuem outra dimensão que falta às regras, uma dimensão de peso ou importância. De todo modo, se o princípio pode ter peso maior do que as regras, conflito entre princípios poderão ser igualmente frequentes. Tem sentido, então, perguntar acerca da importância de certo princípio, enquanto que as regras não possuem esta dimensão. Dworkin chama a atenção para o fato de que, uma vez que os sistemas passam a identificar os diferentes elementos e diferenciar princípios de regras, professores os ensinam, livros os citam, e historiadores os celebram. Entretanto, eles aparecem mais enfaticamente na prática, com mais peso, em especial, nos hard cases 14. Dworkin também deve ser lembrado por sua especial abordagem ao significado de discricionariedade. Os positivistas, segundo ele, usam o termo apenas em um sentido fraco, apenas para significar que, por alguma razão, um dado elemento não pode ser aplicado mecanicamente, mas requer um juízo. Às vezes, o sentido fraco liga-se à discricionariedade delegada a um oficial, com autoridade para tomar uma decisão que não poderá ser revertida por nenhum outro oficial (por exemplo, escolher os cinco mais eficientes para fazer certa tarefa). Mas a discretion também é usada em um sentido forte. Os positivistas usam a discricionariedade apenas no sentido fraco mencionado para significar que os juízes, algumas vezes, exercem a discricionariedade na aplicação de standards legais (como no caso em que Herbert Hart chama a atenção para o fato de que algumas regras do direito são vagas, a textura aberta ) 15. Dworkin propõe que se examine a doutrina da discricionariedade no sentido forte. Um positivista poderá dizer que princípios não podem ser obrigatórios mas isso é um erro, não há nada que impeça tal obrigatoriedade. A questão é por que este tipo de obrigação é diferente da obrigação que regras impõem e por que nos leva a dizer que princípios e política não são partes do direito, mas apenas standards extralegais ou supra-legais. Além disso, o positivista pode argumentar que princípios não podem valer como direito por causa de sua autoridade, e mesmo assim eles têm mais peso, ocorrendo uma controvérsia congênita. A ver- 14 Ibid.,p Ibid.,p

68 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto dade é que, em geral, não podemos demonstrar a autoridade ou o peso de um princípio particular, como podemos demonstrar a validade de uma regra, localizando-a em um código. Entretanto, apelamos para a prática e outros princípios nos quais a história judicial e as implicações legislativas encontram-se ao lado de apelos práticos da comunidade 16. Os princípios, ao final, são tratados como elementos obrigatórios, controlando as decisões de direito e as obrigações. Se a discricionariedade pudesse ser usada só no sentido fraco, do positivismo, por que haveria tantos advogados abraçando-os? Há, de todo modo, uma tendência natural dos advogados ingleses de pensar que o direito é uma coleção ou sistema de regras. Roscou Poud diagnosticou tal tendência, lembra Dworkin, entendendo que ela devia-se pelo fato de que os ingleses usam a mesma palavra para direito e regras, enquanto outras línguas usam duas, como loi (lei) e droit (direito), ou Gesetz e Recht. Assim, para quem fala a língua inglesa, a expressão law, certamente, sugere rule. Mas, para Dworkin, a principal razão para associar direito com regras é mais profunda e reside no fato de que a educação legal foi por longo tempo considerada relativa àquelas regras que formam o direito estabelecido nos códigos 17. Tratando princípios como direito nós deveremos rejeitar a doutrina positivista segundo a qual o direito da comunidade é distinto de outros elementos sociais. Esse é o primeiro dogma do positivismo. O segundo dogma, sobre a doutrina da discricionariedade, também concluímos que devemos rejeitar. E quanto ao terceiro dogma? Esta teoria defende que uma obrigação legal existe quando - e somente se - uma regra estabelecida impõe tal obrigação. Assim, em hard cases em que tal regra não pode ser encontrada, não há obrigação legal, até que uma nova regra seja encontrada o juiz poderá aplicar a nova regra às partes, mas é extralegal, não o dever decorrente de uma obrigação existente. 16 There is no litmus paper for testing the soudness of such case it is a matter of judgement, and reasonable men may disagree. Ibid., p E esclarece: Se o advogado pensa no direito como um sistema de regras e reconhece que juízes alteram velhas regras e introduzem novas, ele irá naturalmente para a teoria da discricionariedade judicial no sentido forte. Há ainda outra consequência dessa inicial aceitação de que o direito é um sistema de regras quando positivistas recorrem a princípios e política eles os tratam como se fossem critérios ou elementos do direito que deveriam ser regras e os leem como elementos que estão tentando tornar-se regras, acabando por concluir que tais princípios não são regras válidas ( wich is true, because they are not rules at all). E também concluem que se tratam de elementos extralegais ou supra-positivos que cada juiz seleciona de acordo com a vontade própria o que é falso, salienta o autor. Ibid., p ). 68

69 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Tratando os princípios como direito, chegamos à possibilidade de que as obrigações legais possam ser impostas por princípios, tanto quanto são impostas por regras 18. Castanheira Neves 19 destaca que contra o model of rules de Hart, que seria um sistema limitado e lacunoso de normas positivas, com base numa positivo-sociológica rule of recognition, Dworkin propõe o model of principles ou seja, um sistema global de princípios (e direitos) ético-jurídicos em que sempre se haveria de procurar o fundamento para uma única solução válida (correta e justa), com exclusão assim da discretion integrativa admitida pelos positivistas do model of rules. Para Neves, entretanto, este entendimento ainda não nos coloca perante a decisiva característica da racionalidade jurídica, em especial porque o pensamento jurídico não é apenas compreensivo, ele tem natureza, sobretudo, na prática-decisória. A intenção de tal pensamento cumpre-se na doutrina de um justo decidir, e não de um mero correto compreender. Em resumo, Dworkin elaborou, inicialmente, uma forte crítica a um dos maiores expoentes do positivismo, Herbert Hart, rejeitando a imagem de um direito indeterminado ou incompleto e de um juiz que, no exercício de um poder discricionário, fosse criador do direito. Para ele, os confrontos normativos envolvendo princípios constitucionais são denominados de hard cases, propondo para estes outra solução. Sustenta que o direito não se restringe a um conjunto de regras, mas de regras e princípios, e estes fundamentam as regras. Para Dworkin, em especial nos hard cases, o intérprete não consegue trabalhar apenas com regras, e deve valer-se da aplicação de princípios. Para o autor, ainda, os princípios são antes critérios para aplicação das regras. As regras têm a função de trazer segurança ao sistema, 18 Ibid., pp Além disso, não se busca a coerente integração compreensiva, mas sim a justeza decisória, e a compreensão dos fundamentos numa pressuposição hermenêutica, ainda que aliada à situação hermenêutica, não basta para decidir, pois a mediação judicativa, com sua dimensão problemática e de autonomia constitutiva interfere nos fundamentos e critérios da decisão concreta. E além disso, a intencionalidade normativa da decisão jurídica opõe-se ao caráter da applicatio ou concretização hermenêutica. Finalmente, trata-se não simplesmente de compreender ou integrar o caso no sistema global de validade, mas de decidir o mérito normativo do problema prático-concreto na perspectiva da validade dogmática objetivada, quer dizer, não é só uma pragmática reintegrante, mas uma justeza decisória e por estes caracteres praxístico, constitutivo, normativo e judicativo a decisão não é um ato exclusivamente hermenêutico. NEVES, A. Castanheira. Metodologia Jurídica - problemas fundamentais. Coimbra Editora: Coimbra, p

70 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto enquanto os princípios tem a função de fundamentar a aplicação das regras. Um sistema só de princípios poderia gerar arbitrariedades. Um sistema só de regras poderia ficar engessado e gerar injustiças. Para enfrentar o conflito entre normas fundamentais recorre-se às regras de ponderação dos princípios. As críticas levantam dúvidas sobre a segurança jurídica que tal regra oferece. Naturalmente, um suporte valorativo só pode trazer controvérsias e oposições. O exercício de ponderação é remetido ao aplicador-intérprete, que faz uma análise fática do caso e dos princípios, oferecendo uma solução mais adequada com o quadro social traçado por quem participa do litígio. Ou seja, os princípios vão decorrer do próprio caso. E o aplicador não pode se afastar de sua situação sociocultural, argumentando neutralidade ou imparcialidade. Assim, o aplicador-intérprete deverá valer-se das seguintes regras de ponderação: Regra da adequação, a que considera adequado o meio escolhido para o fim almejado. O limite que se impõe ao exercício de um direito deve possibilitar a efetivação do outro em conflito. Evitase a medida que não viabilize a concreção de um direito contraposto. Regra da necessidade, que visa a que o detentor de direitos sofra a menor desvantagem possível. Regra da proporcionalidade, que analisa a relação custo-benefício da medida, que deve propiciar benefícios superiores ao direito tutelado do que os ônus impostos ao direito restringido. Ovídio Araújo Baptista da Silva elaborou uma crítica bastante pertinente às teorias de Dworkin. Discordou principalmente da sua concepção de direito como uma entidade capaz de ser teorizada sem o concurso dos fatos, o que manteve Dworkin em um compromisso com o iluminismo, que separou o fato do direito. Ovídio Baptista da Silva também criticou a ideia de hard cases, como se os casos fáceis não tivessem sua parcela de controvérsia (questões de fato não interessavam a Dworkin, e não envolviam controvérsias ). Além disso, teceu críticas à negação de Dworkin de que o juiz possa deter uma parcela de discricionariedade, ainda que mínima; e, finalmente, criticou também a alegação de que apenas o positivismo faz uso desse instrumento cognitivo, produtor de arbitrariedade (SILVA, 2009, p ). 20 Ora, na razão 20 Muitos autores multiplicaram tal concepção, detalhando tal entendimento, que na realidade, efetivamente, mantém um pé no paradigma tradicional, e enquanto outro já busca uma mudança, como pode ser percebido em Barroso, ao explicar que a interpretação jurídica lida com casos fáceis 70

71 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA de todas as suas críticas está o esforço em convencer seus leitores de que o Direito é uma ciência compreensiva e não explicativa. Sendo uma ciência compreensiva, natural que seja necessário dar o devido valor à linguagem e à argumentação jurídica. Daí também porque, historicamente, a argumentação jurídica volta a ter seu lugar na prática jurídica, uma vez que vão sendo superados os estreitos limites do positivismo legalista, formal ou exegético, e inicia-se uma época em que a hermenêutica assume papel preponderante na busca da justiça, na busca da melhor resposta a um determinado caso concreto Robert Alexy Como dissemos, a virada hermenêutica aconteceu principalmente a partir da década de 1950, na Alemanha. A partir dela, a norma jurídica estará vinculada a valores democráticos, e em especial, da dignidade humana. Robert Alexy também está entre os principais pensadores da virada hermenêutica. A teoria argumentativa de Robert Alexy liga-se ao estatuto reflexivo-reconstrutivo dos projetos de Apel e Habermas, entendendo que as argumentações jurídicas, como um caso particular de discurso prático geral, são mais explícitas nos seus pressupostos do que as assunções hermenêuticas de Dworkin. Alexy, com sua teoria sobre a ideia de uma comunidade de comunicação (da proposta habermasiana), isenta de dominação, funcionaria como pressuposto normativo e padrão de crítica dos discursos reais. Com isso, na mesma ideia de comunidade de discurso funda-se a noção normativa de democracia e a teoria normativa da argumentação jurídica, e assim abarca-se simultaneamente teorias da moral, do direito e da política, refazendo-se a unidade da philosophia practica, dissolvida com a modernidade e a emergência do paradigma da razão teorética (LAMEGO, 1990, p. 133 e 163). e com casos difíceis. Os casos fáceis podem ser decididos com base na lógica formal, dedutiva, aplicando-se a norma pertinente aos fatos, mediante subsunção. Nos casos difíceis, porém, a solução precisa ser construída tendo em conta elementos que não estão integralmente contidos nos enunciados normativos aplicáveis. Valorações morais e políticas precisarão integrar o itinerário lógico da produção da decisão. O autor restringe esse ambiente como o típico da argumentação jurídica. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, p

72 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto Logo no início de sua obra Alexy (2011, p. 24) indica que em quase todos os escritos de metodologia (e aí cita Larenz, Müller, Kriele, Engisch e Esser) é destacado que a Ciência do Direito e a jurisprudência não podem prescindir de valorações. Entretanto, seriam realizadas antes constatações e poucas soluções para os problemas. Por isso o problema central de sua obra consistiria em responder onde e em que medida são necessárias valorações, como atuam essas valorações nos argumentos qualificados como especificamente jurídicos e ainda como fundamentar ou justificar racionalmente tais valorações. E isso é importante para o caráter científico da jurisprudência, além de indicar legitimidade na regulação dos conflitos sociais. Alexy não poupou críticas à teoria de Perelman. Atacou a obscuridade do conceito de auditório universal e a renúncia aos instrumentos analíticos modernos na análise da estrutura da argumentação. Mas também destacou a importância da orientação da argumentação racional de acordo com a ideia de universalidade, ao mesmo tempo, ao estado social e histórico das concepções e atitudes. Isso o permitiu concluir que muitas vezes não se pode chegar a um único resultado como sendo o correto, de modo definitivo, obrigando o intérprete a uma abertura à crítica e à tolerância (ALEXY, 2011, p ). Alexy (2011, p ) situa o discurso jurídico como um caso especial do discurso prático geral. Distingue as discussões da Ciência do Direito (dogmática) envolvendo as deliberações dos juízes, debates nos tribunais, tratamento de questões jurídicas nos órgãos legislativos etc., de questões entre advogados, entre estudantes e entre os meios de comunicação; sendo que no discurso jurídico se coloca à pretensão de correção. Ou seja, no discurso jurídico há discussão de questões práticas, há uma pretensão de correção (como a pretensão à justiça, seria uma pretensão de correção). Isso se faz dentro de certas condições, ou seja, o discurso jurídico pode ser fundamentado racionalmente na moldura de um ordenamento vigente (ATIENZA, 2003, p. 172): o discurso jurídico alia às regras e formas do discurso prático geral, e pelas regras e práticas do discurso jurídico, formas estas que dizem respeito à sujeição à lei, aos precedentes judiciais e à dogmática. Alexy (2011, p. 250) também vai referir que dogmática tem três tarefas: a análise lógica dos conceitos jurídicos, a recondução dessa análise a um sistema, e a aplicação dos resultados desta análise na funda- 72

73 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA mentação das decisões jurídicas. A crítica a esse sistema é que os meios de análise lógica e da dedução lógica não podem alcançar novos conteúdos normativos. Os discursos constituem um conjunto de ações interconectadas, nos quais se comprovam a verdade ou correção das proposições. Daí porque discorre sobre a necessidade do discurso jurídico, em virtude da natureza do discurso prático geral: A necessidade do discurso jurídico surge da debilidade das regras e formas do discurso prático geral, que definem um procedimento de decisão que em numerosos casos não leva a nenhum resultado e que, se leva a um resultado, não garante nenhuma segurança definitiva. Há três razões para esta debilidade: (1) as regras do discurso não prescrevem de que premissas normativas devem partir os participantes no discurso. O ponto de partida do discurso é constituído pelas convicções entre si. Visto que (2) nem todas as etapas da argumentação estão fixadas e (3) algumas regras do discurso só podem ser cumpridas de maneira aproximada, há sempre a possibilidade de que não se alcance nenhum acordo. Evidentemente, as regras do discurso exigem alguns enunciados normativos como discursivamente necessários (ALEXY. 2011, p. 279). Alexy (2011, p. 30) faz questão de deixar claro que as ideias fundamentais de sua investigação pautam-se pelas discussões éticas da Filosofia da Linguagem contemporânea e da Teoria da Argumentação, que é uma atividade linguística que trata da correção dos enunciados normativos, como discurso prático (2011, p. 251). Assim, Claudia Toledo, apresentando a edição brasileira, destaca que Alexy não se interessa pela questão da materialidade ou da semântica do discurso, mas pela pergunta, sob o ponto de vista procedimental, de como pode ser o discurso prático e especificamente o jurídico fundamentado racionalmente, buscando-se a correção de seus enunciados regulativos. 21 As principais críticas à teoria de Alexy situam-se sobre sua teoria do discurso em si, colocando em dúvida a utilidade prática da sua teoria, e sobre a tese de que a argumentação jurídica seria apenas um caso especial do discurso prático geral, como ele mesmo destaca no posfácio 21 Apenas adiante, com a posterior obra Teoria dos direitos fundamentais é que ele vai conferir alguma materialidade ao discurso jurídico. TOLEDO, Claudia. Apresentação à edição brasileira da obra de ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. 3. ed. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: Forense, p

74 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto de seu livro (ALEXY, 2003, p. 295). À acusação de concepção procedimental de correção prática, Alexy argumenta que a racionalidade do discurso se define por meio da observação das regras do discurso, e se elas permitem garantir a bondade dos argumentos. Se não existisse uma relação necessária entre as regras do discurso e a bondade das razões, o procedimento discursivo poderia revelar somente uma forma de influenciar e manipular psiquicamente. Às críticas elaboradas por Tugendaht são no sentido de que todo fundamentar não é essencialmente comunicativo, pois há casos em que um indivíduo desenvolve um monólogo consigo mesmo. Contra isso Alexy (2011, p. 300) procura destacar que a teoria da argumentação, como teoria da fundamentação de enunciados morais, não desempenha nenhum papel; ela tem por função fazer referência nos enunciados ao que está fundamentado, e por isso deve-se cuidar, pois não se tem por objeto passar, na teoria do discurso, de uma teoria da argumentação para uma teoria da decisão. Conforme destaca Larenz (1997, p ) há diferença entre metodologia e teoria da argumentação: naquela há um processo de pesquisa juscientífica, de um parecer ou fundamentação de um julgamento, e não de um argumento mais forte. Assim, por exemplo, para Alexy, o enunciado normativo que se afirma só pode ser racionalmente fundamentado nos quadros da ordem jurídica vigente, e são os fundamentos racionais que deverão decidir qual o peso a ser atribuído a cada caso e a cada tipo de argumento particular. Para Atienza (2003, p. 203), o objetivo fundamental da teoria da argumentação de Alexy não parece ser uma análise ou descrição das decisões jurídicas, mas a justificação de tais processos de justificação e, enfim, ele não manteve uma clareza na distinção entre descrição e prescrição. Alexy também vai diferenciar as regras de princípios, entendendo que as regras normalmente exigem um cumprimento pleno, ou seja, ou são cumpridas ou descumpridas, tendo como característica a subsunção. Já os princípios, são as normas que ordenam a realização de algo maior, são mandados de otimização, podendo ser cumpridos em diversos graus, e por isso, dependentes da ponderação para sua aplicabilidade, ao contrário da subsunção das regras. 74

75 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA O modelo proposto por Alexy é um modelo em três níveis: das regras, dos princípios e dos procedimentos; não sendo possível alcançar sempre uma única resposta correta para cada caso, mas é o que, segundo Atienza (2003, p. 182), o leva a um maior grau de racionalidade prática e é também o modelo de racionalidade incorporado no direito moderno, em particular, no de um Estado democrático e constitucional. Para Atienza, todas as teorias tratadas são insuficientes, basicamente porque têm um interesse limitado para o teórico e o prático do Direito, na medida em que são insuficientemente críticas com relação ao Direito positivo (ATIENZA, 2003, p. 212). Além disso, a construção de uma teoria da argumentação jurídica deveria levar em conta a argumentação sobre fatos, enquanto se mantém basicamente em questões de âmbito normativo. Deveria existir uma aproximação maior com outras teorias argumentativas não jurídicas pois assim existiria um maior contato com a teoria moral ou a teoria do direito, e também com a sociologia. Além disso, o autor vê que a teoria da argumentação deve envolver também a produção do direito e não apenas a interpretação e a aplicação do direito. Por tudo isso, Alexy se situa no marco da filosofia da linguagem, propondo que a ponderação de princípios seja um mecanismo possível para solução de casos difíceis. Para ele, o choque entre valores constitucionais vai exigir do aplicador do direito uma postura hermenêutica que supere os limites determinados pela filosofia racionalista da modernidade, em especial, pelo positivismo jurídico. Enfim, a argumentação jurídica é um instrumental importante para a própria descoberta do Direito que muitas vezes está velado ou insiste em permanecer obscuro por conta também de técnicas argumentativas Argumentação e hermenêutica discursiva: sugestão de exercícios É importante lembrar que as diferentes hermenêuticas se desenvolveram no decorrer do tempo. A hermenêutica tradicional vincula-se ao racionalismo filosófico, envolve a lógica das proposições normativas, compreendidas por meio de silogismo jurídico. Tem vínculo com o racionalismo cartesiano e foi reavivada pelo positivismo cien- 75

76 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto tífico. A partir da hermenêutica tradicional, a justificação das decisões limita-se a uma análise exclusivamente interna, ou seja, a coerência da argumentação e a fundamentação são encontradas exclusivamente dentro de premissas jurídicas normativas. Com a evolução da teoria do direito, em especial após os horrores da Segunda Guerra Mundial, o silogismo frio e abstrato teve que dar lugar a um argumentar que respondesse efetivamente as questões que envolviam valores e princípios constitucionais, um desafio que a silogística formal não poderia dar conta. A mudança, como vimos, tem relação com a maneira como o próprio conceito de verdade é abordado. Se antes o saber racional era construído com critérios objetivos, e a verdade era vista como reprodução da realidade, com o tempo foi possível perceber que a própria ciência não era tão neutra quanto pensavam os próprios cientistas, o que levou ao descrédito a própria possibilidade de criação de um direito neutro. 22 A possibilidade da superação de um direito formal ocorreu a partir do giro linguístico, pois a verdade e a dimensão do real passam a ser conhecidos a partir da linguagem, e não a partir de uma lógica silogística. A hermenêutica discursiva surge em meados do século XX, e buscará apoio em uma justificação externa, pois os juristas passam a se preocupar em adotar em casos concretos princípios constitucionais; passam a buscar soluções teóricas para os casos em que existem premissas conflitantes, procurando assim desenvolver a possibilidade de justificativas racionais para a escolha de um deles. A norma jurídica passará a ter vínculo com valores democráticos e, em especial, com a dignidade humana. Os exemplos de conflitos são muitos, mas podemos indicar aqui, dado os limites deste capítulo, o princípio da proteção ao autor e o princípio de acesso à informação ou à cultura. Outros princípios que costumam aparecer com frequência em colisão são o princípio da liberdade de expressão e o princípio da privacidade. Uma sugestão de exercício é a pesquisa sobre casos em que há a necessidade de aplicação de um princípio constitucional em detrimento de outro, explicitando-se as razões 22 Ver a respeito em KRETSCHMANN, Ângela. História crítica do sistema jurídico: da prudência antiga à ciência moderna. Rio de Janeiro: Renovar,

77 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA de sua aplicação e indicando se a fundamentação e a justificação podem ter alguma relação com alguma teoria da argumentação aqui expostas. Nesse caso, como visto em Alexy, a ponderação de princípios é um mecanismo possível para a solução de casos difíceis, e o choque entre valores constitucionais exige do aplicador do direito uma postura hermenêutica superadora da filosofia racionalista. No desenvolvimento de sua teoria, o autor determina que é necessário considerar as condições fáticas e jurídicas sobre as quais um princípio pode preceder o outro, não existindo prevalência absoluta de um princípio sobre outro. Sugere, também, cuidado com a necessidade, a adequação e, caso nem uma, nem outra, possibilite o balanceamento dos interesses em conflito, sugere a análise da proporcionalidade em sentido estrito, a análise do custo-benefício da medida (se a medida traz mais benefícios do que traria a limitação ao direito restringido). Daí a importância de que se procure analisar o que pode significar o princípio da proporcionalidade, fundamental para a resolução de casos atuais, que acorrem ao Supremo Tribunal Federal. É possível observar que esse princípio tem sido utilizado sem nenhuma explicação ou justificação, sendo apenas um argumento vazio quando não são explicitadas as condições de sua adequação e a sua necessidade no caso concreto. Sugere-se, aqui, um trabalho de equipes que possam trazer exemplos de casos para constatação ou refutação dessa situação, que tem relação direta com a possibilidade ou não de uso ou abuso da discricionariedade e daí as acusações de ativismo judicial, e de judicialização da própria política. É importante que os exemplos venham de casos concretos, efetivos, vinculados à realidade social brasileira, como forma de aproximar o debate e a própria dogmática jurídica dos fenômenos sociais. A partir dessa análise, é possível encontrar uma série de princípios, qual seja, torna-se uma atividade interessante constatar esse rol de princípios em decisões, buscando compreender ao que eles se vinculam. Isso poderá trazer uma visão do que vem ocorrendo na jurisprudência, no que diz respeito a uma verdadeira profusão e criação de novos princípios. Será que o texto constitucional permite isso? Alguma teoria da argumentação incentiva a criação de novos princípios? As respostas e a discussão em torno delas trará uma visão maior do problema. 77

78 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto Outra sugestão de aprofundamento do tema situa-se na pesquisa do outros teóricos da argumentação jurídica que aqui não foram abordados, como Toulmin e Mackornic, por exemplo, e na própria capacidade das diversas teorias da argumentação, de efetivamente superar o paradigma da consciência. Até que ponto elas efetivamente superam a virada linguística e recepcionam ou não o giro ontológico-linguístico. 23 Ou seja, será que as teorias percebem a importância e essência do significado da linguagem, no sentido de preocuparem-se com o que efetivamente é dito quando dizem alguma coisa, respeitando o que a coisa mesma da linguagem significa e diz? Será que um argumento, por exemplo, não está apenas reproduzindo algum valor, sem explicá-lo, e com isso reforçando a posição confortável do que é chamado senso comum teórico dos juristas, que atribui sentido aos textos, e mantém o poder com os que tradicionalmente são os mais poderosos? Com isso entende-se que o leitor estará mais bem preparado para a disciplina de Hermenêutica Jurídica, que enfrentará adiante. CONSIDERAÇÕES FINAIS Na Grécia antiga, a argumentação fazia parte da vida de todo cidadão (daqueles poucos que participavam ativamente da política da cidade), e como a exposição pública e a reivindicação eram absolutamente naturais, como parte da vida de cada um na cidade, era muito natural que a retórica se desenvolvesse livremente e que existisse uma preocupação rigorosa com o modo como alguém pode convencer um auditório, ou persuadir. Essa importância não diminuiu nos dias de hoje, pois todos os dias estamos às voltas - senão já em questões jurídicas -, em qualquer outra atividade em sociedade que exige, para maior alcance dos objetivos, uma fluência na linguagem, na comunicação, e nas técnicas não apenas para convencer, mas para se fazer ou tornar-se compreensível. Na atualidade, considerando a era informacional ou a era digital, pode-se constatar de modo ainda mais claro que toda a experiência 23 A respeito, ver STRECK, Lenio. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito.11.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado p. 78. Ver, a respeito de uma lista interminável de princípios, e sua abordagem, que o autor chama de álibis teóricos.ibid., p.172,173,

79 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA humana depende da linguagem e da comunicação. Esse fato, unido à virada linguística do século XX, redime a retórica e a argumentação e recoloca sua importância de modo ainda mais acentuado. Ora, a linguagem é fenômeno típico da natureza humana, e a palavra logos era traduzida, na antiguidade, tanto por saber quanto por discurso, tal o vínculo entre o saber e o discurso, e o discurso e o ser humano. A importância da argumentação, para o direito, reside no fato de que diante de uma causa não se tem acesso a uma verdade absoluta, apenas a fatos, dados, pretensões. É necessário, pois, admitir o verossímil, e através de argumentos procurar encontrar e reconhecer o sentido diante de um texto legal que produza uma norma de múltiplos significados. Os intérpretes são históricos. Irão ler o texto e dialogar com ele a partir de seus limites e fragilidades linguísticas sendo ordinário reconhecer que a norma a ser aplicada ao caso estará longe de ser a palavra da lei. É necessário diferenciar enunciado de enunciação e esta não pode ser pensada a partir da maneira como os sujeitos falantes intervêm no ato comunicacional (WARAT, 1995, p. 82 e 84). Se apenas os sujeitos da fala forem privilegiados no ato comunicacional, ficarão de fora as referências ao quadro institucional, político e ideológico que produzem a enunciação. E os discursos só podem ser compreendidos dentro de uma teoria crítica da sociedade, pois as palavras carregam em si determinadas significações de acordo com o período histórico e o contexto social do qual emanam. Nesse sentido, a análise retórica, como aponta Warat (1995, p. 86), contribui para a redefinição dos objetos da linguística e da semiologia, mostrando a impossibilidade de estudar plenamente o fenômeno da significação fora dos discursos, justamente porque tenta teorizar sobre convenções reguladas pela lógica do razoável e não por uma lógica formal em sentido estrito. As teorias jurídicas constataram que os princípios da lógica formal eram insuficientes para a explicação do que se dá quando advogados, juristas e juízes voltam-se para a tarefa de criar, interpretar, aplicar e integrar o direito. A lógica formal não soluciona o problema jurídico. Ao enfatizar o raciocínio silogístico, a lógica formal atém-se à construção das premissas e à correção da conclusão obtida. Se o direito tivesse essa linguagem demonstrativa e não houvesse dúvidas a respeito de suas múltiplas 79

80 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto possibilidades, a hermenêutica não seria necessária. Um programa de computador poderia emitir as sentenças, sempre objetivas e sempre as mesmas em casos idênticos. A hermenêutica jurídica é essencial no direito, porque o ordenamento jurídico, por si só, não realiza a justiça. Do contrário, computadores poderiam recolher os dados dos casos concretos e aplicar as leis pertinentes. Porém, a natureza e a realidade humana não podem ser tratadas como números ou fórmulas. A hermenêutica jurídica é que aproxima o direito da justiça. Adiante os alunos do Curso de Direito poderão cursar a disciplina específica de Hermenêutica Jurídica, no qual aprofundarão seus conhecimentos. O componente axiológico é elemento indissociável e fundamental da adequação do fato à norma pelo julgador. Os aspectos ideológicos, psicológicos, culturais, entre outros, na sua bagagem, influenciam os seus raciocínios e as ponderações pelas quais o aplicador elege a melhor solução para o caso concreto. As doutrinas éticas fundamentais se desenvolveram em diferentes épocas e em sociedades, como resposta aos problemas sociais. Há uma vinculação entre os conceitos morais e a realidade humana. Cada doutrina, por estar sempre em processo de mudança, tem relação com outra. Deve-se, entretanto, atentar para a história das ideias, para os conteúdos fundamentais e para a ética na argumentação, uma vez que a falácia é também muitas vezes percebida e destruída por quem for debater em grandes decisões políticas, controvérsias filosóficas ou judiciais. O estudo da argumentação jurídica nos auxilia a dizer aquilo que realmente queremos dizer. Também aperfeiçoa o ser humano em sua condição comunicativa. Com isso, eleva o espírito do sujeito a partir de um novo domínio, o domínio da palavra e do modo de transmiti-la. É necessário, antes de tudo, situar-se dentro da Teoria do Direito para que se possa, com maior tranquilidade, movimentar-se em um determinado campo teórico. A análise da hermenêutica tradicional e da hermenêutica discursiva nos auxilia nisso. A compreensão de autores polêmicos e clássicos nos ajuda para que o intérprete construa seu marco teórico com base em uma das teorias. Essa percepção e o adequado uso da linguagem jurídica, por meio dos recursos da argumentação, são fundamentais a todos que dependem de uma comunicação não apenas eficaz, no intuito de vencer 80

81 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA um debate a qualquer custo, mas em especial, compreensível, que busca organizar os argumentos de modo a colocar a descoberto qual seria a melhor solução ou resposta para uma determinada situação jurídica. Magistrados, advogados e promotores somente podem sustentar suas posições e fazer as suas escolhas a partir dessa racionalidade permeada de valores, e a argumentação jurídica é que nos permite fazermos as escolhas mais adequadas em cada caso. O problema maior, que não se pode descuidar em qualquer análise dos termos de uma argumentação, situa-se no fato de que, em termos de argumentação jurídica, ou seja, em termos de contencioso jurídico, o que motiva os discursos e conduta das partes em geral não é a justiça de um julgamento, mas a busca por um resultado que lhes seja vantajoso. Eis mais um motivo para que se conheçam bem as teorias, e para que se possa evitar o desvio de um caminho argumentativo que efetivamente busque uma solução justa, ou mais justa para determinado caso concreto. De todo modo, mesmo que os participantes do discurso estejam mais interessados nas vantagens do que em um juízo correto e justo, é fato que buscam e têm necessidade de construção de argumentos em condições de compreensão e ideais, apresentando-se com um mínimo de razoabilidade. Nesse sentido, e para superar o paradigma da consciência, tanto quanto para não cair no decisionismo judicial, o estudo da Argumentação Jurídica deve atentar para o estágio de democracia do país, em que a Constituição deve ser respeitada, assim como as regras que ela impõe para sua alteração. Isso é a condição para a consolidação do que se pretende ser um Estado Democrático de Direito. É o mínimo diante da superação da hermenêutica clássica pela hermenêutica filosófica. Todo o resto são ismos que enfraquecem a democracia. Daí a importância do estudo das Teorias da Argumentação Jurídica com o olhar atento a tudo isso. Do contrário as técnicas serão outros ismos destinados a enfraquecer o constitucionalismo garantista e comprometido com a democracia, que deve ser antes reforçado. 81

82 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, ASENSI, Felipe Dutra. Curso Prático de Argumentação Jurídica. Rio de Janeiro: Eslevier, ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. 3. ed. Tradução de Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, AZEVEDO, Plauto Faraco de. Limites e justificação do poder do Estado. Petrópolis: Vozes, BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. Tradução de Izidoro Blikstein. 15. ed. São Paulo: Cultrix, BENETI, Sidnei Agostinho. Da conduta do juiz. 3. ed. São Paulo: Saraiva, BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico Lições de filosofia do direito. Compilação de Nello Morra. Tradução de Márcio Publiesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. Ícone: São Paulo, BOBBIO, Norberto. El problema del positivismo jurídico. Fontamara: Barcelona, CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Caloustre Gulbenkian, COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Cia das Letras, CUNHA, Marcelo Garcia da. Argumentação processual: como articular estrategicamente a palavra em juízo. Porto Alegre: Núria Fabris Editora,

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84 Angela Kretschmann - Ney Wiedemann Neto PERELMAN, Chaïm O império retórico: retórica e argumentação. Tradução de Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio do original L empire rhétorique. Porto: Asa, PERELMAN, Chaïm. Ética e direito. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, Lógica Jurídica: nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, Tradução de Verginia K. Pupi, do original Logique Juridique, de PERELMAN, Chaïm & OLBRACHTS-TYTEKA, Luci. Tratado da Argumentação: a nova retórica. Tradução de Maria Ermantina de Alemida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Epistemologia das ciências culturais. Porto Alegre: Verbo Jurídico, STRECK, Lenio Luiz. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Tradução de João Dell Anna. 32. ed., Civilização Brasileira: RJ, VIEHWEG, Theodor. Topica y jurisprudencia. Tradução de Luis Díez- Picazo Ponce de León. Madrid: Taurus, WARAT, Luis Alberto. Introdução Geral do Direito: interpretação da lei, temas para uma reformulação. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, O direito e sua linguagem. 2. versão, com colaboração de ROCHA, Leonel Severo. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian,

85 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO Guilherme de Oliveira Feldens 1 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO A análise Econômica do Direito Uma análise multidisciplinar do Direito Econômico: o pensamento de Amartya Sen, John Rawls e Robert Nozick A justiça distributiva em John Rawls Estado e Propriedade em Robert Nozick Desenvolvimento e Liberdade em Amartya Sen - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. INTRODUÇÃO A questão em torno da necessidade de estudar a relação entre Direito e Economia surgiu como consequência imediata da separação plena entre a economia e as questões morais ocorrida no século XIX. A supremacia da doutrina utilitarista no campo das análises sociais fez com que a economia se voltasse para os cálculos de maximização da 1 Doutor em Filosofia, Mestre em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, professor das disciplinas de Economia Aplicada ao Direito, Ciência Política e Sociologia Jurídica, do Cesuca - Faculdade Inedi. guilhermefeldens@cesuca.edu.br 85

86 Guilherme de Oliveira Feldens utilidade e se tornasse um campo do conhecimento distante da Ética e do Direito. Porém, basta um rápido estudo na tradição clássica para perceber que autores como Aristóteles apresentavam um caráter contrário a essa perspectiva moderna. Preocupado com a riqueza, o filósofo grego relaciona diretamente a economia com a ética e a política, abrindo perspectivas críticas interessantes de serem discutidas em sala de aula. A diferença entre essas perspectivas históricas permite levantar a necessidade de discutir a vinculação inerente entre o estudo das relações econômicas e o estudo da Ética e do Direito, bem como analisar correntes de pensamento que colocam a economia em primeiro plano quando da aplicação do Direito. O estudo dessas questões possibilita, principalmente para àqueles que estão dando os primeiros passos nesse campo, compreendam a necessidade de entender corretamente a relação entre Direito e Economia para que não haja a sobreposição de uma área sobre a outra, nem o total afastamento entre elas A análise Econômica do Direito O Direito econômico pode ser definido como o estudo do conjunto de normas que permitem ao Estado exercer todo o tipo de influência no comportamento dos agentes econômicos em um determinado país ou conjunto de países (AGUILLAR, 2012, p. 1). Esse conceito é capaz de deixar clara a importância da relação entre o Direito Econômico e o Direito Constitucional. Apesar de o Direito Econômico não se limitar ao estudo da Ordem Econômica Constitucional, pode-se afirmar com segurança que os principais aspectos a serem analisados nesse campo estão presentes na carta constitucional. A importância do estudo dos preceitos constitucionais nesse campo é justificada em dois eixos. Em primeiro lugar, serve para evidenciar a profunda mudança na concepção intervencionista do Estado presente nas Constituições anteriores, estabelecendo um regime mais liberal. Nesse sentido, a atual constituição definiu como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa (artigo 170 da Constituição Federal de 1988), bem como as finalidades de assegurar a todos uma existência digna conforme os ditames da justiça e garantir condições mínimas de subsistência. Por conseguinte, a Constituição assume a posição de que a economia não é nenhum valor último, 86

87 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO mas apenas um valor de serviço, capaz de atingir resultados melhores quando associada a fins morais e humanitários (SEN, 1999, p. 25). Por outro lado, impõe a necessidade de se evitar que as questões relativas à Ordem Econômica e ao Direito Econômico sejam invadidas por correntes de pensamento que priorizam os aspectos econômicos aos aspectos jurídicos quando da aplicação do Direito. Tais correntes, com forte apelo utilitarista, defendem que o Direito siga apenas os critérios utilitaristas de conveniência social, pouco importando a justiça e os valores da comunidade política. A corrente de pensamento conhecida como Law and Economics, por exemplo, defende a maximização da riqueza social agregada como valor a ser perseguido pelo Direito 2. Essa visão reduz a jurisdição a uma regulação de mercado, na qual a decisão jurídica passa a se tornar uma questão de estratégia econômica. O Direito perde seu caráter autônomo, ficando sujeito à vontade dos detentores do poder econômico. Os termos constitucionais apresentam uma proposta contrária a correntes pós-positivistas que acabaram enfraquecendo completamente o Direito ao ampliar a atuação dos tribunais por meio do uso de conceitos econômicos 3. Os princípios da Ordem Econômica institucionalizados na Constituição, expressando os valores fundamentais da comunidade econômica, servem como critérios de legitimidade para a atividade dos tribunais 4. Desse modo, a Constituição visa garantir efeitos sociais positivos, definindo que o crescimento econômico analisado 2 Na visão dessa teoria, Posner afirma que os juízes tem um duplo papel: interpretar as negociações de grupos de interesses incorporadas à legislação e oferecer o serviço público básico da solução legítima de litígios. Eles desempenham esse último papel não apenas ao decidirem casos de acordo com normas preexistentes, mas também ao elaborarem essas normas [...] O Direito que eles criam revela, de acordo com a teoria econômica que estou expondo, uma coerência material extraordinária. É como se os juízes quisessem adotar as regras, os procedimentos e os resultados de casos que contribuíssem para aumentar a riqueza da sociedade. POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martin Fontes, p Isso fica claro na afirmação de Lorenzetti, o diálogo e o intercâmbio entre as ciências é fecundo. É pena que o Direito pretenda a autorreferência ante um mundo tão complexo. Muitos autores advertem para a intenção de ignorar leis de outras ciências, como se o Direito pudesse funcionar de modo autônomo. Trata-se de uma pretensão vã: escapa do nosso poder ordenar que a maré do mar se detenha, tampouco podemos derrogar as leis científicas. LORENZETTI, p Entre alguns princípios constitucionais da ordem econômica, pode-se citar: o Princípio da soberania nacional, da função social da propriedade privada, da Livre concorrência e defesa do consumidor e da defesa no meio ambiente. Além disso, há alguns princípios fins, como a busca pela existência digna para todos, a redução de desigualdades regionais e a busca do pleno emprego. 87

88 Guilherme de Oliveira Feldens isoladamente não garante êxito econômico, nem implica automaticamente uma adequada distribuição de riquezas. Sem tais diretrizes jurídicas, com a prevalência dos objetivos econômicos, o mercado não é capaz de garantir as melhores consequências sociais Uma análise multidisciplinar do Direito Econômico: o pensamento de Amartya Sen, John Rawls e Robert Nozick. Conforme exposto anteriormente, a Constituição Federal nega a Supremacia do valor econômico em si mesmo. Não repudia valores considerados fundamentais para o desenvolvimento humano. Não abraça preceitos econômicos, na linha de Bernard Mandeville, segundo os quais o egoísmo é ético e a pessoa humana, tendo seus direitos e capacidades negados, é considerada apenas pela possibilidade de comprar (consumidor) e vender (produtor). Essa posição constitucional pode ser estudada de forma comparativa com o pensamento de autores contemporâneos que procuram focar suas discussões jurídicas, filosóficas e econômicas diretamente nas consequências que o desenvolvimento econômico pode gerar na vida das pessoas. Amartya Sen (2009, p. 259), por exemplo, aponta essa perspectiva na modificação dos avaliadores econômicos utilizados pelos analistas sociais e econômicos. Enquanto que os critérios econômicos de progresso se concentravam, até pouco tempo atrás, unicamente em estatísticas ligadas a objetos inanimados de conveniência, hoje já se percebe um reconhecimento crescente favorável à utilização direta de indicadores voltados às questões de qualidade de vida (SEN, 2009, p. 260). E essa inclusão de questões ligadas à valorização humana nos indicativos econômicos é um processo ligado diretamente ao pensamento de autores que contribuíram para a retomada de ideais morais no campo econômico A justiça distributiva em John Rawls John Rawls pode ser considerado o marco de retomada das preocupações voltadas aos problemas da distribuição de bens e riquezas. Sua teoria da justiça como equidade, construída com base em um complexo pensamento que envolve preceitos filosóficos, políticos, econômicos e jurídicos, tem como conteúdo básico dois princípios de justiça, esco- 88

89 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO lhidos de maneira unânime, que devem servir de regra para todos os acordos ulteriores, especificando as formas da cooperação social, além de fixar os direitos e os deveres de base e determinar a repartição das vantagens sociais. Para Rawls, a estrutura básica da sociedade é constituída por suas principais instituições políticas, econômicas e sociais. A importância de escolher princípios de justiça para regulá-las reside no fato de que são elas que definem o modo pelo qual serão distribuídos direitos, deveres e vantagens entre os cidadãos. Assim, para que tal regramento funcione justamente é necessário que cada cidadão conheça as instituições básicas de sua sociedade, para que saiba o que elas exigem e, principalmente, o que pode exigir delas; e tenha certeza de que os outros cidadãos também têm esse conhecimento para respeitar o acordo atingido na posição original. Os princípios, dessa forma, assumem o papel da justiça, fornecendo uma atribuição de direitos e deveres fundamentais e determinando a divisão de vantagens da cooperação social (RAWLS, 1999, p. 54). Os princípios de justiça são, primeiro, o princípio da liberdade igual para todos e, segundo, o (a) princípio da igualdade de oportunidades e (b) princípio da diferença. Esses princípios têm como bases a prioridade absoluta da liberdade e a maximização das expectativas dos menos favorecidos. Em sua primeira formulação soam da seguinte maneira (RAWLS, 2008, p. 60): Primeiro Princípio: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdade para as outras. Segundo Princípio: as desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável; (b) vinculas a posições e cargos acessíveis a todos. Posteriormente, Rawls (1996, p. 6) chegou à formulação definitiva dos dois princípios, que é a seguinte: 1. Cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com um esquema semelhante de liberdade para todos; 89

90 Guilherme de Oliveira Feldens 2. As desigualdades sociais e econômicas têm de satisfazer duas condições: (a) primeira, relacionar-se com postos e posições abertos para todos em condições de plena equidade e de igualdade de oportunidades; e (b) segunda, redundar no maior benefício dos membros menos privilegiados da sociedade (princípio de diferença. Assim, uma sociedade justa, para Rawls, é aquela a cuja estrutura básica se aplicam os princípios de justiça, pois a aplicação deles formaria um liberalismo igualitário, garantindo as liberdades civis e políticas e limitando as desigualdades. Por essas definições percebe-se que o autor enxerga na sociedade dois problemas fundamentais, um tendo relação às liberdades básicas iguais dos indivíduos e o outro com relação às desigualdades econômicas e sociais. Para cada um deles formula um princípio de justiça. Assim, conjugando a igualdade com a liberdade, Rawls procura resguardar conceitos éticos esquecidos pelas teorias modernas 5, protegendo as liberdades básicas fundamentais e propondo uma teoria que garanta melhorias sociais para todos, pois em seu pensamento mantém-se sempre presente a ideia de distribuição justa. Segundo Rawls, a concepção de justiça baseada nesses princípios têm a vantagem de assegurar os direitos básicos dos cidadãos e de protegê-los contra as piores eventualidades, evitando que tenham de concordar com uma perda de liberdade por um período indeterminado de tempo para que outros gozem de certos benefícios (RAWLSs, 1999, p. 176). Para alguns autores (NAGEL, 2000, p. 69; FREEMAN, 2000, p. 15), os dois princípios de justiça de Rawls podem ser vistos como uma tentativa de integração da crítica socialista na teoria liberal : o primeiro princípio, assegurando as liberdades liberais básicas; enquanto que o segundo princípio de justiça, devido ao fato de justificar as desigualdades apenas no caso de benefícios aos cidadãos menos favorecidos e de defender uma igualdade equitativa de oportunidades, faz com que a sociedade adote esquemas sociais compensatórios, a fim de evitar grandes desigualdades, dando uma nova perspectiva à teoria liberal. 5 Para Nedel talvez seja esta a sua contribuição mais importante para a filosofia moral e política da atualidade, direcionada principalmente às sociedades industriais avançadas. É notável seu esforço para conciliar ambas as dimensões: a da liberdade, conceito forte do pensamento político de Locke, e a da igualdade democrática, palavra chave da concepção de Rousseau, que encontram eco e síntese na filosofia prática de Kant. Por esta razão, Rawls invoca reiteradamente a autoridade dos três mencionados filósofos. NEDEL, José. A teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: EDIPUCRS, p

91 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO Quanto ao primeiro princípio, opondo-se ao utilitarismo, Rawls afirma a prioridade da liberdade, colocando-a como valor fundamental, pois da maneira como são colocados os princípios de justiça, sua teoria faz com que a liberdade de maneira nenhuma seja sacrificada, porquanto os princípios obedecem a uma rigorosa ordem hierárquica, fazendo com que o primeiro tenha prioridade sobre o segundo, evitando a negociação da liberdade em troca de bem-estar econômico (RA- WLS, 1999, p. 43). A defesa da liberdade aparece como a base de toda a justiça, sendo de prioridade absoluta para os participantes do acordo original, que a colocam no primeiro princípio, representando um verdadeiro imperativo categórico da filosofia política rawlsiana e significando a prioridade total de objetos não-econômicos frente a objetos econômicos 6. Isso significa que as violações das liberdades iguais, protegidas pelo primeiro princípio, não podem ser justificadas nem compensadas por maiores vantagens sociais, sendo unicamente permitida a limitação de alguma liberdade quando há a necessidade de proteger as demais. O primeiro princípio de justiça significa também a aplicação igualitária a todos das regras que definem as liberdades básicas, permitindo a mais abrangente liberdade compatível com uma igual liberdade para todos (RAWLS, 1999, p. 63). Quanto ao segundo princípio, Rawls tentou formular uma teoria que, mesmo mantendo-se dentro da tradição liberal, fosse além das propostas e políticas de igualdade da época. É o princípio que afirma que as desigualdades econômicas e sociais serão justas se resultarem em benefício aos membros menos favorecidos da sociedade 7. Nesse princí- 6 Segundo Hoffe como ainda veremos, direitos e liberdades, por exemplo, à integridade de corpo e vida ou à liberdade de religião não são construídos em comum, mas são sobretudo protegidos e recusados reciprocamente. Eles não são os resultados da cooperação social, mas reconhecimento recíproco. Além disso não são escassos, ao menos não no sentido de bens econômicos. Enquanto na renda, num bem básico do segundo princípio de justiça, aquilo que um recebe disso o outro é privado, o direito ao corpo e à vida tira dos outros o direito de me matar ou ferir [...]. No que se refere a seus dois princípios de justiça, Rawls defende uma prevalência ética do primeiro princípio (direitos e liberdades) sobre o segundo princípio (chances, rendimento e bem-estar). Com isto, reconhece ele a (absoluta) prioridade dos objetos não-econômicos frente aos econômicos, com o que ele mais uma vez relativiza, nas condições de aplicabilidade, a cooperação condicionada por uma escassez de bens. HoFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do estado. Petrópolis, RJ: Vozes, 1991, p Segundo Rawls, nessa primeira abordagem, o segundo princípio se aplica à distribuição de renda e riqueza e ao escopo das organizações que fazem uso de diferenças de autoridade e de responsabilidade. Apesar de a distribuição de riqueza e renda não precisar ser igual, ela deve ser 91

92 Guilherme de Oliveira Feldens pio, Rawls procura encontrar um meio-termo no qual as desigualdades socioeconômicas sejam permitidas, desde que haja um compromisso dos mais favorecidos em relação aos menos favorecidos, ou seja, que as melhores condições dos primeiros ocasione também a melhoria da situação dos que enfrentam maiores desvantagens sociais, evitando a desigualdade generalizada, bem como a divisão estritamente igualitária 8. Tal princípio tem o fim de proporcionar verdadeira igualdade de oportunidades, fazendo com que mais atenção seja dada àqueles com menos capacidades ou em situação social menos favorável, distanciando-se do utilitarismo e da igualdade estritamente liberal; essa última baseada na igualdade formal de oportunidades e na ideia de mérito. Assim, quando conjugado o princípio da igualdade equitativa de oportunidades com o princípio da diferença, atingir-se-á aquilo que o autor denomina de igualdade democrática. Rawls ( 1999, p. 75) observa: Chega-se à igualdade democrática por meio da combinação do princípio da igualdade equitativa de oportunidades com o princípio da diferença. Este último elimina a indeterminação do princípio da eficiência elegendo uma posição particular a partir da qual as desigualdades econômicas e sociais da estrutura básica devem ser julgadas. Supondo-se a estrutura de instituições exigidas pela liberdade igual e pela igualdade equitativa de oportunidades, as maiores expectativas daqueles em melhor situação são justas se, e somente se, funcionam como parte de um esquema que melhore as expectativas dos membros menos favorecidos da sociedade. A ideia intuitiva é de que a ordem social não deve estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhores condições a não ser que, fazendo isso, traga também vantagens para os menos afortunados. vantajosa para todos e, ao mesmo tempo, as posições de autoridade e responsabilidade devem ser acessíveis a todos. Aplicamos o segundo princípio mantendo as posições abertas, e depois, dentro desse limite, organizando as desigualdades econômicas e sociais de modo que todos se beneficiem. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 65. Id. A Theory of Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, p Para Rawls os menos favorecidos são definidos, grosso modo, como a sobreposição (overlap) entre aqueles que são os menos favorecidos por cada um dos três modos de contingências. Assim, esse grupo inclui pessoas cujas origens de família e classe são mais desvantajosas que outras, cujos dotes naturais lhes permitiram ser menos sucedidos e cuja sina e sorte têm sido relativamente menos favoráveis, tudo isso dentro de um alcance normal e com as medidas relevantes embasadas nos bens primários sociais. Id. Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003.p

93 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO Esse princípio não estipula igualdade estrita, homogênea, uma vez que a desigualdade de que trata é, por um lado, necessária e inevitável. O filósofo norte-americano opõe-se ao igualitarismo, que não permite à sociedade satisfazer certos requisitos essenciais de organização, nem tirar vantagem de considerações de eficiência. Assim, defende uma igualdade na diferença, contrapondo-se também às interpretações da igualdade como sistema de liberdades naturais e a igualdade liberal de oportunidades, as quais, segundo ele, seriam moralmente arbitrárias. No entender de Rawls, certas desigualdades são úteis, já que concedem incentivos a determinadas pessoas para que realizem certas atividades importantes para a organização social. Essas desigualdades se justificam, ao melhorar a posição do grupo em pior situação, quando sem elas tal grupo permaneceria em estado ainda pior. Assim, talentos naturais superiores podem ser incentivados, desde que o investimento feito com eles reverta em vantagens para os desprivilegiados (NEDEL, 2000, p. 67). O filósofo americano pretende demonstrar, com isso, que a situação das pessoas deve depender única e exclusivamente das suas liberdades de escolha e não das circunstâncias sociais ou naturais nas quais se encontram. Rawls é contra o sistema de liberdade natural, é mais próximo da visão de Nozick, por este considerar que uma sociedade justa será aquela que combinar uma economia competitiva de mercado com uma igualdade formal de oportunidades. As únicas instituições necessárias, além das de mercado, são aquelas que objetivam garantir a todos os mesmos direitos legais de acesso às posições sociais privilegiadas. Essa concepção seria, então, conforme o exposto, amplamente influenciada pelas circunstâncias naturais e sociais, sendo arbitrária de um ponto de vista moral. 9 9 Segundo Rawls no sistema de liberdade natural, a distribuição inicial é regulada pela organização implícita na concepção de carreiras abertas a talentos. Essa organização pressupõe uma base de liberdade igual (especificada pelo primeiro princípio) e uma economia de mercado livre. Ela exige uma igualdade formal de oportunidades, no sentido de que todos têm pelo menos os mesmos direitos legais de acesso a todas as posições sociais privilegiadas. Mas como não há esforço algum para preservar uma igualdade, ou similaridade, de condições sociais, a não ser na medida em que isso seja necessário para preservar as instituições básicas indispensáveis, a distribuição inicial de ativos para cada período de tempo é fortemente influenciada pelas contingências naturais e sociais.[...]. O que chamarei de interpretação liberal tenta corrigir isso acrescentando à exigência de carreiras abertas a talentos a condição adicional de uma eqüitativa igualdade. A idéia aqui é que as posições não devem estar abertas apenas de um modo formal, mas que todos devem ter uma oportunidade eqüitativa de atingi-las. À primeira vista, não fica claro o que isto significa, mas 93

94 Guilherme de Oliveira Feldens O princípio liberal de igualdade de oportunidades, diferentemente do citado acima, busca estabelecer as condições para uma meritocracia equitativa, assegurando um ponto de partida igual para aqueles que têm capacidade igual. Assim, as instituições devem tentar neutralizar as contingências que influenciam as perspectivas das pessoas (VITA, 2000, p. 101). Entretanto, essa concepção também é arbitrária moralmente, pois não garante plena condição de igualdade, permitindo as diferenças de habilidades e talentos, restringindo apenas os fatores sociais. Rawls, por meio da igualdade democrática, procura justamente dar um passo a mais em relação à concepção liberal de igualdade de oportunidades. Segundo ele, para atingir-se um estado de cooperação voluntária de todos, é necessária uma concepção de justiça que impeça que circunstâncias de caráter natural e social sejam usadas sem qualquer regulação na obtenção de vantagens econômicas (RAWLS, 1999, p. 15). Em todos os setores da sociedade deve haver iguais perspectivas de realização para todos os que são dotados de talentos naturais semelhantes, independentemente de seu lugar inicial no sistema social. As expectativas dos cidadãos com as mesmas habilidades não devem ser afetadas por sua classe social (RAWLS,, 1999, p. 73). Assim sendo, segundo Rawls, a distribuição de talentos naturais não oferece um fundamento aceitável para a distribuição de quinhões distributivos e deve ser vista como arbitrária de um ponto de vista moral. Porém, o princípio da diferença não supõe a eliminação das contingências naturais e sociais, mas dentro do possível, tenta neutralizar seus efeitos por meio das instituições. Deste modo se manifesta o filósofo (RAWLS, 2008, p. 100): Desigualdades imerecidas exigem reparação; e como desigualdades de nascimento e de dotes naturais são imerecidas, elas devem ser de alguma forma compensadas. Assim, o princípio determina que a fim de tratar as pessoas igualitariamente, de proporcionar uma genuína igualdade de oportunidades, a sociedade deve dar mais atenção àqueles com menos dotes inatos e aos oriundos de posições sociais menos favoráveis. A ideia é de reparar o desvio das contingências na direção da igualdade. podemos dizer que aqueles com habilidades e talentos semelhantes devem ter chances semelhantes na vida. Id. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, p ; Id. A Theory of Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, p. 73., 94

95 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO De acordo com Rawls, ninguém deve se beneficiar de forma exclusiva dos seus talentos naturais, mas não é justo impedir tais benefícios se eles trazem vantagens para aqueles com menos condições. Quanto a esse aspecto, portanto, vem complementar o princípio da diferença (segunda parte do segundo princípio) na busca da igualdade democrática. O princípio destina-se a presidir a distribuição dos recursos econômicos na sociedade, induzindo a cooperação voluntária de todos e justificando a desigualdade apenas quando for mais vantajosa para os que estão em piores condições; maximizando, assim, as expectativas dos menos favorecidos. 10 O princípio da diferença preside a distribuição dos bens sociais primários, tais como poder, status, riqueza, vantagens sociais, deveres, encargos, induzindo a cooperação voluntária de todos. Pela estratégia maximin, procura-se maximizar o mínimo 11. Essa concepção nos leva a escolher, entre uma gama de situações possíveis, aquela em que os menos favorecidos, que têm menos bens sociais primários, tenham maiores benefícios na distribuição (VITA, 2000, p. 121). Dessa forma, para Rawls não se definirá o grau de justiça social pelos mais aquinhoados, mas pela justa distribuição de vantagens e benefícios por meio de instituições justas. 10 Rawls explica que o segundo princípio insiste que cada pessoa se beneficie das desigualdades permissíveis na estrutura básica. Isso significa que cada homem representativo definido por essa estrutura, quando a observa como um empreendimento em curso, deve achar razoável preferir as suas perspectivas com desigualdade às suas perspectivas sem ela. Não se permite que diferenças de renda ou em posições de autoridade e responsabilidade sejam justificadas pela alegação de que as desvantagens de uns em uma posição são compensadas pelas maiores vantagens de outros em posições diferentes. Muito menos ainda podem infrações à liberdade ser contrabalançadas desse modo. Entretanto, é óbvio que há infinitas maneiras de todos poderem ter vantagens quando a organização inicial de igualdade é tomada como um ponto de referência.id.a Theory of Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, p. 64.; Id. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, p Segundo Rawls a regra maximin determina que classifiquemos as alternativas em vista de seu pior resultado possível: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado seja superior aos piores resultados das outras. Com certeza, as pessoas na posição original não supõem que a sua posição inicial na sociedade é decidida por um oponente malévolo. Como observo abaixo, elas não devem raciocinar baseando-se em falsas premissas. O véu de ignorância não viola essa ideia, uma vez que uma ausência de informação não é uma informação equivocada. Mas o fato de que os dois princípios da justiça seriam escolhidos se as partes fossem forçadas a se proteger contra uma tal contingência explica o sentido em que essa concepção é a solução maximin. Id. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, p. 165.; Id. A Theory of Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, p

96 Guilherme de Oliveira Feldens Segundo a teoria rawlsiana, é preferível uma estrutura institucional que garanta um quinhão maior de bens primários para alguns, garantindo-se vantagens aos menos favorecidos, a uma estruturação na qual uma igualdade estrita é assegurada à custa da redução das expectativas de todos (RAWLS, 1999, p. 75). Além do mais, o reconhecimento da regra do maximin garante o maior respeito entre os cidadãos, pois os menos privilegiados sabem que estão entre outros cidadãos que só aceitam uma estrutura institucional com base em princípios de justiça que garantem que as vantagens dos mais favorecidos só são aceitas, quando permitem a elevação da sua situação. Há, portanto, um senso comum, uma concepção de reciprocidade que evidencia que todos se beneficiam pela aplicação de tal princípio, pois, ao ser aceita a regra, os mais privilegiados mostram respeito por aqueles que estão em piores situações, aumentando também a autoestima desses e, consequentemente, aumentando a eficiência da cooperação social (RAWLS, 1999, p. 179) Estado e Propriedade em Robert Nozick Robert Nozick apresenta um contraponto bastante interessante de ser feito às discussões levantadas pela teoria distributiva de Rawls. Em uma perspectiva contrária ao apresentado até aqui, Nozick defende princípios libertários que afirmam direitos inalienáveis e abrangentes dos cidadãos capazes de originar apenas um Estado mínimo, limitado a fiscalizar o cumprimento dos contratos e proteger as pessoas contra o roubo e as fraudes (NOZICK, 1991, p. 25). Um Estado com poderes mais abrangentes do que isso viola os direitos dos indivíduos de não serem forçados a fazer o que não querem (SANDEL, 2012, p. 81). Assim, Nozick, um dos maiores críticos e interlocutores de Rawls, consagra toda a primeira parte do seu livro Anarquia, estado e utopia à análise do estado de natureza de Locke para demonstrar como se formaria um Estado mínimo, somente encarregado de garantir segurança e justiça por meio de um processo, de uma mão invisível, indicando existir um modo em que a forma mínima do Estado pode surgir sem coação. 12 A segunda parte da obra é uma crítica à ideia de Estado defen- 12 Segundo Nozick a fim de compreender exatamente o que são esses remédios do governo civil, temos que fazer mais do que repetir a lista de Locke de inconveniências do estado de natureza. Temos que levar em conta também que arranjos podem ser feitos no estado de natureza para lidar com esses inconvenientes evitá-los, torná-los menos prováveis ou menos graves nas ocasiões em 96

97 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO dida por Rawls, já que Nozick elimina qualquer campo de atuação para uma questão distributiva ao defender ao máximo o alcance do princípio da igual liberdade. Nozick legitima amplamente o direito de propriedade de cada um sobre o seu corpo e os direitos de propriedade sobre objetos externos. É justa qualquer repartição de bens primários resultantes de transações voluntárias efetuadas pelos indivíduos dentro dos limites dos seus direitos. O Estado não tem legitimidade para interferir nessas transações. Dessa forma, opõe-se a qualquer intervenção do Estado no funcionamento do mercado. O imposto, para Nozick, é o mais puro roubo e, por ser perpetrado pelo Estado, aumenta ainda mais seu caráter arbitrário (PARIJS, 1997, p. 100). Pode-se interpretar, a partir dessa perspectiva, que se alguém ganhou legitimamente o que tem, a distribuição que daí resulta é justa, independentemente de ser desigual; e que estabelecer qualquer padrão de distribuição é uma interferência arbitrária nas opções das pessoas. Assim, os princípios de justiça rawlsianos, ao definirem um padrão em relação a como tudo deve ser dividido, não levariam em conta que as pessoas têm totais direitos sobre as propriedades a que estão ligadas, não cabendo ao Estado intervir para assegurar a igualdade de oportunidades ou para melhorar a situação dos menos favorecidos. A única questão a ser observada é se a distribuição resultada foi produto de transações voluntárias 13. Para Nozick, não há nada de errado na desigualdade econômica (SANDEL, 2012, p. 82). Seria uma clara violação da liberdade humana, impor qualquer forma de tributação de rendimentos, visando a uma redistribuição de riquezas, pois isso seria o mesmo que legitimar o trabalho forçado e a escravidão. Essa postura explica os vários defeitos que que ocorrem. Só depois de todos os recursos do estado de natureza terem sido postos em uso, isto é, todos os arranjos e acordos voluntários que pessoas podem fazer ou negociar, agindo dentro de seus direitos, e só depois de serem estimados os efeitos dos mesmos, estaremos em condição de verificar que gravidade têm os inconvenientes que sobram, para serem remediados pelo Estado, e avaliar se o remédio é pior do que a doença. NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, p. 26, 13 O argumento geral ilustrado pelo exemplo Wilt Chamberlain, e o dos empresários em uma sociedade socialista, é que nenhum princípio de estado final ou distributivo padronizado de justiça pode ser continuamente implementado sem interferência contínua na vida das pessoas. Qualquer padrão preferido seria transformado pelo princípio em outro não favorecido, ou por pessoas que resolvessem agir de maneiras diferentes, como por exemplo pessoas trocando bens e serviços com outras pessoas ou dando a estas pessoas coisas a que elas tinham direito de acordo com o padrão distributivo preferido Ibid.,

98 Guilherme de Oliveira Feldens o princípio da diferença rawlsiano tem, segundo Nozick, já que o cerne moral da reivindicação libertária é a ideia de que a pessoa é a única proprietária de si mesma (NOZICK, 1991, p. 220). Dessa forma, uma política distributiva de riqueza, nos moldes daquela proposta por Rawls, apresentaria diversos problemas, pois (1 ) não resiste a testes em microssituações, em que colide com direitos, sendo portanto injusto; (2 ) cria dois conflitos de interesses, sendo um entre os que ocupam o topo da sociedade e os que estão embaixo, e outro entre os que se encontram no meio e os que ficam no fundo, pois, se os últimos desaparecessem, os do meio teriam sua situação melhorada; (3 ) pode implicar redistribuição de partes corporais, de órgãos, ou mesmo o encerramento da vida de pessoas; (4 ) contém termos na base dos quais os menos bem colocados cooperariam com os demais, sem deixar claro, entretanto, se estes também fariam voluntariamente o mesmo 14. Além do mais, apesar de os indivíduos não serem merecedores dos seus talentos naturais, seja isso arbitrário do ponto de vista moral ou não, eles são seus legítimos proprietários e têm direito aos frutos que derivarem deles, sem poder sofrer nenhuma violência por parte do Estado. 15 Segundo Rawls (2003, p. 72), as críticas de Nozick são inconsistentes, pois o princípio de diferença, ao se aplicar às instituições tidas como sistemas públicos de normas, torna suas exigências previsíveis a todos os cidadãos, respeitando expectativas legítimas e as titularidades adquiridas por eles 16. Assim, não se impõe graves restrições e interfe- 14 De acordo com Nozick o princípio da diferença contém termos na base dos quais os menos bem dotados cooperariam de boa vontade. Mas será um acordo justo, na base do qual os menos bem dotados poderiam esperar a cooperação voluntária dos demais? No tocante à existência de ganhos com a cooperação social, a situação é simétrica. Os mais bem dotados ganham ao cooperar com os menos dotados e estes ganham cooperando com os primeiros. Ainda assim o princípio de diferença não é neutro entre os mais e os menos bem dotados. Ibid.,p Nozick defende que os talentos e as habilidades da pessoa são um bem para a comunidade livre. Outros nela se beneficiam com sua presença e ficam em melhor situação porque vivem nela e não em outra ou em parte alguma. (De outra maneira não resolveriam ter negócios com ela.) A vida, no decorrer do tempo, não é um jogo de soma constante, no qual se maior capacidade ou esforço levam alguns a ganhar mais, isso signifique que outros têm que perder. Nas sociedades livres os talentos da pessoa beneficiam terceiros e não apenas ela.ibid p Segundo Nedel não é plausível a crítica de Nozick segundo a qual o princípio da diferença não é aplicável a microcasos, pois não sendo correta a distinção entre os planos macro e micro, para a validade de princípios, sequer teria sentido falar em micro e macroeconomia, por exemplo. Também não procederia a alegação de que o princípio não contempla a seguinte classe menos bem colocada, na hipótese de desaparecer a que estiver em pior situação, já que não é possível extrair do discurso de Rawls tal restrição. Igualmente é descabível a censura de o princípio não garantir 98

99 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO rências na vida dos indivíduos, já que os efeitos dessas normas são sempre previstos por eles em suas decisões: entendem que, ao participar da cooperação social, sua riqueza estará sujeita aos termos das instituições sociais (RAWLS, 2003, p. 73) Desenvolvimento e Liberdade em Amartya Sen Amartya Sen, por meio de uma abordagem ética que se afasta das teorias econômicas modernas, apresenta uma concepção de desenvolvimento que não se restringe apenas ao seu aspecto econômico, conferindo uma atenção especial a elementos como liberdade, autonomia e capacidade. Essa concepção não se restringe apenas à riqueza econômica das pessoas, já que os fatores econômicos são importantes não apenas isoladamente, mas também pelo papel que podem desempenhar ao dar às pessoas a oportunidade de enfrentar o mundo com coragem e liberdade (SEN, 2000, p. 82). Para o autor, não se pode falar em desenvolvimento sem considerar as liberdades substantivas como elementos constitutivos essenciais para haver a capacidade dos agentes em escolher oportunidades reais para promover seus objetivos 17. Sen (2011, p. 261) afirma expressamente que faz toda a diferença se olharmos apenas para os meios de vida, em vez de considerarmos diretamente as vidas que as pessoas conseguem levar. Nesse contexto, a expansão das liberdades humanas passa a ter a cooperação de todos, além de criar conflitos, pois isso poderia acontecer independentemente desse caso, como, aliás, ocorre com todas as tentativas de realizar a justiça no mundo. Por fim, não é plausível que a aplicação do princípio da diferença acarrete a redistribuição coativa de órgãos e até o encerramento de vidas humanas, pois se trata de coisas juridicamente indisponíveis, em que não incide o princípio.nedel, José. A teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: EDIPUCRS, p Amartya Sen afirma que a liberdade tem muitos aspectos. Ser livre para viver de maneira que se gostaria pode ser significativamente ajudado pela escolha dos outros, e seria um erro pensar em realizações somente em termos da escolha ativa por nós mesmos. A habilidade da pessoa de conseguir vários funcionamentos valiosos pode ser amplamente destacado pela ação pública e política, e essas expansões de capabilidades são importantes para a liberdade por essa razão. [...] Há um sentido real no qual a liberdade de viver como se gostaria é realçado pela política pública que transforma os meios epidemiológicos e sociais. Mas o fato de que a liberdade tenha essa característica não despreza a relevância da escolha ativa pela própria pessoa como um componente importante de viver livremente. É por causa da presença deste elemento (ao invés da ausência de outros), que o ato de escolher entre os elementos de uma capabilidade estabeleceu uma relevância clara na qualidade de vida e bem-estar de uma pessoa. SEN, Amartya. Igualdad de qué? In: MCMURRIN, Sterling M. (Org.). Libertad, igualdad y derecho: las conferencias Tanner sobre filosofía moral. Barcelona: Ariel, 1988,1993. p

100 Guilherme de Oliveira Feldens uma relação essencial com a ideia de desenvolvimento, de modo a ser meio e fim das atividades desenvolvimentistas. Essa ideia vai além da mera análise de variáveis relativas ao acumulo de riqueza e distribuição de renda, pois há uma relação direta com a melhoria na qualidade de vida das pessoas 18. É por essa razão que Sen (2007, p. 22) crítica os conceitos de igualdade que trabalham a partir de variáveis isoladas. Partir, por exemplo, da ideia de renda para definir critérios de igualdade seria uma simplificação temerária, pois se trata apenas de uma comparação superficial relacionada a apenas uma situação específica. Dessa maneira, qualquer análise econômica aplicada ao Direito terá de, necessariamente, enfrentar uma ideia mais complexa de igualdade, capaz de levar em conta aspectos da diversidade humana, sem se concentrar apenas em critérios rígidos. Cabe ao Estado possibilitar uma igualdade de capacidades por meio do reforço das liberdades individuais qualitativas (como o acesso à saúde e à educação), possibilitando uma verdadeira igualdade de oportunidades que vai além da métrica econômica. Isso é fundamental, já que o conjunto de bens possuídos diz muito pouco sobre o tipo de vida que cada pessoa pode levar (SEN, 2000, p. 101). Em outras palavras, a renda real pode ser um indicador extremamente insatisfatório em relação ao bem-estar e a qualidade de vida das pessoas. Nesse sentido, a abordagem da capacidade se concentra na vida humana e não em rendas ou mercadorias que uma pessoa pode possuir (SEN, 2011, p. 267). Afasta-se, portanto, dos critérios da análise econômica que consideram tais fatores como principal indicador de sucesso humano. Amartya Sen crítica o princípio da diferença de Rawls, fazendo duas objeções interligadas aos bens primários. A primeira delas é de que a métrica dos bens primários é demasiado inflexível ao ignorar variações interindividuais que fazem com que seja mais difícil para al- 18 Segundo Sen a natureza das vidas que as pessoas podem levar tem sido objeto de atenção dos analistas sociais ao longo da história. Mesmo que os mais utilizados critérios econômicos do progresso, refletidos em uma massa de estatísticas disponíveis, tendam a se concentrar especificamente no melhoramento de objetos inanimados de convivência (por exemplo, no produto nacional bruto, PNB, e o produto interno bruto, PIB, que têm sido o foco de uma miríade de estudos econômicos do progresso), essa concentração poderia ser justificada tanto quanto isso fosse possível em última instância apenas através do que esses objetos produzem nas vidas humanas que eles podem direta ou indiretamente influenciar. Há um reconhecimento crescente favorável à utilização direta de indicadores da qualidade de vida, do bem-estar e das liberdades que as vidas humanas podem trazer consigo. Ibid., p

101 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO guns converter bens primários em capacidades básicas (SEN, 1988, p. 152). As necessidades dos membros da sociedade são muito diferentes e fazem com que os princípios de justiça, ao apresentar um índice de bens primários, sejam muito inflexíveis para produzir uma justiça equitativa. Assim, garantir um quinhão equitativo de bens primários para todos não significa que esses todos estarão igualmente capacitados em colocá-los a serviço de seus fins. Portanto, a preocupação igualitária de Rawls fica localizada em um espaço avaliativo errado, pois, para Sen, não é correto se preocupar com a exata divisão bens, mas com o que as pessoas são capazes de fazer com esses bens (GARGAELLA, 2008, p. 74). Portanto, o esquema rawlsiano dos bens primários daria pouca importância à diversidade humana. Segundo Sen, somente se as pessoas fossem fundamentalmente iguais, tal índice poderia ser um bom método para julgar as vantagens de cada um. Mas como a realidade não confirma o proposto pelo esquema, ele acaba por não levar em conta diferenças muito reais, conduzindo a uma moralidade parcialmente cega. Rawls apresentou uma réplica à crítica de Sen relativa à inflexibilidade dos bens primários, alegando que quinhões equitativos de bens primários são suficientes para que pessoas cujas constituições física e mental estão dentro de um leque de variação normal possam desenvolver as duas capacidades morais de membros cooperativos da sociedade. A exposição dos bens primários não abstrai, mas leva em consideração as capacidades básicas, particularmente as capacidades dos cidadãos como pessoas livres e iguais em virtude de suas duas faculdades morais (RAWLS, 2003, p. 239). Assim, a perspectiva rawlsiana também levaria em conta capacidades e necessidades individuais, porém, as de tipo padrão de cidadãos que cumpram sua parte em um esquema de cooperação social bem-ordenado 19. A função dos bens primários fica 19 Conforme Vita a alternativa consistiria em emendar a métrica rawlsiana de forma que ela acomodasse mais diretamente os dois contra-exemplos de Sen. Isto pode ser feito de modo a não trair o espírito da proposta de Rawls, se recordarmos que o mais importante insight moral que está por trás da distribuição equitativa de bens primários é a ideia de capacitar as pessoas para serem membros cooperativos de um arranjo social bem-ordenado ao longo da vida. Se este é o propósito ao comparar quinhões distributivos com base em bens primários, podemos dizer que ninguém deveria cair abaixo de um nível mínimo de capacidade de funcionar necessário para que uma pessoa possa ser, como quer Rawls, um membro plenamente cooperativo da sociedade. O enfoque normativo de Sen parece especialmente apropriado para especificar esse patamar mínimo. Isso pode ser feito por referência a um pequeno número de functionings básicas acesso à nutrição adequada, nível de escolarização, longevidade que constituem um complexo de capacidade 101

102 Guilherme de Oliveira Feldens situada, portanto, dentro da estrutura da justiça como equidade, pois o índice desses bens é formulado levando-se em conta a necessidade de os cidadãos se manterem livres e iguais e em plena cooperação com a sociedade. Porém, o importante é destacar que o pensamento dos autores pode contribuir de maneira fundamental na relação entre Direito e Economia. Sen, por exemplo, destaca em todos os seus argumentos a necessidade de se analisar o desenvolvimento com um processo de expansão das liberdades substantivas das pessoas, incentivando a criação, por parte do Direito, de mecanismos que reduzam a privação da capacidade das pessoas 20. Sua análise ética econômica se relaciona diretamente com valores jurídicos positivados na Constituição, como, por exemplo, os direitos humanos, o respeito às minorias e a redução das desigualdades. O crescimento econômico, portanto, deve estar intimamente ligado ao desenvolvimento humano. Essas ideias do autor podem ser encontradas disseminadas no texto da Constituição Federal de 1988, principalmente no capítulo referente à Ordem Econômica, pois essa ideia de desenvolvimento humano perpassa todo o texto constitucional, desde o preâmbulo, passando pelos direitos e garantias fundamentais individuais e pelos direitos sociais, chegando até a Ordem Econômica e a Ordem Social. Esse quadro reforça a necessidade de um estudo multidisciplinar da ideia de desenvolvimento prevista na Constituição, pois ela não se restringe apenas aos elementos econômicos, atinge também questões fundamentais como a liberdade, os direitos humanos, a defesa do meio ambiente 21. A defesa de tal perspecticlaramente identificável e comparável. VITA, Álvaro de. Justiça distributiva: a crítica de Sen a Rawls. Dados. São Paulo, v. 43, n. 3, p , mar. 1999, p Conforme destaca Sen o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. A despeito do aumento sem precedentes da opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de pessoas talvez até mesmo a maioria. SEN,op. cit.,p Amartya Sen reforça a ideia de desenvolvimento sustentável presente na Constituição, afirmando que é difícil pensar que qualquer processo de desenvolvimento substancial possa prescindir do uso muito amplo de mercados, mas isso não exclui o papel do custeio social, da regulamentação pública ou da boa condução dos negócios do Estado quando eles podem enriquecer - ao invés de empobrecer a vida humana. [...] A privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade econômica. Ibid., p

103 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO va passa, inclusive. pela própria questão fundamental relativa à intervenção do Estado na economia, já que a indução positiva, por exemplo, pode incentivar comportamentos benéficos ao bem-estar geral. As ideias propostas por Amartya Sen reforçam a necessidade de se interpretar os valores constitucionais como um todo, impedindo uma análise da Constituição em tiras, já que a preocupação com a qualidade de vida das pessoas perpassa todos os valores constitucionais. Nesse sentido, por exemplo, o princípio constitucional econômico da defesa do meio ambiente (previsto no artigo 170 da Constituição Federal) deve ser analisado conjuntamente com todas as garantias presentes na carta constitucional e com as normativas presentes no artigo 225 da Constituição Federal. Assim, a questão do desenvolvimento sustentável deve ser interpretada colocando no primeiro plano a preocupação com o impacto que o meio ambiente provoca sobre as vidas humanas (SEN, 2011, p. 282). Não se trata apenas de uma questão de preservação passiva, mas também de uma busca ativa capaz de promover agentes econômicos comprometidos com atividades benéficas para o meio ambiente (SEN, 2011, p. 283) CONSIDERAÇÕES FINAIS A ideia central desse texto foi promover a defesa de um estudo multidisciplinar capaz de realmente conjugar uma relação essencial entre Economia, Direito e Ética. Ao contrário de diversas correntes que, ao invés de propor tal estudo, acabam na verdade retirando a autonomia do Direito, sujeitando-o a interesses econômicos, a perspectiva apresentada visa traçar alguns pensamentos considerados essenciais para a real construção de um quadro que venha a reforçar os preceitos constitucionais relativos à Ordem Econômica. A abordagem teórica proposta por meio das ideias de alguns autores que reforçam a necessidade de relacionar preceitos morais, econômicos e jurídicos, servem como fio condutor para que o Direito não sofra uma influência deformante dos interesses e das necessidades particulares. Além disso, ela contribui para a necessidade de se buscar uma sociedade justa, sem que seja rigorosamente igualitária, mas que, por outro lado, também não deixe as desigualdades ao jogo livre do mercado. Apesar das críticas que se possam ser levantadas, não se pode deixar de louvar, ainda mais quando levado em conta o imenso número de 103

104 Guilherme de Oliveira Feldens excluídos gerados pelas sociedades atuais, a forte preocupação de tais pensadores em fundamentar uma teoria que defenda a priorização da expectativa dos menos privilegiados na distribuição dos bens primários de natureza social e econômica (SEN e RAWLS) e que se preocupe firmemente com a liberdade humana (NOZICK). A relação dessas questões com os princípios constitucionais da Ordem Econômica é evidente, já que o critério de justiça não é estipulado em relação aos mais privilegiados, proibindo que determinados segmentos da população estejam condenados a uma vida indigna em nome de algum objetivo social. Assim, uma organização social que não se posiciona diante de desigualdades econômicas e sociais produzidas entre seus indivíduos é injusta. Isso possibilita tanto ao desenvolvimento de programas políticos quanto à utilização de mecanismos jurídicos, capazes de proporcionar maior bem-estar social, melhorando as condições de vida daqueles que se encontram em pior situação, legitimando, assim, a compensação das discriminações naturais e econômicas na busca pela formação de uma sociedade mais justa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUILLAR, Fernando Herren. Direito econômico: do direito nacional ao direito supranacional. São Paulo: Atlas, FREEMAN, Samuel (Org.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge, Mass.: Cambridge University Press, GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, HoFFE, Otfried. Justiça política: fundamentação de uma filosofia crítica do direito e do estado. Petrópolis, RJ: Vozes, LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da Decisão judicial: fundamnetos do direito. São Paulo: RT, NAGEL, Thomas. Rawls and liberalism. In: FREEMAN, Samuel (Org.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge, Mass.: Cambridge University Press, NEDEL, José. A teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre: EDIPUCRS,

105 3 ECONOMIA APLICADA AO DIREITO: UMA PERSPECTIVA MULTIDISCIPLINAR DO DIREITO ECONÔMICO NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Zahar, POSNER, Richard A. Problemas de filosofia do direito. São Paulo: Martin Fontes, RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge, Mass.: Harvard University Press, Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, Political Liberalism. New York: Columbia University Press, Justiça como eqüidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, SEN, Amartya. Igualdad de qué? In: MCMURRIN, Sterling M. (Org.). Libertad, igualdad y derecho: las conferencias Tanner sobre filosofía moral. Barcelona: Ariel, Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, Sobre ética e economía. São Paulo: Schwarcz, VITA, Álvaro de. A justiça igualitária e seus críticos. São Paulo: Editora UNESP, Justiça distributiva: a crítica de Sen a Rawls. Dados. São Paulo, v. 43, n. 3, p , mar

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107 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA Guilherme de Oliveira Feldens 1 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO Afinal, Sociologia do Direito ou Sociologia no Direito? Direito, Solidariedade e coesão social em Émile Durkheim O Estudo do Direito Vivo de Eugene Ehrlich Ideologia, Direito e violência - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. INTRODUÇÃO A importância da disciplina de sociologia jurídica na formação de um estudante e pesquisador do Direito está refletida na própria explicação do seu objeto de estudo. Afinal, é possível a existência de uma sociedade sem Direito? Como é possível compreender o Direito: Como 1 Doutor e Mestre em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professor da disciplina de Sociologia jurídica no curso de Direito da Faculdade INEDI - CESUCA. gulhermefeldens@cesuca.edu.br 107

108 Guilherme de Oliveira Feldens um fato social ou como um fator condicionante da realidade social? Cabe justamente à sociologia jurídica responder tais questões por meio da análise da relação necessária e inevitável entre norma jurídica e realidade social, pois a mesma sociedade que cria o Direito, deixa-se regular em seus aspectos políticos, econômicos e sociais por ele. O século XIX, então, dá origem a análises profundas e sistemáticas relativas ao Direito materializadas nas obras de grandes sociólogos europeus. Assim, autores como Emile Durkheim, Augusto Comte e Max Weber voltam seus estudos para o Direito e para as suas consequências diretas no controle social e no desenvolvimento moral dos cidadãos. Esse é o marco inicial para o surgimento de diversas linhas de pensamento que vão discutir e questionar a posição do Estado como único ente capaz de criar leis, bem como defender a existência de mais de um ordenamento jurídico em determinada sociedade. Tal perspectiva avança em muitos sentidos, a ponto de alguns autores negarem a própria existência do Direito como ciência autônoma, afirmando que ele apenas persegue fins práticos totalmente dependentes de determinado contexto social. O objetivo central do presente texto, portanto, é analisar a perspectiva teórica de alguns sociólogos para reforçar a importância da sociologia jurídica nos debates referentes às questões Constitucionais, Processuais e Criminais. Desse modo, será possível destacar a necessidade de se compreender a problemática relação entre norma jurídica e realidade social por meio das mudanças sociais e do papel do Direito diante do surgimento de novas tutelas emergentes do desenvolvimento cientifico, tecnológico e social Afinal, Sociologia do Direito ou Sociologia no Direito? A sociologia jurídica tem como objeto de estudo o fenômeno jurídico 2. Trata-se de uma disciplina que, por meio de uma análise empírica, investiga a relação entre o fenômeno jurídico e a realidade social (SABADEL, 2010, p. 52). Dentro dessa proposta, a investigação sobre o Direito em termos sociológicos pode ocorrer através da influência da 2 Sociologia Jurídica ou Sociologia do Direito é a disciplina científica que investiga, através de métodos e técnicas de pesquisa empírica (isto é, pesquisa baseada na observação controlada dos fatos), o fenômeno social jurídico em correlação com a realidade social. SOUTO, Cláudio, SOUTO, Solange. Sociologia do direito: uma visão substantiva. Porto Alegre: SAFE, p

109 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA sociologia em geral sobre seu campo de estudo (Sociologia no Direito), bem como a partir da formatação desse conhecimento dentro do campo jurídico, o que se convencionou chamar Sociologia do Direito. (CAR- NIO e GONZAGA, 2011, p. 132). A abordagem relativa à Sociologia no Direito parte de uma perspectiva interna em relação ao sistema jurídico (SABADELL 2010, p. 54). Nesse sentido, seus autores defendem que a sociologia jurídica deve interferir diretamente na elaboração e aplicação do direito 3. Essa ideia traz como consequência grandes polêmicas, principalmente, quanto aos aspectos referentes à aplicação do direito, já que, por exemplo, contesta os principais pontos construídos pelo positivismo jurídico de uma lado 4 e por outro nega a existência do Direito como uma ciência autônoma, pois sempre persistirá a necessidade de se utilizar métodos próprios das ciências sociais. Por outro lado, a Sociologia do Direito opta por adotar uma perspectiva externa, definindo-a como um ramo da Sociologia. Portanto, aqui o Direito tem garantido a sua posição de autonomia em relação às outras ciências humanas e sociais (CARNIO e GONZAGA, 2011, p. 133). Cabe ao sociólogo observar de uma perspectiva exterior, limitando a sua atenção ao estudo às questões referentes à norma jurídica. Em outras palavras, a sociologia jurídica não pode ter uma participação ativa dentro do direito (SABADELL, 2010, p. 61). Ela pode estudar e criticar o direito, mas não pode se tornar parte dele, pois da mesma forma que ocorre com áreas como a filosofia, a linguagem, a história e 3 Conforme Sabadell não há uma ciência jurídica autônoma porque o direito, ademais dos métodos tradicionais, também emprega ou deve empregar métodos próprios das ciências sociais. Trata-se de uma ruptura com o conceito kelseniano de que o direito é a norma e as relações entre as normas. Isto porque se aceita que os conceitos elaborados pela sociologia jurídica integrem a ciência jurídica. Como veremos, coloca-se em dúvida a suposta neutralidade do jurista. SABADELL, Ana Maria. Manual de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p Como afirma Sabadell por meio dessa linha de pensamento, entende-se que o magistrado sempre faz um juízo de valor e nunca aplica a lei de modo puro : nas suas decisões projeta valores pessoais, exprimindo a sua visão do mundo [...] Assim, se não existe a neutralidade e se o direito é uma forma de política, então por que a sociologia não deveria tentar persuadir o juiz a aplicar um direito mais justo, em sintonia com a realidade e as necessidades sociais? Por que a sociologia jurídica não poderia contribuir na humanização da sociedade? [...] Desta forma, a sociologia jurídica quer compartilhar o poder de influência que a dogmática do direito detém sobre o sistema jurídico. Ibid.,p

110 Guilherme de Oliveira Feldens a psicologia, ela não interessa nas questões relativas ao estudo da teoria geral do Direito 5. A separação total entre as duas abordagens, porém, não pode ser defendida plenamente, já que ambas envolvem aspectos bastante complexos, sendo impossível, inclusive, perceber uma unidade rígida entre os pensadores adeptos da mesma corrente. Atualmente, há tentativas de unificação entre essas perspectivas, insistindo-se no fato de que a sociologia jurídica tem necessariamente esses dois aspectos, o interno e o externo, cabendo ao sociólogo realizar uma análise externa daquilo que é considerado como Direito pela dogmática jurídica (SABADELL, 2010, p. 62). Para fins de conclusão, pode-se afirmar, de acordo com Carnio e Gonzaga (2011, p. 133) que A sociologia jurídica pode estudar e criticar o Direito, mas não pode ser integrante desta ciência, na realidade, sua tarefa consiste em ser um observador neutro do sistema jurídico. A par destas considerações entendemos que a definição sobre a sociologia do Direito e a sociologia no Direito possui uma preocupação didática [...] Diante disso, didaticamente, a sociologia no Direito seria a utilização de conceitos, elementos, métodos da sociologia no Direito [...] já a sociologia do Direito seria o material produzido a partir do próprio Direito a partir de seu aproveitamento dos conceitos sociológicos. Porém, deve-se discutir a relativa importância dessa divisão para fins práticos, cabendo apenas confirmar a impossibilidade de se pensar o Direito afastado de qualquer análise social 6. Não se pode assemelhar 5 Conforme Rocha, essa linha de pensamento é adequada a uma visão positivista da sociedade que agrada aos da velha guarda, educados num tempo em que a lei aparecia para os indivíduos como algo superior, distante e detentora de um poder de Estado que tem como função primordial criar a sociedade brasileira (e a própria identidade nacional). Em nome destes objetivos, em situações recentes da história brasileira, a lei e o Direito foram utilizados de forma autoritária para salvaguardar legalidade do Estado fundante da brasilidade. Juristas e doutrinadores formados em épocas assim tendem a manter, em muitos casos, esta postura, que vê no Direito um sacrossanto sistema imutável, único, cuja prioridade é garantir a ordem e progresso da sociedade. ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.p Segundo Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 120), ao Direito Moderno foi atribuída a tarefa de assegurar a ordem exigida pelo capitalismo, cujo desenvolvimento ocorrera num clima de caos social que era, em parte, obra sua. O Direito Moderno passou, assim, a constituir um racionalizador de segunda ordem da vida social, um substituto da cientifização da sociedade, o ersatz que mais se aproximava pelo menos no momento da plena cientifização da sociedade que só poderia ser fruto da própria ciência moderna. Para desempenhar esta função, o direito 110

111 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA o Direito com os códigos, sem qualquer relação com as possíveis perspectivas sociais e filosóficas necessárias para compreender a verdadeira função do sistema jurídico. Não se pode mais admitir a redução do Direito a meros conceitos positivados, no qual a correção decorre do acerto de uma operação lógica. A principal função do Estado não pode ser apenas o fornecimento de um padrão objetivo de conflitos em forma de lei, no qual se cristalizaria a justiça. Não cabe mais defender como ideal primordial a plena segurança jurídica por meio da previsibilidade na identificação do Direito, que acaba por ficar reduzido à imposição do poder dominante na sociedade 7. Portanto, o ponto mais importante em relação a essas perspectivas de se trabalhar a sociologia jurídica é questionar o caminho do positivismo jurídico, responsável pela criação de um sistema jurídico burocrático, no qual somente o Estado tem poder para promulgar as leis, não permitindo a introdução de valores estranhos ao sistema jurídico Direito, Solidariedade e coesão social em Émile Durkheim Durkheim pode ser considerado precursor imediato da sociologia jurídica. Suas principais obras fundamentaram a necessidade de se entender o Direito como um fenômeno social. É nas relações sociais que o Direito surge e se desenvolve. Durkheim impôs a necessidade de o sociólogo estudar a sociedade de forma objetiva, já que ela além de ser um organismo com vida própria, dependente dos fatos sociais, uma vez que a compreensão adequada dos comportamentos individuais só pode ser moderno teve de se submeter à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência moderna e tornar-se ele próprio científico. 7 Ao criticar esse quadro, Guerra Filho afirma que a ciência do Direito surge condicionada pela entronização da ideia de norma, a qual favorece um padrão universal de aparência do jurídico, com uma ciência jurídica legalista, portanto, sendo a lei a norma por excelência e as demais só se tornam também positivas quando ela admite. GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito aplicada ao processo civil e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, 2001.p Conforme Santos o aparecimento do positivismo na epistemologia da ciência moderna e o do positivismo jurídico no Direito e na dogmática jurídica podem se considerar, em ambos os casos, construções ideológicas destinadas a reduzir o progresso societal ao desenvolvimento capitalista, bem como imunizar a racionalidade contra a contaminação de qualquer irracionalidade não capitalista, quer ela fosse Deus, a religião, a tradição, a metafísica, ou a ética, ou ainda as utopias ou os ideais emancipatórios. SANTOS, op.cit., p

112 Guilherme de Oliveira Feldens extraída dessa análise. Ele entende o fato social como as imposições normativas, de qualquer espécie, impostas aos indivíduos pela sociedade 9. Por meio desse conceito de fato social, já é possível extrair alguns posicionamentos essenciais em sua teoria. Em primeiro lugar, Durkheim determina a sociedade como a origem de todas as normas e, em segundo lugar, considera as normas sociais realidades objetivas de fundamental importância para a pesquisa de um sociólogo (SABADELLl, 2010, p. 45). O Direito, portanto, recebe uma atenção especial do autor, já que, por meio de suas regras impõe às pessoas obrigações coercitivas capazes de garantir a coesão social 10. O primeiro ponto importante da obra de Durkheim é a divisão do trabalho social. Para o autor, a sociedade só existe a partir do momento em que o grupo humano divide as tarefas necessárias à sobrevivência de todos (ROCHA, 2009, p. 71). Assim, na necessidade de produzir bens fundamentais para a sua sobrevivência, os homens abandonam um estado de barbárie ( horda ), entrando na sociedade organizada (DUR- KHEIM, 1999, p. 18). Ao dividir as funções consideradas fundamentais ao grupo, os homens solidificam os laços de solidariedade entre eles, fortalecendo as instituições sociais. Segundo Durkheim (1999, p. 20) Somos levados, assim, a considerar a divisão do trabalho sob um novo aspecto. Neste caso, de fato, os serviços econômicos que ela pode prestar são pouca coisa em comparação com o efeito moral que ela produz, e sua verdadeira função é criar entre duas ou várias pessoas um sentimento de solidariedade. Como quer que esse resultado seja obtido, é ela que suscita essas sociedades de amigos, e ela as marca com seu cunho. 9 Para Durkheim, fato social é uma categoria sociológica capaz de dar objetividade ao comportamento humano em grupo. Só seria válido para a sociologia estudar esses comportamentos se os mesmos fossem fatos sociais. Classificando os comportamentos humanos como fatos sociais, a Sociologia podia compreendê-los de forma objetiva, desvendando que a natureza de comportamentos humanos, muitas vezes explicados como comportamentos individuais, têm, na verdade, e na maioria das vezes, origens e explicações enraizadas no convívio social, isto é, no grupo. ROCHA, op.cit.,p De acordo com Tomazi para Durkheim, é a sociedade, como coletividade, que organiza, condiciona e controla as ações individuais. O indivíduo aprende a seguir normas e regras de ação que lhe são exteriores ou seja, que não foram criadas por ele e são coercitivas limitam sua ação e prescrevem punições para quem não obedecer aos limites sociais. As instituições socializam os indivíduos, fazem com que eles assimilem as regras e normas necessárias à vida em comum. TOMAZI, Nélson Dacio. Iniciação à sociologia. São Paulo: Martins Fontes, p

113 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA A importância do Direito também está vinculada diretamente a questão da solidariedade. Segundo Durkheim, as sociedades apresentam uma estrutura de relações e de vínculos recíprocos que o autor denomina de solidariedade (SABADELL, 2010, p. 49). Esse conceito deixa claro que o autor tem uma visão de sociedade no sentido contrário de Sociedade natural, proposta de diferentes formas, por Aristóteles, Tomás de Aquino e Karl Marx, e no sentido contrário também da sociedade jurídica, proposta por Hobbes, Locke e Rousseau, na qual a sociedade nasce pelo contrato social, em que estabelece regras objetivas e comuns a partir do Estado de Natureza. Para Durkheim, é a divisão do trabalho que cria a sociedade regrada a partir do caos da horda (RO- CHA, 2009, p. 21). A solidariedade exige a existência de formas de controle voltadas aos indivíduos que não respeitam as regras em vigor, ameaçando a coesão social, já que toda sociedade estabelece um padrão de comportamento, baseado no conjunto de crenças e sentimentos comuns aos cidadãos de uma sociedade, que corresponde à sua consciência coletiva (DURKHEIM, 1999, p. 36). A consciência coletiva não tem por substrato um único órgão e é independente das condições particulares em que os indivíduos se encontram (Durkheim, 1999, p. 50). Cabe ao Direito, então, fortalecer a consciência coletiva e garantir a estabilidade social. Dessa forma, pode-se dizer que, para Durkheim, o Direito é um espelho da solidariedade e do tipo de estrutura social existente. A única característica essencial ao fenômeno jurídico é de todo o preceito do Direito ser definido como uma regra de conduta sancionadora (DURKHEIM, 1999, p. 36). Porém, essas sanções mudam segundo a gravidade atribuída a seus preceitos, à posição que ocupam na consciência pública e ao papel que desempenham na sociedade. Convém, então, classificar as regras jurídicas de acordo com as diferentes sanções ligadas a elas Durkheim considera essa a forma adequada de classificar o Direito. Segundo o autor, a classificação empírica do Direito, que o define como Público ou Privado, é insuficiente para fins de uma análise mais aprofundada sobre o fenômeno jurídico: a ciência não pode se contentar com essas classificações empíricas e aproximadas. A mais difundida é a que separa o direito em Direito Público e Direito Privado. Ao primeiro, caberia regular as relações entre o indivíduo e o Estado; ao segundo, as dos indivíduos entre si. Mas quando se procura analisar os termos de perto, a linha de demarcação, que parecia tão nítida a primeira vista,, se apaga [...] Sabe-se quão controvertida é essa questão; não é científico fazer uma classificação fundamental basear-se numa noção tão obscura e mal-analisada. DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, p

114 Guilherme de Oliveira Feldens Nesse sentido, o autor distingue dois tipos de solidariedade social. A primeira é característica das sociedades antigas e pode ser chamada de solidariedade mecânica ou por similitudes. Essa forma de solidariedade se caracteriza por um forte viés coercitivo, impondo aos seus membros normas extremamente rígidas (DURKHEIM, 1999, p. 40). Também se caracteriza pela prevalência da perspectiva pública sobre a perspectiva privada, havendo pouco espaço para as liberdades individuais (DURKHEIM,, 1999, p. 108). Esse tipo de solidariedade apresenta como consequência uma forte semelhança entre os membros de uma sociedade, com uniformidade de comportamento e rígida punição para aqueles que desobedecem à autoridade social. O Direito que representa tal forma de sociedade tem um forte caráter repressivo, configurando uma justiça meramente distributiva que tem no exemplo ao infrator seu principal norte de eficácia (DURKHEIM,, 1999, p. 109). A segunda forma de solidariedade descrita por Durkheim é a solidariedade orgânica, característica de sociedades bem mais complexas, fundamentadas em uma ampla divisão do trabalho (DURKHEIM, 1999, p. 127). Essa forma de solidariedade é criada por meio de redes de relacionamento entre indivíduos e grupos, nas quais a coerção não exerce mais a função fundamental da solidariedade mecânica, já que os próprios cidadãos policiam seu comportamento (SABADELL, 2010, p. 55). Essa solidariedade pressupõe mais garantias aos valores individuais, pressupondo comportamentos diferenciados entre seus membros (DURKHEIM, 1999, p. 129). Aqui, o Direito não será caracterizado por uma caráter repressivo, pois será marcado por um traço restitutivo, no qual a reintegração daquele que desobedece as normas sociais à divisão do trabalho é muito mais importante do que a simples punição como exemplo Conforme Sabadell, o tipo de direito que corresponde à solidariedade mecânica é o direito penal, que se faz acompanhar de sanções repressivas (punição do desvio). O indivíduo está vinculado aos valores de uma sociedade homogênea, que impõe um comportamento uniforme. O direito que exprime a solidariedade orgânica compreende o direito civil, comercial, administrativo e constitucional, fazendo-se acompanhar de sanções restitutivas (reparação de danos). Este tipo de sanções garante a diferenciação da sociedade em funções especializadas, onde é necessária a cooperação. O descumprimento de obrigações contratuais cria uma responsabilidade de tipo patrimonial (e não penal) [...] Segundo Durkheim, este desenvolvimento conduz à realização dos ideais da igualdade, de liberdade e de fraternidade no campo do direito, sendo que os indivíduos são considerados como titulares de direitos e não como coisas submetidas a um sistema de obrigações e de sanções. SABADELL, Ana Maria. Manual de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.p

115 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA Durkheim apresenta diferenças fundamentais entre essas duas formas de solidariedade. Enquanto que a solidariedade mecânica implica que os indivíduos se assemelhem, só sendo possível na medida em que a personalidade individual seja absorvida na personalidade coletiva; a solidariedade orgânica (produzida pela divisão do trabalho) supõe que os indivíduos difiram entre si e que cada um tenha uma esfera de atuação própria (DURKHEIM,, 1999, p. 108). Dessa forma, é necessário que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência individual, para que nela se estabeleça funções especiais que ela não pode regulamentar, e quanto mais ampla for essa parte descoberta, maior será a coesão social, como resultado dessa solidariedade produzida pela divisão do trabalho (DURKHEIM,1999, p. 109). Nota-se que Durkheim define, fundamentalmente, dois tipos de sanção: Umas consistem essencialmente numa dor, ou pelo menos, numa diminuição infligida ao agente; elas têm por objeto atingi-lo em sua fortuna, ou em sua honra, ou em sua vida, ou em sua liberdade [...] Diz-se que são repressivas. É verdade que as que se prendem às regras puramente morais têm o mesmo caráter, só que são distribuídas de uma maneira difusa por todo o mundo indistintamente [...] Quanto ao outro tipo, ele não implica necessariamente um sofrimento do agente, mas consiste apenas na reparação das coisas, no restabelecimento das relações perturbadas sob sua forma normal [...] Portanto, devemos dividir em duas grandes espécies as regras jurídicas, conforme tenham sanções repressivas organizadas ou sanções apenas restitutivas. Ao definir o Direito como fato social, caracterizado como as imposições de comportamento que as normas exercem sobre o comportamento individual, Durkheim deu uma atenção especial ao estudo da anomia 13. Ao estudar as causas do suicídio, Durkheim definiu a grande influência que a coesão social exercia sobre as causas desse ato, pois concluiu que a ausência de regras que vinculem os membros da sociedade era um fator importante para a motivação de tal ato. Isso ocorre 13 Segundo Sabadell no final do século XIX era corriqueira a ideia de que os suicídios tinham correspondência (ou seja, relação causal) com as doenças psíquicas, com a situação geográfica, o clima, a raça ou a etnia. Por outro lado, Durkheim partia da hipótese que o suicídio estava relacionado com fatores sociais. E tentou tratá-lo segundo a sua principal regra metodológica; estabelecer relações de causalidade entre fatos sociais e causas sociais. Ibid., p

116 Guilherme de Oliveira Feldens devido a desorientação que as perturbações da ordem coletiva causam aos indivíduos, criando um desequilíbrio entre os desejos e as possibilidades de satisfação (DURKHEIM, 2000, p. 311). Assim, o autor define anomia como estado de desregramento. Evidencia uma situação na qual a sociedade não desempenha a função de limitar os desejos e as atividades dos indivíduos. Como consequência imediata, ocorre o enfraquecimento da solidariedade social. Seguindo a mesma linha de Durkheim, Merton também analisou a questão da ausência de normas como elemento limitador dos desejos dos indivíduos. Na visão de Merton, a organização social define todo um contexto, no qual as metas culturais, que expressam os valores que regulam a vida dos indivíduos em sociedade, se desenvolvem (MER- TON, 1970, p. 208). Incluídos nesse contexto estão os meios institucionalizados que cada sociedade estabelece previamente como legítimos para atingir tais metas. Porém, conforme Merton, a sociedade se estrutura de forma a não permitir que os meios socialmente admitidos estejam ao alcance de todos os indivíduos, resultando em um desajuste entre os fins e os meios. Esse desajuste resulta na anomia: manifestação de um comportamento no qual as regras do jogo social são abandonadas ou contornadas (MERTON, 1970, p. 212). Percebe-se, portanto, uma situação de anomia generalizada, quando a sociedade acentua a importância de determinadas metas, sem oferecer à maioria dos seus membros a possibilidade de atingi-las através de meios institucionalizados 14. As análises de Merton e Durkheim possibilitam um grande questionamento relativo à função do Direito nas sociedades modernas, já que diversos fatores como a delinquência por motivos econômicos e os crimes de motivação política podem ser bem explicados através da teoria da anomia desses autores. Tal análise também permite definir a postura do Estado diante desse estado de desregramento. 14 Segundo Merton deve ficar claro que a discussão anterior não é afinada a um plano moralístico. Quaisquer que sejam os sentimentos do leitor referentes à conveniência moral de coordenar as fases dos alvos e dos meios da estrutura social, é claro que a imperfeita coordenação das duas conduz à anomia. Se uma das funções mais gerais da estrutura social é a de fornecer uma base para a previsibilidade e a regularidade do comportamento social, essa função torna-se crescentemente limitada em eficiência, à medida que esses elementos da estrutura social se tornam dissociados. No ponto extremo, a previsibilidade é diminuída e sobrevêm o que se pode chamar corretamente de anomia ou caos cultural. MERTON, Robert King. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, 1970.p

117 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA 4.3. O Estudo do Direito Vivo de Eugene Ehrlich Eugen Ehrlich ( ), jurista austríaco, em sua obra Fundamentos da Sociologia do Direito (1912), defende a singular tese de que o centro de gravidade do desenvolvimento do direito não está na legislação, não está na ciência jurídica, nem na jurisprudência dos tribunais, mas na própria sociedade. Para o autor, se fosse possível fazer essa simplificação, a tarefa de conhecimento do Direito consistiria somente na reunião de todas as leis e na averiguação de seu conteúdo por meio da interpretação da doutrina e da jurisprudência (EHRLICH, 2002, p. 109). Porém, a realidade é muito mais complexa do que o conteúdo que é posto pelo Direito Positivo (EHRLICH, 2002, p. 110). É impossível esgotar todas as variantes das relações jurídicas em um sistema fechado, pois a realidade social é muito mais rica que os conteúdos descritos em um Código. Conforme descreve o autor (EHRLICH, 2002, p. 110): Querer encerrar todo o Direito de um tempo ou de um povo nos parágrafos de um código é tão razoável quanto querer prender uma correnteza numa lagoa. O que vai para ela não é mais uma correnteza viva, mas águas mortas, e muita água não entra nela de jeito algum. Leve-se em consideração, além disso, que cada um destes códigos estará superado necessariamente pelo direito vivo, no momento em que estiver pronto e cada dia ainda mais antiquado; então, tem-se que compreender em todo caso quão incalculável e, portanto, ainda completamente virgem é o campo de trabalho que se abre aqui para o moderno pesquisador do Direito O Direito que analisa diretamente as relações sociais, que não se limita ao que somente é válido diante dos tribunais e das autoridades, é denominado de Direito vivo 15. Dessa forma, o seu conteúdo não está limitado às proposições jurídicas do positivismo jurídico, mas sim na observação direta da vida, do comércio, da conduta dos costumes de todos os grupos sociais (EHRLICH, 2002, p. 112). O jurista deve aprender 15 Conforme Carnio e Gonzaga, é possível, a partir do pensamento de Eugene Ehrlich, visualizar três formas de Direito. A primeira é o Direito Estatal, que necessita de um aparato coativo (leis, decretos etc.) e que surge e depende exclusivamente do Estado. A segunda forma é o Direito dos Juízes, baseado nas decisões de casos concretos, que guarda relação direta com o Direito Estatal. Por fim, a terceira forma é o Direito Vivo, que consiste a base da sociedade humana. CARNIO, Henrique Garbellini; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Curso de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p

118 Guilherme de Oliveira Feldens o conteúdo do Direito mediante sua própria observação dos produtos espontâneos da sociedade, já que não há a construção de conhecimento por meio dos códigos e dos autos processuais. O Direito vivo não está atrelado a dogmas ou normas estatais preestabelecidas, pois é produto da vida concreta das pessoas e dos grupos sociais 16. Para o autor, a sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do Direito Vivo, dirigindo-se primeiramente ao concreto e não ao abstrato (EHRLICH, 2002, p. 113). Assim, o autor trava sua discussão com o racionalismo jurídico disseminado no continente Europeu, que definiu a atividade jurisdicional como mera aplicação dos preceitos jurídicos existentes nos códigos. Suas ideias contrariam o status de ciência que o Direito passou a ter em determinado momento histórico, tendo como objeto de análise um modelo com o rigor lógico da dedução, contendo normas e padrões reconhecidos pelos critérios da razão. Nesse contexto, O Direito exerce uma função mínima, pois sua tarefa principal é apenas organizar as relações pacíficas desenvolvidas em cada grupo social 17. A redução do Direito ao puro conceitualismo e a necessidade de comprometimento com a neutralidade da atividade jurisdicional é fortemente negada pelo sociólogo, já que um Direito abstrato e formal, separado dos mundos dos fatos, seria desprovido de qualquer conteúdo importante para um jurista. O estudo do Direito Vivo pode servir, portanto, para criticar não só a forma de aplicação do Direito, como também o ensino jurídico enraizado na tradição positivista, responsável 16 Segundo Ehrlich o direito vivo tem que ser procurado nos pactos patrimoniais, nos contratos de compra e venda, arrendamento, em contratos de crédito para construção, de hipoteca, nos testamentos, em estatutos de associações e de sociedades comerciais, a não nos parágrafos de um código. Todos esses contratos têm, além do individual, somente válido para o negócio isolado, seu conteúdo típico sempre repetitivo. Este conteúdo típico do documento é fundamentalmente o mais importante nele. EHRLICH, Eugene. Estudo do direito vivo. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim (Orgs.). Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, Essa concepção é nitidamente contrária ao modelo coercitivo proposto pelos positivistas. Isso fica evidente na seguinte passagem de Hart: devem existir sempre que exista um sistema jurídico, algumas pessoas ou corpo de pessoas que emitam ordens gerais baseadas em ameaças, que são geralmente obedecidas, e deve acreditar-se em geral que estas ameaças provavelmente serão levadas a cabo, em caso de desobediência. Se, na esteira de Austin, chamarmos a tal pessoa ou corpo de pessoas, supremos e independentes, o soberano, as leis de qualquer país serão as ordens gerais baseadas em ameaças que são emitidas, quer pelo soberano, quer por subordinados em obediência a este. HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p

119 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA por afastar as discussões acadêmicas dos fatos concretos, como se os mesmos fossem dispensáveis na formação do jurista 18. Por fim, é importante salientar que o Direito Vivo não tem a função apenas de determinar um padrão para a produção de normas e de decisões judiciais. Ele tem seu próprio valor de conhecimento, constituindo a base da ordem jurídica da sociedade humana. Dessa maneira, para conhecê-la, precisamos estudar todas as expressões jurídicas existentes na sociedade, estando ou não tais expressões descritas nos códigos e nas sentenças judiciais (EHRLICH, 2002, p. 114). Um conhecimento limitado apenas às normas jurídicas será, necessariamente, defeituoso e insuficiente. O pensamento de Eugene Ehrlich serviu de base forte para as críticas ao monismo jurídico, responsável pela defesa da ideia de que o Estado é a única fonte legítima de produção normativa, descartando toda e qualquer possibilidade de reconhecimento de outras fontes de produção jurídica 19. Além das ideias de Eugene Ehrlich, a sociologia jurídica apresenta outros autores que defendem a pluralidade de ordenamentos jurídicos na sociedade. Nesse sentido, o direito não se limita apenas as questões relativas ao monopólio da sanção do Estado. Segun- 18 Segundo Souto o maior mérito da sociologia do Direito de Ehrlich consistia no seu cunho antificcionista, ou seja, no combate que representa inúmeras ficções que infrutificavam e em parte ainda infrutificam no campo dos estudos jurídicos. Para ele, uma das ficções é a relativa à ciência do Direito dos juristas, que é ante de tudo uma doutrina técnica e não efetivamente de um estudo jurídico compromissado com sua realidade, visando apenas fins práticos. SOUTO, Cláudio, SOUTO, Solange. Sociologia do direito: uma visão substantiva. Porto Alegre: SAFE, 1997.p De acordo com Sabadell a formação do monismo jurídico está associada ao declínio do Feudalismo, pois a doutrina monista pretende justificar a validade de um Estado de Direito centralizado nas mãos de um Poder Absoluto. O direito, neste caso, passa a ser produto da vontade exclusiva do monarca soberano. O segundo ciclo inicia-se com a Revolução Francesa e termina com as principais codificações do século XIX, a exemplo das Constituições dos Estados Modernos e do Código Napoleônico. O terceiro, biparte-se. Abrange os anos 20 e 30 numa primeira etapa; numa segunda etapa, abrange os anos 50 e 60. Nestas etapas, o que se buscava era uma legalidade dogmática com rígidas pretensões de cientificidade. Mas o que contribuiu para a construção técnico-formal de uma Ciência do Direito deste ciclo? a) A expansão do intervencionismo estatal na esfera da produção e do trabalho; b) A passagem de um capitalismo industrial para um capitalismo monopolista organizado c) A implementação de políticas sociais no contexto de práticas keynesianas distributivas d) O Estatismo jurídico ocidental da Escola de Viena, encabeçada pela construção da teoria pura do direito, o que levou a Hans Kelsen descartar o dualismo Estado- Direito, fundindo-os, de tal modo que o Direito é o Estado, e o Estado é o Direito Positivo. Finalmente, o quarto ciclo, abrange os anos 60 e 70, período do surgimento de novas necessidades de reordenação e de globalização do capital monopolista, da crise fiscal e da ingovernabilidade do Estado do Bem-Estar e de seu enfraquecimento.sabadell, op. cit.,p

120 Guilherme de Oliveira Feldens do essa corrente, o direito é considerado como manifestação de eficácia de um sistema de regras e sanções, que podem ser observadas na prática social e na consciência dos indivíduos (SABADELL, 2010, p. 71). Esses outros ordenamentos jurídicos surgem em grupos sociais, exercendo, inclusive, um controle psicológico e exterior mais acentuado que aquele positivado pelo Estado. Na sociedade pós-moderna, as discussões envolvendo o pluralismo jurídico ganharam mais força reforçando a ideia de que o monopólio jurídico do Estado foi completamente superado. Como exemplo, podemos citar a perspectiva da interlegalidade, existência de vários ordenamentos jurídicos que se relacionam diretamente, apresentada por Boaventura de Sousa Santos. Outro exemplo importante são as correntes de pensamento que analisam as sociedades multiculturais. Essa linha de pensamento aponta que as concepções jurídicas que defendem o Estado como única fonte do direito pecam por entender mal a relação entre indivíduos e sociedade (QUINTANA, 1996, p. 136). No pensamento monista, por exemplo, não se compreende que os valores morais derivam da própria sociedade na qual os cidadãos estão inseridos, não sendo possível desvincular a identidade pessoal da identidade social. Há uma pretensão irreal de uniformizar e excluir as diferenças, sem levar em conta que a formação dos conceitos essenciais para o Direito passa necessariamente pela relação com os outros. Assim, cada pessoa deve ser vista inserida em suas origens, tradições e em outros valores do grupo a que pertencem, não devendo tais diferenças ser exterminadas por um procedimento de uniformização (MACINTYRE, 1991, p. 367). Cada grupo deve ter direito de escolher suas próprias metas e seus próprios valores. A defesa de um ordenamento jurídico totalizante e neutro que impede a construção de identidades e costumes jurídicos locais agregados a valores sociais. 20 Defende-se como alternativa uma proposta multicultural capaz de demonstrar a 20 Para Taylor existe uma forma de política de igual respeito, guardada religiosamente num liberalismo de direitos, que é hostil à diferença, porque (a) insiste na aplicação, sem qualquer exceção, uniforme das regras que definem esses direitos, e porque (b) desconfia dos objetivos coletivos. É evidente que isto não significa que este modelo procure abolir as diferenças culturais. Afirmá-lo seria uma acusação absurda. Mas digo que é hostil à diferença, porque não pode ajustarse àquilo a que os membros das sociedades distintas aspiram realmente: a sobrevivência. TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, p

121 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA diversidade de valores e formas institucionais existentes na sociedade como um todo. Devido ao fato de nossa sociedade ser cada vez mais heterogênea, cabe ao Estado enfrentar essa realidade, porém sem optar pela via da uniformização, mas sim por optar por atuar de acordo com as diferenças (TAYLOR, 1998, p. 85). Nessa perspectiva, o Direito estatal perde sua unidade (SABA- DELL, 2010, p. 72). Em sua vertente empírica, por exemplo, o pluralismo jurídico, proposto por autores como George Gurvitch, insiste na desvinculação completa das análises sociológicas do Direito, voltando toda a sua atenção para o estudo de um Direito Informal surgido no âmbito social 21. A sociologia deve sempre manter o interesse em relação a aspectos normativos surgidos na realidade social Ideologia, Direito e violência A sociologia jurídica, como mostrada até agora, permite um forte apelo crítico a diversos aspectos comuns do mundo jurídico. É impossível, nesse sentido, não citar o desenvolvimento teórico de Karl Marx ( ), cuja obra principal o Capital, aborda de forma multidisciplinar aspectos sociológicos, filosóficos, econômicos, biológicos e antropológicos. A importância e influência do pensamento marxista não pode ser medida. Mais do que uma teoria elaborada por um grupo restrito de intelectuais, com fins unicamente acadêmicos, o marxismo se tornou um fenômeno de massa, relacionando-se diretamente com acontecimentos políticos históricos que influenciaram a geopolítica mundial (SABADELL, 2010, p. 43). Para a compreensão adequada da forma como Karl Marx visualiza o Direito é fundamental compreender o modelo de organização política e econômica descrita em O capital, bem como conceitos fundamentais como seu materialismo histórico dialético. Segundo Marx, a organização social tem como base a Estrutura composta pelas forças produtivas 21 Conforme Sabadell a tese do pluralismo jurídico encontra uma objeção de tipo lógico: ou devemos admitir que o direito informal é reconhecido pelo Estado, ou devemos dizer que este reconhecimento não existe. No primeiro caso, trata-se simplesmente de uma delegação do Poder Legislativo a instâncias e instituições sociais [...] Aqui não temos um ordenamento jurídico diferente do estatal: trata-se de uma delegação do poder do Estado, que está submetida ao controlede legalidade [...] No segundo caso, o direito informal consiste em um conjunto de regras que, do ponto de vista do Estado, constitui um não direito. SABADELL, op.cit.,p

122 Guilherme de Oliveira Feldens e pelas relações de produção de bens necessárias para a sobrevivência (Marx, 2008, p. 79). E são essas relações que solidificam todas as formas de organizações sociais, como a Moral e os comportamentos sociais e evoluem (materialismo histórico) para fins de sobrevivência. Nesse contexto, o homem é o principal agente, já que o trabalho como elemento de sobrevivência material e intelectual, configura a dialética material que move a história (ROCHA, 2009, p. 156). Porém, segundo Marx, a produção se dá de forma desigual, fruto da divisão social do trabalho (MARX, 2008, p. 121). A exploração do trabalho é sempre necessária e o torna mercadoria, garantindo a apropriação material e o domínio de uma classe dominante. Na sequência do movimento dialético, tem-se a ideologia da classe dominante, materializada no papel da cultura em transformar os valores individuais da classe dominante em valores gerais a toda sociedade (ROCHA, 2009, p. 162). Nesse sentido, o Estado e o Direito, como elementos da superestrutura, são vistos por Marx não como um elemento social que visa obter o bem comum da sociedade e proteger interesses e valores universais, mas como reflexo da realidade estrutural e da luta de classes (MARX, 2008, p. 234). Marx (1983, p. 301) deixa isso bem claro na seguinte passagem: Na produção social da sua vida os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas pelo contrário, o seu ser é que determina a sua consciência. Ao chegar a uma determinada fase de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade se chocam com as relações de produção existentes, ou, o que não é senão a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram até ali. O Estado tem a função primordial de amenizar a luta de classes, lutando pela permanência da situação vigente. Ele é a expressão dos interesses da classe dominante, não configurando em nenhum ato de von- 122

123 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA tade (contrato social), nem em uma entidade de caráter divino 22. Como parte principal da superestrutura, o Estado tende a preservar e a fortalecer o sistema econômico que o criou (MARX, 2008, p. 435). O direito, portanto, não pode ser analisado e interpretado sem essa incondicional relação com as questões políticas, sociais e econômicas, fugindo da concepção abstrata de Direito imposta pelo positivismo jurídico. Os seguidores de Marx atribuem grande importância à relação da infraestrutura com a superestrutura, já que ao se ter bem claro uma noção justa dessa relação recíproca, é possível descobrir as leis objetivas do desenvolvimento social. Conforme afirma Engels (1980, p.191), O Estado não é de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; [...] é antes um produto da sociedade quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado. O Direito para Marx ganha um forte apelo coercitivo, pois dá regramento as relações sociais da Estrutura 23. É considerado um instru- 22 Segundo Marx o Estado é a forma na qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus interesses comuns, na qual se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se disso que todas as instituições comuns têm como mediador o Estado e adquirem, através dele, uma forma política [...] essa ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, conduz necessariamente, no desenvolvimento ulterior das relações de propriedade, ao resultado de que uma pessoa possa ter um título jurídico em relação a alguma coisa sem realmente ter a coisa [...].MARX, Karl, ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, p Conforme Sabadell Marx observou que o direito desenvolvido na sociedade capitalista estabelece normas universais e uniformes para sujeitos desiguais, perpetuando assim as diferenças sociais, baseadas na exploração do trabalho das classes populares pelos detentores de capital. Na visão marxista, o direito não é um fenômeno autônomo, nem exprime ideais abstratos (igualdade, liberdade, justiça, ordem, segurança). O direito corresponde às relações econômicas que predorninam na sociedade. A sociedade encontra-se dividida em classes, desenvolveu-se um processo de dominação e de repressão das classes inferiores por parte das classes privilegiadas, que detêm o poder. O direito reflete esta realidade social, sendo que sua configuração corresponde às relações que se dão entre as classes sociais. Por exemplo, as normas relativas ao direito dc 123

124 Guilherme de Oliveira Feldens mento ideológico e político de dominação usado pela classe dominante sobre a sociedade (MARX, 2008, p. 554). Em outras palavras, o Direito constitui um meio de reprodução do sistema econômico Capitalista, fundado na exploração da força de trabalho pelos detentores dos meios de produção (SABADELL, 2010, p. 71). Independentemente da forma assumida pelo direito, seja a lei, a jurisprudência, os costumes ou as práticas contratuais, a essência dele será sempre a mesma, nunca expressando a livre vontade de toda a sociedade (ROCHA, 2009, p. 169). Não há como pensar nas relações jurídicas afastadas das condições materiais de existência. Percebe-se que Marx ignora a imparcialidade da justiça e a neutralidade dos julgadores, já que o Direito está inserido dentro da superestrutura social, refletindo necessariamente os valores e os objetivos da classe dominante (ROCHA, 2009, p. 125). Nesse sentido, o pensamento de Marx é uma poderosa arma teórica contra o positivismo jurídico, pois além de criticar os principais aspectos inerentes a essa teoria, coloca a necessidade de inserir o homem no centro das discussões jurídicas, humanizando as relações jurídicas. O pensamento de Marx serviu como inspiração para que autores como Michel Foucault desse uma nova roupagem para tais preocupações. Assim, Foucault destaca o desenvolvimento das técnicas de dominação até se atingir um estado, no qual a significação política da vida humana acaba por servir de fio condutor à biopolítica, colocando a população como objeto de análise das instituições sociais e de técnicas disciplinadoras. Deste modo, afirma Foucault (1999, p. 131) que O momento em que se percebeu ser, segundo a economia do poder, mais eficaz e mais rentável vigiar que punir. Este momento corresponde à formação, ao mesmo tempo rápida e lenta, no século XVIII e no fim do século XIX, de um novo tipo de exercício do poder [...] Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atividades, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida cotidiana propriedade protegem, de um modo geral, os interesses das classes sociais mais abastada SABADELL, op. cit., p

125 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA Os estudos de Foucault remetem a uma perspectiva na qual a disseminação do poder e a repressão não ocorrem de forma centralizada, única e exclusivamente na figura do Estado e do Direito; mas, ao contrário, vão além dos próprios contornos e sanções do ordenamento jurídico (ROCHA, 2009, p. 188). Walter Benjamin também, em seu texto Crítica da violência: crítica do poder (Zur Kritik der Gewalt), apresenta argumentos consistentes para aprofundar a forma jurídica marxista, dando a exata compreensão da diferenciação postulada entre a justiça e o poder. Assim, ele questiona o ideal de se fazer justiça por meio de um ordenamento legal 24. Para o autor, qualquer ordem legal está embasada em um ato originário de violência (BENJAMIM, 1986, p. 165). Do mesmo modo, desponta o problema da legitimação da autoridade que a lei supõe. Esse problema propõe a discussão sobre a legitimidade do uso da violência ao serviço do Estado, ou de fins considerados suficientemente justos para legitimar, como por exemplo, determinados objetivos legais. E esses estudos revisam e reforçam a importância do pensamento de Marx para os dias atuais. CONSIDERAÇÕES FINAIS A importância da sociologia jurídica na formação de um acadêmico do curso de Direito está refletida em diversos aspectos salientados no desenvolvimento do presente texto. O estudo aprofundado de autores como Émile Durkheim, Karl Marx, Boaventura de Sousa Santos, Eugene Ehrlich e Michel Foucault se reflete diretamente em diversas outras áreas do Direito, criando a base necessária para a correta compreensão de diversos institutos jurídicos, ao mesmo tempo em que possibilita o exercício de uma perspectiva crítica ao tratamento de determinadas matérias. Assim, como ignorar o conceito de Direito e a tentativa de colocar o homem no centro da relação jurídica proposta por Karl Marx? 24 De acordo com Benjamin talvez se deva levar em consideração a surpreendente possibilidade de que o interesse do Direito em monopolizar o poder diante do indivíduo não se explica pela intenção de garantir os fins jurídicos, mas de garantir o próprio Direito. Possibilidade de que o poder, quando não está nas mãos do respectivo Direito, o ameaça, não pelos fins que possa almejar, mas pela sua própria existência fora da alçada do Direito [...] Nesse caso, portanto, o poder que o Direito atual procura retirar do indivíduo em todas as áreas de atuação se manifesta realmente como ameaça e, mesmo sendo subjugado, ainda assim suscita a antipatia da multidão contra o Direito. BENJAMIN, Walter. Crítica da violência Crítica do Poder. In: Documentos de cultura, Documentos de barbáries: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, p

126 Guilherme de Oliveira Feldens Em uma época em que, cada vez mais, a sociedade amarra o indivíduo em processos burocráticos; na qual nos deparamos, comumente, com dados sociais sobre as classes mais atingidas pela violência urbana e discutimos palavras como inclusão e acesso à justiça? Nesse sentido, ganham força os argumentos marxistas em torno do Estado e do Direito. Como ignorar também a contribuição de Boaventura de Sousa Santos, Eugene Ehrlich para discutir de maneira apropriada as questões relativas a aplicação do Direito, de legitimidade do ordenamento jurídico e efetividade material da atividade jurisdicional. Sem contar, toda a complexidade do pensamento de Durkheim, até hoje, amplamente discutido nas questões referentes à criminologia. Como se vê, o tratamento adequado dado ao estudo da sociologia jurídica pode servir de base para a multidisciplinaridade entre várias áreas das ciências humanas e sociais, enriquecendo os debates jurídicos de forma bastante rigorosa e ampla. Sem perder de vista a missão de relacionar diretamente o mundo jurídico com a realidade social apresentada além dos muros da Faculdade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENJAMIN, Walter. Crítica da violência Crítica do Poder. In: Documentos de cultura, Documentos de barbáries: escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix, CARNIO, Henrique Garbellini; GONZAGA, Alvaro de Azevedo. Curso de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo: Martins Fontes, O suicídio: estudo de sociologia. São Paulo: Martins Fontes, EHRLICH, Eugene. Estudo do direito vivo. In: SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim (Orgs.). Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Nau,

127 4 SOCIOLOGIA JURÍDICA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A INEVITÁVEL RELAÇÃO ENTRE DIREITO E SOCIOLOGIA GUERRA FILHO, Willis Santiago. A filosofia do direito aplicada ao processo civil e à teoria da constituição. São Paulo: Atlas, HART, Herbert. O conceito de direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? qual racionalidade? São Paulo: Loyola, MARX, Karl, ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Editora Hucitec, MARX, Karl. Introdução à crítica da economia política. In:. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, O capital. São Paulo: Martins Fontes, MERTON, Robert King. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo: Mestre Jou, QUINTANA, Óscar Mejía. Justicia y democracia consensual: la teoría neocontratualista em John Rawls. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre, ROCHA, José Manuel de Sacadura. Sociologia jurídica: fundamentos e fronteiras. Rio de Janeiro: Elsevier, ROSA, F. A. de Miranda. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, SABADELL, Ana Maria. Manual de Sociologia jurídica. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e apolítica na transição paragmática. In: A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, SOUTO, Cláudio; FALCÃO, Joaquim (Orgs.). Sociologia e direito: textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, SOUTO, Cláudio, SOUTO, Solange. Sociologia do direito: uma visão substantiva. Porto Alegre: SAFE,

128 Guilherme de Oliveira Feldens TAYLOR, Charles. Multiculturalismo: examinando a política de reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget, TOMAZI, Nélson Dacio. Iniciação à sociologia. São Paulo: Martins Fontes,

129 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO Guilherme Damasio Goulart 1 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO Visão clássica das obrigações Direito das Obrigações, modernidade e boa-fé Os deveres anexos nas obrigações Por um direito das obrigações moderno: a consideração da dignidade da pessoa humana - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. INTRODUÇÃO 2 É evidente que é tarefa difícil tratar, em apenas um capítulo de livro, todas as questões envolvendo o direito das obrigações. Trata-se de 1 Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado. Consultor e professor das disciplinas de Direito das Obrigações e Direito das Coisas no CESUCA e em cursos de pós-graduação nas áreas do Direito da Tecnologia da Informação. guilhermegoulart@cesuca.edu.br 2 Como este artigo dirige-se a estudantes de direito, sobretudo, em início da faculdade, cabe uma breve explicação sobre as notas de rodapé. A nota de rodapé é uma das formas de realizar a citação de um texto utilizado pelo autor, aprimorar ou aprofundar algum assunto ou de dar outra informação importante. O aluno deve observar que, por diversas vezes, são utilizadas as expressões ibidem e idem. A primeira expressão sempre será acompanhada do nome do autor (primeiro seu 129

130 Guilherme Damasio Goulart uma disciplina com fortes raízes históricas, com institutos antigos até hoje utilizados, mas que, modernamente, tem passado por intensa renovação. É possível dizer, como se verá mais adiante, que o fenômeno de constitucionalização do direito civil (e privado) 3 e a forte consideração da dignidade da pessoa humana 4 nas relações privadas injeta no direito das obrigações uma série de questões que devem ser observadas. De qualquer maneira, o objetivo deste texto é trazer uma visão panorâmica sobre alguns dos conceitos básicos do direito das obrigações que são vistos, comumente, na respectiva disciplina. Todavia, mesmo diante do exíguo espaço, tenta-se ir além: o objetivo secundário é trazer algumas discussões atuais que são tratadas no âmbito do direito das obrigações. Além do mais, busca-se dar uma visão mais humana à disciplina, sobretudo, considerando a proteção também das pessoas envolvidas na relação e não apenas do patrimônio. É bastante comum que o professor de uma disciplina acredite - e defenda - a importância da sua disciplina sobre outras. Mesmo sob pena de incorrer nesse erro, defende-se aqui a suma importância do direito das obrigações, principalmente, no atual momento da sociedade. Orlando Gomes chega a afirmar que o Direito das Obrigações constitui a base, não somente do Direito Civil, senão de todo o direito 5 e que o conceito de obrigação constitui a armadura e o substrato do Direito e, ainda, de modo geral, de todas as ciências sociais 6. Por mais exagerada que tal ideia pareça, é inegável a força e a importância da disciplina. Basta observar - em um singelo exemplo - a cadeia de relações obrigacionais que foram necessárias para que o leitor desta obra, que agora tem o livro em mãos, pudesse realizar sua leitura. Para tanto, foi necessobrenome em letras maiúsculas seguido de vírgula e dos outros nomes) e indica que o autor do texto está se referindo a mesma obra daquela autor já citada anteriormente. Assim se houve uma citação indicando o nome do autor e o nome do livro, outra citação que traga o mesmo nome seguido da expressão ibidem indica que se está a tratando da mesma obra. Já a expressão idem indica o mesmo nome anterior. Geralmente é utilizada logo depois abaixo de uma citação seguida de ibidem. 3 Que vem sendo desenvolvida, com excelência, no estado do Rio de Janeiro. Conta com a contribuição de juristas como Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes, Luiz Edson Fachin e Anderson Schreiber. 4 Assim inscrita no art. 1º inc. III, constituindo um dos princípios fundamentais da Constituição. 5 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. 2. ed. São Paulo: RT, p Idem. Ibidem.,p

131 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO sário que: fizesse a matrícula em uma faculdade de direito; que diversos autores escrevessem os capítulos do livro; que a instituição organizadora do livro reunisse os textos e os enviasse para uma editora; que a editora realizasse a impressão dos livros, que após enviasse os livros por meio de um transportador especializado etc. Todos esses exemplos constituem relações obrigacionais, entre sujeitos distintos e que orbitam, apenas, na publicação e na leitura de um livro. Atualmente, também há diversas formas de denominar o mundo em que vivemos. Fala-se muito em sociedade do consumo, sociedade da informação ou até mesmo sociedade do risco. É inegável que tais visões de sociedade estão alicerçadas, fundadas em relações obrigacionais. Há nas relações obrigacionais a figura de um credor (aquele que faz jus à prestação) e de um devedor (aquele que tem a obrigação de realizar a prestação). Portanto, a sociedade do consumo, por exemplo, tem em sua base a ideia de obrigação: consumidores adquirem produtos ou serviços de fornecedores. Mas o que se entende por obrigação? No que é possível pensar quando alguém diz que é obrigado a fazer a algo? O conceito de obrigação é bastante amplo e pode abranger vários significados. Em um sentido amplo, a obrigação 7 envolve qualquer vínculo relacionado às áreas morais, religiosas, familiares e, inclusive, jurídicas. Comumente as pessoas sentem-se obrigadas, por exemplo, em função de um vínculo moral, a fazerem certas coisas 8. Este último caso, refere-se a uma obrigação moral 9. Contudo, são as obrigações jurídicas que interessam ao presente estudo. De qualquer forma, em todo tipo de obrigação (nas jurídicas inclusive) é possível encontrar elementos essenciais. Tais elementos, na visão de Clóvis Bevilaqua são a limitação, o encadeamento da liberdade psíquica, refreando a expansão da personalidade e, concomitantemente, um estímulo que vem determinar a vasão, por um determinado sulco, das 7 Palavra que vem do verbo latino obligare (ob + ligare), composto de ligare, que significa ligar, atar ou amarrar, cf. RIZZARDO, Arnaldo. Direito das Obrigações. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, p Como um exemplo da vida cotidiana pode ser o ato de cumprimentar os vizinhos. Não há uma norma jurídica que obrigue as pessoas a serem educadas com seus vizinhos. Quem o faz, sem dúvida, assim age em função de uma inclinação moral. 9 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 9.ed. São Paulo: Saraiva, p

132 Guilherme Damasio Goulart energias assim refreadas 10. As pessoas obrigam-se a fazer (ou deixar de fazer) algo em função de um motivo. No tocante às obrigações jurídicas, este motivo está relacionado com a ordem jurídica. Dito isto, passa-se a destacar alguns dos elementos fundamentais das obrigações em uma visão clássica Visão clássica das obrigações Segundo Maria Helena Diniz o direito das obrigações pode ser definido como [...] um complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial, que têm por objeto prestações de um sujeito em proveito de outro. Visa, portanto, regular aqueles vínculos jurídicos em que ao poder de exigir uma prestação, conferido a alguém, corresponde um dever de prestar, imposto a outrem 11. Este é um conceito amplo e trata do direito das obrigações como um todo. Todavia, é possível especificar um pouco mais o assunto por meio do conceito de obrigação em si. O Código Civil não traz o conceito de obrigação, ficando este a cargo da doutrina. São vários os conceitos, todos muito próximos, que como se verá, têm em comum alguns elementos básicos. Um dos conceitos clássicos, retirado das institutas do imperador Justiniano (também conhecida como corpus iuris civilis) é: A obrigação é um vínculo de direito, constituído com base no nosso direito civil, que nos força rigorosamente a pagar alguma coisa 12. Trata-se de um conceito um tanto quanto limitado, pois se restringe ao pagamento-prestação, não abrangendo a ideia de obrigações de não-fazer. Outra definição, também clássica, e até hoje citada em vários cursos, é a de Clóvis Be- 10 BEVILAQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, p DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 29. ed. São Paulo: Saraiva, p Cf. Livro Terceiro, Título XIII de JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Institutas: Manual para uso dos estudantes de Direito de Constantinopla, copilado por ordem do Imperador Justiniano em 533 d.c. São Paulo: Edipro, 2001, p As institutas do imperador Justiniano são uma compilação feita por ele, quando imperador do império romano do oriente, no século VI d.c. Dizse que as institutas compõem o melhor fruto do direito romano, cf. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). Manual de direito civil: obrigações. São Paulo: RT, p

133 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO vilaqua em seu livro Direito das Obrigações, com a primeira edição publicada em Diz o ilustre civilista que obrigação é [...] a relação transitória de direito, que nos constrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regra economicamente apreciável, em proveito de alguém que, por ato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado, ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essa ação ou omissão 13. Já Roberto Senise Lisboa afirma que obrigação jurídica [...] é um vínculo de direito de natureza transitória que necessariamente compele alguém a solver aquilo a que se comprometeu, garantindo o devedor que pagará a prestação economicamente apreciável, seja por meio do seu próprio patrimônio ou de outrem 14. Neste último conceito destaca-se o elemento da transitoriedade, que também é encontrado na definição de Bevilaqua. A obrigação será sempre transitória. E o que significa isto? Significa que ela nasce para morrer, para ser cumprida em algum momento. Ao contrário dos direitos reais, que possuem a característica marcante da perpetuidade (como a propriedade, por exemplo), o mesmo não ocorre com as obrigações que, por mais longas que sejam [ ] um dia elas se extinguirão 15. Vistos tais conceitos, é importante referenciar a diferença entre dever e obrigação. O dever jurídico é o gênero ao qual pertence à obrigação 16. De maneira geral, é visto com um comando imposto, pelo direito objetivo, a todas as pessoas para observarem certa conduta sob pena de receberam uma sanção pelo não cumprimento do comportamento. 17. Assim, a lei impõe diversos deveres genéricos às pessoas, 13 BEVILAQUA, op. cit.,p LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil: Obrigações e responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2002, p RIZZARDO, op.cit., p DINIZ, op.cit.,p. 41. Conceito bastante semelhante é trazido por Orlando Gomes: Dever jurídico[..] é a necessidade que corre a todo indivíduo de observar as ordens ou comandos do ordenamento jurídico, sob pena de incorrer numa sanção, como o dever universal de não perturbar o exercício do direito do proprietário. GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. São Paulo: Forense, p. 11. O dever também é visto como dever jurídico genérico em oposição ao dever jurídico específico, sendo estes últimos as obrigações, cf. CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de 133

134 Guilherme Damasio Goulart relacionados, por exemplo, aos direitos reais, de família, da personalidade etc. 18. Já a obrigação é um conceito mais limitado e especializado: de cunho patrimonial (também chamada de direitos de crédito ou de direitos pessoais 19 ), envolve um vínculo, entre duas partes, que enseja uma prestação específica realizada por alguém (devedor) em favor de outro (credor). Entre os conceitos citados é possível destacar certos elementos chamados de essenciais. Uma obrigação é composta por um elemento subjetivo, ou seja, pessoal. É necessário que exista um credor (que é o polo ativo) e um devedor (que é o polo passivo) que devem ser determinados ou determináveis. O credor recebe a prestação do devedor. E, ao contrário da antiguidade, quando o devedor podia responder com o seu corpo caso não cumprisse com uma obrigação, sendo até mesmo escravizado, atualmente, o devedor responde pelas suas dívidas com o seu patrimônio 20. Dessa forma, o credor tem como garantia o patrimônio do devedor caso este não cumpra com o combinado. Encontra-se aí um dos elementos fundamentais da obrigação que é esse poder 21 que o credor tem inclusive utilizando-se do judiciário de exigir que o devedor cumpra o ajustado. De igual forma toda obrigação possui um elemento material ou objetivo que se traduz no objeto da obrigação. Tal objeto consubstancia-se em três condutas que Orlando Gomes chama de objeto da prestação : dar, fazer ou não fazer 22. Como se vê, trata-se de uma ação ou omissão que deve ser cumprida pelo devedor da obrigação. Desde que seja lícita, possível, determinada ou determinável 23, as partes têm direito de fixarem os objetos que bem entenderem. Esta é, por sinal, uma das diferenças entre o direito das obrigações e os direitos reais: enquanto no primeiro há uma grande liberdade de estipulação do objeto, os direitos Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos Institutos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, p Idem. Ibidem, p Expressão que não deve ser confundida com direitos da personalidade. 20 Cf. o art. 391 do CC e o art. 591 do CPC. 21 DINIZ, op. cit., p GOMES, op.cit., p Cf. o art. 104, inc. II do CC. 134

135 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO reais são numerus clausus, ou seja, suas modalidades são apenas aquelas previstas no art do CC. Costuma-se dizer também que todas as obrigações devem ser economicamente apreciáveis 24. Isso significa que em um contrato, por exemplo, o objeto envolvido ou a prestação precisam ter algum valor econômico. Todavia, podem existir situações em que o objeto possua valor apenas para as partes envolvidas 25. De qualquer forma, a estipulação de um critério pecuniário é necessária para, no caso do descumprimento do acordado, seja possível estabelecer alguma punição pela inexecução 26. Outro elemento comum a todas as obrigações é o vínculo. Embora exista mais de uma teoria que o explique, em apertada síntese, o vínculo é constituído por dois elementos: o debitum e a obligatio ou débito e responsabilidade 27. O débito é a obrigação da prestação em si, que é cumprida pelo devedor; a responsabilidade é a sujeição do patrimônio do devedor que nasce no caso de inadimplemento 28. Encontra-se aí a possibilidade da coercibilidade, no caso do não cumprimento, pelo devedor. Quase sempre o débito e a responsabilidade estão juntos. Todavia, nada impede que se tenha uma obrigação sem responsabilidade ou uma responsabilidade sem obrigação 29. A primeira situação envolve as chamadas obrigações naturais. Elas não podem se exigidas judicialmente, mas se pagas, também é possível, de acordo com o art. 814 do CC, recobrar suas quantias 30. Outro exemplo das obrigações naturais é a dívida prescrita que não é mais exigível, mas se porventura for paga pelo devedor, este não pode tentar restituí-la 31. A obrigação natural só nasce para o direito quando ela é paga fazendo nascer, para o credor, o direito 24 BEVILAQUA, op.cit., p É comum que fãs de artistas famosos adquiram em leilões pedaços de cabelos dos artistas por vultosas quantias. 26 BEVILAQUA, op.cit., p De acordo com os alemães débito significa shuld e responsabilidade haftung. Cf. CARNACCHIONI, op.cit., p Idem. Ibidem, p GONÇALVES, op.cit., p Clóvis do Couto e Silva indica como exemplos das obrigações naturais: as de jogo e aposta, as de honra e as de crédito com pretensão prescrita. Cf. SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2006.p RIZZARDO, op.cit.p

136 Guilherme Damasio Goulart de retê-la 32. Ainda na primeira situação, outro caso bastante curioso, em relação às obrigações naturais, são aquelas relacionadas às relações afetivas entre pais e filhos. Os tribunais têm entendido que não haveria como, por exemplo, obrigar um pai a passar as férias com um filho; eis que, dar carinho e amor ao filho seria uma obrigação (de fazer) natural e, portanto, não executável 33. Já o segundo caso (responsabilidade sem obrigação) trata-se da situação da fiança em que alguém se obriga a pagar uma dívida contraída por outro devedor em caso do inadimplemento deste, conforme o art. 818 do CC. As obrigações, sem exceção, também possuem alguma causa, que não se confunde com seu objeto. Tais causas são tratadas pela doutrina como as fontes das obrigações. Classicamente, as fontes ou causas das obrigações eram tidas como o contrato, o quase-contrato, o delito e o quase-delito 34. À ideia de separação entre contrato e delito reconhece-se uma função de cada uma das fontes. O contrato possui uma função dinâmica, baseada na vontade de realizar a circulação de riquezas e regular os interesses das partes; já o delito possui função estática e é visto como um instrumento de proteção do patrimônio jurídico do indivíduo em relação a perturbações exteriores, capazes de lesar sua esfera pessoal ou 32 Idem. Ibidem, p Embora o Tribunal utilize o termo obrigação, levando em conta a diferença entre dever e obrigação trazida acima, parece que o termo adequado aqui seria realmente dever. Não se ignora o fato desta questão ser bastante polêmica e há situações em que filhos abandonados conseguem indenizações pelo chamado abandono afetivo. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 7ª Câmara Cível. Apelação n L.R.F x M.S.C. Relator: Desª. Liselena Schifino Robles Ribeiro. Porto Alegre, 07 de Maio de APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. PEDIDO DA GENITORA PARA QUE O FILHO PASSE AS FÉRIAS COM O PAI. DESCABIMENTO. 1. A regulamentação de visitas materializa o direito do filho de conviver com o genitor não guardião, e também o deste em dirigir e participar da educação do filho, sendo o espaço próprio para o desenvolvimento de vínculos afetivos. 2. O acordo de visita ao filho, assegurou o direito do pai de exercer a visitação de forma livre. Porém, se o pai mostra desinteresse em conviver com o filho, dar-lhe carinho e amor, não pode o Poder Judiciário obrigá-lo a cumprir com essa obrigação natural [grifo nosso], sob pena de prejudicar o próprio filho, pois a visitação forçada terminaria por estabelecer uma convivência de má qualidade e até traumática, pois não é possível forçar alguém a ser bom, gentil e afetuoso. A visitação do pai ao filho deve ser um momento agradável e recíproco, tendo natureza personalíssima, sendo juridicamente impossível a sua determinação como pretende a autora. RECURSO DESPROVIDO. 34 Cf. Livro Terceiro, Título XIII, 2º de JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Ibidem, p

137 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO econômica 35. Assim, modernamente, no último caso, tem-se como fonte das obrigações o ato ilícito. Nasce a obrigação de indenizar quando alguém comete um ato ilícito, conforme o art. 927 do CC 36. E, aí, vê-se a beleza da disciplina do direito das obrigações que permite, ao estudar as obrigações de indenizar, integrar toda a disciplina da responsabilidade civil tão importante em uma sociedade do risco. A lei também é vista como fonte imediata ou primária de obrigações. Qualquer que seja o ato, submete-se ele à vontade da lei 37. Por mais que as partes tenham a liberdade, baseadas no princípio da autonomia da vontade, para estipular, criar e definir o conteúdo dos seus pactos, mesmo assim, devem submeter-se à lei 38. A lei estipula os efeitos dos atos sendo um deles, entre muitos, a possibilidade das pessoas criarem seus pactos obrigacionais. De qualquer forma, a doutrina atual aponta o contrato, a declaração de vontade e o ato ilícito como fontes de obrigação 39. É bem verdade que, entre os autores e, principalmente nos livros, textos ou manuais de direito civil, não há um consenso sobre quais são exatamente as fontes. Assim, é possível encontrar na doutrina aqueles que afirmam, ao fim, que as fontes das obrigações resumem-se apenas ao ordenamento jurídico vigente 40. Diz-se, por isso, que a complexidade das relações é grande e podem existir situações específicas que não fiquem estabelecidas pelas fontes citadas na doutrina. A disciplina de direito das obrigações estuda ainda os vários tipos de obrigações, em relação à natureza do objeto, à sua liquidez e ao modo de execução. Há, ainda, as obrigações com seus elementos acidentais, como as obrigações condicionais, modais e a termo. Estuda-se, igualmente, as obrigações divisíveis e indivisíveis, solidárias e quanto ao seu conteúdo (as obrigações de meio, resultado e garantia). Também, ao 35 MIRAGEM, Bruno. Abuso do Direito: Ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no Direito Privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p Art. 927 do CC: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. 37 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, p SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, p Idem. Ibidem, p RIZZARDO, Arnaldo. Ibidem, p

138 Guilherme Damasio Goulart longo da disciplina, vê-se os efeitos das obrigações, sobretudo as questões relacionadas ao adimplemento e ao inadimplemento e, também, em relação à sua transmissão. Contudo, há aspectos mais profundos sobre como o direito tratou, ao longo da história, a disciplina das obrigações. Em boa parte do período histórico, o direito das obrigações foi regido pela prevalência máxima do chamado pacta sunt servanda. Esse princípio estabelece que as partes possuem a liberdade para estabelecerem livremente os pactos, desde que, evidentemente, não contrariem a lei, os bons costumes e a ordem pública de maneira geral 41. Tendo isso em conta, os negócios eram muito mais pautados pela sua literalidade 42 : o que estava escrito nos contratos era o que deveria ser seguido sem muitas possibilidades de verificação de injustiças ou situações que prejudicassem muito a posição do devedor. Carregado de um individualismo exacerbado e de uma ética valorizadora da propriedade acima de qualquer coisa, com a evolução da sociedade, foi-se notando que o Direito - baseado em tais premissas - não estava conseguindo acompanhar as necessidades humanas. O direito das obrigações do século XIX valorizava muito mais a propriedade e, apesar de promover inegáveis avanços, passou a criar, em certos momentos, desigualdades e a favorecer exageradamente a parte mais forte 43. Passou-se a questionar, então, entre outras coisas, se o cumprimento absoluto do pacta sund servanda seria compatível com um regime de proteção da pessoa 44.Além do mais, com os processos de industrialização, começou-se a observar um crescente processo de promoção de desigualdades. Grandes grupos comerciais passaram a impor às pessoas uma série de condições prejudiciais que, ao longo dos anos, 41 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. O direito das obrigações na contemporaneidade. In: MELGARÉ, Plínio (Org). O direito das obrigações na contemporaneidade: Estudos em homenagem ao Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p , p GOMES, Orlando. Ibidem, p Se no período marcado pelo liberalismo a força obrigatória dos pactos devia-se apenas à vontade livre das partes, com o estado social é necessário mais. Não basta a vontade livre mas é necessário também que o pacto esteja em conformidade com a ordem constitucional e outros princípios como boa-fé, função social do contrato e da propriedade, dignidade da pessoa humana, etc. CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p

139 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO importaram no aumento do clamor geral por justiça 45. O Estado passa, então, a interferir e limitar a autonomia da vontade 46 colocando alguns limites na liberdade de contratar. Um dos exemplos importantes nesse campo é o próprio Código de Defesa do Consumidor, que impõe uma série de limites à liberdade de contratar dos fornecedores de serviços. Mais recentemente, da mesma forma, aparece o Marco Civil da Internet, impondo às empresas que atuam na Internet uma série de deveres no sentido de garantir direitos aos internautas. De certa forma, tais iniciativas tentam sustentar a manutenção do equilíbrio 47, principalmente, por evitar abusos e práticas que prejudiquem as partes unidas pelo vínculo obrigacional 48. É importante ressaltar que não se elimina a autonomia da vontade, ao contrário, ela é limitada, atenuada ou até mesmo reduzida frente a interesses mais caros, sobretudo, no que diz respeito à dignidade da pessoa humana 49 em homenagem à própria função social do contrato. Todavia, ainda persiste uma autonomia não mais elevada às raias de um direito absoluto, mas sim, ponderada pela valorização da pessoa Direito das Obrigações, modernidade e boa-fé Após essa breve exposição acerca da visão clássica das obrigações e sobre alguns de seus elementos é possível questionar como a modernidade afeta tais relações. Será que as mudanças sociais ocorridas nos últimos 20 ou 30 anos permitem que se estude o direito das obrigações baseando-se nas mesmas premissas clássicas? 45 BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Os princípios reguladores da autonomia privada: autonomia da vontade e boa-fé. Revista Direito e Democracia da Ulbra. v. 1, n. 1, p , 1º sem p A figura da autonomia da vontade é tratada quase sempre nas disciplinas de teoria geral dos contratos. No Código Civil encontra-se localizada nos arts. 421 e 425 já, portanto, na parte que trata das disposições gerais sobre os contratos em geral. Todavia, esta divisão tópica e didática (das disciplinas) muitas vezes precisa ser ultrapassada. Ambas as disciplinas, direito das obrigações e teoria geral dos contratos, são muito próximas e, por vezes, é necessário fazer uma integração e ligação dos assuntos tratados em ambas. 47 BRANCO, op.cit, p A teoria geral dos contratos aborda, com mais profundidade tais questões ao tratar, por exemplo, dos chamados contratos de adesão. 49 É o que diz o enunciado 23 da I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: Art. 421: A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana. 139

140 Guilherme Damasio Goulart O direito como um todo é, evidentemente, afetado pelas modificações sociais. As mudanças históricas vão, ao longo do tempo, criando novas relações e estabelecendo novas normas de conduta. Todas as áreas, ramos ou disciplinas sofreram modificações, sobretudo, após o segundo pós-guerra. O uso intenso da tecnologia, por exemplo, cria novas formas de contato, o que influi sobremaneira nas relações obrigacionais. Igualmente, o direito das obrigações é afetado por modalidades negociais, como os contratos de adesão e os contratos de massa. Em função de uma crescente desigualdade entre os contratantes foi possível ver o nascimento do Código de Defesa do Consumidor e de orientação jurisprudencial pacífica no sentido de se reestabelecer a igualdade entre os contratantes. A massificação das relações de crédito envolvendo, inclusive, o direito do consumidor dão força e impulso a um direito das obrigações renovado e alinhado com princípios e regras constitucionais, sobretudo, a proteção da dignidade da pessoa humana. Não é mais o patrimônio o centro do ordenamento jurídico, mas sim a pessoa humana. Não se pode sustentar uma dogmática que permita a promoção da injustiça 50. Realiza-se, portanto, uma despatrimonialização e uma repersonalização do direito civil tendo em conta uma visão constitucionalizada do direito privado 51. Um dos objetivos da República, é importante frisar, é justamente a construção de uma sociedade justa e solidária, com a redução das desigualdades, conforme previsão do art. 3º, I e II da CF. A tecnologia também influencia muito os direitos das obrigações. A própria ideia de despersonalização das relações virtuais existente nas relações de consumo via Internet é um exemplo do apagamento da figura do devedor. Não se sabe, exatamente, quem é o devedor e, com isso, dilui-se um dos componentes principais do direito: a confiança. A proteção da confiança é e sempre foi um dos elementos mais importantes para o direito. É possível dizer que há um interesse em toda 50 FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro IDBB, Local? Ano 1, n. 1, p , 2012, p No mesmo sentido ver AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Ibidem, p. 12:...não era mais aceitável o extremo patrimonialismo da velha ordem, mais preocupada com os bens do que com as pessoas; a liberdade meramente formal e a igualdade apenas jurídica consagravam situações de extrema injustiça FACCHINI NETO, op.cit., p

141 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO a sociedade que a confiança seja protegida e que a palavra dada seja cumprida 52. O novo Código Civil, ao contrário do de 1916, traz em si, em várias passagens, uma ideia de socialidade 53. Esta ideia é apoiada, especialmente, por dois princípios: a boa-fé objetiva e a finalidade ou fim social do contrato 54. Tradicionalmente, e ainda hoje isso é perceptível, as partes na obrigação eram colocadas em posições antagônicas. Todavia, na lição de Clóvis do Couto e Silva, a obrigação deve ser vista como um vínculo de cooperação; trata-se de uma totalidade orgânica 55. O termo obrigação como processo também abrange a ideia de dinamicidade da obrigação que comporta várias fases que se desenvolvem para uma finalidade 56. Na perspectiva de um direito civil moderno, o princípio da boafé objetiva perpassa praticamente qualquer relação de direito privado. No âmbito do direito das obrigações, com a chamada unificação das obrigações civis e comerciais, entende-se que há a aplicação da cláusula de boa-fé tanto nas obrigações civis quanto nas comerciais 57. Com isso, tanto os contratos entre particulares quanto os contratos entre empresas precisam observar a boa-fé objetiva. De igual forma, o Código de Defesa do Consumidor prevê, nos arts. 4º, III e 51, IV, a boa-fé como cláusula geral. Mesmo antes do Código Civil de 2002, que prevê a observância da boa-fé objetiva no seu art. 422, alguns doutrinadores já a enxergavam no ordenamento brasileiro. Entre os mais importantes cita-se Clóvis do Couto e Silva 58, Judith Martins-Costa 59 e Orlando Gomes 60. De forma geral, tais autores desenvolveram a ideia, com base no direito compa- 52 NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). Manual de direito civil: obrigações. São Paulo: RT, p AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Ibidem, p Idem. Ibidem, p SILVA, Clóvis do Couto e. Ibidem, p Idem. Ibidem, p Cf. CAROTA, José Carlos. A unificação das obrigações civis e comerciais como um dos fundamentos do direito civil contemporâneo. Revista Forense, v. 415, p , jan.-jun./ SILVA, op.cit.,p MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, GOMES, Orlando. Ibidem. 141

142 Guilherme Damasio Goulart rado, partindo da cláusula de boa-fé (treu und glauben) 61 inscrita no código civil alemão (BGB), o que constitui um elemento fundamental para uma compreensão absolutamente nova da relação obrigacional 62. Não se admite que as partes, em uma relação obrigacional, ajam no sentido de se prejudicarem. Sabe-se que a boa-fé objetiva é um dos exemplos de cláusulas gerais que permitem [...] o ingresso, no ordenamento jurídico, de princípios valorativos, expressos ou ainda inexpressos legislativamente, de standards, máximas de conduta, arquétipos exemplares de comportamento, das normativas constitucionais e de diretivas econômicas, sociais e políticas, viabilizando a sua sistematização no ordenamento jurídico 63. É possível dizer que tais cláusulas também permitem uma ligação intra-sistemática que consideram as próprias normas do código e também intersistemática, ou seja, entre o código civil e a constituição 64. Este tipo de cláusula aberta ou geral como a boa-fé - promove a abertura de toda a ordem jurídica, permitindo avançar contra a visão antiga de um modelo fechado do ordenamento, pretensamente sem lacunas, e que reproduzia a ideia das regras positivadas serem suficientes em si. Sem adentrar no terreno da hermenêutica (e o cuidado que se deve ter com a arbitrariedade e discricionariedade na interpretação de cláusulas gerais 65 ) é certo que se reconhece a socialidade como um pa- 61 Cf. 242 do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB) ou Código Civil Alemão. 62 SILVA, Clóvis do Couto. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português. In: FRADERA, Vera Maria Jacob (org). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 34. Embora seja quase sempre citado o 242 do BGB, este autor indica que ele é reforçado também pelo 157 do mesmo diploma legal. 63 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, p MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, p Ver o capítulo Argumentação Jurídica desta obra, escrito pela Profa. Ângela Kretschmann e pelo Prof. Ney Wiedmann Neto. Ver, também, as críticas de STRECK, Lênio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas: Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p : quando se diz que a Constituição e as leis são constituídas de plurivocidades sígnicas (textos abertos, palavras vagas e ambíguas, etc), tal afirmativa não pode dar azo a que se diga que sempre há várias interpretações e, portanto, que o direito permite múltiplas respostas, circunstância que, paradoxalmente, apenas denuncia [ ] as posturas positivistas que estão por trás de tais afirmativas; por isso que também são incompatíveis com a hermenêutica as teses que as teses sustentam que o advento dos princípios e das cláusulas gerais possibilitam uma (maior) abertura (liberdade) interpretativa em favor dos juízes, circunstância que recoloca, no paradigma neoconstitucionalista, a principal característica do positivismo: a discricionariedade. 142

143 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO radigma importante no Direito Civil moderno. De maneira geral, todo o direito privado acaba por passar por uma abertura sistemática no sentido de realizar uma aproximação com o Direito Público, e a irradiação dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição às relações entre particulares 66. Se, por exemplo, a proteção da intimidade, vida privada, honra e imagem é tida como um direito fundamental, não apenas o poder público deve respeitá-lo, mas, também, os particulares em suas relações. A boa-fé objetiva tem, por fim, diversas funções e momentos para sua observância. Ela têm espaço na fase pré-contratual, no curso da prestação e também após. Além do mais, dentre suas funções, é possível encontrar no mínimo três: interpretativa, de acordo com o art. 113 do CC; controle dos limites do exercício de um direito, conforme o art. 187 do CC; e função de integração do negócio jurídico, pela análise do art. 421 do CC 67. A função interpretativa da boa-fé age na limitação da autonomia da vontade por meio da imposição de certos deveres que podem não estar presentes nas manifestações de vontade 68.O intérprete deve, na sua atividade, sempre retornar à ideia de boa-fé como regra mestra: interpreta-se sempre conforme a boa-fé 69. Trata-se, também, de conferir justa medida à vontade que se interpreta 70. Já a função de integração envolve colocar, no negócio jurídico, eventuais elementos que não estejam diretamente relacionados com a declaração. É por meio dessa possibilidade que entram em jogo os chamados deveres anexos, que serão vistos logo a seguir. Agir de boa-fé, por óbvio, significa não agir de má-fé. Essa regra indica que as partes devem agir, entre outras coisas, com lealdade umas com as outras em uma relação obrigacional. E o que significa agir com lealdade? Quais atos que indicam que alguém é leal com o outro? Basicamente, ser leal é pautar a relação pela proteção da confiança (que é a base de qualquer relação humana 71 ), pela indicação de informações 66 MIRAGEM, Bruno. Ibidem, p VENOSA, Sílvio de Salvo. Ibidem, p MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Ibidem, p Idem. Ibidem, p SILVA, Clóvis do Couto e. Ibidem, p CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p

144 Guilherme Damasio Goulart úteis sobre a situação e pela consideração da verdade. Agir pautado pela boa-fé indica que a parte não pode enganar a outra ou omitir informações verdadeiras e necessárias para o negócio. Muitas vezes, as partes omitem informações cruciais sobre o negócio, que se fossem conhecidas fariam com que a outra parte não contratasse. Um médico, por exemplo, tem o dever de prestar todas as informações em uma cirurgia estética, envolvendo possíveis riscos, eventuais problemas relacionados, sobre os resultados, bem como outros cuidados pós-operatórios. Segundo jurisprudência do TJ-RS, em tais casos, a informação dada pelo médico deve ser exaustiva e minuciosa 72. A consideração da boa-fé, nas relações obrigacionais, faz nascer também alguns deveres específicos, que serão vistos agora Os deveres anexos nas obrigações O grande jurista Clóvis do Couto da Silva afirma que, nas obrigações, é possível separar os deveres em duas classes: os deveres principais, relacionados com o cumprimento da obrigação em si, e os deveres anexos, também chamados de secundários ou instrumentais 73. A própria ideia de abuso de direito, contida no 187 do CC 74, é um dos balizadores da atuação das partes na obrigação. Aquele que exerce seu direito de forma anormal, violando, por exemplo, os limites sociais de um direito, mesmo em uma relação obrigacional, pode cometer o abuso de direito que faz nascer a obrigação de indenizar. Assim, a ideia 72 Cf. pode ser visto no acórdão relatado pelo professor do Cesuca e também Desembargador Ney Wiedemann Neto: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 6ª Câmara Cível. Apelação n T.S.P x T.V. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. Porto Alegre, 29 de Maio de Apelação cível. Responsabilidade civil. Ação de indenização por danos morais e estéticos. Erro médico. Cirurgia plástica estética. Obrigação de resultado. Erro medido caracterizado. Dever de indenizar configurado. Descumprimento do dever de informação. O profissional da medicina tem o dever de informar o paciente sobre os detalhes do procedimento, os riscos e implicações, bem como as suas garantias, além dos cuidados necessários para alcançar o resultado almejado. Manutenção da verba indenizatória fixada em sentença quanto ao dano moral. O valor da indenização pelo dano moral deve ser fixado, considerando a necessidade de punir o ofensor e evitar que repita seu comportamento, devendo se levar em conta o caráter punitivo da medida, a condição social e econômica do lesado e a repercussão do dano. Juros de mora. Alteração do termo inicial. Apelo do réu não provido e apelo da autora parcialmente provido. 73 SILVA, op.cit.,p Art. 187 do CC: Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 144

145 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO de abuso de direito pode servir para permitir a eficácia indireta dos direitos fundamentais às relações privadas 75. Justamente, uma das formas de limitar o abuso de direito é pela consideração da boa-fé objetiva nas relações. Com isso, há quem diga que a referida norma é a cláusula geral mais importante do sistema jurídico, pois permite o afastamento até mesmo do direito que a lei atribui às pessoas, a fim de resguardar os princípios éticos 76. O mesmo autor afirma, em outro espaço, que se trataria de norma quase perfeita do ordenamento que ilumina todo o direito das obrigações 77. Assim, a importância do estudo dos chamados deveres anexos é que eles também necessitam ser respeitados, mesmo que o contrato não contenha previsão específica a seu respeito 78. De fato, nem seria necessário que os contratos estabelecessem o dever das partes de se comportarem de acordo com a boa-fé. Não se concebe que as partes, em uma relação obrigacional, possam agir de má-fé pois o próprio CC em seu art. 422 estabelece que Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Além do mais, tais deveres, quando violados, se causarem danos à outra parte, podem fazer nascer o dever de indenizar, sendo considerados, também, nas fontes (ou causas) das obrigações. Assim, a aplicação e consideração dos deveres anexos estes baseados e provenientes na observância da boa-fé objetiva 79 - têm espaço em situações em que a fonte da obrigação é o contrato ou o ilícito. A violação da boa-fé serve, portanto, como um guia para o cumprimento das obrigações, orientando as partes. 75 MIRAGEM, Bruno. Ibidem, p AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Ibidem, p AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: As Obrigações e os contratos. Revista CEJ, Brasília, V. 3 n. 9 set./dez Disponível em: < php/revcej/article/view/236/398>. Acesso em: 20 Ago MIRAGEM, Bruno. Ibidem, p. 212: [...] a boa-fé ao servir de fonte para a existẽncia de deveres laterais ou anexos, igualmente estende a proteção jurídica da relação obrigacional para além dos termos expressamente pactuados[...] 79 Id. Ibidem, p Diz o autor que Em matéria obrigacional, a boa-fé ocupá um lugar de destaque independente da espécie de relação jurídica que se estabeleça, seja negocial, decorrente de ato ilícito ou enriquecimento sem causa. 145

146 Guilherme Damasio Goulart Os referidos deveres anexos possuem diversas funções. Como deveres de conduta, de proteção ou de tutela podem ser vistos como deveres de: cuidado, previdência, segurança, aviso, esclarecimento, informação 80, prestar contas, colaboração e cooperação 81. Também podem abranger a ideia de omissão como, por exemplo, guardar segredo sobre as informações de um contrato que possam prejudicar a outra parte, se reveladas. Assim, em qualquer relação obrigacional, ambas as partes precisam observar estes deveres anexos que devem ser cumpridos junto com o dever principal. É importante destacar, também, acerca do momento de consideração dos deveres anexos. Entende-se que, mesmo antes de firmada uma obrigação, se uma das partes começa a se comportar no sentido de despertar uma situação de confiança na outra parte, tal ato já seria suficiente para a constituição de um negócio jurídico 82. Portanto, a confiança despertada merece tutela nas relações obrigacionais. Assim, uma parte que rompe sem justificativa tratativas sérias e já adiantadas, principalmente depois da outra parte ter realizados investimentos para realizar o referido negócio, pode ser obrigada a indenizar em função do rompimento de tratativas 83. A boa-fé pode não ser forte o bastante 80 Como se viu anteriormente no julgado envolvendo o dever de informar do médico. Embora ele seja um princípio consagrado e positivado no Código de Defesa do Consumidor (art. 6º, inc. IV) como um direito básico do consumidor, ele também se aplica [o dever] também em outros tipos de relação, não apenas nas de consumo. Duas grandes empresas, ao firmarem um pacto, não podem omitir, uma da outra, detalhes ou informações que possam prejudicá-las. 81 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, p MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa-fé no direito Civil. Coimbra: Almedina, 1984.p TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 10ª Câmara Cível. Apelação n M. C. F. D. S X G.C.M e E.N.D.S.C. Relator: Des. Túlio de Oliveira Martins. Porto Alegre, 16 de Fevereiro de RESPONSABILIDADE CIVIL. OBRA LITERÁRIA. ROMPIMENTO DO CONTRATO AINDA NA FASE DS TRATATIVAS. BOA-FÉ OBJETIVA. DANO MORAL CONFIGURADO. DANO MATERIAL INEXISTENTE. I - Os contratantes devem agir com transparência, lealdade e probidade, inclusive na fase pré-contratual, respeitando a boa-fé objetiva que rege as relações contratuais. Hipótese na qual a inclusão de pessoa como coautora de obra literária, de forma arbitrária, não transparente e quando já avançadas as tratativas para a confecção do livro, não se coaduna com a conduta esperada nas relações jurídicas, dando causa ao rompimento do pacto e ao dever de indenizar, forte no art. 187 e 927, ambos do Código Civil. II - O rompimento da negociação, após três meses de tratativas, inclusive com captação de recursos junto aos patrocinadores, realização de todas as etapas preliminares, tais como aprovação do protótipo, preparo da divulgação, etc. acarreta dano moral indenizável. As adversidades sofridas pela autora, a aflição e o desequilíbrio em seu bem-estar, fugiram à normalidade e se constituíram em agressão à sua dignidade. [...]. 146

147 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO para constituir um contrato mas, mesmo assim, protege a confiança que, quando desrespeitada, pode fazer nascer a obrigação de indenizar em função do dano causado 84. Tais deveres também permanecem mesmo após finalizado um contrato. Uma parte que se nega a devolver uma coisa em seu poder em função de um contrato já extinto enquadra-se nesta situação 85. Por tudo isso, passa-se a verificação do que vem a ser um direito das obrigações moderno Por um direito das obrigações moderno: a consideração da dignidade da pessoa humana Viu-se que, entre os elementos clássicos da obrigação, está a ideia de vínculo entre duas partes. Sob o influxo da consideração da dignidade da pessoa humana nas relações privadas e também da ideia da obrigação como processo, não é possível ver a relação entre credor e devedor como uma relação antagônica. As partes, em uma obrigação, não são inimigos que brigam para ver quem conseguirá ter mais vantagem em relação à outra. O credor não pode estabelecer cláusulas abusivas e também o devedor não pode furtar-se a cumprir suas obrigações. Tudo isto em nome, também, do princípio da boa-fé objetiva que orienta a cooperação entre as partes 86. Viu-se também as ideias de obrigação como processo e da consideração dos deveres anexos em todas as fases da obrigação. Dito isso, é possível reavaliar o vínculo para abranger não apenas a ideia de prestação de alguém em favor do outro, mas de uma prestação qualificada pelo vínculo de colaboração e de cooperação. 87. É possível dizer, até mesmo, que existe um dever geral de colaboração que domina todo o direito das obrigações 88 que gera, por sua vez, também, um dever geral de correção BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Ibidem, p DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade Civil. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Ibidem, p CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson. Ibidem, p Idem. Ibidem, p

148 Guilherme Damasio Goulart Antes mesmo do novo Código Civil e da Constituição de 1988, alguns juristas, como o célebre Orlando Gomes, já afirmavam que atualmente (e ele escreveu isto em 1967) o direito das obrigações deve compreender o equilíbrio social, de impedir a exploração do fraco pelo forte etc. 90. A ideia de que todo o direito civil é perpassado pela ideia de boafé objetiva e de que a própria liberdade contratual é balizada pela função social do contrato, altera alguns dos elementos clássicos da obrigação. Amplia-se, por exemplo, a ideia de que a obrigação apenas gera efeitos entre credor e devedor. Com a função social do contrato deve-se ter em mente que nenhuma obrigação, ao ser cumprida, pode causar danos a terceiros ou a uma coletividade. De igual forma, os sujeitos não são mais vistos, como nas codificações antigas, como meros sujeitos abstratos. Modernamente, são vistos e entendidos dentro de sua concretude e tendo em conta suas limitações, desequilíbrios e vulnerabilidades 91. Tal consideração permite proteger certos sujeitos em uma clara demonstração da eticidade 92 e socialidade do código: limita-se a liberdade contratual em prol da construção de relações sociais mais justas 93. Não se admite a ideia de que um credor possa, ao exigir seu crédito, arruinar a vida de seu devedor. Não é necessário nem mesmo adentrar nas raias do direito do consumidor para explicar tal questão. Há uma figura comentada na jurisprudência e na doutrina conhecida como teoria do mínimo existencial. Por meio desta teoria é possível defender a relativização de certos acordos para, assim, manter a dignidade humana por meio da estipulação de um mínimo necessário para alguém sobreviver. Este mínimo existencial funda-se não apenas nas questões materiais (valores mínimos necessários para que alguém consiga sobreviver, incluído aí o bem de família) mas também em questões espiri- 90 GOMES, Orlando. Ibidem, p FACCHINI NETO, Eugênio. Ibidem, p Neste caso, o autor cita os exemplos de consumidor, locatário, empregado, arrendatário. Pode-se incluir a própria figura do Internauta, agora também protegido pelo Marco Civil da Internet. Cada um desses sujeitos passa a contar também com leis específicas para protegê-lo, criando verdadeiros microssistemas legais. Retira-se, a partir daí, o foco sobre o Código Civil. 92 O paragidma da eticidade é vinculado ao princípio da boa-fé objetiva conforme SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como..., p Idem. Ibidem, p

149 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO tuais (proteção da honra) 94. Entre os muitos casos no qual tal teoria é aplicada, cita-se a limitação em 30% do salário do devedor nos casos de descontos em folha de empréstimos 95. Destaque-se que não se quer, com tal teoria, evidentemente, fazer com que os devedores não arquem com suas dívidas. O que se pretende é não permitir que os credores destruam a vida dos devedores apenas para a obtenção de seus créditos. Outro motivador de uma visão moderna do direito das obrigações é a figura da constitucionalização do direito civil ou também publicização do direito privado, que coloca em xeque, até mesmo, a própria dicotomia entre essas duas áreas. Na verdade ambas as áreas possuem pontos de convergência 96, como, por exemplo, a própria ideia de uma função social do contrato 97 e proteção de direitos fundamentais também nas relações entre particulares 98. Mesmo em uma relação obrigacional, a atuação das partes envolvidas sobretudo no que diz respeito à autonomia da vontade fica limitada pelas regras e princípios constitucionais. É possível encontrar em um exemplo do Código de Defesa do Consumidor uma concretização dessa ideia. O art. 42 deste diploma legal dispõe que Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Tal regra é uma clara manifestação da consideração da dignidade humana e também da proteção da honra das pessoas nas relações obrigacionais. Não se pode um credor, para satisfazer seu crédito, passar a humilhar ou perseguir os devedores, expondo-os ao ridículo. 94 CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Ibidem, p Por todos ver: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. 17ª Câmara Cível. Apelação n J.M.O.A x B. Relator: Des.ª Liége Puricelli Pires. Porto Alegre, 31 de Julho de 2014: APELAÇÕES CIVEÍS. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. limitação dos descontos realizados em conta-corrente. possibilidade. dignidade da pessoa humana. mínimo existencial. DANO MORAL NÃO CONFIGURADO. I. O posicionamento majoritário desta Câmara é no sentido de que são permitidos os descontos em conta-corrente/folha de pagamento, desde que observado o limite de 30% dos vencimentos brutos. Se o valor descontado pela instituição bancária na conta-corrente do demandante incidir sobre seu salário/aposentadoria, deverá o lançamentos da prestação referente ao mútuo pactuado ser realizado com a mencionada limitação de 30%, sob pena de ofensa ao mínimo existencialdecorrente do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. [grifo nosso] [...] APELO DO AUTOR DESPROVIDO. APELO DO RÉU PARCIALMENTE PROVIDO. UNÂNIME. 96 FACCHINI NETO, Eugênio. Ibidem, p Idem. Ibidem, p Idem. Ibidem, p

150 Guilherme Damasio Goulart CONSIDERAÇÕES FINAIS A intenção deste texto é despertar uma curiosidade no aluno, no sentido dele conhecer um pouco mais sobre a visão moderna do direito das obrigações, pois nem sempre tais questões serão encontradas nos livros conhecidos como manuais e cursos de direito civil. É assim, por meio do estudo de um direito das obrigações moderno que se consegue vislumbrar um cenário de valorização da pessoa humana. A disciplina também tem importante função na caminhada do aluno, de introdução e apresentação de uma série de aspectos que serão primordiais em praticamente todas as outras disciplinas do direito civil. Avaliam-se as relações, em geral, com base nessa consideração ética e social dos vínculos. O aluno deve, portanto, sustentar e aprimorar sua visão crítica para, além da consideração dos elementos clássicos do direito das obrigações, vislumbrar uma visão ética e socializada do fenômeno jurídico em geral. Tentou-se aqui, também, indicar um caminho muito importante não apenas para o direito das obrigações, mas para todo o direito privado. Trata-se do fenômeno da constitucionalização do direito privado, que permite a inserção de diversos princípios de forma horizontal entre os particulares. Além de considerar a dignidade da pessoa humana, como princípio orientador do ordenamento jurídico, é necessário atentar também para o que a própria constituição institui 99 como objetivos fundamentais da república; qual seja, ter a construção de uma sociedade justa, livre e solidária. Por trás das obrigações, dos pactos e contratos há pessoas, e tal questão sempre deve ser lembrada. Por fim, é necessário que o aluno esteja vigilante às relações obrigacionais baseadas em negócios realizados via internet. Cumpre ao estudante da disciplina observar a importância que a internet possui para a realização de novos negócios, o que constitui uma nova forma de contratar e consumir. Trata-se do comércio eletrônico que vem, pouco a pouco, sendo regulado em nosso sistema jurídico. Essas relações são bastante ricas e podem ser estudadas no âmbito do direito das obrigações, da teoria geral dos contratos e da responsabilidade civil. Entende-se que, no comércio eletrônico, há a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor que, agora, deve também dialogar com o Marco Civil da Internet. 99 Art. 3º da CF. 150

151 5 DIREITO DAS OBRIGAÇÕES: POR UM DIREITO DAS OBRIGAÇÕES HUMANIZADO Além do mais, o Brasil possui um decreto específico 100 sobre o comércio eletrônico, que regula, entre outras situações, a questão da informação e do atendimento em tais meios. Assim, a crescente utilização de tais meios para a realização de negócios deve atrair a atenção do estudante do direito das obrigações, que por sua vez deverá considerar tudo o que aqui se disse sobre a proteção da pessoa nas relações privadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Projeto do Código Civil: As Obrigações e os contratos. Revista CEJ, Brasília, v. 3 n. 9 set./dez Disponível em: < view/236/398>. Acesso em: 20 Ago O direito das obrigações na contemporaneidade. In: MELGARÉ, Plínio (Org). O direito das obrigações na contemporaneidade: Estudos em homenagem ao Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior. Porto Alegre: Livraria do Advogado, BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. Edição Histórica. Rio de Janeiro: Ed. Rio, BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Os princípios reguladores da autonomia privada: autonomia da vontade e boa-fé. Revista Direito e Democracia da Ulbra. Local? v. 1, n. 1, p , 1º sem. 2000, p CARNACCHIONI, Daniel Eduardo. Curso de Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e dos Contratos Institutos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, CAROTA, José Carlos. A unificação das obrigações civis e comerciais como um dos fundamentos do direito civil contemporâneo. Revista Forense, Rio de Janeiro, v. 415, p , jan.-jun./2012. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade Civil. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral das Obrigações. 29. ed. São Paulo: Saraiva, Decreto 7.962/

152 Guilherme Damasio Goulart FACCHINI NETO, Eugênio. A constitucionalização do direito privado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro IDBB, Lisboa, Ano 1, n. 1, p , GOMES, Orlando. Obrigações. 17. ed. São Paulo: Forense, JUSTINIANUS, Flavius Petrus Sabbatius. Institutas: Manual para uso dos estudantes de Direito de Constantinopla, compilado por ordem do Imperador Justiniano em 533 d.c. São Paulo: Edipro, LISBOA, Roberto Senise. Manual de Direito Civil: Obrigações e responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, BRANCO, Gerson. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos. Revista Direito GV, São Paulo, v.1, n. 1, p , mai./2005. MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa-fé no direito Civil. Coimbra: Almedina, MIRAGEM, Bruno. Abuso do Direito: Ilicitude objetiva e limite ao exercício de prerrogativas jurídicas no Direito Privado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coord). Manual de direito civil: obrigações. São Paulo: RT, STRECK, Lênio. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas: Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em direito. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, SILVA, Clóvis do Couto. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro e português. In: FRADERA, Vera Maria Jacob (org). O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, SILVA, Clóvis do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV,

153 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Roberta Magalhães Gubert 1 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO A formação do constitucionalismo moderno e contemporâneo e as dimensões de direitos fundamentais O Estado Absolutista O Estado Liberal e os direitos fundamentais de primeira dimensão O Estado Social e os direitos fundamentais de segunda dimensão O Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais de terceira dimensão Em busca de um conceito de Jurisdição Constitucional Controle de Constitucionalidade O modelo de controle difuso da constitucionalidade O modelo de controle concentrado da constitucionalidade O sistema de controle de constitucionalidade vigente na Constituição de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 1 Mestre em Direito pela UNISINOS. Doutoranda em Direito pela UNISINOS. Advogada. Professora do CESUCA/UNISINOS. robertagubert@cesuca.edu.br 153

154 Roberta Magalhães Gubert INTRODUÇÃO O século XX foi cenário de significativas mudanças no campo do direito constitucional. Embora o século XVIII tenha sido o grande palco para o surgimento e a afirmação do constitucionalismo moderno e para a promulgação das primeiras Constituições, foi no acontecer das duas grandes guerras mundiais que o constitucionalismo e o estudo do direito constitucional deram seu segundo e grande passo rumo ao desenvolvimento de um novo paradigma, mais preocupado com a efetividade das normas constitucionais e a garantia dos direitos fundamentais A formação do constitucionalismo moderno e contemporâneo e as dimensões de direitos fundamentais Inicialmente é importante fazer um breve esclarecimento sobre as diferenças e semelhanças entre as noções, muitas vezes confundidas, de direitos fundamentais e direitos humanos. A questão não é meramente terminológica. Conforme ensina Ingo Wolfgang Sarlet, a relevância desta diferenciação compreende, também, consequências de ordem prática, em especial aquelas relacionadas à interpretação e à aplicação das normas decorrentes de ambos os direitos (fundamentais e humanos) 2. Na seara da delimitação de termos, há que se justificar a preferência pelo termo direitos fundamentais que melhor se enquadra na experiência atual do Estado Democrático de Direito face a tantos outros empregados pela doutrina e encontrados em textos legais 3. Nesse sentido, é importante lembrar que nem mesmo a atual Constituição brasileira de 1988 é precisa, pois utiliza-se de diferentes termos para referir o mesmo conjunto de direitos (direitos e garantias individuais, direitos e liberdades constitucionais etc.). A conceituação dos direitos fundamentais depende do reconhecimento de suas características, quais sejam, sua indissociável vinculação à Constituição e seu atributo de fundamentalidade 4. Nesse sentido, 2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p Ibid., p Ibid., p

155 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL a noção de direitos fundamentais está obrigatoriamente ligada à ideia de positivação de direitos em uma ordem constitucional, do que decorre seu necessário vínculo com a Constituição. Como bem afirma J. J. Gomes Canotilho, os direitos fundamentais serão estudados enquanto direitos jurídico-positivamente vigentes numa ordem constitucional 5. Ingo Wolfgang Sarlet explica que a fundamentalidade formal dos direitos fundamentais encontra-se ligada à ordem constitucional positiva e decorre dos seguintes aspectos: (a) por integrarem o texto escrito da Constituição, estão no ápice do ordenamento jurídico; (b) por serem normas constitucionais, estão submetidos aos limites formais e materiais de reforma da constituição (cláusulas pétreas); e (c) são normas que necessariamente vinculam as entidades públicas e privadas. Já a fundamentalidade material decorre do caráter substantivo dos direitos fundamentais, que integram o sentido da Constituição e, portanto, possibilitam que outros direitos sejam reconhecidos 6. Nesse contexto, podemos concluir que a diferença terminológica entre direitos humanos e direitos fundamentais não significa uma diferença quanto ao conteúdo dos direitos protegidos, por exemplo, direito à vida, à liberdade de expressão e de crença e à igualdade são todos, ao mesmo tempo, direitos humanos e fundamentais. A diferença reside na ordem jurídica de reconhecimento e proteção. Enquanto os direitos humanos são assegurados pela ordem jurídica internacional reconhecidos principalmente em tratados internacionais firmados entre países, os direitos fundamentais são fruto das constituições de cada país. Por fim, é importante lembrar que a base das Constituições que instituíram os primeiros Estados modernos encontrava-se fundada em dois pilares: a limitação do poder estatal, por meio da garantia dos direitos individuais (direitos fundamentais de primeira geração), e o princípio da separação de poderes 7. Nesse sentido, pode-se afirmar que os direitos fundamentais integram a essência do que é constitui o Estado constitucional. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, p SARLET, op.cit., p É fundamental referir o título da obra de Nicola Matteucci, Organização do poder e liberdade que reflete perfeitamente quais foram as bases para o surgimento do constitucionalismo. SARLET, op.cit., p

156 Roberta Magalhães Gubert O Estado Absolutista A primeira noção de Estado moderno presente especialmente entre os séculos XV e XVIII surge após o Medievo e corresponde à concepção de Estado Absolutista 8. Neste, todo o poder político concentrava-se na pessoa do Rei, de quem emanava toda a autoridade pública, fundamentando-se na ideia de que o poder do Monarca era de origem divina, o que lhe permitia todo o controle sobre seus súditos. Essa forma de Estado caracterizava-se por dois elementos essenciais à sua própria manutenção: a soberania e o território. É em razão do absolutismo que se configuram as condições necessárias para o surgimento do constitucionalismo, decorrentes da exigência de controle do poder do Rei O Estado Liberal e os direitos fundamentais de 1ª dimensão Em razão das movimentações sociais, econômicas e políticas do final do século XVIII em especial, a eclosão da Independência norte -americana (1776), da Revolução Francesa (1789) e do desenvolvimento das ideias contratualistas e iluministas, os Estados passaram a se organizar em constituições formais. Esse movimento ficou conhecido como constitucionalismo, e os primeiros Estados a promulgarem suas Constituições escritas foram os Estados Unidos, em 1787, e a França, em O Estado organizado e limitado pela existência de uma constituição passa a receber a denominação de Estado de Direito 9. José Afonso da Silva destaca que as características básicas desse Estado de Direito são a submissão ao império da lei (noção de supremacia da lei da qual decorreu o princípio da legalidade), a separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário e o reconhecimento e a garantia dos direitos fundamentais individuais (que possibilita o surgimento da ideia de um direito subjetivo público de direitos do indivíduo contra o próprio Estado, também denominados na terminologia norte americana de direitos de resistência ) STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 44. v SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 156

157 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Os primeiros estados constitucionais possuíam uma configuração inicial rígida e estática, privilegiando a ideia de contrato social. Para os autores contratualistas do referido período Montesquieu, Locke e Rousseau, dentre outros o grande desafio a ser superado é a Monarquia Absolutista e a personalização do poder na própria pessoa do rei 11. Assim, a lei funciona como grande limitadora da atuação do poder estatal e é percebida como razão objetiva, protetora da vontade geral. Esse primeiro modelo de Estado de Direito tem como base as ideias liberais burguesas (na qual o Estado deve intervir de forma mínima na economia e na organização da sociedade e da família) e está assentado nas noções de liberdade (contratual e econômica) e limitação do poder. Tal limitação do poder político do próprio Estado se deu tanto de forma interna, com a separação dos poderes, quanto externa, com a sua função mínima de intervenção na sociedade 12. Esses textos constitucionais tinham como objetivo estruturar juridicamente o poder político, determinando a forma e o sistema de governo, bem como prever a separação de poderes e, principalmente, estabelecer os direitos e as garantias individuais, limitando o poder político do Estado em razão de uma atuação negativa (de abstenção). Nesse primeiro modelo de Estado, os direitos fundamentais assegurados seriam aqueles denominados de primeira dimensão e significaram direitos de liberdade individual, requisitando a abstenção, ou seja, a não-intervenção estatal (por isso, chamados de negativos ). Como já assinalado anteriormente, eram direitos que limitavam o poder do Estado. Pode-se incluir neste rol os direitos à vida, à propriedade privada, à liberdade de crença, de expressão, de imprensa, a inviolabilidade da casa, entre outros p COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre a o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: Revista de Informação Legislativa. a. 35. n abr./jun. Brasília: p p MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 47.v

158 Roberta Magalhães Gubert O Estado Social e os direitos fundamentais de segunda dimensão O marco histórico que com maior facilidade pode ser relacionado à transformação do Estado Liberal em Estado Social é a 1ª Revolução Industrial. No entanto, apesar da identificação de um determinado evento como fato deflagrador dessa passagem, muitos outros acontecimentos e contingências também devem ser arrolados como fatores que contribuíram para esse processo. O surgimento de uma nova classe social (o proletariado); o desenvolvimento tecnológico; a necessidade do consumo de bens; o acesso à informação; a exploração no mercado de trabalho; a desigualdade social gerada pela política de abstenção do Estado; são apenas alguns exemplos da insuficiência do modelo de atuação estatal minimalista. Dessa forma, foi preciso superar o modelo do liberalismo clássico (caracterizado por uma abstenção por parte do Estado e pela preponderância de valores individualistas na sociedade), para que o Estado passasse a intervir na economia, amenizando as desigualdades sociais. O sistema capitalista, a fim de se manter, precisou se reestruturar, e o financiamento dos direitos sociais, de certo modo, apresentou-se como concessão necessária para a manutenção do próprio sistema capitalista 13. O Estado passa, então, a oferecer uma prestação positiva (de ação) no cenário econômico, um exemplo disso é a regulação das relações de trabalho e o auxílio aos desamparados 14. Esse processo intensifica-se no início do século XX, possibilitando o surgimento do Estado de bem-estar social (Welfare State). Em termos de positivação dessas novas ideias nos textos constitucionais, pode-se verificar a introdução do conceito de justiça social e igualdade material nos textos constitucionais do México, em 1917, e da Alemanha (Weimar), em Entretanto, tais legislações não foram colocadas em prática, em razão da proximidade com o conturbado período entre as duas grandes guerras mundiais, excetuado o New Deal americano 15, cujo início ocorre após a crise econômica cau- 13 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p Ibid., p

159 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL sada pelo crash da bolsa de Nova Iorque, em 1929, a chamada Grande Depressão. Essa nova formatação estatal fruto das instabilidades econômicas e sociais geradas pela Revolução Industrial e pela atuação estatal negativa nas relações econômicas impede o Estado de se abster, pois lhe é imposta a necessária outorga de direitos relacionados à previdência, à saúde, à assistência, à educação, ao trabalho, caracterizando-se todos, em comum, como uma prestação positiva, ou seja, para assegurar tais direitos o Estado deve agir (ao invés de se abster). Nesse sentido, os direitos de segunda dimensão significam liberdade por intermédio do Estado. São denominados de direitos positivos, pois a preocupação não é mais a de evitar a intervenção do Estado, mas, pelo contrário, são direitos que outorgam aos indivíduos prestações por parte do Estado, a quem cabe propiciar direito de participar do bem -estar social 16. Somente após a Segunda Guerra Mundial e em razão do complexo contexto social que se formou no entre guerras, é que o Estado assume posturas claramente regulamentadoras e, principalmente, promovedoras, isto é, significativas de um verdadeiro direito do cidadão, e não de mero assistencialismo. Uma das modificações mais significativas na transformação do Estado Liberal em Estado Social se dá em relação à compreensão das noções de igualdade e liberdade. Um dos objetivos primordiais do Estado Social é a busca por uma efetiva igualdade, uma igualdade material, que se dará através da lei, e não mais, perante a lei (meramente jurídica). Assim, a busca pela igualdade material visa garantir a igualdade de oportunidades, e isso implica em liberdade O Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais de terceira dimensão A última das transformações do modelo de Estado constitucional ocorreu na segunda metade do século XX, em decorrência das profun- 16 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003 p BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo, Max Limonad, p

160 Roberta Magalhães Gubert das marcas deixadas pela segunda Guerra Mundial. A partir das décadas de 40 e 50, os países da Europa, especialmente Alemanha, Itália, posteriormente Espanha e Portugal, entre outros, iniciaram um novo ciclo constitucional de transição das ditaduras e totalitarismos em direção à democracia, com a promulgação de novas Constituições. No Brasil, foi a Constituição de 1988 que inaugurou o que contemporaneamente se entende por Estado Democrático de Direito, marcando também, de forma drástica, a transição brasileira de um regime ditatorial (iniciado em 1964) rumo à democracia. A atual Constituição brasileira, denominada em sua promulgação em 05 de outubro de 1988, como carta cidadã, caracteriza-se por seus aspectos sociais, dirigente e compromissário 18. O Estado Democrático de Direito caracteriza-se como um regime político que visa conjugar a noção de Estado de Direito e a noção de democracia, significando assim uma ruptura com os sistemas anteriores e, ao mesmo tempo, uma conciliação destes. Esse caráter de ruptura encontra-se em seu conteúdo de transformação da realidade, pois o direito assume papel de destaque, enquanto instrumento de transformação social. Ocorre uma valorização do aspecto jurídico, e o Judiciário, em razão do caráter compromissário da Constituição, torna-se uma esfera com maior poder de decisão, visto que a ele cabe garantir, por meio da jurisdição constitucional, o cumprimento da Constituição e de seu conteúdo substantivo 19. Outra característica marcante do Estado Democrático de Direito é a preocupação não apenas com a existência de um texto constitucional e um rol de direitos fundamentais, mas especialmente com a problemática da efetivação desses direitos em um patamar até então antes desconhecido pelos Estados Liberal e Social. Nesse sentido, podese afirmar que a efetivação dos direitos fundamentais é, em realidade, característica fundamental do próprio Estado Democrático de Direito. É por isso que o Estado Democrático de Direito representa um rompimento de paradigma em relação às fases anteriores do Estado, uma vez que apresenta um conteúdo de verdadeira transformação social que, possibilitado pelas normas constitucionais, é um plus norma- 18 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, p Ibid., p

161 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL tivo, eis que as normas constitucionais possuem uma real determinação de agir 20. Vinculada a essa nova perspectiva de Estado, desenvolve-se uma terceira dimensão de direitos fundamentais, também conhecidos como direitos de fraternidade ou de solidariedade 21. Esta terceira dimensão possui um traço bastante distinto dos demais: são direitos desprendidos da noção de homem-indivíduo, sendo seus titulares as coletividades, os grupos humanos (família, povo etc.), por isso dizer que sua titularidade é difusa. São exemplos desses direitos aqueles relacionados ao meio -ambiente, à preservação do patrimônio histórico, à comunicação, entre outros direitos coletivos que têm recebido maior atenção e positivação no âmbito dos tratados internacionais, do que dentro dos ordenamentos internos dos Estados. Talvez possa se explicar essa questão em razão da titularidade desses direitos, que pode ser indefinida ou indeterminável, dificultando, assim, o desenvolvimento de suas formas de proteção 22. A diferenciação das dimensões de direitos fundamentais não significa uma sucessão de etapas ou espécies de direitos, pelo contrário, é uma classificação com grande finalidade pedagógica, uma vez que a própria preferência pelo termo dimensão, quer apontar para a possibilidade de sobreposições, ou seja, o surgimento de uma nova dimensão não significa o esquecimento da anterior, mas sim o aporte de mais uma dimensão protetiva sobre outra existente. Dessa forma, podemos concluir que o texto da Constituição Federal de 1988, que instala um Estado Democrático de Direito no Brasil, possui as três dimensões de direitos fundamentais liberdades individuais, direitos sociais e direitos fraternos Em busca de um conceito de Jurisdição Constitucional A obra A Força Normativa da Constituição, de Konrad Hesse, é considerada por muitos, na seara do direito constitucional, a mais importante do século XX; ela representa um marco divisor de águas para 20 Ibid., p SARLET, Ingo Wolfgan,. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p SARLET, op.cit., p

162 Roberta Magalhães Gubert as transformações do constitucionalismo contemporâneo. Buscando romper com o conceito sociológico de Constituição defendido por Ferdinand Lassalle, no século XIX, para o qual a essência da Constituição residiria nos interesses políticos dos fatores reais de poder (exército, bancos, indústrias etc.), enquanto a Constituição em seu sentido jurídico não passa de uma folha de papel, Hesse introduz a ideia de que as normas constitucionais possuem, por si só, força jurídica para regular o Estado e a sociedade (forças políticas e sociais), ou seja, as normas da Constituição são normas jurídicas e, portanto, dotadas de imperatividade. A partir de Hesse é possível afirmar: a Constituição obriga. Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet A Constituição, ainda segundo Hesse, é dotada de uma pretensão de eficácia, ou seja, de que a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade, pretenso de eficácia que, por sua vez, não pode estar dissociada das condições históricas de sua realização, contemplando aqui as contemplando aqui as condições naturais, técnicas, econômicas e sociais, pois somente dessa forma a Constituição e sua pretensão de eficácia lograrão imprimir ordem à realidade política e social 23. A força normativa da Constituição, ou seja, sua pretensão (jurídica) de ser efetiva e eficaz irá depender, portanto, de mecanismos jurídicos capazes de transformar em realidade o conteúdo previsto na Constituição. Hesse defende que deve existir uma vontade de Constituição, compartilhada por todos aqueles que participam da vida constitucional. Para tanto, fatores externos e internos deverão contribuir para esse acontecer das normas constitucionais. Os fatores externos seriam aqueles relacionados aos atores e aos interesses da vida política, social, econômica e cultural do país, enquanto os internos seriam os mecanismos e instrumentos propriamente jurídicos, instituídos pela Constituição, para assegurar seu próprio cumprimento tais como controle de constitucionalidade e ações constitucionais 24. Esse processo de ressignificação das Constituições (que já existiam desde o século XVIII), passa agora a assegurar não apenas uma 23 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, p Ibid., p

163 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL garantia formal de sua existência, mas sim uma aplicação substancial de seu conteúdo (efetividade e eficácia), cria um processo de constitucionalização ou publicização do Direito, ou seja, a Constituição (direito público) torna-se o referencial de validade para todos os campos do direito (civil, penal, trabalho etc.). É na Constituição que reside o fundamento para todo o direito; e diante dessa nova relevância atribuída às normas constitucionais, sua efetividade (transformação em realidade concreta) também se torna o grande objetivo a ser perseguido e alcançado. É nesse cenário que se desenvolve a noção de Jurisdição Constitucional que buscamos construir no presente texto. A Jurisdição Constitucional, portanto, vai se desenvolver, no contexto do século XX, a partir da estrutura do próprio Estado Democrático de Direito em formação (rever o item 1.4) e do impulso da ideia de força normativa da Constituição. A característica marcante da Jurisdição Constitucional é uma atuação e presença mais evidente do Poder Judiciário nas questões econômicas, sociais e políticas do país, especialmente nas que envolvem a eficácia dos direitos fundamentais. Mas nem sempre foi assim. Cumpre lembrar que no Estado Liberal havia a preponderância do poder Legislativo, que se ocupava da produção legislativa dos direitos e garantias individuais (direitos negativos); enquanto no Estado Social, o protagonista foi o poder Executivo, em virtude da necessidade de elaboração e administração das políticas públicas e intervenção econômica. Esse processo de expansão da Jurisdição Constitucional é autoevidente e pode ser explicado no sentido que se todo fundamento de validade do direito reside na Constituição e esta é uma norma jurídica dotada de imperatividade, então todo o conteúdo constitucional tem o dever de ser cumprido, logo toda a jurisdição prestada é uma Jurisdição Constitucional e todos que vivem a comunidade constitucional (tanto Poderes e instituições estatais, como sociedade) estão a ela vinculados. Nesse contexto, a importância da justiça constitucional se mostra clara e indiscutível, visto que a ela caberá o exercício deste papel de transformação social. Para Lenio Luiz Streck, a Jurisdição Constitucional é fundamento de validade do próprio Estado Democrático de Direito 25 ; e, para Vital Moreira, 25 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, p

164 Roberta Magalhães Gubert [...] a existência de uma jurisdição constitucional, sobretudo se confiada a um tribunal específico, parece ter-se tornado nos tempos de hoje um requisito de legitimação e de credibilidade política dos regimes constitucionais democráticos 26. Nesse modelo, o Poder Judiciário torna-se foco de tensão; as inércias e omissões dos poderes Executivo e Legislativo serão supridas pela justiça constitucional por meio dos mecanismos jurídicos previstos na própria Constituição, os quais, por sua vez, caracterizam o próprio Estado Democrático de Direito. Assim, a efetividade das normas constitucionais, especialmente quanto aos direitos fundamentais, será viabilizada pelos mecanismos de controle de constitucionalidade e ações constitucionais que a própria Constituição prevê, ou seja, o comprometimento com a força das normas constitucionais faz com que os novos textos constitucionais elaborados no século XX não tragam apenas um longo rol de direitos, mas também apresentem instrumentos jurídicos capazes de obrigar o cumprimento desses direitos Controle de Constitucionalidade A noção de controle de constitucionalidade não é tão recente quanto à de Jurisdição Constitucional. Entretanto, com a afirmação da segunda, esse mecanismo de proteção da Constituição (controle) ganhou um novo patamar de importância e se expandiu em abrangência e complexidade. Controlar a constitucionalidade das leis significa relacionar leis de um mesmo ordenamento a fim de verificar se as mesmas estão em conformidade formal e material (conteúdo) entre si. E, em caso de contradição, extirpar do ordenamento jurídico aquela norma inferior que esteja em desacordo com a norma mais relevante, a Constituição, garantindo, assim, a normalidade e a harmonia do sistema jurídico. O estudo do controle da constitucionalidade inicia com a compreensão da ideia de supremacia da Constituição, ou ainda, da Constituição como lei fundamental. Desta forma, ensina J. J. Gomes Canotilho, 26 MOREIRA apud STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, p

165 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL O estado de direito é um estado constitucional. Pressupõe a existência de uma constituição que sirva valendo e vigorando de ordem jurídiconormativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos. A constituição confere à ordem estadual e aos actos dos poderes públicos medida e forma. Precisamente por isso, a lei constitucional não é apenas como sugeria a teoria tradicional do estado uma simples lei incluída no sistema ou no complexo normativo-estadual. Trata-se de uma verdadeira ordenação normativa fundamental dotada de supremacia supremacia da constituição e é nesta supremacia normativa da lei constitucional que o primado do direito do estado de direito encontra uma primeira e decisiva expressão 27. Nesse mesmo sentido, Jorge Miranda afirma que os grandes pressupostos do controle de constitucionalidade das leis são, em primeiro lugar, a existência de uma Constituição em sentido formal, e, em segundo lugar, a consciência da necessidade de garantia dos seus princípios e regras com a vontade de instituir meios adequados 28. Ou seja, a adoção de um sistema de controle da constitucionalidade por determinado ordenamento jurídico depende da existência de certos pressupostos, dois na realidade: o primeiro, é a noção de supremacia constitucional. Só faz sentido proteger a Constituição se esta for a norma mais importante do ordenamento. Estivesse em mesmo nível de hierarquia e importância das demais normas que compõe o ordenamento jurídico, qualquer delas poderia ser modificada ou excluída, indistintamente. Partindo desta última afirmativa, identifica-se o segundo pressuposto para um controle de constitucionalidade: a rigidez constitucional. De acordo com Luis Roberto Barroso, para que a norma constitucional tenha condições de figurar como parâmetro ou referencial de outras normas, ou seja, como paradigma de validade, precisará de um processo de elaboração diferente e mais complexo que os demais atos normativos 29. Assim, uma vez que a rigidez constitucional permite a distinção entre poder constituinte e poder constituído, possibilita, tam- 27 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, p MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 522,v.1 29 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, p

166 Roberta Magalhães Gubert bém, a verificação formal e material do procedimento e conteúdo da lei frente à Constituição. Desta forma, pode-se concluir que para existir um controle de constitucionalidade devem estar presentes ambos os pressupostos aludidos, a supremacia e a rigidez da Constituição, ou conforme, não há meio termo entre estas duas opções. Ou a Constituição é uma lei fundamental, superior e não mutável pelos meios ordinários, ou ela é colocada no mesmo nível dos atos legislativos ordinários, e, com estes pode ser alterada ao gosto do poder legislativo 30. A inconstitucionalidade das leis pode ser de duas espécies formal ou material. A inconstitucionalidade formal seria um vício decorrente do processo de elaboração da lei, que viola o procedimento constitucionalmente estabelecido para a criação das espécies legislativas. O processo legislativo brasileiro está disciplinado entre os artigos 59 a 69, da Constituição de Um eventual desrespeito a alguma dessas regras, tais como iniciativa ou quórum, implicarão na inconstitucionalidade formal (procedimental) da lei. Já a inconstitucionalidade material está relacionada com um vício de substância, ou seja, as disposições da lei questionada a forma como regulamentam determinada matéria violam o conteúdo constitucional de alguma forma ou implicam em desvio ou excesso de poder legislativo 31. Há, portanto, uma incompatibilidade substancial entre a lei e a Constituição. Por fim, antes de adentrarmos no estudo das espécies de controle de constitucionalidade, cumpre elucidar as peculiaridades da experiência francesa que em outras searas é de especial influência ao constitucionalismo mundial e também brasileiro, especialmente na Constituição monárquica de 1824, quanto à inexistência de um modelo jurisdicional de controle da constitucionalidade. Para a compreensão desse fenômeno, deve-se ter em conta diversas razões. A forma de controle da constitucionalidade francesa sofreu grande influência das ideias contratualistas de Rousseau (na qual impera a vontade geral), bem como da doutrina da separação de poderes desenvolvida por Montesquieu (em que prepondera o Legislativo e, de certa forma, diminui o papel do 30 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999 p MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, p

167 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Judiciário, ao afirmar que o juiz como mera bouche de la loi). Aliado a estes fatores, deve-se, ainda, levar em consideração a experiência revolucionária e o repúdio à aristocracia da qual provinha a maioria, senão a totalidade, dos juízes por isso dizer-se que a Revolução Francesa foi uma revolução antijudiciária O modelo de controle difuso da constitucionalidade O marco histórico que inaugura o sistema de controle de constitucionalidade é o caso Marbury versus Madison, que foi julgado pela Supreme Court dos Estados Unidos em Os principais argumentos utilizados na fundamentação deste processo supremacia da constituição e judicial review não foram teses inéditas, fato que em nada reduz a importância do caso. Um antecedente histórico muito relevante para a formação da ideia de um controle jurisdicional dos atos estatais reside na tradição inglesa dos séculos XVI e XVII, na qual Sir Edward Coke já defendia a possibilidade de controle sobre os atos do Parlamento, no sentido de que estes não poderiam interferir na formação e aplicação da common law, sendo esta uma atividade exclusiva dos juízes. O paradigmático caso Marbury v. Madison teve início com o writ of mandamus, interposto, em 1801, por William Marbury, quando alegou que havia sido impedido de assumir a função pública de juiz de paz, por ato do então Secretário de Estado James Madison, durante o mandato do novo Presidente da República Thomas Jefferson (partido republicano), como represália ao fato de que o cargo havia sido designado por lei aprovada ainda no final da presidência de John Adams, membro do partido federalista e opositor político da atual administração. A decisão final do caso, que chega ao conhecimento da Suprema Corte norte-americana pela via recursal, foi proferida pelo Justice John Marshall 33. O voto decisivo foi estruturado em duas partes. A primeira dedicada à demonstração do direito de Marbury, e a segunda declarando que, reconhecido este direito, deveria haver, então, uma solução jurídica para assegurá-lo. A fundamentação construída por Marshall é no senti- 32 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, p BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, p

168 Roberta Magalhães Gubert do de que inexistindo óbice legal ou vício no ato de nomeação de Marbury, o decreto de Madison careceria de legitimidade e amparo constitucional, razão pela qual deveria ser cassado. Ocorre que a Constituição dos Estados Unidos não conferia à Suprema Corte ou a qualquer outro órgão jurisdicional a competência para agir nesse sentido 34. E esse é o ponto de maior inovação. Marshall afirma que diante de um conflito de normas, cabe ao Poder Judiciário, dentre os três poderes, a função de interpretar a aplicar as leis e, portanto, também excluí-las quando em contradição com a norma maior. Ou seja, mesmo não existindo previsão expressa dessa função para o Judiciário ou qualquer dos outros poderes, o controle de constitucionalidade das leis, por ele denominado de judicial review, seria uma função implícita decorrente da função precípua do Poder Judiciário, de interpretar e aplicar as leis. Tal fundamentação foi inspirada, em grande parte, na obra O Federalista, de Alexander Hamilton e outros, datada de 1787, em que já se falava na questão do denominado judicial review 35. Mauro Cappelletti qualifica a fundamentação deste controle como coerente e de extrema simplicidade, e, destaca um trecho da obra do próprio Hamilton: A função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a fim de aplicá-las aos casos concretos de vez em vez submetidos a seu julgamento [...] uma das regras mais óbvias da interpretação das leis é aquela segundo a qual, quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o juiz deve aplicar a prevalente 36. Com o reconhecimento do judicial review, dá-se início ao sistema americano de controle da constitucionalidade que também pode ser denominado controle difuso ou concreto da constitucionalidade. Apesar de sua raiz norte-americana, este sistema foi copiado por muitos países, inclusive o Brasil, que incluiu esse sistema de controle, pela primeira vez, em sua Carta Constitucional de BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, p A expressão judicial review pode ser traduzida para o português de forma mais coloquial como revisão judicial, mas em termos jurídicos, a tradução mais precisa é controle difuso. 36 CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p

169 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL A inserção do modelo de controle difuso no Brasil se deu nos mesmos moldes da experiência norte-americana, ou seja, a adoção dessa função por parte dos juízes não está expressamente autorizada pelo texto constitucional, mas decorre da importação, por Rui Barbosa, do modelo de Estado norte-americano com a adoção da república, do federalismo, do presidencialismo e de uma suprema corte na elaboração da carta constitucional de 1891 e que se mantém até os dias atuais em concordância tácita com as demais Constituições desde então vigentes. A principal característica do modelo difuso é que o controle da constitucionalidade é competência comum a todos os órgãos que compõe o Poder Judiciário, ou seja, todos os juízes, na prestação de sua jurisdição, terão o poder/dever de afastar a aplicação das leis tidas por inconstitucionais diante do julgamento de um caso concreto. Desta forma, podemos concluir que o sistema de controle difuso é aquele no qual o julgador juiz singular ou órgão colegiado é chamado a decidir acerca da constitucionalidade das leis em sede de um processo singular um caso concreto e em razão do efeito da lei questionada sobre a decisão daquele caso podendo decidir se irá aplicar a lei ou afastá-la, caso a julgue inconstitucional. Outras classificações doutrinárias também podem ser ilustradas a partir do modelo norte-americano. Entretanto, cumpre deixar claro que o modelo misto de controle da constitucionalidade, adotado especialmente pelo Brasil, não permite pensar essas diferentes espécies de controle de forma estanque, ou seja, é possível a ocorrência de figuras mistas ou sui generis de controle da constitucionalidade, como, por exemplo, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que é ação típica do controle concentrado da constitucionalidade, julgada exclusivamente pelo STF, fiscalizando uma lei ou ato normativo de forma concreta. Feita esta importante ressalva, ainda são critérios relacionados ao modelo do judicial review: (a) Quanto à forma ou modo de controle da constitucionalidade, a realização porvia incidental uma vez que a questão da inconstitucionalidade de uma lei só pode ser invocada no curso de um caso concreto, sendo o pronunciamento acerca da constitucionalidade parte integrante do raciocínio lógico a ser desenvolvido para solução do caso concreto; (b) Quanto à fiscalização da matéria, a adoção de um controle concreto uma vez que a discussão de eventual inconstitucionalidade não será debatida em tese, pelo con- 169

170 Roberta Magalhães Gubert trário, deve levar em conta os fatos concretos do processo em julgamento, ou seja, o juiz deve afastar a aplicação da lei quando vislumbrar que sua aplicação pode gerar uma situação de inconstitucionalidade entre as partes envolvidas na ação; (c) por fim, considerando que no modelo do judicial review a realização do controle se dará no curso de ações judiciais, a eventual decisão pela inconstitucionalidade da lei terá, em regra geral, eficácia inter partes, isto é, seus efeitos alcançaram exclusivamente as partes envolvidas na ação O modelo de controle concentrado da constitucionalidade Um antecedente histórico que se seguiu mais de cem anos após o leading case norte-americano, mas que se destaca fundamentalmente e no mesmo plano de importância, foi a criação da Corte Constitucional austríaca promovida pela promulgação da Constituição da Áustria em 1 de outubro de Fruto de um projeto elaborado por Hans Kelsen, que na época adotava uma concepção formalista de Constituição, considerada como norma jurídica que ocupa o vértice do ordenamento jurídico composto exclusivamente de normas jurídicas e organizado de forma hierárquica e escalonada, a função desta Corte Constitucional seria analisar, com exclusividade, a compatibilidade das leis com as normas constitucionais. Desse órgão, criado com finalidade específica, origina-se a outra principal matriz do sistema de controle da constitucionalidade, o modelo concentrado 37. Este Tribunal Constitucional guardava grande originalidade, destacando-se dentre suas principais características, a concentração da competência, que se torna exclusiva da Corte para decidir acerca das inconstitucionalidades, as quais, por sua vez, dependiam de um pedido especial, ou seja, de uma ação específica intentada por um número limitado de legitimados, todos integrantes das instituições estatais que significa dizer que as leis seriam analisadas sem qualquer vínculo com os casos concretos, e, portanto, de forma abstrata SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, p CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p

171 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Este sistema de controle da constitucionalidade denomina-se concentrado porque a competência para julgar definitivamente a constitucionalidade de uma lei é reservada a um único órgão judicial, excluindo a possibilidade de qualquer outro órgão vir a fazê-lo 39. Este modelo austríaco de controle concentrado da constitucionalidade, em diametral oposição ao controle difuso, no qual a função recai sobre todos os juízes, influenciou muitos países da Europa ocidental; razão pela qual, hoje, a maioria dos estados constitucionais europeus possuem uma Corte Constitucional. Nessa forma de controle, as questões de inconstitucionalidade são debatidas em um processo autônomo, independentemente da existência de um caso concreto. O debate e o julgamento sobre a constitucionalidade da lei é conhecido originariamente pela Corte Constitucional, que analisa em tese a conformidade da lei e os princípios constitucionais. Assim, o controle concentrado pode ser exemplo de outras espécies de controle, tais como os seguintes critérios: (a) Quanto à forma ou modo de controle da constitucionalidade, este se dá por via principal ou ação direta pois a questão da inconstitucionalidade será debatida fora de qualquer caso concreto, tendo por objetivo a discussão acerca da validade da lei em si (em razão da Constituição, obviamente) 40 ; (b) Quanto à fiscalização da matéria, adota-se um controle abstrato ou em tese ou seja, não é um controle que depende do litígio entre partes reais, é um processo que objetiva acima de tudo a defesa da Constituição e do princípio da constitucionalidade, através da eliminação de atos normativos contrários à Constituição 41, e dirige-se ao comportamento dos órgãos públicos ou às normas em si, pelo que representam no ordenamento jurídico, independentemente de sua incidência em um caso concreto; (c) Por fim, considerando que neste modelo concentrado a discussão da matéria será em tese e que o processo não envolve partes diretamente interessadas em um litígio que disputa certo bem da vida, a eventual decisão pela inconstitucionalidade da lei terá, em regra geral, eficácia erga omnes (contra todos) e efeito vinculante, ou seja, a decisão da Corte Constitu- 39 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, p BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p CANOTILHO, op.cit., p

172 Roberta Magalhães Gubert cional terá eficácia geral, alcançando a todos os destinatários da lei e será de aplicação vinculante aos órgãos do Poder Judiciário. Por isso a Corte Constitucional pode ser comparada a um legislador negativo 42. No Brasil, o modelo de controle concentrado foi introduzido às avessas, pela Emenda Constitucional n. 16, de 1965, durante a vigência do regime militar, possibilitando o controle abstrato de constitucionalidade de atos normativos federais e estaduais, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), sem, entretanto, a concomitante criação de um verdadeiro Tribunal Constitucional, ficando o julgamento da ação, como persiste até os dias de hoje, a cabo do Supremo Tribunal Federal (STF), criado em 1891 nos moldes do modelo americano de uma suprema corte. Daí dizer-se que o Brasil possui um sistema misto de controle da constitucionalidade, congregando o modelo difuso, desde 1891, e o concentrado, desde O sistema de controle da constitucionalidade vigente na Constituição de 1988 A nova ordem constitucional brasileira, instituída pela Constituição Federal de 1988, consagrou o sistema misto de controle da constitucionalidade, também denominado híbrido ou eclético 43. Nesse sentido, manteve, em linhas gerais, a arquitetônica da fiscalização da constitucionalidade fincada na Constituição de 1967/ No entanto, importantes modificações também foram introduzidas, demonstrando, inclusive, a tendência de transformação do Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional e uma certa preferência pelo controle concentrado e abstrato ao invés do difuso e concreto. O controle difuso é exercido no ordenamento brasileiro por todos os órgãos que compõem o Judiciário, ou seja, por todos os juízes, independentemente da especialização da justiça (estadual, federal, do trabalho, eleitoral ou militar) ou do grau (instâncias ordinárias e ex- 42 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, p BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2004, p CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata da constitucionalidade no direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p

173 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL traordinárias) em que atuam; todos os juízes são, portanto, dotados desse poder/dever. Mas esta competência será exercida com algumas diferenças. Quando realizado pelo juiz singular, o controle de constitucionalidade será exercido caso a caso, uma vez que incidental, ou seja, somente a análise da aplicação aos fatos concretos de cada caso podem demonstrar ao juiz a ocorrência de uma inconstitucionalidade incidente no processo. Nesses casos, a decisão do juiz deverá ser no sentido de afastar a aplicação da lei no caso concreto, sob pena de ocorrência de uma inconstitucionalidade incidental. Tal decisão terá um caráter prejudicial ao mérito da questão, uma vez que modificará o fundamento aplicável e, portanto, o próprio resultado. Não se trata propriamente de uma declaração de inconstitucionalidade, pois os efeitos da mesma somente alcançam as partes envolvidas na ação. Como regra geral, os efeitos da decisão de controle de constitucionalidade pelo juiz singular são inter partes e ex tunc. Já no controle difuso exercido por órgãos fracionários órgãos que julgam de forma colegiada, tais como câmaras e turmas de tribunais a Constituição impõe a regra da reserva de plenário, determinando no artigo 97 que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. Isso significa que, diferente dos juízes singulares, as câmaras e turmas de tribunais deverão submeter a discussão de eventual inconstitucionalidade a seu órgão pleno ou especial, e somente poderão declarar a inconstitucionalidade de lei se obtiverem o voto da maioria absoluta de seus membros, dispensadas novas votações em casos idênticos. Esse é o denominado incidente de inconstitucionalidade, regulamentado pelos artigos 480 a 482, do Código de Processo Civil, e tem por finalidade garantir maior uniformidade e coerência às decisões de inconstitucionalidade proferidas pelos tribunais brasileiros, responsáveis pela formação da jurisprudência. Tal regra, entretanto, vem sendo sistematicamente descumprida, razão pela qual o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante de número 10, segundo a qual [...] viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a 173

174 Roberta Magalhães Gubert inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte. Por fim, também o Supremo Tribunal Federal, na condição de órgão colegiado que integra o Poder Judiciário, poderá realizar o controle difuso, podendo este ocorrer no julgamento de recursos extraordinário, habeas corpus, mandados de segurança, ou qualquer outras ações e recursos que não aqueles próprios do controle concentrado (ADI, ADC, ADO e ADPF). Entretanto, ao STF é permitida a possibilidade de expandir os tradicionais efeitos inter partes da decisão de inconstitucionalidade em sede de controle difuso. Nesse caso, desejando atribuir eficácia erga omnes à sua decisão, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do artigo 52, X, da Constituição, requerer ao Senado Federal que suspenda a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva por ele proferida. Alguns constitucionalistas, capitaneados pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes, vem defendendo a perda de significado deste dispositivo, uma vez que a ampliação do controle abstrato de normas e a ampliação dos poderes próprios de uma Corte Constitucional adquiridos pelo STF estão levando esta dependência de suspensão da lei por parte do Senado Federal a um verdadeiro processo de obsolescência. Esse fenômeno tem sido denominado de objetivação do controle difuso 45. Em paralelo a esse controle concreto e incidental realizado pelo Poder Judiciário como um todo, o controle concentrado e abstrato de normas é realizado com exclusividade pelo Supremo Tribunal Federal, por meio da propositura de ações previstas constitucionalmente na competência originária do tribunal (artigos 102, I, a e 1º, e 103, 2º, da Constituição Federal), ou seja, para provocar o controle abstrato de normas por parte do STF deve-se obrigatoriamente fazê-lo pela interposição dessas ações: Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI); Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC); Ação Direita de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), regulamentadas pela Lei n. 9868/99; e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), regulamentada pela Lei n. 9882/ MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, p

175 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL Uma característica comum a todas essas ações e que é traço marcante do modelo concentrado de controle idealizado por Hans Kelsen é sua legitimidade ativa limitada. Desta forma, a Constituição impõe um rol razoavelmente limitado e escasso de entidades autorizadas a propositura da ação (Art. 103, I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; III - a Mesa da Câmara dos Deputados; IV - a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador- Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional). A jurisprudência do próprio STF vem diferenciando essas entidades quanto à amplitude de sua atuação no controle abstrato de normas, classificando como legitimados ativos universais aqueles órgãos e instituições cuja guarda da Constituição integra seu papel institucional e que, portanto, tem ampla legitimidade para questionar quaisquer espécies de leis ou atos normativos, sendo eles o Presidente da República, a Mesa do Senado Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB e os partidos políticos com representação no Congresso Nacional). Já os legitimados ativos especiais, que seriam a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, os Governadores de Estado ou do Distrito Federal e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional, dependeriam da demonstração de pertinência temática, ou seja, da comprovação de que existe um vínculo temático entre a lei questionada e a esfera jurídica de atuação dessas entidades, requisito indispensável à prova do interesse de agir, verdadeiro pressuposto de admissibilidade da ação. Por fim, outra diferença marcante entre os modelos jurisdicionais de controle da constitucionalidade reside nos efeitos da decisão, sendo peculiaridade do controle abstrato de normas, o fato de que a decisão de inconstitucionalidade adotada pelo STF terá, por si só, a força de extinguir do ordenamento jurídico a norma impugnada. Tais julgamentos deverão ocorrer sempre no pleno do tribunal, formado pela totalidade dos ministros que o compõe, necessitando da presença de no mínimo de 8 e do voto em um sentido ou outro de no mínimo 6 ministros, con- 175

176 Roberta Magalhães Gubert forme artigos 22 e 23, da Lei n. 9869/99. Outra particularidade é que as decisões em sede de controle abstrato são irrecorríveis e irrescindíveis, excetuadas apenas pelos embargos de declaração. Como regra geral, as decisões serão dotadas de efeitos temporais ex tunc e produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (artigo 102, 2º, da Constituição). Quanto aos efeitos temporais, existe ainda a possibilidade de modulação dos mesmos. Determina o artigo 27, da Lei n. 9869/99, bem como o artigo 11, da Lei n. 9882/99, que ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. Essa amplitude de ação deixa transparecer o caráter político (mas não partidário) da atuação do tribunal, uma vez que a declaração de inconstitucionalidade de uma lei deve levar em consideração não apenas aspectos estritamente jurídicos, mas também os efeitos sociais e econômicos que podem advir da declaração de inconstitucionalidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades Regionais, Estado e Constituição. São Paulo, Max Limonad, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador: Contributo para a compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,

177 6 DIREITO CONSTITUCIONAL II: UMA INTRODUÇÃO À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre a o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 35. n. 138.p , abr./jun HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Coimbra Editora, v.1. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,

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179 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA MODERNO CONSTITUCIONAL Emerson de Lima Pinto 1 SUMÁRIO: 7.1. Constituição: as origens dos limites sociais e a raiz da esperança Lassale: a Constituição política no Estado nacional do século XIX Kelsen: o monismo estatal na produção do Direito Schmitt: Estado e pensamento autoritário Hesse: A Constituição estatal/estatista e seu desejável não retrocesso Heller: a gênese da Constituição como Ciência da cultura Canotilho: considerações sobre Constituição, pluralismo e democracia - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 1 Advogado. Especialista em Ciências Penais - PUC/RS. Especialista em História da Filosofia - UNISINOS. Mestre em Direito Público - UNISINOS. Doutorando em Filosofia pela UNISINOS. Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo na UNISINOS e CESUCA. Pesquisador do CESUCA. emersonpinto@cesuca.edu.br 179

180 Emerson de Lima Pinto 7.1. Constituição: as origens dos limites sociais e a raiz da esperança O Direito Constitucional deve explicitar as condições sob as quais as normas constitucionais podem adquirir a maior eficácia possível, propiciando o desenvo lvimento da dogmática e da interpretação constitucional. Portanto, compete ao Direito Constitucional realçar, despertar e preservar a vontade da Constituição que indubitavelmente constitui a maior garantia de sua força normativa. Essa orientação torna imperiosa a assunção de uma visão crítica pelo Direito Constitucional, pois nada seria mais perigoso do que permitir o surgimento de ilusões sobre questões fundamentais para a vida do Estado. No mesmo sentido, se deve analisar a noção de Constituição que hoje é empregada e a carga valorativa e cultural que é representada pela sua concepção ligada intimamente ao Estado. Percebe-se, por sua vez, que a organização do poder político refere-se substancialmente ao Estado, e não à sociedade. Precisa-se (re)colocar o Estado no plano constitucional naquilo que deveria ser seu local, integrando a sociedade, fazendo parte da mesma e não em uma pretensa posição superior ou conflitiva a este. A Constituição tem sido apresentada em nossa tradição moderna como sendo fundamentalmente a organização fundamental do Estado. Assim, dá-se prioridade a uma visão estatista da Constituição; o que de acordo com Loewenstein 2, com sua admissão da mutação constitucio- 2 Desde un punto de vista puramente teorico - y com ello entramos en el tema propriaente dicho - una constitucion ideal seria aquel orden normativo conformador del processo politico segun el cual todos los desarrollos futuros de la comunidad, tanto del orden politico como social, economico y cultural, pudiesen ser previstos de tal manera que no fuese necesario un cambio de normas conformadoras. Cada Constitucion integra, por asi decirlo, tan solo el statu quo existente en el momento de su nacimiento, y n puode prever el futuro en el mejor de los casos cuando este intelegentemente redactada, puede intentar tener en cuenta desde el principio, necesidades futuras por de apartados y valvulas cuidadosamente colocados, aunque una formulacion demasiado elastica podria perjudicar la seguridad juridica. Asi, pues, hay que resignarse com el carater de compromiso inherente a cualquier constitucion. Cada constitucion es un organismo vivo, siempreen movimiento como la vida misma, y esta sometido a la dinamica de la realidad que jamas identica consigo misma, y esta sometida constantemente al panta rhei heraclitiano de todo lo viviente.(...) Estas invitables acomodaciones del derecho constitucional a la realidad m constitucional son tenidas en cuenta solo de dos maneras, a las cuales la teoria general del Estado há dado la denominacion de reforma constitucional y mutacion constitucional. (...) En la mutacion constitucional, por outra 180

181 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... nal, faz com que a sociedade e os indivíduos participem do processo de transformação da Constituição, por meio de seus costumes, que em muitos momentos tencionam a norma e acabam impondo sua modificação de forma direta ou não. Kelsen 3 e Schimitt 4, entre outros clássicos, priorizavam a visão estatal da constituição em detrimento de outras. Desta forma, deve-se rememorar a contribuição de Hermann Heller 5, a qual trazia um conceito mais amplo de Constituição, que não aquele que se afirmou em seus oponentes legendários de então, como Loewenstein e Schmitt. A noção de cultura e a importância da sociedade para a Constituição já estavam presentes no momento de debate sobre a Constituição de Weimer. Entretanto, uma visão estatista da Constituição, ao nosso sentir, apresentou-se de forma hegemônica, permanecendo até os dias atuais. Sobre o estatismo de Loewenstein 6, a questão do poder é apresentada de forma a ser necessariamente contida pelo texto constitucional, e lado, se produce una transformacion en la configuracion del poder politico, e la estrutura social o del equilibrio de intereses, sin quede actualizada dicha transformacion permanece intacto. Este tipo de mutaciones constitucionales se da en todos los Estados dotados de una constitucion escrita y son mucho mas frecuentes que las reformas constitucionales formales. Su frecuencia e intensidad es de tal orden que texto constitucional en vigor sera dominado y cubierto por dichas mutaciones sufriendo un considerable alejamiento de la realidad, o puesto fuera de vigor. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. 2. ed., Barcelona: Editorial Ariel p La mutacion constitucional. 3 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitucion. Madrid: Alianza Editorial, p MACEDO JR., Ronaldo Porto. Carl Schimitt e a fundamentação do Direito. São Paulo: Max Limonad, HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, p LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. 2 ed., Barcelona: Editorial Ariel, p Sobre el telos de la constitucion(...) Cada sociedad estatal, cualquiera que sea su estrutura social, posee ciertas convicciones comummente compartidas y ciertas formas de conducta reconocidas que constituyen, en el sentido aristotelico de politeia, su Constitucion.(...) En un sentido ontologico, se debera considerar como el telos de toda constitucion la creacion de instituciones para limitar y controlar el poder politico. En este sentido, cada constitucion presenta una doble significacion ideologica liberar a los destinatorios del poder del control social absoluto de sus dominadores, y asignarles una legitima participacion en el proceso del poder. Para alcanzar este proposito se tuvo que someter el ejercicio del poder politico a determinadas reglas y procedimientos que debian ser respetados por los detentadores del poder. Desde un punto de vista historico, por tanto, el constitucionalismo, y en general el constitucionalismo moderno, es un producto de la ideologia liberal. En la maderna sociedad de masas, el único medio praticable para hacer participar a los destinatarios del poder en el proceso politico es la tecnica de representacion, que en un principio fue meramente simbolica y mas tarde real. (grifo nosso) 181

182 Emerson de Lima Pinto tal disposição pode ter origem na concepção negativa que o poder traz para a reflexão do autor, uma vez que identificava uma espécie de caráter demoníaco do poder. Contudo, a junção da contribuição dos autores já citados com Heller, Loewenstein, Schmitt - pensamento vigente em Weimer - com autores contemporâneos como Haberle, Bonavides, entre outros, dará um incrível potencial reflexivo acerca do futuro da Constituição na construção de uma harmonia social. A necessidade de incorporação da sociedade como protagonista, e ao mesmo tempo depositária desse novo processo de (re)legitimação constitucional, passa pelo desenvolvimento da Constituição como cultura que amplie a visão do público. Necessita-se (re)incorporar Heller 7 e Häberle na teoria constitucional contemporânea, como forma de oportunizar a sociedade moderna de elementos vitais que propiciem uma constante transformação nos valores sociais que devem tornar-se constitucionais. Neste percurso surgiram, nas décadas iniciais do século XX, conturbações sociais que geraram pensadores constituídos em notáveis referências para o direito, para a filosofia e para a política. Antes de proceder à análise de alguns dos principais expoentes do constitucionalismo, insta destacar a reflexão de um político italiano que gravara lições na alma de todos aqueles que pretendem a construção de uma sociedade justa e solidária, e que veem na Constituição um instrumento capaz de auxiliar em sua concretização. A importância com que Gramsci 8 dota a compreensão da cultura, objeto de estudo essencial à construção de uma sociedade democrática, 7 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. 1.ed. São Paulo: Editora Mestre JOU p ; GRAMSCI., Antônio. Concepção Dialética da História. 8.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p ; 108: A filosofia da práxis e a cultura moderna. A filosofia da práxis foi um momento da cultura moderna; ela determinou e fecundou, em uma certa medida algumas correntes. O estudo deste fato, muito importante e significativo, foi esquecido ou mesmo ignorado pelos chamados ortodoxos, pela seguinte razão : a combinação filosofia mais importante ocorreu entre a filosofia da práxis e diversas tendências idealistas, o que chamados ortodoxos - ligados essencialmente á corrente particular da cultura do ultimo quartel do século passado (positivismo, cientificismo) - pareceu um contra-senso, se não mesmo uma astucia de charlatães ( no ensaio de Plekhanov sobre os problemas fundamentais, todavia existe uma referencia a este fato, mas apenas superficialmente, sem nenhuma tentativa de explicitação crítica. Por isso, ao que parece, é necessariamente revalorizar a colocação do problema de Labriola. (...) Ocorreu o seguinte : a filosofia da práxis sofreu realmente uma dupla revisão, isto é, foi submetida a uma dupla combinação filosófica.(...) É possível observar em geral, que as correntes que tentaram a combinações da filosofia da práxis como tendências idealistas são constituídas, em sua imensa maioria por intelectuais puros ; passo que a ortodoxia era formada por personalidades intelectuais 182

183 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... livre, solidária e pluralista fora saudada por diversos autores, sendo imperioso grifar sua importância para a descoberta do próprio objeto de reflexão crítica. Gramsci 9 tem presença fundamental, na medida em que é interessante aprofundar o debate político sobre o Estado e a importância da cultura, essencial no processo de substancialização da Constituição. A vitalidade do pensamento do revolucionário autor italiano pode ser constatada na matriz teórica de grande parte dos cientistas políticos contemporâneos, que propugnam a cultura como forma de resistência à barbárie decorrente do atual estágio do capitalismo na sociedade. Assim, apesar de o Estado burguês-liberal nascer da sociedade revolucionária, passa a ser algo diverso dela. Há, de certa forma, uma mais estreitamente dedicadas a atividade prática e, portanto, mais ligadas (por laços mais ou menos extrínsecos) às grandes massas populares (o que, de resto, não impediu a maioria deles de cometer equívocos de grande importância histórico-política). (...) Esta distinção tem grande importância. Os intelectuais puros, como elaboradores das mais amplas ideologias das classes dominantes, como lideres de grupos de intelectuais de seus países, não podiam deixar de utilizar pelo menos alguns dos elementos da filosofia da práxis, a fim de fortalecer suas concepções e atenuar o decrépito filosofismo especulativo com o realismo historicista da nova teoria fim de fornecer novas armas ao arsenal do grupo social ao qual estavam ligados. Por outro lado, a tendência ortodoxa se encontrava em luta com a ideologia mais difundida nas massas populares, o transcentalismo religioso, e acreditava poder supera-lo através tão somente do mais cru e banal materialismo, que, também ele, era uma estratificação não indiferente do senso comum mantida viva - mais do que então se acredita - pela própria religião, a qual, no povo, manifesta-se através de sua expressão trivial e baixa, supersticiosa e fetichista, na qual a matéria tem uma função que não é das menores. (...) Politicamente, a concepção materialista é vizinha ao povo, ao senso comum; ela é estreitamente ligada a muitas crenças e preconceitos, a quase todas as superstições populares (bruxarias, espíritos, etc.). Isto pode ser observado no catolicismo popular e, notadamente, na ortodoxia bizantina. (...) Na historia dos desenvolvimentos culturais, deve-se levar em conta notadamente a organização da cultura e do pessoal através do qual tal organização toma forma concreta. (grifo nosso) 9 GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Círculo do Livro. s/d p deve-se levar em consideração a tendência em desenvolvimento, segundo a qual cada atividade prática tende a criar para si uma escola especializada própria, do mesmo modo como cada atividade intelectual tende tende a criar círculos próprios da cultura, que assumem a função de instituições pré-escolares especializadas em organizar as condições nas quais seja possível manter-se a par dos progressos que ocorrem no ramo científico próprio. (...) Pode-se observar, também, que órgãos deliberativos tendem cada vez mais a diferenciar sua atividade em dois aspectos orgânicos: o deliberativo, que lhes é essencial, e o técnico-cultural, onde as questões sobre as quais é preciso tomar resoluções são inicialmente examinadas por especialistas e analisadas cientificamente. Essa atividade já criou todo um corpo burocrático de nova estrutura, pois - além dos escritórios especializados de pessoas competentes, que preparam o material técnico para os corpos deliberativos- cria-se um segundo corpo de funcionários mais ou menos voluntários e desinteressados, escolhidos de vez em quando na indústria, nos bancos, nas finanças. Esse é um dos mecanismos através dos quais a burocracia de carreira terminou por controlar os regimes democráticos e os parlamentos; atualmente o mecanismo vai se ampliando organicamente e absorve em seu currículo grandes especialistas da atividade prática privada, que controla assim os regimes e as burocracias. (grifo nosso) 183

184 Emerson de Lima Pinto contraposição entre ambos. Somente com a agonia do Estado 10, terse-ia uma efetiva fusão entre sociedade civil e o Estado. Para Gramsci a sociedade civil e a sociedade política situam-se no âmbito de uma totalidade orgânica por ele denominada de superestrutura, devendo-se ter o cuidado com a formação da burocracia 11, que tem sido uma constante nos juristas preocupados com a Teoria do Estado e a Constituição como um fenômeno mais amplo que o Estado. Resta claro, portanto, quando Gramsci afirma que a atividade política é efetivamente o primeiro momento ou primeiro grau, o momento em que a superestrutura está ainda na fase imediata de mera afirmação voluntária, indistinta e elementar 12.Após, quando analisa o que chama de relação de forças, tema ligado à relação entre a estrutura e a superestrutura (natureza e espírito), alega que esta se dá em três momentos. No primeiro, identifica a relação das forças sociais vinculadas à estrutura, objetiva, independente dos homens, que pode ser medida com os sistemas das ciências exatas ou físicas. O momento seguinte é a relação das forças políticas; a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais. Por sua vez, este momento pode ser analisado e diferenciado em vários graus que correspondem aos diversos momentos da consciência política coletiva, da forma como se manifestam na história até agora. O primeiro e mais elementar é o econômico-corporativo; um segundo momento é aquele em que se adquire 10 ESTERUELAS, Cruz Martínez. La agonía del Estado : Um nuevo orden mundial? Centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, p GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o moderno Príncipe. 7.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira. p Sobre a burocracia. 1) O fato de que no desenvolvimento histórico das formas políticas e econômicas que viesse formando o tipo de funcionário de carreira tecnicamente preparado para o trabalho burocrático (civil ou militar), tem um significado primordial na ciência política e na história das formas estatais(...) o problema dos funcionários coincide com o problema dos intelectuais. Mas, se é verdade que cada nova formas social teve necessidade de um novo tipo de funcionário, também é verdade que os novos grupos de dirigentes jamais puderam prescindir, pelo menos durante certo tempo, da tradição e dos interesses constituídos, isto é, das formações de funcionários já existentes e pré-constituídas quando do seu advento ( especialmente nas esferas eclesiástica e militar). A unidade do trabalho manual e intelectual e uma ligação mais estreita entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo (pela qual os funcionários eleitos, além de controller, se intercom pelos negócios do Estado) podem ser motivos inspiradores tanto para uma orientação nova na solução do problema dos intelectuais, como para o problema dos funcionários. (grifo nosso). 12 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 8.ed., Rio de Janeiro: Civilização brasileira p

185 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... a consciência da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no campo meramente econômico. Neste momento, já se coloca a questão do Estado, mas apenas visando alcançar uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes. Um terceiro momento é aquele em que se adquire a consciência de que os próprios interesses corporativos, no seu desenvolvimento atual e futuro, superam o círculo corporativo do grupo meramente econômico, e podem e devem tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é a fase mais abertamente política que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas complexas da sociedade capitalista central monopolista. Ainda sobre a importância de Gramsci para a reflexão acerca do Estado e os limites do marxismo ortodoxo, Brandão 13 assevera que o Estado não é somente sociedade política, mas também sociedade civil, pois ele garantirá ao proletariado o papel hegemônico na conquista do consenso; e a sociedade civil estará situada entre a legislação do Estado e sua estrutura econômica. E, deste modo, para o pensador italiano é a sociedade política que exerce uma hegemonia protegida pela coerção Lassale: a Constituição política no Estado nacional do século XIX Em relação ao pensamento de Lassale verifica-se que para o autor as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas sim questões políticas. A Constituição de um país expressa as relações de poder nele dominantes. Seu pensamento sociológico implica uma redução substancial das funções que a Constituição possui. Sua capacidade de regular e de motivar está limitada à sua compatibilidade com a Constituição real. Do contrário, torna-se inevitável o conflito cujo desfecho há de se verificar contra a Constituição escrita, sendo que esse pedaço de papel terá de sucumbir diante dos fatores reais de poderes dominantes. 13 BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ação Civil Pública. Florianópolis: Livraria e Editora Obra Jurídica, p Nicos Poulantzas, dando-se conta de que as massas populares, através de lutas decorrentes das contradições internas inerentes ao Estado capitalista, são determinantes na transformação deste mesmo Estado, fixando, inclusive, conquistas, como as instituições da democracia representativa. Esta circunstância, diz, foi ocultada pela idéia de ditadura do proletariado, que, salienta, foi, no pensamento de Marx, uma noção estratégica em estado prático, funcionando ademais como painel indicador. 185

186 Emerson de Lima Pinto O referido autor-sindicalista insistia na proposta das cooperativas 14 e na sua intransigente defesa do sufrágio universal, igual e direto para os operários, como forma de se conquistar o Estado para implementar reformas sociais, bem como sobre o conceito de Constituição. Lassale 15 demonstrou seu ceticismo em relação ao instrumento durante o século XIX, o que nos dias atuais demonstra-se bastante razoável, tendo em vista como forças hegemônicas se relacionam com a Constituição no que se refere à sua função democrática e limitadora dos poderes estatais, e em alguns casos corporativos ou sociais. O socialista utópico Lassale 16 mantinha estreita relação com os movimentos operários de então e seguidamente em seus discursos proferia junto aos operários opiniões sobre a conjuntura histórica que im- 14 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen & Juris, 2000 p. IX à XIII : seu pressuposto jurídico, evidente confronto com o pensamento jusnaturalista e positivista, é de que as constituições (burguesas?) não promanam de idéias ou princípios que se sobrepõe ao próprio homem, mas dos sistemas que os homens criam para, entre si, se dominarem, ou para se apropriarem da riqueza socialmente produzida (...) afirma taxativamente que as instituições jurídicas são os fatores reais de poder transcritos em folha de papel. As suas opiniões permitem concluir que ele acredita que o direito dominante (a Ordem Jurídica) não tem qualquer autonomia; seria um mero instrumento escrito com o objetivo de coagir condutas através da ameaça de punições (...) explicita com límpida clareza os fundamentos sociológicos das constituições: os fatores reais do poder. Para ele, constituem se em fatores reais do poder o conjunto de forças que atuam politicamente, com base na lei ( na Constituição), para conservar as instituições jurídicas vigentes(...) não mostra muito otimismo com as possibilidades e potencialidades do povo desorganizado: os servidores do povo são retóricos, os dos governantes são práticos, utilitários e oportunistas (...) se a Constituição escrita não corresponde aos fatores reais de poder, a Constituição real, tanto por um lado o rei, a aristocracia, a grande burguesia -, quanto por outro a consciência nacional está ameaçada. Ele consegue identificar os indicadores da crise, mas se perde na indicação de alternativas jurídicas e até mesmo políticas. (grifo nosso) 15 Ibid., p : O conceito da Constituição como demonstrarei logo é a fonte primitiva da qual nascem a arte e a sabedoria constitucionais. Repito, pois, minha pergunta: Que é uma Constituição? Onde encontrar a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? Não pode, porém, decretar se uma única lei que seja, nova, sem alterar a situação legislativa vigente no momento da sua aprovação. Se a nova lei não motivasse modificações no aparelhamento legal vigente, seria absolutamente supérflua e não teria motivos para ser a mesma aprovada (...) A esta pergunta responderão: Constituição não é uma lei como as outras, é uma lei fundamental da nação. 16 LASSALE, Ferdinand. Manifesto Obrero y otros Escritos Políticos. Classicos Políticos. Centro de Estudos Constitucionales Madrid, p En diciembre de 1848, como todos ustedes saben, el Rey outorgo una Constituiciõn. Y quiero mostrarme de lo mas generoso muy bien, que lo hiciera. Pero, eso si, dicha Constituicion no podia alcanzar una validez definitiva hasta tanto no hubiera sido aceptada y apropada por la representacion popula legitimamente elegida. El proprio Rey lo compreendio asi, y por eso convoco en 1849, en Berlin, una Camara de Revision. Sin embargo, antes de que las sesiones hubieran lhegado a su final regular, fue disuelta dicha Camara, otorgando la ley electoral e las tres clases. 186

187 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... punha processos de (des)constituição que estava em curso, a partir de interesses hegemônicos. Contudo, qual deveria ser a função a ser desempenhada pela Constituição, a fim de garantir concretamente a estabilidade, o desenvolvimento social e institucional? Alguns pressupostos são para Lassale 17 indispensáveis sob pena de uma (des)legitimação da lei fundamental; para isso, será necessário: (1º) que a lei fundamental seja uma lei básica mais do que as outras comuns, como indica seu próprio nome fundamental ; (2º) que constitua o verdadeiro fundamento das outras leis, isto é, se a lei fundamental realmente pretende ser merecedora desse nome, deverá informar e engendrar as outras leis comuns originárias da mesma lei fundamental, assim, deverá atuar e irradiar-se através das leis comuns do país; (3º) entenda-se que as coisas têm um fundamento e existem porque necessariamente devem existir. Por fim, em Lassale 18, se pode observar os elementos essenciais que devem compor ou fundar a Constituição, de modo a propiciar que 17 LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen & Juris, 2000, p ; 26-8: A realidade era esta: o povo estava sempre por baixo e devia continuar assim (...) assim, pois, todos os países possuem ou possuíram sempre e em todos os momentos da sua história uma Constituição real e verdadeira. A diferença nos tempos modernos e isto não deve ficar esquecido, pois tem muitíssima importância não são as constituições reais e efetivas, mas sim as constituições escritas nas folhas de papel (...) De fato, na maioria dos Estados modernos, vemos aparecer, num determinado momento da sua história, uma Constituição escrita, cuja missão é a estabelecer documentalmente, numa folha de papel, todas as instituições e princípios do governo vigente (...)Somente pode ter origem, evidentemente, no fato de que nos elementos reais do poder imperantes dentro do país se tenha operado uma transformação. Se não se tivesse operado transformações nesse conjunto de fatores da sociedade em questão, se esses fatores do poder continuassem sendo os mesmos, não teria cabimento que essa mesma sociedade desejasse uma Constituição para si. Acolheria tranqüilamente a antiga, ou, quando muito, juntaria os elementos dispersos num único documento, numa única Carta Constitucional (...) Quando num país arrebenta e triunfa a revolução, o direito privado continua valendo, mas as leis do direito público se desmoronam e se torna preciso fazer outras novas. 18 Ibid.,LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição Editora Lumen &Juris. 5.ed., p.12; 17-22: em síntese, em essência, a Constituição de um país: a soma dos fatores reais do poder que regem uma nação (...) Mas que relação existe com o que vulgarmente chamamos Constituição? Com a Constituição jurídica? Não é difícil compreender a relação que ambos conceitos guardam entre si. (...) Juntam se esses fatores reais do poder os escrevemos em uma folha de papel e ele adquire expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais do poder, mas sim verdadeiro direito instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei, e, por conseguinte é punido (...) instrumento do poder político do rei, o Exército, está organizado, pode reunir se a qualquer hora do dia ou da noite, funciona com uma disciplina única e pode ser utilizado em qualquer momento que dele se necessite (...) Entretanto, o poder que se apoia na Nação, meus senhores, embora seja, como de fato o é, infinitamente maior, não está organizado. A vontade do povo, e sobre tudo seu grau de acometimento, não é sempre fácil de pulsar, mesmo por aqueles que dele fazem parte. Perante a iminência do início de uma 187

188 Emerson de Lima Pinto a mesma se torne a base legal e tenha existência jurídica, de acordo com os interesses da sociedade presente em determinado Estado Nacional. O autor prussiano inaugura uma crítica sistematizada à clássica noção de poder constituinte 19, e a faz levando em consideração a hegemonização de classes sociais dominantes, sem adotar a noção de luta de classes de seu contemporâneo Marx. Para Lassale 20 a Constituição e a teoria do poder constituinte, têm por gênese os fenômenos ligados à questão do poder, levando em consideração os fenômenos presentes na realidade social, política e econômica Kelsen: o monismo estatal na produção do Direito Kelsen tornou-se um dos maiores pensadores do direito do século XX, deixando uma vasta obra, na qual se destaca principalmente: Teoria Pura do Direito, em que o autor se funda na possibilidade de encontrar na realidade um aspecto que seja puramente jurídico, e como tal, suscetível de ser objeto da ciência jurídica. Trata-se, portanto, de considerar o Direito tal como o jurista deve vê-lo, na perspectiva própria da ciência jurídica, sem interferência de nenhuma outra ciência, como a ciência política, a ética e a psicologia. ação, nenhum deles é capaz de contar a soma dos que irão tentar defendê la. Ademais, a Nação carece desses instrumentos do poder organizado, desses fundamentos tão importantes de uma Constituição comoacima demonstramos, isto é, dos canhões 19 FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte. Rio de Janeiro: Lumen Juris,1988. p LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição. 5.ed. Editora Lumen & Juris, 2000, p. 33; 37-9; 40 Quando podemos dizer que uma constituição escrita é boa e duradoura?(...)quando essa constituição escrita corresponder à constituição real e tiver suas raízes nos fatores do poder que regem o país (...) Para eles fazer uma constituição escrita era o de menos; não havia pressa; uma constituição escrita pode ser feita, num caso de urgência, em vinte e quatro horas; mas, fazendo a desta maneira, nada se consegue, se for prematura (...) De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não justifica pelos fatos reais e efetivos do poder (...) Estou certo de que sem serdes profetas respondereis prontamente: essa Constituição está nas últimas; podemos considerá la morta, sem existência; mais uns anos e terá deixado de existir (...) Os motivos são muito simples.(...) Quando uma constituição escrita responde aos fatores reais do poder que regem um país, não podemos ouvir esse grito de angústia. Ninguém seria capaz de fazê lo, ninguém poderia se aproximar à Constituição sem respeitá la; com uma Constituição destas ninguém brinca se não quer passar mal (...) Os problemas constitucionais não são problemas de direito, mas do poder; a verdadeira Constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos do poder que naquele país vigem e as constituições exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social: eis aí os critérios fundamentais que devemos sempre lembrar(grifo nosso) 188

189 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... O autor chega à conclusão de que a realidade reveste-se de um aspecto puramente jurídico quando uma norma empresta significado jurídico a essa realidade, de modo que esta possa ser interpretada de acordo com aquela. O Direito é a norma, e esta é a única capaz de emprestar um significado que possa ser qualificado de jurídico aos atos humanos. Essa norma é um dever-ser a respeito de uma conduta humana, em contraposição ao ser da mesma conduta. Em outras palavras, a norma prescreve que uma determinada conduta deve ser de um determinado modo. Essa distinção entre ser e dever-ser é um dos pontos centrais da teoria pura de Kelsen 21. A partir dela é que se faz outra distinção importante, qual seja: entre a validade e a eficácia, se chega enfim ao fundamento de validade das normas jurídicas. Partindo desse ponto de vista, Kelsen chega à conclusão de que o Direito é uma ordem da conduta humana, um sistema de normas 22. Como ordem normativa, o direito procura dar lugar a um determinado comportamento humano, associando à ausência desse comportamento a um ato de força socialmente organizado. Aí se tem a diferença, para Kelsen, entre o Direito e os outros sistemas de normas - a reação à violação do dever ser por meio de um ato de força que seja socialmente organizado, de uma maneira centralizada, como nos Estados modernos, ou descentralizada, como sucedia nas ordens jurídicas primitivas. O fator determinante da teoria de Kelsen é o processo de formação do direito internacional. Este é elaborado principalmente pela reunião de vontades de dois ou mais Estados, enquanto o direito nacional depende da vontade de um único Estado. O Direito Internacional 23 prescreve condutas tanto a Estados quanto a indivíduos (mediata ou imediatamente quanto a estes); assim, não se distinguindo do direito interno de cada país em função dos seus destinatários, como sustenta a teoria clássica do direito das gentes, mas pela forma de sua elaboração. As consequências advindas dessa posição levam o autor a considerar que o direito internacional acha-se ainda no começo de uma evolução 21 BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, p FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte.Rio de Janeiro: Lumen Juris, p KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. Martins Fontes: São Paulo, p

190 Emerson de Lima Pinto que o direito estadual já percorreu há muito, pois não há uma centralização da criação e da aplicação do Direito na ordem jurídica internacional. Trata-se de uma ordem jurídica primitiva, cujo último estágio de evolução tende para a formação de um Estado mundial, nos moldes dos Estados nacionais contemporâneos. O monismo jurídico 24 é a opinião mais difundida entre os estudiosos do direito internacional, considerando este e o direito nacional como dois sistemas de normas diferentes, independentes um do outro. Chama-se a essa posição de dualista, em contraposição àquela que vê a unidade entre as duas ordens jurídicas, o denominado monismo Schmitt: Estado e pensamento autoritário O jurista Schmitt 25 é considerado um dos maiores teóricos no que tange à Teoria da Constituição e o Direito Constitucional. Schmitt for- 24 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 129; Em sua teoria pura, é pressuposto epistemológico a unidade cognoscitiva de todo o direito. O direito internacional tem caráter jurídico, ou seja, é direito. Decorre necessariamente dessa conclusão que direito internacional e direito interno só podem formar um todo, uma unidade. Não é possível, em boa lógica, que existam dois sistemas de normas diferentes igualmente válidos como querem os dualistas, diz Kelsen. Se existe uma norma que prescreve A deve ser, válida, não pode haver outra, igualmente válida, prescrevendo A não deve ser. São proposições mutuamente incompatíveis, pois o princípio de identidade vale tanto para a esfera normativa quanto para a realidade empírica. Surge imediatamente um problema, quanto ao conflito entre os dois sistemas. Tomemos por exemplo uma lei do Estado que está em desconformidade com um tratado de direito internacional: Kelsen afirma que a norma desconforme não significa que haja um conflito, mas um ilícito, ou seja, um pressuposto ao qual o direito liga consequências específicas - não há, pois, entre o ilícito e o direito qualquer contradição no plano lógico. Nenhum obstáculo, portanto, a uma posição que admita a unidade entre o direito internacional e o direito Interno na teoria pura do direito. Do ponto de vista de uma construção monista do direito, é possível analisar os dois sistemas de normas que a integram de dois modos diferentes. Ou se tem uma relação de coordenação, ou a relação é de subordinação. Para que seja de coordenação, é necessário supor que os dois ordenamentos estejam em um mesmo nível, e que haja um outro ordenamento, superior aos dois, de onde provenha a norma fundamental destes. (...) a relação é de subordinação, uma vez que não existe esse terceiro ordenamento superior tanto ao direito internacional quanto ao direito nacional. Por conseguinte, o fundamento de validade de um sistema inferior deriva de outro, superior. A questão é saber se tal ordenamento superior é o direito internacional ou o direito nacional. Kelsen teve duas posições sobre o assunto. Em princípio, sustenta não ser possível para a ciência jurídica definir qual das duas construções é a mais apropriada, pois a diferença entre elas diz respeito somente ao fundamento de validade do Direito Internacional, não ao seu conteúdo. Depois admite a primazia do direito internacional, fundado em argumentos jurídicos. Nos seus últimos trabalhos, volta à posição inicial. (...) O que coloca a primazia na ordem jurídica internacional teria uma postura objetivista. Não obstante isso, seriam igualmente válidas do ponto de vista da ciência do direito, à qual não cabe formular um juízo. 25 AGUILAR, Hector Orestes. Carl Schmitt, Teólogo de la Política. Fundo de Cultura Económica: 190

191 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... mulou na sua obra Teoria de Constituição a sua teoria decisionista do Estado e do Direito, analisando a questão do poder constituinte 26. Schmitt deixa claro o que ele considera objeto central de proteção na Constituição de Weimar: às instituições mais tradicionais e conservadoras do sistema jurídico político alemão que entendiam a Constituição como resultado de uma decisão política soberana. A Constituição asseguravase, em sentido absoluto, podendo possuir significados distintos, uma vez que o texto fundamental em sentido absoluto é a realização efetiva da unidade política existente, sendo que o Estado, em razão de sua concepção estatal/estatista, não configurava uma Constituição que regulava a forma e o funcionamento da vontade estatal, embora o Estado seja a própria Constituição (absorvendo na Constituição como organização do poder político estatal). Sua reflexão surge em um período de intensa agitação social e política no velho continente. Uma crise extraordinária 27 atinge o capitalismo e o Estado liberal burguês e na esteira da Revolução Bolchevista na Rússia. Seu pensamento surge como oposição ao normativismo formalista de Kelsen. Schmitt 28 tem inspiração no pensamento de Hobbes, pois justificava a necessidade de estabilidade pela unidade entre Estado, partido e povo, condenando o pluralismo político-social. Sobre algumas ideias de Schmitt, Miranda 29 ressalta: Mexico, p BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, p A constituição só é válida, para Carl Schmitt, quando proveniente de um poder constituinte e estabelecida por sua vontade. A norma vale porque está positivamente ordenada em virtude de uma vontade existente. A unidade e a ordenação de uma constituição residem na existência da unidade política de um povo, ou seja, do Estado. Se a constituição for considerada apenas em seu sentido formal, como constituição escrita, ela está sendo igualada a uma série de leis constitucionais escritas. Com isso, o conceito de constituição é relativizado, perdendo o seu significado objetivo. Para Schmitt, um conceito de constituição só é possível se este for distinto da noção de lei constitucional. Este conceito é a constituição em sentido positivo, surgida mediante ato de poder constituinte, que, por um único momento de decisão, contém a totalidade de unidade política 27 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7 ed. São Paulo: Editora Malheiros, p SCHIMITT, Carl. Teoria de La Constitución. México: Editora Nacional, p. 81-2; MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, p

192 Emerson de Lima Pinto Schmitt distingue quatro conceitos básicos de Constituição: um conceito absoluto (a constituição como um todo unitário) e um conceito relativo (a Constituição como uma pluralidade deles particulares), um conceito positivo (a Constituição como decisão de conjunto sobre o modo e a forma da unidade política) e um conceito ideal (a Constituição assim chamada em sentido distinto e por causa de certo conteúdo). (...) Uma Constituição é valida enquanto emana de um poder constituinte e se estabelece por sua vontade significando vontade uma magnitude do Ser como origem de um (Dever ser). Assim, é a vontade do Povo alemão que funda a sua unidade política e jurídica. (...) A Constituição (em sentido positivo) surge mediante um acto do poder constituinte. Este acto não contém, como tal, quaisquer normas, mas sim, e precisamente por ser um único momento de decisão, a totalidade da unidade política considerada na sua particular forma de existência; e ele constitui a forma e o modo da unidade política, cuja existência é anterior. A Constituição é uma decisão consciente que a unidade política, através do titular do poder constituinte; adopta por si própria e se dá a si própria. (grifo nosso). No entanto, para Schmitt 30, a Constituição pressupõe a neutralidade da política interna do Estado: I) a neutralidade como atitude inibidora da decisão política e como significado que favorece a tomada de decisões. Para Schmitt, a decisão política é o elemento fundamental do ordenamento jurídico; a norma jurídica é o fruto da decisão da comunidade política, e esta decisão não esta subordinada à norma alguma. O autor prioriza o político sobre o jurídico, e assim concebe o Estado e o Direito como resultados da decisão política adotada pela comunidade política, a partir do poder constituinte ilimitado e incondicionado, entendido como questionável frente à tutela dos Direitos Humanos, a partir de um neoconstitucionalismo garantidor e pluralista, resgatando Heller no sentido de que a vontade do poder constituinte não pode estar dissociada. Nesse sentido, as ideias do autor vêm ao encontro da lição de Farias 31 : [...] de uma normação, sem a qual a massa humana não tem uma vontade capaz de decisão nem um poder capaz de ação, e muito menos autoridade [...] é soberano o poder que cria o direito. 30 SCHMITT, Carl. El concepto de lo político.madrid: Alianza Editorial, p FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p

193 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... O centro da reflexão de Schmitt é a noção de decisão 32. O conceito de decisão confunde-se com o de político; surge como oposição ao normativismo formalista de Kelsen. Considerada em suas consequências, a concepção da força determinante das relações fáticas significa o seguinte: a condição de eficácia da Constituição jurídica, isto é, a coincidência da realidade e da norma constitui apenas um limite hipotético extremo. Entre a norma fundamentalmente estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para essa concepção do Direito Constitucional, está configurada permanentemente uma situação de conflito, qual seja: a Constituição jurídica no que tem de fundamental, isto é, nas disposições não propriamente de índole técnica, sucumbe quotidianamente em face da Constituição real. A ideia de um efeito determinante exclusivo da Constituição real não significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica. Essa negação do direito constitucional importa na negação do seu valor enquanto ciência jurídica. Como toda ciência jurídica, o direito constitucional é ciência normativa 33 ; diferencia-se, assim, da sociologia e da ciência política enquanto ciências da realidade. Se as normas constitucionais nada mais expressam do que relações fáticas altamente mutáveis, não há como deixar de reconhecer a ciência jurídica na ausência do direito, não lhe restando outra função senão a de constatar e comentar os fatos criados pela política realista e pragmática. Assim, o direito constitucional não estaria a serviço de uma ordem estatal justa, cumprindo-lhe tão-somente a miserável função indigna de qualquer ciência de justificar as relações de poder dominante. Se a ciência da Constituição adota essa tese e passa a admitir a Constituição real como decisiva, tem-se a sua (des)caracterização como ciência normativa, operando-se a sua conversão numa simples ciência do ser. Não haveria mais como diferençá-la da sociologia ou da ciência política. 32 SCHIMITT, Carl. Teoria de La Constitución. México: Editora Nacional, p. 25-6: Lo que existe como magnitud politica, es, juridicamente considerado, digno de existir.(...) Toda unidad politica existente tiene su valor y su razón de existencia, no en la justicia o conveniencia de normas, sino en su existencia misma. 33 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, p

194 Emerson de Lima Pinto 7.5. Hesse: A Constituição estatal/estatista e seu desejável não retrocesso Hesse 34 considera a Constituição como ordem jurídica fundamental, material e aberta de uma comunidade, pois a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade, e está relacionada à sua historicidade, como bem (re)lembra Bercovici 35, vejamos: Para Konrad Hesse, a juridicidade da constituição é essencial para a teoria material da constituição. A constituição real a constituição normativa estão em constante contato, em relação de coordenação. Condicionam-se, mas não dependem, pura e simplesmente, uma de outra. A constituição jurídica, embora não de modo absoluto, tem significado próprio. Polemizando com Ferdinand Lassalle, Hesse afirma que a constituição não é apenas uma folha de papel: não está desvinculada da realidade histórica concreta, mas, também, não é simplesmente condicionada pôr ela. Em face da constituição real, a constituição jurídica possui significado próprio. O pensamento constitucional tradicional, segundo Hesse, está marcado pelo isolamento entre norma e realidade, entre ser e dever ser, dando-se ênfase em uma ou outra direção. Assim, chega-se a uma norma despida de elementos de realidade ou a uma realidade sem elementos normativos. Na sua concepção, a norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. Sua essência reside na vigência e na pretensão de eficácia - a situação regulada pretende ser concretizada na realidade, - que não podem ser separadas das condições históricas. É graças a essa pretensão de eficácia que a constituição vai procurar ordenar e conformar a realidade. A constituição adquire força normativa à medida que logra realizar essa pretensão de eficácia. (grifo nosso). Trata-se de uma das teorias mais representativas e influentes da moderna publicística germânica. Para Hesse, a Constituição determina os princípios segundo os quais deve-se buscar formar a unidade política e prosseguir com a atividade estatal; regulando o processo de solução de conflitos dentro da comunidade, na qual a ordem e a organização do processo de formação da unidade política e da ordem jurídica como 34 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Sergio Fabris: Porto Alegre, p BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, p

195 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... tarefa 36 da atuação estatal cria os fundamentos e normatividade dos princípios da ordem jurídica global. Sobre a normatividade que decorre da Constituição aberta, Hesse 37 leciona que: A Constituição não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade de política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não se pode definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas (...) Elas condicionam se mutuamente, mas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra. Ainda que não de forma absoluta, a Constituição jurídica tem significado próprio. Sua pretensão de eficácia apresenta se como elemento autônomo no campo de forças do qual resulta a realidade do Estado. A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia. (...) Em outros termos, somente a Constituição que se vincule a uma situação histórica concreta e sua condicionantes, dotada de uma ordenação jurídica orientada pelos parâmetros da razão, pode, efetivamente, desenvolver se. Se não quiser permanecer eternamente estéril, a Constituição entendida aqui como Constituição jurídica não deve procurar construir o Estado de forma abstrata e teórica. (...) Em outras palavras, a força vital e a eficácia da Constituição assentam se na sua vinculação às forças espontâneas e às tendências dominantes do seu tempo, o que possibilita o seu desenvolvimento e a sua ordenação objetiva. A Constituição converte se, assim, na ordem geral objetiva do complexo de relações da vida (grifo nosso). Tornou-se evidente a impossibilidade de uma (re)distribuição espontânea da renda nas sociedades complexas como resultado do desenvolvimento econômico. Até mesmo porque o crescimento econômico 36 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p. 29; HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris p.15-6;18:. 195

196 Emerson de Lima Pinto era induzido pelo Estado Social 38, que de conceito heurístico (trans) formara-se em figura ontologicamente constitucional. A concepção de uma justiça que poderia levar ao incremento da riqueza social como um todo, mas não à adjudicação individual de parcelas dessa riqueza a indivíduos concretos. A ausência de participação dos órgãos governamentais (re)distribuidores fez com que se deteriorasse a teoria da justiça social. Nesse sentido, as perplexidades trazidas pela (des)estruturação do Estado de bem-estar social e os impasses da teoria da justiça social levaram alguns teóricos a defender ideias pessimistas, refratárias à meditação sobre a justiça. A função da Constituição é racionalizar, estabilizar, garantir, possibilitar, construir e limitar um processo político livre, assim como o de assegurar a liberdade individual e o desenvolvimento coletivo. Em Hesse 39, uma tentativa de resposta deve ter como ponto de partida o condicionamento recíproco existente entre a Constituição jurídica e a realidade política social. Devem ser considerados, nesse contexto, os limites e as possibilidades da atuação da Constituição jurídica. Finalmente, deve-se investigar os pressupostos de eficácia e a força normativa da Constituição 40. Ainda, consoante aduz o autor acerca da 38 HESSE op.cit., p HESSE, op.cit.,p O significado da ordenação jurídica na realidade e em face dela somente pode ser apreciado se ambas ordenação e realidade forem consideradas em sua relação, em seu inseparável contexto, e no seu condicionamento recíproco. Uma análise isolada, unilateral, que leve em conta apenas um ou outro aspecto, não se afigura em condições de fornecer resposta adequada à questão. O pensamento constitucional do passado recente está marcado pelo isolamento entre norma e realidade, como se constata tanto no positivismo jurídico de Escola de Paul Laband e Georg Jellinek, quanto no positivismo sociológico de Carl Schmitt. Os efeitos dessa concepção ainda não foram superados. A radical separação, no plano constitucional, entre realidade e norma, entre ser (Sein) e dever ser (Sollen) não leva a qualquer avanço na nossa indagação.(...) Eventual ênfase numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente aos extremos de uma norma despida de qualquer elemento da realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas, e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas. (grifo nosso). 40 Ibid.,p : Mas, a força normativa da Constituição não reside, tão somente, na adaptação 196

197 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... Constituição aberta, Miranda 41 esclarece o caráter dinâmico que o texto deve expressar, então vejamos: Para Konrad Hesse, a Constituição é a ordem jurídica fundamental e aberta da comunidade. A sua função consiste em prosseguir a unidade do Estado e da ordem jurídica (não uma unidade preexistente, mas de actuação); a sua qualidade em constituir, estabilizar racionalizar e limitar o podere, assim, em assegurar a liberdade individual. (...) A Constituição tem de estar aberta ao tempo, o que não significa nem dissolução, nem a diminuição de força normativa. Ela não se reduz a deixar em aberto. Estabelece também o que não deve ficar em aberto os fundamentos da ordem da comunidade, a estrutura do Estado e os processos de decisão das questões deixadas em aberto. (grifo nosso). Ademais, sobre o tema da força normativa da Constituição Hesse 42 traz à tona: A força que constitui a essência e a eficácia da Constituição reside na natureza das coisas, impulsionado a, conduzindo a e transformando se, assim, em força ativa. Como demonstrado, daí decorrem os seus limites. (...) Tal como acentuado, constitui requisito essencial da força normativa da Constituição que ela leve em conta não só os elementos sociais, políticos, e econômicos dominantes, mas também que, principalmente, incorpore o estado espiritual de seu tempo. inteligente a uma dada realidade. A Constituição jurídica logra converter se, ela mesma, em força ativa, que se assenta na natureza singular do presente. Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem. Concluindo, pode se afirmar que a Constituição converter se á em força ativa se fizerem se presentes, na consciência geral particularmente, na consciência dos principais responsáveis pela ordem constitucional -, não só a vontade de poder, mas também a vontade de Constituição.(...) Baseia se na compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrável, que proteja o Estado contra o arbítrio desmedido e disforme. Reside, igualmente, na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada pelos fatos (e que, por isso, necessita de estar em constante processo de legitimação).(...) A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação. (...) Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura se inevitável. 41 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, p HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris p

198 Emerson de Lima Pinto Isso lhe há de assegurar, enquanto ordem adequada e justa, o apoio e defesa da consciência geral.(...) Afigura se, igualmente, indispensável que a Constituição mostre se em condições de adaptar se a uma eventual mudança dessas condicionantes. Abstraídas as disposições de índole técnico organizatória, ela deve limitar se, se possível, ao estabelecimento de alguns poucos princípios fundamentais, cujo conteúdo específico, ainda que apresente características novas em virtude das céleres mudanças na realidade sócio política, mostre se em condições de ser desenvolvido.(...) A Constituição não deve assentar se numa estrutura unilateral. Deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária. Direitos fundamentais não podem existir sem deveres, a divisão de poderes há de pressupor a possibilidade de concentração de poder, o federalismo não pode subsistir sem uma certa dose de unitarismo. Se a Constituição tentasse concretizar um desses princípios de forma absolutamente pura, Ter se ia de constatar, inevitavelmente no mais tardar em momento de acentuada crise que ela ultrapassou os limites de sua força normativa. A realidade haveria de pôr termo à sua normatividade; os princípios que ela buscava concretizar estariam irremediavelmente derrogados. B)Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominada vontade de Constituição. Ela é fundamental, considerada global ou singularmente. (grifo nosso). Por fim, a Constituição jurídica 43 não significa um simples pedaço de papel, tal como caracterizada por Lassale. A Constituição não está (des)vinculada da realidade histórica concreta do seu tempo. Todavia, ela não está condicionada, simplesmente, por essa realidade. Em caso de eventual conflito, a Constituição 44 não deve ser considerada, 43 Ibid.,p. 24: Em síntese, pode se afirmar: a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo. A pretensão de eficácia da Constituição somente pode ser realizada se levar em conta essa realidade. A Constituição jurídica não configura apenas a expressão de uma dada realidade. Graças ao elemento normativo, ela ordena e conforma a realidade política e social. As possibilidades, mas também os limites da força normativa da Constituição resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen).(...) A Constituição jurídica logra conferir forma e modificação à realidade. Ela logra despertar a força que reside na natureza das coisas, tornando a ativa. Ela própria converte se em força ativa que influi e determina a realidade política e social. (...) Quanto mais intensa for a vontade de Constituição, menos significativas hão de ser as restrições e os limites impostos à força normativa da Constituição. A vontade de Constituição não é capaz, porém de suprimir esses limites. (grifo nosso). 44 HESSE, op.cit., p : Embora passe muitas vezes despercebido, o perigo do divórcio entre o 198

199 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... necessariamente, a parte mais fraca. Somente quando esses pressupostos não puderem ser satisfeitos, dar-se á a conversão dos problemas constitucionais, enquanto questões jurídicas, em questões de poder. Nesse caso, a Constituição jurídica sucumbirá em face da Constituição real Heller: A gênese da Constituição como Ciência da cultura Heller traz uma contribuição ao direito constitucional inovadora, pois aproxima a Teoria da Constituição e à Ciência Política, o que neste século tem sido mais efetivamente resgatada e representa uma referência teórica fundamental para o futuro do constitucionalismo e para a Constituição. Seu desaparecimento repentino privou a humanidade de um de seus mais promissores juristas, na acepção do termo. A importância que a sociedade civil e a cultura têm para com a Constituição representa a contribuição inesquecível de Heller, que faz parte de uma geração de juristas que tenta superar, no interior da Teoria Constitucional, a redução normativista Kelsiana, a abordagem puramente identificada com as decisões políticas de Schmitt 45 determinadas decisões equivocadas - e Direito Constitucional e a realidade ameaça um elenco de princípios basilares da Lei Fundamental, particularmente o postulado da liberdade. Este se torna um sério problema no contexto da profunda mudança de concepção de vida do homem moderno, resultante das condições impostas pela sociedade industrial.(...) Aqui se encontra o presente confrontado, em toda profundidade, com a indagação sobre a efetividade das normas jurídicas no contexto de uma realidade dominada por correntes e tendências contraditórias. O questionamento da Constituição não decorre de um estado de anormalidade. Ao contrário da Constituição de Weimar, a Lei Fundamental promulgada numa época de inesperado desenvolvimento econômico e sob a influência de relações políticas relativamente estáveis não foi submetida a uma prova de força. Como referido, as situações de emergência no âmbito político, econômico ou social configuram a maior prova desse tipo para a força normativa da Constituição, uma vez que elas não podem ser resolvidas com base no exercício das competências convencionais previstas na Constituição. A Lei Fundamental não está preparada para esse embate.(...) Sem dúvida, a existência de competência excepcional estimula a disposição para que dela se faça uso. Esse perigo existe. Maiores riscos poderão advir, todavia, da falta de coragem de enfrentar o problema. Caso se verifique essa situação, faltará uma disciplina normativa, ficando a solução do problema entregue ao poder dos fatos. (...) Não se deve esperar que as tensões entre ordenação constitucional e realidade política e social venham a deflagrar sério conflito.(...) A resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós. (grifo nosso). 45 SCHMITT, Carl. El Führer defiende el derecho (1934). In. AGUILAR, Hector Orestes. Carl Schmitt, Teólogo de la Política. Fundo de Cultura Económica: Mexico, p.115. El Fuhrer está defendiendo el ámbito del derecho de los peores abusos al hacer justicia de manera directa em el 199

200 Emerson de Lima Pinto a identificação de Lassale da Constituição enquanto reflexo imediato das relações de poder em uma sociedade determinada. Sobre a cultura e o Estado, Heller 46 sustentava que de modo algum uma criação de realidade era condicionada unicamente pelo poder de espírito humano; mas sim, em uma conformação da realidade sujeita às leis psíquicas e físicas do homem e do seu material. Assim, deveria acrescentar-se que o conhecimento destas leis pelo homem, a maneira como são utilizadas, em suma, a sua ação social e a sua significação cultural, mudam também com a história e devem ser formadoras da Constituição. Da perspectiva sociológica adotada por Heller derivam posturas diferentes das adotadas pela dogmática jurídica em quase todas as principais matérias, não só do constitucionalismo, mas da política e do próprio direito. Por exemplo, a Teoria do Estado, a qual nos hegemoniza em tempos modernos e que já o fazia desde à década de Heller nos apresentava questões instigantes, como a Teoria do Estado sendo ciência da cultura e coagindo-nos atualmente a perceber a Constituição de modo transdisciplinar; trazendo entre outras ciências, a sociologia e a ciência de estruturas, para que se possa compreender que a Teoria do Estado é a Ciência Política ampliada. Assim, não se pode cair na tentação falaciosa de que está adequado reduzir a Constituição ao Estado e, nesse sentido, a Teoria do Estado; que sempre ocupou um espaço totalizador acerca da Teoria da Constituição. Heller 47, antecipando Häberle 48, vem corroborar a visão de que o Estado é uma unidade-pluralidade, o que significa que é a questão momento del peligro, como juez supremo em virtud de su capacidad de líder. 46 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora Mestre Jou, p. 57. Deve evitarse, não obstante, incorrer no erro de crer que a delimitação de fronteiras cientifica entre a cultura e a natureza supõe que a realidade apareça rota e fendida nesses dois campos. Pelo contrário, é evidente que não existe uma cultura independente da natureza e das suas leis; pois a cultura nasce, justamente, do fato do homem se valer das legalidades naturais para os seus fins. A luz da nossa casa arde somente em virtude de leis naturais, que o homem utiliza para vencer por meio delas a noite que reina lá fora, também por leis naturais..(...) A concepção imanente do Estado não pode, pois, ser uma interpretação sobre-humana nem infra-humana do Estado, mas tem que ser precisamente humana. Pois só para a compreensão humana significam alguma coisa essas formas psicofísicas da realidade que se chamam Estado ou cultura. (grifo nosso) 47 Ibid., p HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Editora Tecnos: Madrid, p

201 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... desta unidade na pluralidade o problema que implica todos os outros na Teoria do Estado e modernamente na teoria da Constituição. Heller concebe as duas esferas em uma unidade real no Estado, em que a unidade da organização estatal é condicionada pela estrutura sistemática de sua ordenação, tanto real como normativa. Todos os habitantes estão submetidos, mediata ou imediatamente, à unidade fundamental de decisão e devem contribuir para a unidade de ação central. Deste modo, o Estado precisa de uma Constituição normativa, entendida como a ordenação consciente da realidade social segundo um plano, ideia consagrada pelas revoluções liberais, que precisa ser (re)legitimado na sociedade contemporânea a partir de novos paradigmas 49, conforme foi abordado sucintamente na sociedade civil, poder constituinte e direitos humanos 50 como fio condutor de uma nova compreensão de sociedade e de um Estado garantista e dirigente. Para Miranda 51, o pensamento de Heller buscava trazer à tona o fato de que a Constituição do Estado não é processo, mas produto; não é atividade, mas forma de ação; é uma forma diferenciada, aberta, por meio da qual passa a vida. Nesse sentido, a partir das lições assimiladas, o jurista português assevera: A Constituição permanece através da mudança de tempo e pessoas, graças á probabilidade de se repetir no futuro o comportamento que com ela está de acordo. Essa probabilidade baseia-se, de uma parte, numa mera normalidade de facto conforme à Constituição do comportamento dos membros e, além disso, numa normalidade normada dos mesmos e no mesmo sentido. Cabe, por isso, distinguir a Constituição não normada e a normada e, dentro desta, a normada extrajuridicamente e a que o é juridicamente. A Constituição normada pelo Direito conscientemente estabelecido e assegurado é a Constituição organizada. E, assim como não podem ser separados a normalidade e a normatividade, o ser e o dever ser no conceito da Constituição.(grifo nosso). No mesmo sentido, Tavares 52 relembra que: 49 DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes, p COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3.ed. rev. ampliada. São Paulo: Saraiva, p MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, p TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed.: São Paulo: Editora Saraiva, 201

202 Emerson de Lima Pinto [...] afirma-se que o poder constituinte originário não poderá fazer tábua rasa dos princípios ordenadores em que se assenta a práxis da comunidade eventualmente carecida de nova Constituição, ou seja, dos princípios constitutivos da ideia de direito dessa comunidade concreta, da história da dimensão da humanidade portadora de uma tradição cultural impositiva. Seria então a normalidade normada a que se refere Hermann Heller.(grifo nosso). Outro argumento utilizado por HELLER 53, na justificativa da teoria da normalidade e da normatividade, é o de que o ato legislativo não concentra toda gama de direitos existentes, nem consegue esgotar a realidade social, requerendo, para tanto, da observação da realidade e da norma, conjuntamente. Tais princípios aparecem materialmente - formulando o princípio jurídico-, ou formalmente. Revelam-se como ordenadores da realidade social e possuem eficácia plena. A respeito da teoria de Heller, o mestre português Miranda 54 destaca a relevância das ideias do jurista de Weimar: O específico da teoria de Heller consiste, em primeiro lugar, na definição da Constituição como totalidade, baseada numa relação dialéctica entre normalidade e normatividade e, em segundo lugar, na procura da conexão entre a Constituição enquanto ser e a Constituição enquanto Constituição jurídica normativa (superando, assim, as unilateralidades de Kelsen e Schmitt ). A Constituição do Estado não é processo, mas produto; não é actividade, mas forma de actividade; é uma forma aberta, através da qual passa a vida, vida em forma e forma nascidada vida. A Constituição permanece através da mudança de tempo e pessoas, graças a probabilidade de se repetir no futuro o comportamento que com ela está de acordo. Essa probabilidade baseia-se, de uma parte, numa mera normalidade de facto conforme à Constituição do comportamento dos membros e, além disso, numa normalidade normada dos mesmos e no mesmo sentido. Cabe, por isso, distinguir a Constituição não normada e a normada e, dentro desta, a normada extrajuridicamente e a que o é juridicamente. A Constitução normada pelo Direito conscientemente estabelecido e assegurado é a Constituição organizada. E, assim como não podem considerar-se completamente separados o dinâmicoe o estático, p HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, p MIRANDA, op.cit., p

203 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... tão pouco podem ser separados a normalidade e a normatividade, o ser e o dever ser no conceito de Constituição. (grifo nosso). Em Heller 55 a dinâmica e a estática de uma Constituição passam a ser compreendida como normanda e não normada, a fim de versar a respeito da importância que os fatores extraestatais acabam por ensejar em uma concepção superior de Constituição: A Constituição normada consiste em uma normalidade da conduta normada juridicamente, ou extrajuridicamente pelo costume, a moral, a religião, a urbanidade, a moda, etc. Mas as normas constitucionais, tanto jurídicas como extrajurídicas, são, ao mesmo tempo que regras empíricas de previsão, critérios positivos de valorização do trabalho. Porque também se rouba e se assassina com regularidade estatisticamente previsível sem que, nesse caso, a normalidade se torne normatividade (cf. Jahrreiss, pp. 16 e segs.). Só se valora positivamente e, por conseguinte, se converte em normatividade aquela normalidade a respeito da qual se crê que é uma regra empírica da existência real, uma condição de existência ora da humanidade em geral, ora de um grupo humano. (...) A Constituição real do Estado conhece certamente uma normalidade sem normatividade mas não, ao contrário, uma validez normativa sem normalidade. Todo direito vigente é uma realidade conforme à regra (W. Jellinek, Gesetz, Gesetzesanwendung etc., 1913, p. 23), e todas as normas constitucionais vigentes valem enquanto regras empíricas da situação estatal; possuem uma normalidade normativa. Como regras práticas de valoração valem enquanto são, ao mesmo tempo, critérios de previsão para o trabalho humano. Não cabe, pois, manter com a usual rigidez a separação entre as leis do ser e as do dever ser (cf. Kornfeld, pp. 15 e seg., Jahrreiss, pp.4 e seg.).(...)não existe Constituição política alguma que, inteiramente como status real, não seja, ao mesmo tempo, um ser formado por normas, isto é, uma forma de atividade normada, além de uma forma de atividade meramente normal.(grifo nosso). A Constituição não-normada é apenas um conteúdo parcial da Constituição total, pois a normalidade tem sempre que ser reforçada e completada pela normatividade. A Constituição é dotada de regras (leis, normas, direito e deveres) jurídicas nacionais que direcionam ou norteiam a conduta social, fiscalizada pelo Leviatã, para com a ordem interna de uma determinada sociedade; e regras que se estendem além 55 HELLER, op.cit., p

204 Emerson de Lima Pinto do poder jurídico, compreendidas apenas e tão somente a partir do monopólio estatal da produção do direito, e destinam-se para outras condutas denominadas de extrajurídicas, tais como a religião, a qual se torna uma via de árdua discussão e reflexão. Tudo isso obtendo legalidade, tornando as leis lícitas ou ilícitas para uma determinada sociedade, ou Estado-Nação, literalmente exemplificada em sua essência (território delimitado, soberania e povo). As leis destinam-se tanto para prevenir ações desviantes dos indivíduos sociais, quanto para a valorização, proteção, do empenho, e/ ou trabalho desenvolvido de cada cidadão. As únicas atitudes que são interpretadas e tomadas como lícitas, corretas ou legais são aquelas que são comprovadas por meio da experiência empírica e real, e que representam para a coletividade ou individualidade o existir sem prejuízo algum para si ou outrem. Em Häberle 56 verifica-se clara referência à Heller e sua contribuição teórica para a consolidação do Estado Social (prestacional) e a afirmação dos direitos fundamentais: Hasta la fecha puede decirse que carecemos de una teoría constitucional del Estado prestacional, estructurada sobre la base del próprio concepto de Constitución y que abarque simultáneamente auando próprio concepto de Constitución y que abarque simultáneamente aunando em su seno tanto al Estado como a la sociedad entendidos como <<cosa pública>>, al par que mestre sus afinidades em materia de derechos fundamentales básicos. La teoría del Estado, es decir, la teoria del Estado prestacional de Heller que define el estadocomo <<unidad organizada de actividad y de toma decisiones com tendencia a incrementar su eficacia potencial de prestaciones>>, es decir, uma especie de <<plusvalía de prestaciones estatales>> acción concertada, própia de la sociedad de prestaciones más avantazada -, nos llevaría demasiado lejos como tema por dilucidar. Nosotros, em cambio, entendemos que el Estado prestacional es el que se constituye que, tanto si es de forma mediata o immediata, sea a través de su propia organización o de sus procedimientos, aporta prestaciones a la ciudadania y a sus asociaciones, las cuales se orientan ante todo em el sentido más amplio del término hacia los propios derechos fundamentales como referencia más positiva. Frente a este tipo de Estado, el modelo más antitético aparece bajo la denominación de <<Estado policial interventor>>. (grifo nosso) 56 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta. Editora Tecnos: Madrid, p

205 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... A Constituição jurídica objetivada, distinta da Constituição política total do Estado para HELLER 57,é na realidade a normação do processo de renovação contínua da Constituição política total; por isso, ela é constantemente atualizada pelos homens, uma vez que inicialmente a Constituição compreende normas, as quais devem ou ao menos deveriam ser utilizadas no dia a dia, mas na prática isso não ocorre; eis que não creditam a elas caráter habitual ou de normatividade, pois as normas são institucionalizadas e legais, porém sem a devida importância e conhecimento de todos, ou como diz o texto, uma normalidade. A regra constitucional tem força ou vigora naquela situação estatal, na qual foi imposta. E também, as mesmas leis têm a mesma duração para valoração do trabalho humano exercido, no referido Estado. A concepção de Kelsen diz que não tem como prever e salvaguardar que as leis da natureza, o seu sentido, comportar-se-á seguindo aquilo que é pré-estabelecido nas leis; e que o sentido das normas jurídicas não é fazer com que os homens se comportem literalmente com aquilo que pré-estabelecem legalmente, mas sim que o sentido é saber que devem agir de acordo com as leis constitucionais impostas. Portanto, não existe Constituição política que não contenha normas, isto é, formada pelas mesmas ou por algo que possua regras que regulem ou norteiem as atividades sociais, tendo a tendência de se tornarem leis normais para com os seus adeptos. Em Heller 58, para a defesa da segunda parte da Constituição, que no caso era a de Weimar, verifica-se, portanto, os direitos sociais e a ordem econômica como grandes avanços Constitucionais. Muito embora os dispositivos programáticos não dispusessem de força jurídica vinculante, eles continham a resposta para a polêmica entre a concepção capitalista e a reforma socialista da economia, buscando a conciliação e o acordo recíproco para uma distribuição mais justa dos recursos. Contudo, em 1932, o Estado autoritário era a palavra de ordem na Alemanha, e Schmitt, conforme Heller buscava mostrar que o Estado de exceção era a situação normal e que a ditadura era a verdadeira democracia, defendendo o Estado total HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, p Ibid.,p BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente: Atualidade de Weimar. p

206 Emerson de Lima Pinto Com Heller são introduzidos elementos que forjam uma saudável crítica à dogmática jurídica, enquanto ciência normativa por distanciarse da realidade social, (des)temporalizando e (em)clausurando o direito em um processo de sistematização baseada em mitos, como o da completude e coerência do ordenamento. Acentua que a perspectiva acima é característica de uma ciência comprometida com interesses singulares e que desfruta de uma racionalidade instrumental legitimadora. Bercovici 60, um dos grandes constitucionalistas pátrios a (re)estabelecer a importância de Heller para a Teoria do Estado e da Constituição, traz à baila a questão do pluralismo presente na teoria do mestre Tedesco: A Teoria do Estado de Heller é uma teoria engajada. Na sua visão a Teoria do Estado deve ter a capacidade de responder e vencer as dificuldades as dificuldades concretas, pensando a problemática política de seu tempo. Toda a elaboração teórica de Heller sobre o Estado, soberania e Estado Social de Direito está vinculada às suas concepções políticas socialistas, tendo como objetivo a sua realização em um Estado Socialista.(...) proposta de Heller é a de uma Teoria do Estado atual, não seguindo o estilo das tradicionais Teorias Gerais do Estado alemãs. Heller defende a investigação da específica realidade estatal que nos rodeia. A Teoria do Estado é, portanto, uma ciência da realidade, que estuda o Estado enquanto realidade, ou seja, enquanto formação real e histórica..(...) O problema central de sua concepção de Estado é as relações entre pluralidade e unidade, visando a construção de uma unidade política com homogeneidade social em uma sociedade pluralista. Heller tenta conciliar, para isso, a democracia e o socialismo. (...) O Estado, segundo Heller, é uma unidade na pluralidade, a unidade de decisão territorial. A unidade tem um papel central na Teoria do Estado de Heller, em que ele afirma categoricamente a insustentabilidade da estrutura da classe do Estado. A sua preocupação gira em torno do modo que o Estado pode atuar como unidade ativa e como forma histórica real na realidade histórico-social. Defende o Estado como unidade na pluralidade.(...) O Estado, para Heller, tem uma função social, um fim que nem sempre coincide com os fins subjetivos dos homens que o formam. O que dá sentido e justificação ao Estado é esta função social. A justificação do Estado não se dá pela força ou pela legalidade, mas enquanto ele 60 Ibid., p

207 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... representar a organização necessária para assegurar o direito em uma determinada etapa se sua evolução histórica.(grifo nosso) A reflexão de Heller 61 busca responder a chamada crise da Teoria do Estado. Para o teórico alemão, o positivismo jurídico esqueceu-se do substrato social do Estado, impondo o método jurídico como o único possível, como assevera Bercovici 62, a compreensão de Heller, que os limites do método jurídico tornou-se evidente. Impunham-se novos fundamentos da unidade política 63, tendo em vista a (in)suficiência do positivismo e a necessidade de (re)construir o problema da unidade política (in)corporando ao Direito a realidade social e, por fim, (re) fundando o Estado democrático, para este não permanecer isolado e independente de toda atividade social. Fundado nestas categorias, propõe uma divisão tipológica das diversas Constituições, visto que as Constituições normadas e não-normadas formariam a Constituição política total. A Constituição não-normada é um conteúdo parcial da Constituição total e constitui-se de uma normalidade puramente empírica originada de modo constante e regular das motivações naturais, como a terra, o sangue, o contágio psíquico coletivo. Já a imitação ergue-se da Constituição normada, que consiste em uma normalidade da conduta normada jurídica ou extrajuridica- 61 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, p BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, p Para Heller, são os atos de decisão política que estabelecem e mantêm em vigor a ordem jurídica, cuja existência depende permanentemente dessa unidade de decisão territorial, de um lado dentro da pluralidade dos atos de vontade que a integram e, de outro, dentro da pluralidade de dominações territoriais que a circundam. (...) Toda política pretende a conformação e a manutenção da unidade. A política, para Heller, era um processo dinâmico pelo qual o Estado chega a ser e se impõe como unidade na pluralidade. (...) deve ser entendida como ação, como uma conformação consciente da sociedade orientada para um fim. Deste modo, toda política pretende ser política estatal, pois só a ordem estatal consegue acatamento da população. (...) propugnava pela autonomia e superioridade do Estado em relação à economia. Para Heller, o Estado deve ser concebido partindo da totalidade da realidade social, dentro da qual a atividade econômica é apenas um momento, embora decisivo na sociedade capitalista. (...) Na visão de Heller, a luta de classes é um meio, não um fim em si mesma. No mesmo sentido, a luta de classes é um processo positivo, não negativo, ou seja, o socialismo vai transformar, não demolir o Estado, pois não há como prever um futuro sem Estado. (...) O fundamento último da autêntica essência do socialismo reside, segundo Heller, na idéia da justiça social, com a evolução da justiça jurídico-formal para a justiça econômico-material. (grifo nosso). 63 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, p

208 Emerson de Lima Pinto mente (o costume, moral, religião, urbanidade, moda etc.) e que toda realidade constitucional vigente enquanto regra empírica de situação estatal, possuindo uma normalidade normativa. Enquanto esta vislumbra a legitimidade do direito na norma, no processo legal, na legalidade, àquela entende a legitimidade do direito em sua eficácia e plenitude social, na observância daqueles a quem a norma se dirige. Logicamente, a normalidade tende à normatividade, mas não necessariamente, pois a realidade social processa sua evolução de forma mais constante. Em seguida, Heller 64 aponta cinco conceitos de Constituição. Um conceito mais amplo referindo-se à estrutura, a característica do poder, a forma concreta de existência a atividade do Estado; o segundo, entendendo-o como uma estrutura básica do Estado, fundamental e relativamente permanente na unidade estatal - conceitos sociológicos de constituição; o terceiro conceito compreenderia a situação jurídica total do Estado, somatório das normas constitucionais e demais preceitos jurídicos (Constituição material em sentido lato); e a constituição material em sentido estrito, que extrai da ordenação jurídica total do Estado um conteúdo parcial valorizado, como ordenação fundamental, e não somente como norma fundamental hipotética e lógica. O quinto e último conceito seria o de Constituição formal e compreenderia a totalidade dos preceitos jurídicos fixados por escrito no texto constitucional. O problema do fundamento de validade do ordenamento jurídico é por Heller 65 colocado, visto que não se satisfaz com a norma fundamental hipotético-abstrata delegadora do poder constituinte originário de Kelsen, nem com o existencialismo de Schmitt em relação à vontade política, uma vez que entende como fundamento de validade da Constituição, para valer conforme ordenação o direito, os princípios éticos do direito, ou seja, os princípios legitimados pela sociedade, às vezes não autorizados pelo Estado e mesmo expressamente condenados em ocasiões por ele, tem para a existência da constituição do Estado a máxima importância, em parte por si mesmo e em parte como complemento. Estes princípios caracterizam-se porque carecendo de uma concretização suficiente não podem encontrar aplicação como normas imediatas para a decisão judicial, apesar de não obstante serem imprescindíveis na Constituição jurídica do Estado como normas sociais de 64 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora Mestre Jou, p HELLER, op.cit., p

209 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... ordenação, assim como também enquanto regras interpretativas da decisão judicial. A validez desses princípios é de natureza geral e apriorística em parte; mas, com mais frequência, é historicamente variável, dependendo do círculo de cultura correspondente. Por fim, quando se perquire o conceito de Constituição, algumas indagações devem ser feitas, tais como: que tarefas e funções devem ser confiadas a uma Constituição de um país e sociedades concretas? Quais as matérias que devem ter caráter Constitucional? Deve a Constituição limitar-se a uma ordem de competências, ou deve conter diretivas materiais correspondentes às aspirações e interesses de uma sociedade em um espaço e tempos historicamente situados? Nos dias atuais, verifica-se que nas Constituições modernas, há um crescimento maior da normatividade autoritária, ao invés da normalidade (uso rotineiro); por essa razão, há uma necessidade maior de produção de leis mais abrangentes e que se movimentem com o evoluir da sociedade e das relações sociais, tendo em vista que convivemos frequentemente com o transformar e o progresso cultural. Devido à complexidade social progressiva geometricamente em que existimos, de acordo com o texto, a intensificação da divisão do trabalho e do intercâmbio necessita de uma maior segurança, que os juristas chamam de segurança jurídica. Ambas possuem certa dependência nas relações sociais políticas, econômicas e militares, nas quais estrutura-se a ordenação de mesma origem, com papéis distintos que completam o todo na estabilização estrutural, da sociedade Canotilho: considerações sobre Constituição, pluralismo e democracia Em Canotilho 66, segundo Forsthoff, o Estado é a forma pela qual o povo torna-se apto para a atuação política. O Estado não é uma ordem jurídico-estadual ou um quadro normativo, mas uma instância de vontade política. Trata-se de um Estado forte, contraposto ao Estado liberal. A Constituição surge como vértice de um sistema de administração e executivo. É a garantia de manutenção do status quo, e crítica a posição de Forsthoff, afirmando que essa teoria assenta-se em uma recordação 66 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador: Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, p

210 Emerson de Lima Pinto do Estado autoritário. Todavia, uma Constituição materialmente entendida tem de ser democrática e social, e não um simples esquema de artifícios técnico-jurídicos. Sobre o estatismo constitucional, Canotilho 67 assevera que: Designa-se pluralismo jurídico a situação em que existe uma pluralidade heterogênea de direitos dentro do mesmo campo social. O pluralismo de direitos pressupõe uma sociedade multicultural ( pluralismo cultural ) formada por vários grupos culturais ( índios, hispânicos, cabo-verdianos, africanos, turcos, indianos ) que produzem normas (relativas, por exemplo: a casamentos, modas, contratos, ensino de religião) que atuam no mesmo espaço social e interagem com as normas produzidas pelas macroculturas dominantes nesse mesmo espaço.(...) A constituição tem de enfrentar dois dilemas: o dilema liberal e o dilema comunitário. O dilema comunitário trabalha com o código binário unidade/pluralidade, reconduzindo ou reduzindo a pluralidade de normas (jurídicas, éticas, religiosas) ás normas adaptadas ou deliberadas pela comunidade e, por conseguinte, pela macrocultura comunitária. A territorialização da cultura e do poder reduz a pluralidade a uma tendencial unidade comunitária. Por sua vez, o dilema liberal enfrenta a dicotomia um/todos, segundo as regras universais do voto ou do preço do mercado, esquecendo que a razão das regras, ditada de outras culturas.(...) A consideração das objeções multiculturais obriga a teoria da constituição a insistir numa nova função da lei fundamental: a função de estruturar e garantir um sistema constitucional pluralístico. Esta estruturação e garantia passa, desde logo, pela proibição de organizações aniquiladoras ou defensoras da aniquilação do pluralismo ideológico e do multiculturalismo racial ( organizações fascistas, organizações racistas ). Mais completa é a questão de saber: 1) se a constituição deve conter uma cláusula de proteção de minorias étnicas; 2) se essa cláusula implica a abertura da ordem jurídico-constitucional a estruturas jurídicas específicas de tais minorias. A resposta à primeira questão não pode deixar de ser positiva, pois o estado constitucional de direito democrático é um estado dirigido pelos representantes da maioria, mas com garantia dos direitos das minorias. A questão 2) apresenta mais dificuldades porque se trata, no fundo, de saber se a moderna estatalidade territorial deve de novo ser substituída (ou complementada) pela personalização da ordem 67 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina p

211 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... jurídica e, sobretudo, se ela pode ser hiperinclusiva acolhendo grupos estratégicos fundamentalistas ou enclaves tradicionalistas iliberais. (grifo nosso) Portanto, para o mestre português o estatismo constitucional aponta as dificuldades que tal princípio enfrenta na sociedade contemporânea, remonta à necessidade de teorizar-se acerca dos pluralismos presentes na sociedade e sua influência em torno do papel do Estado na modernidade. No mundo contemporâneo o dilema da concepção liberal frente à concepção comunitária torna-se constante no horizonte prático-teórico dos juristas. Canotilho 68 também analisa outros autores como Hennis e Luhmann. Para Hennis a Constituição é instrumento de governo, devendo estabelecer competências, regular processos e definir os limites da ação política. A Constituição convertida em fonte inesgotável de conteúdos não é o verdadeiro sentido da Constituição. A Constituição responde sempre a certas necessidades, mas só sob a forma de instrumento, de limitação do governo. A argumentação por ele desenvolvida aponta para os perigos do totalitarismo constitucional, subjacente à ideia de constituição pragmática; em Luhmann, a teoria da constituição não conseguiu ainda uma perspectiva adequada ao estágio de evolução sociológica e à análise sistêmica político-científica Verifica-se que o problema de uma Constituição Dirigente é, em grande medida, um problema de concretização constitucional, que deve inspirar a proteção tanto na garantia dos direitos fundamentais quanto na repressão necessária aos obstáculos à realização do Estado Democrático de Direito. A Constituição Dirigente nas palavras do próprio Canotilho 69 ainda é o referencial a ser adotado nos países periféricos e 68 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador: Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora limitada, p ; CANOTILHO, J.J. Gomes. Canotilho e a Constituição dirigente. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda (org). Rio de janeiro: Renovar, p. 23-6: E daí, se me perguntarem se o meu dirigismo não está hoje, afinal de contas, em alguma medida escondido nessas posições principais fortes, eu direito que os princípios são fortes e é a concretização dos princípios que pode ser mais dúctil. Não há confusão possível entre um estado de direito e outro de não-direito, entre uma democracia e uma ditadura, entre uma socialidade e uma não-socialidade, entre igualdade real e desigualdade, entre uma comunidade inclusiva e uma sociedade de exclusão dos outros. Os princípios podem ser mais abstratos e dúcteis, mas são sempre princípios fortes.(...). Para os marxistas, o povo, o sujeito histórico pode ser ou o proletariado, ou o partido regente, ou o partido 211

212 Emerson de Lima Pinto o instrumento capaz de auxiliar a radicalização de um processo democrático; bem como, de acordo com o autor 70, para que se amplie substantivamente a presença da sociedade civil organizada, seja por meio de suas organizações, seja através do cidadão na afirmativa de um Estado que garanta à sociedade uma qualidade de vida superior, assim como seja expressão inquestionável de um consenso social material desejado e observado, de forma a expressar a confiança da sociedade em sua sociedade constitucional. A funcionalidade do sistema constitui a super da vanguarda. Novamente, um povo jacobino, agora na versão marxista, é aquele que é capaz de fazer a revolução socialista, isto é, que é capaz de se comprometer com o projeto e defender ativamente este projeto levado até às últimas conseqüências. Novamente, o sujeito histórico era esse ou pretendia ser esse. (...) sobre o que é o povo (traduzido e editado no Brasil), o povo é uma grandeza real que engloba afinal de contas, todas as pessoas, inclusive aquelas que estão excluídas do povo, que nem sequer têm consciência política, que não participam na dinamização democrática. Isso leva também a minorar ou a atenuar a idéia de sujeito histórico que nada tem a ver com estas filosofias da subjetividade. Tem a ver, sim, com esquemas modernos do sujeito. O sujeito transformador, o sujeito conquistador, tem mais a ver com esse espírito moderno, do sujeito que domina a natureza, que assume esse projeto, esse processo, ou seja, o processo histórico, como um processo factível e configurável pelos próprios homens. É esse, no fundo, o sujeito que tem estado sempre presente nos problemas constitucionais. É esse sujeito a que me referi quando disse que a Constituição dirigente estava bastante localizada no sujeito. (...) A última pergunta refere-se às relações da procedimentalização constitucional com a justiça constitucional. (...) Bem. Eu tenho escrito e dito que não sou muito defensor da idéia de total judicialização da vida política. Aqui, na Europa, parece que se considera que os tribunais constitucionais e os outros tribunais são a última etapa do aperfeiçoamento político. As últimas sugestões feitas aqui mesmo, na minha Faculdade, vão no sentido de que a visão principialista só tem sentido numa visão jurisprudencialista do direito. (...) as grandes etapas do homem não foram os juízes que as fizeram, foi o povo, com outros esquemas organizativos e com outras propostas de atuação. O exemplo mais frisante é o caso do Timor. Não foram os juízes que deram independência a Timor. Foram os homens e a resistência dos homens que deram Timor ao povo. O Estado de Direito em Portugal não foi criado pelos juízes. Daí a necessidade de alguma prudência ao dizer-se que a etapa final de todo esse processo de Constituição dirigente acaba na Constituição procedimental e na justiça procedimental. Pelo contrário, se a justiça constitucional é importante, porque representa um certo controle do legislador, deve ter-se- também em conta o que Bonavides escreve hoje a respeito da democracia representativa e da Constituição cidadã. (grifo nosso) 70 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. op. cit., 1994, p (...) mais rigorosamente: a realização constitucional é um problema de normação ou regulação e um problema de aplicaçãointerpretação que se deve captar através de uma ajustada medida constitucional (...) O combate ao positivismo através da radicalização hermenêutica (na linha heideggeriana-gadameriana) conduziu, no seio da metódica constitucional, a uma inversão metodológica e a uma transposição de planos em relação aos quais se fará um breve alerta. Inversão metodológica: o intérprete, o problema e os topos substituem-se à norma; a actividade produtiva da jurisprudência quase que se coloca no mesmo plano da actividade produtiva da legiferação; a interpretação é mais um veículo da liberdade judicial. A posição que norteará o trabalho já foi atrás sugerida: colocar a cabeça hermenêutica dos juristas sobre os pés jurídico-constitucionais e firmar o processo concretizador da lei fundamental sobre uma metódica estruturante que, sendo pós-positivista, não deixe de vincar bem a sua dimensão normativa. (grifo nosso). 212

213 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... norma constitucional e a sua compatibilidade, ordem, ordenação e funcionalidade do sistema, e não as imposições normativas constitucionais, que ocupam lugar central na teoria de Luhmann, trazidas para o novo constitucionalismo pátrio 71. Canotilho 72 entende que o problema da dignidade 73 de (re)conhecimento de uma ordem constitucional não se constitui na fundamentação de sua finalidade, mas na evidência da legitimidade que o Estado adquire na fixação de seus fins e formas a serem empregadas para sua realização. O mestre lusitano 74 estabelece o conceito de Constituição por meio de categorias: (a) é a da unidade da Constituição, que significa que todas as normas constitucionais têm o mesmo valor e, consequentemente, não há normas constitucionais inconstitucionais, (b) em relação à estrutura e a função da Constituição, na qual é imperioso salientar que ela é um programa ou linha de direção para o futuro, pois está inserida no contexto histórico. Assim, uma Constituição não deve apenas conter problemas derivados da ordenação normativa de limites e competências, mas também os de fundamentação de ordem jurídica da comunidade (social); (c) por outro lado, uma Constituição poderá ser definidora de 71 SCHWARTZ, Germano. A Constituição numa visão autopoiética. In SCHWARTZ, Germano (Org). Autopoiese e Constituição: os limites da Hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: Editora UPF,, p CANOTILHO, op.cit., p (...) Qualquer que seja a resposta, o problema da dignidade de reconhecimento de uma ordem constitucional não é um problema de fundamentação dos fins últimos, mas o de explicitar, na medida do possível, a pretensão de legitimidade, através da fixação dos fins e tarefas que incumbem ao Estado e do estabelecimento da forma de derivação do poder estadual. Eis porque é um problema de legitimação o fenômeno da dinamização da constituição, expresso, entre outras coisas, na consagração de linhas de direcção, na tendência para sujeitar os órgãos de direção política à execução de imposições constitucionais, na mudança de compreensão dos direitos fundamentais e na constitucionalização de direitos econômicos, sociais e culturais (direitos a prestações). Reconhecendo-se a impossibilidade de situar a justificação da legitimidade a nível de fundamentação última, tenta-se, por um lado, realçar o processo. No plano constitucional isso significa: constituição como instrumento de governo, definidor de formas e competências para o exercício do poder. Rejeitando-se, igualmente, a colocação do problema da legitimidade a partir de valores transcendentes, insiste-se, noutra perspectiva, na programática (tarefas e fins do Estado). Em termos de teoria da constituição isso implica: fixação das condições do exercício do poder (legitimidade processual) e dos pressupostos materiais (fins e tarefas) desse exercício (legitimidade normativo-material) (...). (grifo nosso) 73 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais: na Constituição Federal de Porto Alegre: Livraria do Advogado,2001. p SARLET aborda a dignidade da pessoa humana como norma (princípio e valor) fundamental para a ordem jurídico-constitucional. 74 Idem., p ;

214 Emerson de Lima Pinto competências e garantidora de pretensões subjetivas (atingindo mais facilmente a eficácia imediata, segundo Canotilho) ou então programáticas, tornando mais transparente à vinculação ideológica. G. Burdeau vê a Constituição como legitimação do poder soberano. A ideia de Constituição está aliada a ideia de poder; na qual institucionaliza e regula o poder. Não estabelece vinculação histórica no conceito, tal como fazem Forsthoff e Hennis. A Constituição é a condição do Estado de Direito. O soberano legitima o poder e ao mesmo tempo está sujeito a este poder que legitimou (Estado de Direito). Assim, Canotilho critica Burdeau, afirmando que ele desatrela a ideia de Constituição dos fatos sociais. Salienta-se que uma Constituição deve ser prospectivamente orientada, abrindo via para o futuro, sem tentar fechar o processo histórico. A lei fundamental não é um estatuto garantidor do existente, mas deve ser projetada para o futuro e, por esses motivos, é fundamental a inserção do conteúdo programático 75 na Constituição. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUILAR, Hector Orestes. Carl Schmitt, Teólogo de la Política. Fundo de Cultura Económica: Mexico, BERCOVICI, Gilberto. A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el al] Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, A Constituição dirigente e a crise da Teoria da Constituição. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de [el a Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumem Juris, BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7.ed..São Paulo: Editora Malheiros, CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador : Contributo para a compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. XIX-XXX. 214

215 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... BRANDÃO, Paulo de Tarso. Ação Civil Pública. Florianópolis: Livraria e Editora Obra Jurídica, COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 3.ed. rev. ampliada. São Paulo: Saraiva, CANOTILHO, J.J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do legislador: Contributo para a compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed.. Coimbra: Coimbra Editora, Constituição Dirigente e Vinculação do legislador: Contributo para compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3.ed. Coimbra: Almedina Canotilho e a Constituição dirigente. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda (org). Rio de janeiro: Renovar, DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. São Paulo: Martins Fontes,, ESTERUELAS, Cruz Martínez. La agonía del Estado: Um nuevo orden mundial?centro de Estudios Políticos y Constitucionales. Madrid, ed.?2000. FARIAS, José Fernando de Castro. Crítica à noção tradicional de Poder Constituinte. Rio de Janeiro: Lumen Juris, KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes A Democracia São Paulo: Martins Fontes, Teoria Pura do Direito.. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, GRAMSCI., Antônio. Concepção Dialética da História. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Os intelectuais e a organização da cultura.. São Paulo: Círculo do Livro.. Maquiavel, a politica e o Estado Moderno. 8.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira

216 Emerson de Lima Pinto HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constitución: Estudios de Teoría Constitucional de la sociedad abierta.editora Tecnos: Madrid, HELLER, Hermann. Teoria do Estado. São Paulo: Editora MESTRE JOU, HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, LASSALE, Ferdinand. A essência da Constituição Rio de Janeiro: Editora Lumen &Juris. 5.ed.. Manifesto Obrero y otros Escritos Políticos. Classicos Políticos. Centro de Estudos Constitucionales, Madrid, LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la Constitucion. 2 ed., Barcelona: Editorial Ariel, MACEDO JR., Ronaldo Porto. Carl Schimitt e a fundamentação do Direito. São Paulo: Max Limonad, MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Foresne, Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Editora Forense, SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e Direitos Fundamentais: na Constituição Federal de 1988.Porto Alegre: Livraria do Advogado, SCHWARTZ, Germano. A Constituição numa visão autopoiética. In SCHWARTZ, Germano (Org). Autopoiese e Constituição: os limites 216

217 7 TEORIA DA CONSTITUIÇÃO E DIREITO CONSTITUCIONAL: OLHARES TEÓRICOS QUE CONSTRUÍRAM O ATUAL PARADIGMA... da Hierarquia e as possibilidades da circularidade. Passo Fundo: Ed. UFP, SCHIMITT, Carl. Teoria de La Constitución. México: Editora Nacional, El concepto de lo político. Alianza Editorial: Madrid, El Führer defiende el derecho (1934). In. AGUILAR, Hector Orestes. Carl Schmitt, Teólogo de la Política.Fundo de Cultura Económica: Mexico, TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 5. ed.. São Paulo: Editora Saraiva,

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219 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA Maria Lúcia Baptista Morais 1 SUMÁRIO: INTRODUÇÃO Critérios de fixação de competência Competência em razão da Matéria Competência em razão da pessoa Competência em razão do valor Competência em razão da função Competência em razão do território Critérios de fixação da competência e o enquadramento como absoluta e relativa Enquadramento como competência absoluta ou relativa Hipóteses de misturas de critérios relativos e absolutos - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 1 Graduação em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (1985). Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1995). Atualmente é Coordenadora do Curso de Direito do Cesuca. Professora da disciplina de Direito Processual Civil II do Cesuca e Professora titular do Centro Universitário Ritter dos Reis (Laureate International Universities). Atua principalmente nos temas ligados ao processo de conhecimento, teoria geral do processo, tutelas de urgência e procedimentos especiais e prática jurídica. mariamorais@cesuca.edu.br 219

220 Maria Lúcia Baptista Morais INTRODUÇÃO A competência é, segundo o posicionamento predominante na doutrina, uma parcela da Jurisdição 2. Há necessidade de divisão do trabalho, no exercício da atividade jurisdicional, para que haja, efetivamente, um melhor desempenho, não só com relação ao tempo, mas também quanto à qualidade da prestação jurisdicional desenvolvida. A competência é um tema que precisa ser abordado, levando em consideração, inicialmente, a previsão legal e a interpretação dada pela doutrina, mas na sequência é imprescindível realizar a análise jurisprudencial. A jurisprudência tem trazido a interpretação da previsão legal, assim como a criação de regras específicas não previstas no ordenamento jurídico. A compreensão de algumas decisões, por outro lado, só será possível com a retrospectiva do posicionamento dos tribunais e a contextualização da situação concreta. O interesse pelo tema deve-se ao fato de que na própria jurisprudência se percebe certa imprecisão técnica quanto ao enquadramento de alguns critérios de fixação de competência, particularmente quanto ao critério territorial. Outro fato é o assunto que envolve a questão eminentemente prática e necessária no dia a dia forense. Ao elaborar uma petição e preencher o seu primeiro requisito, o endereçamento, o advogado deverá responder a todas as seguintes perguntas: Esta ação pode tramitar no Brasil? Qual a Justiça competente? Qual o foro competente? Qual o juízo competente? Para a obtenção destas respostas são utilizados os critérios de fixação de competência. Para uma boa compreensão do problema posto, é necessária, além da análise dos critérios utilizados para a fixação de competência, a análise das consequências estabelecidas em cada um deles. Desse modo, será possível uma visão crítica de alguns acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A abordagem sobre o tema será feita especificamente na área cível, com verificação das decisões do Tribunal do Rio Grande do Sul e do Superior Tribunal de Justiça. 2 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p. 97. O autor ensina que: Todos os Juízes exercem jurisdição, mas a exercem numa certa medida, obedientes a limites preestabelecidos. São, pois, competentes somente para processar e julgar determinadas causas. A competência, assim, é a medida da jurisdição ou, ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz. 220

221 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA O objetivo do presente estudo é a busca por um melhor enquadramento dos critérios de fixação de competência, para que se possa concluir ser ela é absoluta ou relativa, e ter, na propositura da ação, a aplicação de seus efeitos. O artigo foi, então, dividido em duas partes. Em um primeiro momento serão abordados os critérios de fixação de competência e, posteriormente, o enquadramento deles como competência absoluta e relativa, bem como os efeitos produzidos por tal verificação Critérios de fixação de competência A competência, muitas vezes, é fixada por exclusão. Por exemplo, a competência da justiça comum é subsidiária, pois ela é obtida a partir da exclusão da competência das justiças especializadas. Mesmo na justiça comum obtém-se a fixação da competência da justiça estadual, excluindo a competência da Justiça Federal. 3 A doutrina brasileira, utilizando os ensinamentos de Chiovenda 4, estabelece como critérios objetivos: a matéria e o valor, além de outros dois, que são o funcional e o territorial. Observa-se que o critério da pessoa existe, mas não foi previsto expressamente pelo nosso legislador. Cândido Rangel Dinamarco é um crítico da utilização do esquema Chiovendiano. Ele afirmou: Além disso, como é um esquema importado de países cuja estrutura judiciária e cuja legislação diferem muito daquilo que temos no Brasil, esse esquema não leva em conta os dados da nossa estrutura judiciária nem as nossas particulares disposições legais sobre a competência (a existência de tribunais de superposição, de Justiças autônomas entre si e dotadas de competência diferentes, os casos de fatores conjugados, cumulativamente exigidos para fixar certas competências [...] 5 3 Na doutrina, existe divergência quanto ao enquadramento da Justiça comum. Athos Gusmão Carneiro, p. 54, entende que a Justiça Federal é especial, enquanto o posicionamento predominante é no sentido contrário, ou seja, de que a justiça comum é composta pela estadual e pela federal. Nesse mesmo sentido está o posicionamento de Ada Pelegrini Grinover, no livro.teoria Geral do Processo, p. 146 e Marcus Vinícius Rios Gonçalves, Novo Curso de Direito Processual Civil, p. 68. A competência da Justiça Federal está prevista no art. 109 da Constituição Federal. 4 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, p DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, p

222 Maria Lúcia Baptista Morais O critério de fixação de competência, utilizado para a verificação da competência entre as justiças diferentes, pode ser pela matéria ou pela parte envolvida no processo. É o que ocorre, por exemplo, com a Justiça do Trabalho e com a Justiça Militar. Existem, contudo, outros critérios que poderão ser utilizados em situações diversas e que agora serão analisados. A competência pode ser fixada pelos seguintes critérios: a matéria tratada, o valor da causa, o funcional, em razão da pessoa (parte) e o territorial. Cada um destes critérios passará a ser analisado agora Competência em razão da matéria Quando a competência é fixada pela matéria, o assunto tratado indica quem irá julgar a causa, ou seja, a competência está relacionada ao pedido feito pela parte. Como esclarece Ovídio A. Baptista da Silva (2005), neste caso, a competência diz respeito à natureza da causa 6. Esse critério serve para indicar diversos tipos de competências, por exemplo: a) Competência de Justiça: se a ação for relacionada à relação de emprego, ela será proposta na Justiça do Trabalho. Em outras situações, a natureza da ação pode determinar a competência eleitoral, federal ou, de forma residual, a competência da justiça estadual; b) Competência de varas especializadas: que ocorre na identificação da vara, se será a cível ou uma vara de família, por exemplo; c) Competência originária de tribunais: é o caso de uma homologação de sentença estrangeira, que é julgada pelo STJ 7, conforme artigo 105, I, i da Constituição Federal; d) Competência exclusiva do juiz: o artigo 92 do CPC estabelece que a competência será somente do juiz para julgar causas que envolvam insolvência, questões de estado ou capacidade das pessoas 8. Isto significa que as causas antes referidas não poderão ser julgadas por um 6 SILVA, Ovídio A. Baptista. Curso de Processo Civil, v. 1, p CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil, p Para estes autores, são ações de estado e que envolvem a capacidade das pessoas, por exemplo: [...] as ações de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento, de interdição, de investigação de paternidade. 222

223 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA pretor, por exemplo. A competência do pretor é determina pelo art. 87 do Código de Organização Judiciária do Estado -COJE) Competência em razão da pessoa A competência também pode ser fixada em razão da pessoa, ou seja, da parte envolvida na causa 10. Como foi referido antes, este critério não foi listado pelo legislador, mas aparece em diversos artigos, como, por exemplo, o que prevê a competência da Justiça Federal, artigo 109, da Constituição Federal. O referido artigo, em seu inciso I, prevê que a competência será federal quando a União, as empresas públicas federais e as autarquias federais forem partes no processo. Apesar de não constar expressamente no texto legal, a doutrina estende a competência da Justiça Federal também para as fundações federais. Mesmo não tendo previsão legal específica, a doutrina e a jurisprudência, predominantemente, também excluem da competência federal as ações envolvendo as sociedades de economia mista. 11 Neste primeiro inciso, do artigo 109 da Constituição, o legislador excluiu igualmente da competência da Justiça Federal as ações relativas a acidentes de trabalho, sujeitas à Justiça eleitoral e do trabalho, sendo que, nesses últimos casos, o critério utilizado foi a matéria. 9 Art. 87 do COJE- A competência dos pretores limitar-se-á a: (Redação dada pela Lei n.º 7.607/81) I - processar e julgar as seguintes causas cíveis, de valor não excedente a cinquenta vezes o maior valor de referência, vigente à data do ajuizamento da demanda, ressalvadas as de competência privativa dos Juízes de Direito: (Redação dada pela Lei n.º 7.607/81) 10 CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p O autor esclarece quanto à competência em razão da pessoa: A competência ratione personae toma por dado relevante um atributo ou uma característica pessoa do litigante. Assim a nacionalidade, os foros de nobreza ou classe, a situação como idoso ou incapaz, o cargo ou função pública ocupado pelo litigante, ou a circunstância de ser o litigante pessoa jurídica de direito público ou vinculada ao poder público. 11 BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Procedimento comum: ordinário e sumário. p. 26/27, após citar súmulas do STF, como a 556 ( É competente a justiça comum para julgar as causas em que é parte a sociedade de economia mista), 517 (As sociedades de economia mista só têm foro na Justiça Federal, quando a União intervém como assistente ou opoente) e a doutrina predominante, discorda do posicionamento do STF. O autor explica: É que não há, do ponto de vista do direito material, qualquer razão suficiente para distinguir o tratamento jurídico dado a uma sociedade de economia mista ou a uma empresa pública. Ambas têm, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e subsequentes alterações [...] o mesmo regime jurídico, a despeito de a sociedade de economia mista, diferentemente da empresa pública, permitir, por definição, capital privado na sua formação. 223

224 Maria Lúcia Baptista Morais No referido artigo da constituição, para fixar a competência da Justiça Federal, o legislador valeu-se de diversos critérios, como a matéria e a pessoa. Diante da impossibilidade de tratar de todos os casos, no entanto, até pela diversidade de temas e pelo interesse específico deste estudo, tece-se mais algumas considerações sobre o inciso I. É interessante observar que mesmo que se tenha o enquadramento pela pessoa, algumas vezes é preciso atenção com as particularidades da ação proposta. Por exemplo, a parte final do artigo 109 da Constituição exclui as ações acidentárias da competência da Justiça Federal. Ocorre que a ação acidentária pode ser proposta contra o INSS, que é uma autarquia federal, mas também pode ser proposta contra o empregador. A ação acidentária é proposta em razão de um acidente de trabalho e, como a empresa tem responsabilidade durante os 15 primeiros dias, se ela não cumprir a sua obrigação, o empregado poderá ajuizar ação na Justiça do Trabalho. Por outro lado, após os 15 dias, a responsabilidade pelo afastamento do empregado é do INSS e, se for preciso fazer a propositura da ação, a competência será da Justiça Estadual, apesar de o INSS ser autarquia federal. Por outro lado, as ações previdenciárias, ou seja, as que decorrem das contribuições, propostas contra o INSS, serão da competência da Justiça Federal, exceto se na comarca não houver Justiça Federal. Neste último caso, a Constituição delega competência para a Justiça Estadual, excepcionalmente, conforme 3º do artigo 109. A delegação, no entanto, é restrita ao primeiro grau de jurisdição, pois, se houver recurso, a competência será do Tribunal Regional Federal, conforme o 4º do TRF. Na hipótese das ações previdenciárias será ainda preciso prestar atenção em mais uma particularidade. Quando as ações forem propostas na Justiça Federal, para se chegar à competência comum, será necessário excluir a competência dos Juizados Especiais Federais. A competência dos Juizados Especiais Federais é determinada também por outros critérios, como pessoa e valor da causa. Quando a causa for de valor até 60 salários-mínimos, a competência da ação previdenciária será dos Juizados Federais, e este critério é absoluto. Portanto, 224

225 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA a competência das varas federais é estabelecida de forma residual, quando o valor da causa ultrapassar a 60 salários-mínimos. 12 Quando o critério para a fixação de competência é a pessoa, pode-se estabelecer outras competências, como, por exemplo, a da vara de menores, a da vara da Fazenda Pública, para ações que envolvem Estados e Municípios e as respectivas, autarquias, empresas públicas e fundações. É possível também determinar 13 a competência originária de Tribunais, como a hipótese de julgamento de um mandado de segurança contra atos do presidente da República, que é da competência do Supremo Tribunal Federal, conforme art. 102, I, d da Constituição Federal. O Estatuto do Idoso também fixa competência utilizando o critério da pessoa; porém, mistura o critério da matéria. A Lei n /2003, em seu artigo 80, estabelece que, nas hipóteses previstas no próprio estatuto, a competência é do domicílio do idoso. Percebe-se, assim, a existência dos dois critérios, a pessoa e a matéria. Aliás, não são em todas as causas que o idoso tem a prerrogativa de ingressar com a ação em seu domicilio. Se ele for propor uma ação que não se enquadra na previsão do estatuto do idoso, terá que usar as regras comuns de competência Competência em razão do valor O valor da causa pode indicar a competência da Justiça comum ou dos Juizados Especiais. No âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, no Rio Grande do Sul, o autor tem a opção de ajuizar a ação nos juizados ou na Justiça comum. O valor da causa, contudo, é só um dos critérios de fixação de competência do JEC; além dele, aparecem o critério da 12 DALL ALBA, Felipe Camilo. Curso de Juizados Especiais: Juizado Especial Cível, Juizado Especial Federal, Juizado Especial da Fazenda Pública, p. 84. O autor entende que: E, encontrada a Justiça, tem-se de perquirir se a causa se enquadra entre aquelas julgadas pelo Juizado Especial Federal. Segundo o art. 3º da Lei /2001, são da competência dos juizados as causas federais de até sessenta salários-mínimos, fixando critério econômico para sua determinação. 13 Art. 84, inciso V do COJE. Para que seja possível chegar à competência da Vara da Fazenda Pública será preciso excluir a competência dos Juizados da Fazenda Pública, que também é absoluta, conforme Lei / DALL ALVA, Felipe Camilo. A Distribuição da Competência no novo CPC, no prelo, O autor, analisando as previsões do projeto do novo CPC, afirma: Nas causas que versa sobre o direito previsto no estatuto do idoso, a competência é a da residência do idoso. (PNCPC, art. 53, III, e). O Código incorporou essa nova hipótese, estabelecendo um foro especial para o idoso, em razão da sua vulnerabilidade, mas não é qualquer causa, são apenas aquelas relativas ao Estatuto do Idoso ( Lei /03). 225

226 Maria Lúcia Baptista Morais matéria e da pessoa. O critério do valor, assim como os demais, também é utilizado na verificação da competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, conforme a Lei n de 22/12/ Arruda Alvim, Araken de Assis e Eduardo Arruda Alvim (2012) apresentam uma situação peculiar na fixação da competência pelo valor da causa, na comarca de São Paulo e no Rio de Janeiro. Segundo os autores, o valor poderá indicar a competência do foro central ou dos foros regionais. Os autores afirmam: Registre-se que o entendimento preponderante, do qual compartilhamos, é de que a competência dos foros regionais, no caso da Comarca de São Paulo ( art. 54, I, da Res. 02/1976 do TJSP), conquanto fixada em razão do valor (até quinhentas vezes o valor do salário-mínimo vigente), é absoluta, e não relativa. 16 Ainda no âmbito da Justiça Estadual, o critério do valor pode estabelecer a competência do juiz ou do pretor. Este último só pode julgar causas até 60 salários-mínimos, conforme art. 87 do COJE, mas, evidentemente, o juiz pode julgar todas as causas Competência em razão da função O critério funcional traz embutido nele a preocupação com o melhor funcionamento do Judiciário e, consequentemente, do desenvolvimento da atividade jurisdicional. Em diversas hipóteses é possível perceber a utilização do critério funcional. Às vezes, ele serve para que se mantenha o mesmo julgador da causa principal no julgamento da causa acessória ou em fase subsequente; outras vezes, para que haja uma melhor verificação dos fatos e maior facilidade na realização das provas, ou ainda, para que se possa ter a participação de diversos órgãos no mesmo processo. Athos Gusmão Carneiro analisa a competência funcional em dois planos: no horizontal e no vertical DALL ALBA, Felipe Camilo. Curso de Juizados Especiais:Juizado Especial Cível, Juizado Especial Federal e Juizado Especial da Fazenda Pública, p ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil: comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei /12, p CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, p

227 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA No plano horizontal, percebe-se a preocupação com a funcionalidade quando há necessidade de atuação de mais de um órgão no mesmo processo; mas, neste caso, a atuação será dentro do mesmo grau de jurisdição. Isto pode ocorrer, por exemplo, em razão do princípio da aderência ao território, ou seja, o juiz ficará vinculado a um território e quando necessitar de atos realizados fora dele deverá solicitá-lo, em geral, por meio de carta precatória 18 Assim, a competência do juízo deprecado estabelece-se em razão da funcionalidade, para que haja a facilitação no desempenho da função jurisdicional. No plano vertical, a competência funcional é também chamada hierárquica, porque envolve a atuação de órgãos de diferentes graus. Verifica-se tal hipótese quando, por exemplo, há a utilização da carta de ordem em uma ação rescisória. Esta última é da competência originária dos tribunais; porém, a realização de atos pode ser dar no âmbito do primeiro grau. Terá havido, então, neste caso, uma atuação de um órgão superior e um inferior no mesmo processo. Giuseppe Chiovenda, ao abordar o tema, faz referência ao fato de que o critério funcional concorre com o critério territorial. 19 No Código de Processo Civil, artigo 95, há uma previsão que mistura os dois critérios mencionados. O artigo 95 está no capítulo da competência territorial, mas, na parte final, estabelece competência funcional. 20 O referido artigo estabelece que a competência para as ações que envolvem direitos reais imobiliários é concorrente, ou seja, o autor pode ingressar com a ação no local do imóvel, no domicílio do réu ou no foro 18 Por exceção, a lei permite que o magistrado determine a realização de atos fora da comarca, como na hipótese do artigo 230 do CPC. 19 CHIOVENDA. Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, p O projeto do novo CPC, aprovado na Câmara dos Deputados em 23/03/14, não resolveu completamente o problema do artigo 95 do atual CPC. No projeto, o artigo 47 tem a seguinte redação: Para as ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro de situação da coisa. 1º A autor pode optar pelo foro de domicílio do réu ou pelo foro de eleição, se o litígio não recair sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, divisão e demarcação de terras e de nunciação de obra nova. 2º A ação possessória imobiliária deve ser proposta no foro de situação da coisa, cujo juízo terá competência absoluta. O legislador poderia ser mais explícito quanto à falta de opção do autor em escolher o foro competente na hipótese da parte final do 1º, ou seja, nos casos listados a ação só pode ser proposta no local do imóvel. Percebe-se, também, que o legislador deu tratamento específico para a ação possessória, posicionando-se quanto a uma antiga discussão de ser ou não a posse direito real. Nesse mesmo sentido, há o posicionamento de Felipe Camilo DALL ALBA, em A Distribuição da Competência no novo CPC, no prelo,

228 Maria Lúcia Baptista Morais de eleição. Esta competência é territorial e está ligada ao interesse da parte, tanto que o autor pode escolher onde irá ingressar com a ação. Por outro lado, na parte final do artigo 95 do CPC, o legislador não deixou alternativa. A ação deve ser proposta no local do imóvel e só nele, se a ação versar sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova. Portanto, se não há a possibilidade de escolher, se o critério não privilegia o interesse da parte, a competência não é territorial. A doutrina informa que o objetivo da restrição à competência do local do imóvel deve-se ao fato de que isso beneficia o desenvolvimento da função jurisdicional. A proximidade com o imóvel facilitará, por exemplo, a produção de provas; portanto, o critério é o funcional. 21 Outro aspecto interessante é que o critério de fixação de competência, originalmente estabelecido pelo CPC, foi alterado com reformas deste diploma legal. Isto ocorreu com a competência para a efetivação de uma sentença. Antes de 2005 era necessária a propositura da ação de execução de sentença. A competência para esta última era a do juízo em que havia ocorrido o julgamento da ação principal. Com a previsão da fase do cumprimento da sentença, estabelecida pela Lei n , de ; no entanto, o legislador acabou alterando o critério anteriormente previsto no art. 475, p, do CPC. 21 Neste sentido, têm-se os seguintes posicionamentos: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor, p. 543 e ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil: comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei /12, p Estes últimos autores abordam uma questão que nem sempre é tratada. O artigo 1225 do Código Civil Brasileiro (OU INCLUI) influi entre os direitos reais o direito do promitente comprador e, por isto, gera a divergência quanto ao enquadramento das ações que envolves essa situação. Então, os autores esclarecem: Compromisso de compra e venda. Observa-se, contudo, que relativamente às ações de anulação de compromisso de compra e venda, ainda que registrado no cartório, o STJ segue orientação na linha de que tal medida é de natureza pessoal, não se aplicando a regra de competência absoluta do art. 95. Desse modo, tais ações podem ser ajuizadas no foro do domicílio do réu ou, ainda, no foro de eleição, se houver. Em sentido contrário, aparece o posicionamento de Misael Montenegro Filho, expresso no livro Curso de Direito Processual Civil:Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento, p. 74/75. O autor refere: A incompetência territorial absoluta, marcada pela inobservância do art. 95, ao contrário, deve ser reconhecida de ofício pelo magistrado, não exigindo a expressa manifestação da parte demandada, por ser do interesse público, não apenas das partes, forçando a remessa do processo ao juízo competente, com a invalidação dos atos decisórios ( liminares, antecipações de tutela e sentença, a teor do 2º do art

229 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA O artigo 475, p, do CPC, indica o local em que haverá o cumprimento da sentença. Em seu inciso I, prevê a competência dos Tribunais para as ações de competência originária; no inciso II, a do Juízo que processou a causa e, por fim, no inciso III, no juízo cível competente, quando for o cumprimento de sentença penal condenatória, sentença arbitral ou de sentença estrangeira. A alteração de critério foi prevista no parágrafo único. Já os incisos respeitam a regra de competência funcional, ou seja, o órgão que atuou no caso deve processar o cumprimento da sentença para que haja um melhor desempenho da função jurisdicional. O parágrafo único do artigo 475, p, estabelece no inciso II que o juízo que processou a causa no primeiro grau de jurisdição deve ser o competente para o cumprimento da sentença. O exequente terá foro concorrente, ou seja, ele também poderá postular a efetivação da sentença em que existirem bens do executado ou no atual domicílio dele. Se isto ocorrer, o exequente solicitará, ao juízo de origem, a remessa dos autos ao foro em que o cumprimento da sentença ocorrerá. Percebe-se, portanto, que a competência concorrente não pode ser funcional, pois é absoluta. Se o exequente puder escolher, seu interesse ficará resguardado; portanto, a competência será territorial e não mais funcional. 22 A nova redação do artigo 475, p, parágrafo único, além de alterar o critério, ainda excepcionou o princípio da perpetuação da competência, previsto no artigo 87 do CPC. A regra é que a competência é determinada no momento da propositura da ação, salvo se houver supressão de órgão judiciário ou alteração da competência em razão da matéria ou da hierarquia. Com a nova redação e a possibilidade de escolha do local onde se dará a fase do cumprimento da sentença, o princípio fica excepcionado. 23 O critério funcional também pode ser utilizado quando se está diante da divisão de determinada comarca em foros regionais. Esta di- 22 Neste sentido é o posicionamento de Araken de Assis, no Manual da Execução, p. 353, onde acrescenta: Por tal motivo, o art. 475, P, parágrafo único, tornou relativa a competência, permitindo o vitorioso optar, na expropriação, pelo local da situação dos bens, ou subsidiariamente, e nas demais espécies de execução, pelo local do domicílio atual do executado. Para tal arte, o juiz da execução requisitará os autos ao juízo de origem. Neste aspecto, o legislador forçou a mão, pois a providência se mostra inútil e dispendiosa. Melhor se conduziria, no assunto, autorizando a formação de autos próprios ( por analogia, aplicar-se-ia o art. 475-O, 3º ). 23 ASSIS, Araken.Manual da Execução, p

230 Maria Lúcia Baptista Morais visão tem ocorrido em grandes comarcas, como, por exemplo, nas capitais dos Estados. Em Porto Alegre, existem seis foros regionais: o da Tristeza, Partenon, Quarto Distrito, Alto Petrópolis, Sarandi e Restinga. Assim, não pode o foro central ser escolhido aleatoriamente sem que se utilize uma regra de competência territorial; como, por exemplo, o domicílio do réu. Portanto, quando se pretende estabelecer a competência em Porto Alegre e a manutenção da atividade dos foros regionais, o critério é funcional e isso é estabelecido pela súmula n. 3 do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. É possível que a discussão sobre a competência entre o foro central e o foro regional, no entanto, se estabeleça pelo critério territorial, se a competência estiver sendo discutida com base em regras estabelecidas pelo legislador. Foi o que ocorreu no caso julgado em decisão monocrática, n do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. No referido julgamento tratou-se de um conflito negativo de competência entre o Juízo da 2ª Vara Cível do foro regional do 4º Distrito e o da 6ª vara cível do Foro Central. O juiz desta vara, aplicando a súmula n. 3 do TJRS, que entende por interesse público a distribuição de competência entre o foro central e os regionais, declinou competência para o foro do 4º Distrito, 2ª vara, que, por sua vez, suscitou o conflito. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, julgando o conflito, entendeu que tinha razão o suscitante, pois deveria ser aplicado o Código de Defesa do consumidor (discutia-se a inscrição indevida em órgão de proteção ao crédito), cabendo então ao consumidor escolher o foro para a propositura da ação entre o seu domicílio e o domicílio do réu. O Tribunal entendeu, assim, que não havia qualquer irregularidade na propositura da ação no foro central. 24. Observa-se, portanto, que a competência foi determinada não pelo fato de ser necessária a divisão de trabalho critério funcional, mas com a aplicação de regras de competência territorial, visando o interesse da parte Competência em razão do território Utilizar o critério territorial de competência significa verificar a competência de foro. Isso implica, no âmbito da justiça estadual, em 24 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Conflito de Competência nº Décima Sétima Câmara Cível. Relator: Des. Gelson Rolim Stocker, julgado em 21 de maio de

231 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA pensar na comarca onde a ação será proposta e, no âmbito da Justiça Federal, em escolher a subseção. 25 O critério territorial pode ser dividido em geral e especial 26. A competência territorial geral é a determinada pelo domicílio do réu, artigo 94 do CPC e a especial está relacionada a diversos fatores, como, por exemplo, a discussão sobre direitos reais imobiliários (parte inicial do artigo 95 e seguintes do CPC), 27 o local do cumprimento da obrigação, o inventário, a partilha, a arrecadação ou o cumprimento de última vontade; ações que envolvem interesse de ausentes, incapazes, ações de separação, divórcio, anulação de casamento, alimentos, anulação de títulos extraviados ou destruídos, interesses de pessoas jurídicas ou formais do processo, ações de reparação de danos, dentre outras. Uma confusão frequente é a de misturar a competência territorial especial com a competência absoluta. Isto se dá porque a competência especial prevalece sobre a territorial geral, que é a do domicílio do réu. Desse modo, surge a impressão de que a competência é absoluta, e não é. A competência territorial, mesmo a especial, é relativa, ou seja, está ligada ao interesse da parte. Por exemplo: quando se analisa a competência tendo em vista o domicílio do réu e o lugar do cumprimento da obrigação, prevalecerá sempre este último, pela especialidade. A competência territorial geral será obtida, portanto, de forma residual. É preciso, entretanto, não perder de vista os efeitos da competência relativa. Quer dizer, se a ação, ao invés de ser proposta no local do cumprimento da obrigação, for ajuizada no domicílio do réu, haverá modificação de competência. Neste último caso, ocorrerá até uma situação interessante. A rigor, se ação foi proposta no foro relativamente incompetente, porque não observou a regra da especialidade e não foi ajuizada a ação no local do cumprimento da obrigação, o réu poderia excepcionar a incompetência. Não obstante, se ele assim agir, a tendência é de não acolhimento 25 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil:Processo de Conhecimento,p. 40. Para os autores, o critério territorial [...] toma em consideração a dimensão territorial atribuída à atividade de cada um dos órgãos jurisdicionais. 26 ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil:comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei /12, p PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo:Teoria Geral do Processo, p

232 Maria Lúcia Baptista Morais da exceção, tendo em vista que ele não está sendo prejudicado; pelo contrário, estará sendo beneficiado com a propositura da ação no seu domicílio. Existem vários acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nesse sentido. AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO INTERNO. DECISÃO MONOCRÁTICA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO. COMPETÊNCIA RELATIVA. 1.Comporta decisão monocrática o recurso que versa sobre matéria já pacificada no Tribunal de Justiça. Inteligência do art. 557 do CPC. 2.Se a autora propôs a ação no foro de domicílio do réu, por estar prestes a mudar-se e por ali encontrarem-se os bens a serem partilhados, não merece acolhimento a exceção de incompetência proposta pelo réu, para que a ação se processe no foro de domicílio da autora. 3. A competência territorial é relativa, inclusive em sede de ação de reconhecimento e dissolução de união estável, e se a própria autora abdicou do privilégio previsto no art. 100 do CPC, não cabe ao réu invocar esse direito da parte contrária. Recurso desprovido. 28 agravo interno. EXCEÇÃO DE COMPETÊNCIA. seguro. dpvat. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. domicílio da ré. 1. A relação havida entre a seguradora demandada e o agravado é de ordem obrigacional, versando quanto ao seguro DPVAT, possuindo este regulamentação própria. Ademais, o caráter obrigatório afasta a possibilidade de inversão do ônus da prova com base na legislação consumerista, sem que haja prova do fato constitutivo de seu direito. 2. Em se tratando de competência relativa, a escolha do foro é opção da parte autora da demanda, podendo se dar no lugar de seu domicílio ou naquele onde ocorreu o acidente, segundo preceitua o art. 100, parágrafo único, do CPC. 3. Portanto, o demandante tem o direito de renunciar às opções conferidas pela norma precitada, facultando-lhe ajuizar a ação no foro do domicílio do réu, não podendo este se insurgir contra a escolha realizada, diante da ausência prejuízo. 4. Violação ao princípio do juiz natural. Inocorrência no caso em exame, uma vez que mantida a imparcialidade e a independência do julgamento, bem como quaisquer dos juízes gaúchos estão regularmente investidos 28 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo Interno nº , 7ª Câmara Cível, Relator: Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, j. 26/03/

233 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA na função jurisdicional e detêm as garantias constitucionais necessárias para decidir de forma equidistante a causa. 5. Os argumentos trazidos no recurso se mostram razoáveis para reformar a decisão monocrática. Dado provimento ao agravo interno. 29 As decisões prolatadas são acertadas, tendo em vista que a regra geral da competência territorial é o domicílio do réu, exatamente para beneficiá-lo. Pode-se afirmar que essa regra decorre do princípio da igualdade; pois, se por um lado o autor pode escolher se vai ou não propor a ação, por outro a ação deve, de ordinário, tramitar no domicílio do réu. Assim sendo, quando isso acontece, mesmo que no caso concreto, outra deveria ter sido a atitude do autor, uma vez que o réu é beneficiado e não poderá reclamar. Existem previsões de competência territorial em legislações esparsas, como é o caso da lei de locações, Lei n /91, art. 58, inciso II e do Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8078/90. Quanto a esta última, existe grande polêmica na jurisprudência sobre a possibilidade ou não de declinar competência de ofício, questionando-se se o enquadramento deve ser feito como competência absoluta ou relativa. Este tema será analisado a seguir Critérios de fixação competência e o enquadramento como absoluta e relativa Cada um dos critérios de fixação de competência estudados pode ser classificado como de competência absoluta ou relativa, dependendo do interesse. Se na fixação do critério prevalece o interesse da parte, a competência é relativa; se prevalece o interesse público, ela será absoluta. A classificação em competência absoluta ou relativa não é meramente acadêmica, ela traz consequências diversas. Por exemplo: a incompetência absoluta pode ser declarada de ofício ou a requerimento da parte; pode ser alegada em qualquer momento e de qualquer forma, e gera a nulidade de todos os atos decisórios. 29 Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo nª ª Câmara Cível, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto. J. 30/05/

234 Maria Lúcia Baptista Morais No que tange ao momento em que a incompetência absoluta pode ser arguida pela parte, é preciso observar que pode ser a qualquer tempo; porém, se não houver a arguição em contestação, ou na primeira oportunidade em que a parte falar nos autos, poderá haver a penalização de forma monetária. Esta é a previsão do artigo 113 do CPC, que, no parágrafo 1º, estabelece a condenação ao pagamento das custas. Por outro lado, a incompetência relativa é matéria que, como regra, não pode ser conhecida de ofício, conforme súmula 33 do STJ. Ela deve ser arguida por meio de exceção, conforme artigo 112 do CPC, e tem um prazo preclusivo para arguição, que é o prazo de resposta Enquadramento como competência absoluta ou relativa A competência em razão da matéria, da pessoa e funcional é absoluta, ou seja, para estabelecê-la leva-se em consideração o interesse público. Este interesse pode ser percebido quando se pensa na competência de Justiça ou de vara especializada. A divisão de trabalho pela matéria faz com que o magistrado se especialize no assunto e que, com isso, consiga julgar de forma mais adequada. A adequação dar-se-á em termos de qualidade da prestação jurisdicional e o julgamento também ocorrerá mais rapidamente, o que preserva a questão da celeridade processual. Afinal, o direito de acesso à Justiça não envolve só o direito de ajuizamento das ações, mas também, e principalmente, o julgamento de forma adequada e tempestiva. Percebe-se, igualmente, o interesse público quando há o ajuizamento, por exemplo, de uma ação incidental, como a reconvenção, a ação declaratória incidental e outras decorrentes de intervenção de ter- 30 O projeto do novo CPC aprovado na Câmara traz modificação na forma de abordar a incompetência relativa. Até agora, era preciso a exceção de incompetência, embora a jurisprudência já estivesse flexibilizando essa exigência. Com a nova redação do Art. 64, a arguição poderá ser feita na própria contestação. A previsão do projeto aparece nos seguintes termos: A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação. 1º A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício Verifica-se que o novo CPC trará, se for aprovado como passou pela Câmara, uma previsão específica quanto à atuação do Ministério Público na alegação da incompetência. É a previsão do parágrafo único do artigo. 65 do projeto: A incompetência relativa pode ser alegada pelo Ministério Público nas causas em que atuar. A impressão é de que o legislador pretendeu dar uma extensão maior à atuação do MP, inclusive, nas causas em que ele atua como custos legis. 234

235 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA ceiros, perante o mesmo juiz que está julgando a causa. Isso se verifica nesses casos, pois ele terá melhores condições de realizar uma adequada atividade jurisdicional. De forma similar, pode-se pensar na competência determinada pela pessoa. É o que ocorre, por exemplo, quando pessoas jurídicas de direito público são partes na causa e a competência é fixada em razão de sua participação no feito, como no caso da vara da Fazenda Pública. Por outro lado, a competência territorial é relativa, apesar das controvérsias doutrinarias e jurisprudenciais da atualidade; e a do valor também deveria ser, segundo a previsão do legislador no artigo 111 do CPC. A doutrina entende, no entanto, que há uma dupla possibilidade, no caso de o critério ser o valor da causa, ou seja, quando se verifica a competência sobre a ótica do juiz e o critério é o valor, a incompetência é relativa. Se a visualização for quanto ao pretor, contudo, a incompetência é absoluta. É o que a doutrina costuma chamar de competência do mais para o menos e do menos para o mais. Esclarecendo melhor a questão: o pretor tem sua competência estabelecida pelo artigo 87 do COJE, e lá, além do critério da matéria, aparece o valor. O pretor pode julgar causas até 60 salários-mínimos. Ocorre que o pretor não pode julgar causas superiores a esse valor, mas o juiz pode julgar todas as causas, independentemente do valor Hipóteses de misturas de critérios relativos e absolutos A impossibilidade de reconhecimento de ofício da incompetência relativa é estabelecida não só pela legislação, mas por súmula de n. 33 do STJ, com a seguinte redação: A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício. Esta previsão legal e sumulada é bastante discutida e por vezes flexibilizada. Apesar da súmula 33 do STJ, o próprio legislador excepcionou a regra do artigo 112, estabelecendo, em seu parágrafo único, que o juiz poderá anular a cláusula de eleição de foro, no contrato de adesão; e de ofício declinar competência para o foro do domicílio do réu. Sobre o tema, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira e Daniel Mitidiero acrescentaram o seguinte: 235

236 Maria Lúcia Baptista Morais Ao lado do regime de competência absoluta e ao da competência relativa, há no CPC regime misto de competência sui generis. A competência fixada pelo critério territorial, modificada em contrato de adesão, pode ser conhecida de ofício pelo juiz ( art. 112, parágrafo único), mas prorroga-se acaso não oferecida a exceção de incompetência no prazo legal ( art. 114). 31 Entende-se que, efetivamente, há uma situação diferente das demais que preveem a competência territorial. No caso do artigo 112, parágrafo único, a possibilidade de existência de cláusula de eleição de foro conduz à conclusão de que a competência é relativa; porém, quando o contrato é de adesão, discute-se a possibilidade de tal cláusula, exatamente pela necessidade de preservação do direito daquele ser mais frágil na relação e ter que aderir ao contrato. Por exemplo, o consumidor não pode discordar da cláusula de eleição e, por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor estabelece o interesse público na defesa do hipossuficiente. Em contratos de adesão a cláusula de eleição de foro é prevista, frequentemente, nos casos de relação de consumo. Nos referidos contratos surge a necessidade de proteção da pessoa (contratante) que está mais vulnerável 32. É de se pensar, então, se foi estabelecida uma simples exceção à regra da competência territorial ou se foi utilizado, no caso concreto, um critério diverso do territorial; pois, se existisse somente o interesse pura e simplesmente da parte, o juiz teria que respeitar a súmula 33 do STJ. O que se percebe, no entanto, é que a condição de contratante hipossuficiente é que dá a possibilidade, diante do interesse público do consumidor e após a verificação no caso concreto, para o juiz agir de ofício. Trata-se, assim, de critério relacionado à pessoa e, portanto, absoluto. 31 OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: Teoria Geral do Processo civil e parte geral do Direito Processual Civil, p MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil Moderno:Parte Geral e Processo de conhecimento, p. 126/127. Os autores ensinam: Pode-se dizer que a jurisprudência sedimentou-se nesse sentido, no referido tribunal: a cláusula de eleição de foro é, em regra, válida e eficaz, somente se considerando nula se contida em contrato de adesão, nos casos em que se verifique a hipossuficiência do consumidor e tal cláusula dificulte a defesa. Vêse, portanto, que a cláusula de eleição de foro, na hipótese referida, não é nula a priori. Em regra, tal cláusula é válida, salvo se, em contrato de adesão, se verifique a hipossuficiência da parte aderente, bem como se, em razão da cláusula de eleição do foro, reste dificultada a sua defesa. 236

237 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA Em que pese o raciocínio anterior parecer muito lógico, é preciso atenção quanto à previsão do artigo 114 do CPC, pois, nele, o legislador estabeleceu que haverá prorrogação de competência se o juiz não anular a cláusula de eleição de foro no contrato de adesão. Sabe-se que a prorrogação só ocorre quando a competência é relativa e que a competência em razão da pessoa é absoluta. Há que se admitir, portanto, que existem situações em que, dependendo da particularidade do caso, terão como consequência a incidência de um ou de outro critério de fixação de competência. É o que ocorre com o consumidor que tenha assinado um contrato de adesão. Se o juiz entender que a cláusula de eleição de foro é prejudicial ao consumidor e que ele está em uma situação de hipossuficiência, ele anulará a cláusula, utilizando o critério pessoal, ou seja, o interesse público de proteção pela pessoa que está na condição de consumidor. Por outro lado, se existir a cláusula, mas o juiz não anulá-la, é porque entendeu que não haverá prejuízo ao consumidor. Neste caso, vai se sobressair e ai se sobressairá o critério territorial e, por esse motivo, a competência poderá ser prorrogada. O Código de Defesa do Consumidor, Lei n. 8078/90, em seu artigo 101, estabelece que a ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços pode ser proposta no domicílio do autor. Trata-se de mera faculdade do consumidor e, em princípio, como a regra é de interesse da parte, a discussão sobre o foro é de competência territorial, logo relativa. Esta conclusão tem respaldo jurisprudencial. Vejamos: AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CONTRATO BANCÁRIO. FINANCIAMENTO COM GARANTIA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO REVISIONAL. AÇÃO PROPOSTA PELO CONSUMIDOR NO FORO ONDE O RÉU POSSUI FILIAL. POSSIBILIDADE. 1. Nos casos em que o consumidor, autor da ação, elege, dentro das limitações impostas pela lei, a comarca que melhor atende seus interesses, a competência é relativa, somente podendo ser alterada caso o réu apresente exceção de incompetência (CPC, art. 112), não sendo possível sua declinação de ofício nos moldes da Súmula 33/STJ. 2. Agravo regimental a que se nega provimento BRASIL. Tribunal Superior de Justiça. AgRg no CC /DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, julgado em 08/05/2013, DJe 17/05/

238 Maria Lúcia Baptista Morais O tema tratado é divergente na jurisprudência. No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul existem decisões entendendo que, no caso da relação de consumo, a competência é relativa e, em outras vezes, ela é absoluta. Na realidade, a divergência decorre do fato de que, na Lei n /90, no artigo 1º, o legislador previu que a proteção e a defesa do consumidor são matérias de ordem pública e de interesse social. Sendo assim, pode ser conhecida de ofício pelo juiz e não entra na disponibilidade das partes. Por outro lado, o artigo 101 usa o verbo poder, estabelecendo a possibilidade de que o consumidor opte pelo seu próprio domicílio, quando da propositura de uma ação. Fazendo uma análise conjunta dos dois artigos, a lógica seria concluir por uma questão de competência absoluta e não relativa, pois deve prevalecer o interesse público, em detrimento do interesse particular. O entendimento do STJ foi estabelecido no sentido da proteção do consumidor, ou seja, a natureza absoluta é admitida, desde que não traga prejuízos ao consumidor. Portanto, verifica-se pelos julgamentos que, se o próprio consumidor optar por propor a ação em foro diverso do seu domicílio, o juiz não deve declinar de ofício; mas sim, aguardar a exceção de incompetência, tendo a prorrogação da mesma, como consequência do seu não manejo. Conforme já foi analisado anteriormente e agora considerado sob a ótica da jurisprudência, há o entendimento de que o juiz pode declinar de ofício para o domicílio do consumidor, se houver, por exemplo, previsão diversa e prejudicial em cláusula de eleição de foro. Desse modo, a defesa do direito do consumidor fica reconhecida como matéria de ordem pública. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA TERRITORIAL. DOMICÍLIO DO CONSUMIDOR. COMPETÊNCIA ABSOLUTA. A natureza da competência territorial diante de relações de consumo é de ser compreendida como absoluta, levando em consideração que o art. 6º do CDC define como direito básico do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos (inciso VIII) que não deve ser interpretado como eleição de foro que melhor convém à solução do litígio, mas aquele que torna mais fácil o seu acesso ao Poder 238

239 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA Judiciário. PROCESSO EXTINTO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO, DE OFÍCIO, PREJUDICADO O EXAME DO APELO. UNÂNIME. 34 Por outro lado, quando o próprio consumidor opta pela propositura da ação em foro diverso do seu domicílio, a tendência de julgamento é por não admitir que o juiz decline competência de ofício. Agravo de Instrumento. Responsabilidade civil. O STJ tem pacífico entendimento no sentido de que, tratando-se de relação de consumo, a competência é absoluta e, por isso, pode ser declinada de ofício. Todavia, pelo entendimento do próprio STJ, a competência territorial, nesses casos, só pode ser considerada absoluta, para fins de afastamento da Súmula 33, quando isso se der em benefício do consumidor, o que não ocorre no presente caso. Agravo de instrumento provido em decisão monocrática. 35 No referido acórdão, após citar várias jurisprudências do STJ, o relator concluiu: No caso em tela, a opção pelo ajuizamento da ação na Comarca onde foi protocolada foi do próprio consumidor. O ajuizamento da ação no domicílio do consumidor lhe é facultado e, portanto, não pode ser imposto, cabendo ao réu, se assim entender, apresentar a devida exceção de competência. 36 Percebe-se, portanto, que o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e o do STJ correspondem a um enquadramento em benefício do consumidor. Se for para beneficiá-lo, a incompetência se torna absoluta e pode ser declinada de ofício, pois é matéria de ordem pública. Por outro lado, a jurisprudência dos dois Tribunais admite que o consumidor pode escolher onde propor a sua ação, e nesse caso, não pode o juiz declinar de ofício. A análise da matéria ficará na dependência do réu declinar competência ou não. 34 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº , Décima Quarta Câmara Cível, Relator: Dorval Bráulio Marques, Julgado em 11/11/ RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 6ª Câmara Cível. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. J. 13/05/ RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 6ª Câmara Cível. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. J. 13/05/

240 Maria Lúcia Baptista Morais Entende-se que, quando a questão envolve o interesse público, a competência não pode ser relativa e, se for exclusivamente do interesse privado, também não poderá ser absoluta. Sendo assim, percebe-se que o critério de proteção ao interesse do consumidor não é exclusivamente dele, segundo a previsão do próprio legislador, mas diz respeito a um interesse público. Quanto o foco é o interesse público, a definição da competência leva em conta o enquadramento do consumidor. O fato de a pessoa estar na condição de consumidor vai lhe garantir a prerrogativa de usar o benefício estabelecido pelo Código de Defesa do Consumidor. Portanto, entende-se que, quando a competência é estabelecida nessa hipótese, o que se sobressai é a condição da pessoa. Destaca-se, mais uma vez, que isso só ocorrerá para a proteção do consumidor. Se, por outro lado, o consumidor não usar o benefício da lei, por sua própria deliberação, não poderá ser declinada a competência de ofício. Aí se percebe a manutenção do critério territorial, prevalecendo o interesse exclusivamente da parte e sendo abandonado o interesse público. O problema desta análise é que, quando se pensa no foro competente, a relação é direta com a competência territorial; no entanto, esta não é a única situação em que os critérios se misturam. Vale lembrar aqui a hipótese da ação reivindicatória de imóvel, que envolve um direito real imobiliário, mas em que a escolha do foro competente é determinada por um critério funcional, conforme a parte final do artigo 95 do CPC. Em que pese a divergência da jurisprudência, entende-se que é possível, após a leitura de vários acórdãos, chegar a uma conclusão sobre os julgamentos proferidos. Vejamos: RECURSO ESPECIAL. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATOS BANCÁRIOS. INCOMPETÊNCIA TERRITORIAL. 1. O magistrado pode, de ofício, declinar de sua competência para o juízo do domicílio do consumidor, porquanto a Jurisprudência do STJ reconheceu que o critério determinativo da competência nas ações derivadas de relações de consumo é de ordem pública, caracterizando-se como regra de competência absoluta. 2. A facilitação da defesa dos direitos do consumidor em juízo possibilita que este proponha ação em seu próprio domicílio. Tal princípio não permite, porém, que o consumidor escolha, aleatoriamente, um local diverso de seu domicílio ou do domicílio do 240

241 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA réu para o ajuizamento do processo. Precedentes. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. 37 A leitura isolada desta ementa dá a impressão de que o posicionamento do STJ é simples, ou seja, trata-se de competência absoluta. A jurisprudência do TJRS repete, em muitas Câmaras, a interpretação desatenta. A própria ementa, no entanto, destaca a facilitação da defesa dos direitos do consumidor e o fato de que possibilita que este proponha a ação em seu domicílio. Na ementa, o relator acrescenta: Tal princípio não permite, porém, que o consumidor escolha, aleatoriamente, um lugar diverso de seu domicílio ou do domicílio do réu. Analisando a decisão do STJ, percebe-se, claramente, que o autor poderá escolher entre o seu domicílio e o do réu. Se ele pode escolher é porque a competência é relativa e não absoluta. Fazendo a leitura do referido acórdão do STJ, no recurso especial, percebe-se que a ação não foi proposta no foro do domicílio, nem do autor, nem do réu, mas onde o procurador tem o seu escritório. O que ocorre é que, em algumas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, é feita a citação de trechos do acórdão do STJ; porém, a decisão não se aplica ao caso concreto. No acórdão retrocitado, a situação era diversa da analisada no Rio Grande do Sul. A competência é absoluta; porém, o critério que incide na situação concreta não é o territorial. Não é possível ser conivente com a escolha aleatória do local para a propositura da ação, pois há um interesse público maior que é o da melhor distribuição da função jurisdicional. Ocorre que, no caso concreto, não foi uma escolha entre o foro do domicílio do autor ou do réu, mas sim uma opção por um foro que não foi contemplado pelo legislador, como de possível escolha. O STJ posiciona-se contra a escolha da propositura da ação, sem observância de regras, usando como fundamento o fato de que não se deve ferir o princípio do juiz natural 38. No acordão analisado, o STJ em- 37 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº MG (2007/ ) RELATOR : Min. Luiz Felipe Salomão, publicação 09/06/ Sabe-se da frequente utilização do princípio do juiz natural para fundamentar a impossibilidade de a parte escolher aleatoriamente um determinado foro. Tal fundamentação, entretanto, não parece adequada, porque está sendo dada uma interpretação muita ampla ao referido princípio. A escolha de um foro não utilizando um critério legal não caracterizará a utilização de um tribunal 241

242 Maria Lúcia Baptista Morais basa a sua decisão sobre a questão processual da competência, na proteção ao consumidor. Por envolver relação de consumo, trata-se de regra mais especial do que o critério da funcionalidade, que também serviria de fundamentação de decisão no caso concreto. Ocorre que, quando se verifica a necessidade de proteção à pessoa do consumidor, por ter a empresa escolhido o foro que o prejudica, a competência não é determinada somente pelo interesse da parte, mas sim pelo interesse público. Pode-se concluir, portanto, que se por um lado o consumidor tem o direito de escolher se vai ajuizar a ação em seu domicílio ou não, por outro, essa escolha deve estar de acordo com a previsão legal. Mas, se a propositura da ação for por parte da empresa contra o consumidor e a escolha do foro for prejudicial a esse último, então o critério é absoluto, de interesse público. A lei de locações, n /91, estabelece que o foro competente para a propositura de ações de despejo, consignação em pagamento de aluguel e acessórios de locação, revisionais de aluguel e renovatórias de locação será o do local do imóvel, exceto se existir outra previsão em cláusula de eleição de foro. Portanto, se existe a possibilidade de eleger foro diverso, a competência é relativa. Neste sentido a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul aponta: apelação cível. locação. ação de despejo c/c cobrança. preliminares de incompetência absoluta do juízo e de cerceamento de defesa. caso concreto. Não se trata de incompetência absoluta, mas relativa, sujeita à modificação por vontade das partes conforme dispõeo art.111 do CPC e o art. 58, inc. II, da Lei 8.245/91. aincompetência relativa do juízonão foi levantada através da competente exceção, sendo descabida a sua oferta como preliminar de contestação. Assim, asua arguição em sede de apelaçãofoi atingida pela preclusão, não prosperando a de exceção. Portanto, adota-se o conceito de princípio do juiz natural, ensinado por Ada Pellegrini Grinover e outros, em Teoria Geral do Processo,p Os autores afirmam: E o princípio do Juiz natural, relacionado com o anterior, assegurando que ninguém pode ser privado do julgamento por juiz independente e imparcial, indicado pelas normas constitucionais e legais. A Constituição proíbe os chamados tribunais de exceção, instituídos para o julgamento de determinadas pessoas ou de crimes de determinada natureza, sem previsão constitucional ( art. 5º, inc. XXXVII). 242

243 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA alegaçãode cerceamento de defesa. REJEITADAS AS PRELIMINARES, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME. 39. O Estatuto do Idoso, Lei n /03 prevê para a hipótese de ações reguladas pelo art. 79 da referida lei, ações que se referem a direitos decorrentes da condição de idoso, uma competência absoluta, ou seja, o domicílio do idoso. Neste caso, fica evidente o critério da pessoa que está na condição de idosa. O legislador ressalvou, na referida legislação, os casos que são da competência da Justiça Federal ou da competência originária dos tribunais superiores. É interessante observar que o idoso nem sempre terá o privilégio de tramitação da ação em seu domicílio. Isto ocorrerá, apenas, nas hipóteses descritas no Estatuto do Idoso. Portanto, existem várias jurisprudências negando ao idoso tal privilégio, como ocorre no caso abaixo transcrito. agravo de instrumento. direito processual civil. família. exceção de incompetência. ação revisional de alimentos. O fato de o alimentante ser uma pessoa idosa, por se tratar de ação de alimentos, não se enquadra nas hipóteses em que o foro competente para apreciar a demanda é o seu domicílio, uma vez que a regra só é aplicada quando se tratar de causas que visam à proteção judicial dos interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis ou homogêneos, nos termos do art. 80 do Estatuto do Idoso. Negado seguimento 40 Uma última situação que se pretende abordar é aquela em que o enquadramento de competência absoluta ou relativa é feito exclusivamente pela jurisprudência e nem sempre de forma técnica. Trata-se da hipótese em que as ações são propostas sem seguir qualquer regra de competência estabelecida pelo legislador, como em acordão anteriormente analisado. Não há o enquadramento segundo o domicílio do réu, do autor, do local do cumprimento da obrigação, local do ato ou do fato etc. Nos casos acima descritos, o que se percebe é que, para permitir que o juiz reconhecesse a incompetência e declinasse de ofício, a juris- 39 Rio GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº , Rel. Décima quinta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Rel. Vicente Barroco de Vasconcellos, Julgado em 15/03/ RIO GRANDE DO SUL.Agravo de Instrumento Nº , Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 14/11/

244 Maria Lúcia Baptista Morais prudência começou a admitir, também neste caso, além da hipótese do código de defesa do consumidor, que a incompetência territorial poderia ser absoluta. O objetivo de tais casos, no entanto, é não permitir que a parte, por sua deliberação, escolha onde a ação deverá tramitar. Se não houvesse essa preocupação, poderia ocorrer uma sobrecarga de trabalho para determinados órgãos jurisdicionais ou a parte poderia escolher onde as decisões são mais favoráveis aos seus interesses. Verifica-se pela jurisprudência que, por interesse nas decisões tomadas no Rio Grande do Sul, algumas pessoas de outros Estados começaram a ingressar com ações aqui. Se não fosse tomada uma providência, ou seja, se não houvesse um posicionamento do judiciário gaúcho, a solução de tal problema dependeria exclusivamente do réu, que ficaria com a incumbência de excepcionar a competência e, quando ele não o fizesse, haveria a prorrogação da mesma. Acontece que, nesse caso, não se trata de interesse só da parte, pois poderia haver sobrecarga no Judiciário do Rio Grande do Sul. Diante da tal situação, o Tribunal começou a decidir no sentido de que a competência territorial, neste caso, era absoluta e que, portanto, poderia ser declinada de ofício. Entende-se, porém, que a presente hipótese não trata de competência territorial, em que pese a discussão ser aparente só do foro competente. Em razão do interesse público prevalente a questão deixa de ser simplesmente territorial para ser funcional. A não tomada de posicionamento, por parte do Judiciário, poderia trazer sérios prejuízos. Por essa razão, o que se visa proteger é o melhor funcionamento do Judiciário, e aí aparece claramente o critério funcional. Portanto, não há que se falar em incompetência territorial absoluta neste caso. Mais uma vez, apesar de a discussão ser quanto ao local onde a ação tramitará, ocorre a intromissão de outro critério, que é absoluto e que deve prevalecer frente ao relativo. Vejamos: AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO REVISIONAL. competência TERRITORIAL. Ação proposta por consumidor domiciliado em outro Estado da Federação. Ausência de justificativa. Afronta ao objetivo criado pela legislação consumerista, bem como às regras sobre competência territorial trazidas pelo art. 100, inciso IV, alíneas b e d do 244

245 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA CPC. Possibilidade do reconhecimento, de forma excepcional, da incompetência relativa de ofício. RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO MONOCRÁTICA. 41 AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. AÇÃO REVISIONAL. competência TERRITORIAL. DECRETAÇÃO EX OFFICIO. POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO. Ação proposta por consumidor domiciliado em outro Estado da Federação. Ausência de justificativa. Afronta ao objetivo criado pela legislação consumerista, bem como às regras sobre competência territorial trazidas pelo art. 100, inciso IV, alíneas b e d do CPC. Possibilidade do reconhecimento, de forma excepcional, da incompetência relativa de ofício. RECURSO IMPROVIDO. DECISÃO MONOCRÁTICA. 42 Um caso similar e que envolve o mesmo tipo de conclusão ocorre quando o advogado da parte da autora ingressa com a ação, também não observando qualquer regra de competência. Vejamos a jurisprudência: apelação cível. direito privado não especificado. ação monitória. extinção do feito com base no artigo 267, IV, do CPC, com fundamento na competência territorial. ajuizamento da ação no foro do escritório do representante do CREDOR. No caso concreto, ainda que se trate de competência relativa, poderse-ia admitir a declinação de ofício, já que o credor é domiciliado no Município de Taquara e o emitente no Município de São Jerônimo, mas o ajuizamento da presente ação ocorreu no Município de Santo Antônio da Patrulha, onde está sediado o escritório do patrono do primeiro. A extinção do feito não se encontra dentre as hipóteses que teria o juízo a quo para dirimir, questão acerca da competência relativa e da possibilidade de o advogado escolher o foro de acordo com as suas conveniências, já que o foro do escritório profissional não coincide com o foro do domicílio do credor, tampouco com o foro do domicílio do emitente, quais sejam: declinação ou prorrogação da competência, com 41 RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 14ª Câmara Cível. Relatora: Judith dos Santos Mottect. J. 07/05/ RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 14ª Câmara Cível. Relatora: Judith dos Santos Mottect. J. 30/04/

246 Maria Lúcia Baptista Morais o que deve a sentença ora atacada ser desconstituída por fundamento diverso daquele invocado pelo apelante. APELO PROVIDO. UNÂNIME 43 Aliás, sobre o tema, uma contribuição interessante é a de Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero, que ensinam: Os critérios que determinam a distribuição de competência no Estado Constitucional obedecem ao interesse público primário da boa organização do Poder Judiciário. Mesmo quando o critério determinante é o critério territorial, o que interessa é a facilitação do acesso à justiça, questão tranquilamente reconduzível ao interesse público primário da boa organização da Justiça civil. 44 Verifica-se, assim, que nos dois exemplos citados, o critério não é de competência territorial, mas sim funcional. Interessa ao Judiciário a distribuição de trabalho, e não se pode deixar essa escolha para a parte. Isso poderia trazer um enorme prejuízo para a prestação jurisdicional, que já está tão demorada. O critério territorial, portanto, conduz a uma incompetência relativa, mas, em situações diversas, os critérios se misturam na determinação da competência, sendo esse o motivo do enquadramento tecnicamente inadequado. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os critérios de fixação de competência são estabelecidos em razão da matéria, do valor, da pessoa, da função jurisdicional e do território. Cada um deles estabelece competência em determinada situação e para determinado tipo de Justiça, foro ou juízo; entretanto, muito frequentemente, os critérios se misturam e estabelecem dificuldade em sua identificação. Quando o critério é a matéria, ele identifica a competência de Justiça, de varas especializadas, de Tribunais nas ações de competência originária e a competência exclusiva do juiz de direito. 43 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº , 17ª Câmara Cível. Relatora Desª Liége Puricelli Pires, j. 24/03/ MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: Críticas e Propostas, p

247 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA O critério da pessoa, por outro lado, determina a competência da Justiça Federal, da Vara da Fazenda Pública e de outras varas especializadas, como a vara de menores, por exemplo. Este critério também pode limitar a atuação dos Juizados Especiais ou permitir a incidência de privilégio por ser pessoa idosa. O valor da causa será indicativo para a competência dos Juizados, juntamente com outros critérios ou fixará a competência do pretor, que tem sua atuação limitada a 60 salários-mínimos. O critério funcional estabelecerá competências diversas, como por exemplo: a atuação de mais de um juiz no mesmo processo, sendo esses juízes pertencentes a um mesmo grau de jurisdição ou a graus diferentes; a necessária atuação do mesmo juiz da causa principal em ações incidentais; a propositura da ação que envolve direitos de propriedade, vizinhança, posse, nunciação de obra nova, demarcação e divisão de área e servidão, no foro do imóvel ou a prevalência de destruição de trabalho entre o foro central e os foros regionais, conforme súmula 3 do TJ/RS. Por fim, o critério territorial identificará o foro ou a subseção competente. Ele pode ser geral, ou seja, o do domicílio do réu, mas também pode ser especial, quando for determinado por outros fatores; como, por exemplo, o local do cumprimento da obrigação, do ato ou fato, onde a empresa tem a sua filial, do foro do alimentando etc. O critério de fixação de competência poderá ser absoluto ou relativo. Será absoluto quando a competência for fixada em razão do interesse público, sendo que, neste caso, o juiz poderá declinar de ofício para o juízo competente. Por outro lado, o critério será relativo quando a competência for fixada, tendo em vista, prevalentemente, o interesse da parte. Nesta hipótese, a incompetência deverá ser excepcionada e o réu terá um prazo preclusivo, que é o da resposta. Quando a competência for relativa o juiz não poderá reconhecê -la de ofício, segundo a súmula n. 33 do STJ, sendo necessária a atuação da parte para excepcioná-la. Este é exatamente o ponto de muita divergência em casos práticos. Muitas vezes, parece que o critério de reconhecimento da incompetência é o territorial, mas, na realidade, a funcionalidade do Judiciário é que foi o motivo da determinação dela ou o tipo da pessoa que é parte na causa. A importância da verificação do critério de fixação de competência e o seu enquadramento como absoluto ou relativo é evidente, pois se 247

248 Maria Lúcia Baptista Morais o critério for territorial, o juiz não deverá reconhecê-lo sem a exceção. Existem diversos casos, no entanto, em que houve a necessidade de determinação de ofício e não foi percebido, ou seja, que neles o critério não foi o territorial, mas outros que se enquadram como critérios absolutos. O problema acima descrito ocorre porque, em algumas situações, há incidência de mais de um critério ao mesmo tempo e, dependendo da situação concreta, incidirá um ou o outro. Isto ocorre nas seguintes hipóteses: a) Nas relações de consumo, em que se estabelece que o consumidor pode optar por propor a ação em seu domicílio, mas há também um interesse público na proteção dele. No primeiro caso, prevalecerá o interesse da parte e aí se sobressai o critério territorial, cuja incompetência não pode ser declinada de ofício. Por outro lado, o interesse público identifica o critério da pessoa do consumidor, fazendo com que o juiz possa reconhecê-lo de ofício imediatamente. O enquadramento, no caso prático de incompetência absoluta ou relativa, será sempre no sentido de beneficiar o consumidor; b) Nas ações que envolvem alguns direitos reais imobiliários, como, por exemplo, a propriedade. Neste caso, a competência que se procura estabelecer é a do foro onde a ação será proposta; porém, o critério que a determinará será o funcional, em razão da busca por um melhor desempenho da função jurisdicional, como, por exemplo, a possibilidade de o juiz fazer uma verificação in loco ou a maior facilidade produção de provas; c) Nas ações previstas no Estatuto do Idoso, em que o critério determinante é o da pessoa idosa, embora também seja utilizado o critério da matéria. d) Por fim, nas ações que são propostas em foros sem observância de qualquer regra de competência, como aquelas em que o advogado propõe a ação no local em que tem o seu escritório ou ações que são propostas em determinados foros, apenas por uma questão de conveniência, em razão de julgamentos mais favoráveis. Nestes dois últimos casos, fica evidente inadequada fundamentação da jurisprudência em fazer referência a um critério territorial absoluto. Na realidade, quando o juiz diz que está excepcionando a regra de não poder declinar de ofício, em razão da súmula 33 do STJ, na verdade ele está fazendo incidir o critério funcional. Isto ocorre porque, se não fosse tomada uma providência, haveria a sobrecarga desmotivada de alguns setores do judiciário por manobra do próprio advogado do autor. 248

249 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA Sendo assim, o que pretende proteger é um melhor funcionamento do judiciário. Entende-se, portanto, que o critério territorial é sempre relativo, mas que, em muitos casos, para fixar a competência de foro, haverá a incidência de critérios absolutos como o funcional ou o da pessoa. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, Arruda; ASSIS, Araken; ALVIM. Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil: comentários à Lei 9.613/98 com as alterações da Lei / ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ASSIS, Araken. Manual da Execução. 11. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. Procedimento comum: ordinário e sumário. São Paulo: Saraiva, v.2, t.1. CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e competência. 18. ed. São Paulo. Saraiva, CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Tradução de J. Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, v.2. DALL ALBA. Felipe Camilo. Curso de Juizados Especiais: Juizado Especial Cível, Juizado Especial Federal e Juizado Especial da Fazenda Pública. Belo Horizonte, Fórum, DALL ALVA, Felipe Camilo. A Distribuição da Competência no novo CPC, no prelo. GRINOVER, Ada Pellegrini; CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 17. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios Gonçalves. Novo Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral e Processo de Conhecimento. 11.ed., São Paulo: Saraiva, v

250 Maria Lúcia Baptista Morais MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHRT, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil: Processo de Conhecimento. 11. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.2 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: Críticas e Propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Processo Civil Moderno: Parte Geral e Processo de conhecimento. 3. ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, v.1 MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. 5.ed. São Paulo: Athas, NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, OLIVEIRA, Carlos Alberto; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: Teoria Geral do Processo civil e parte geral do Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito Processual Civil Contemporâneo: Teoria Geral do Processo. 4.ed. São Paulo: Saraiva, v.1 SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil: Processo de conhecimento. v.1, 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, JURISPRUDÊNCIA: RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo Interno nº , 7ª Câmara Cível, Relator: Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, j. 26/03/14. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Agravo nª , Quinta Câmara Cível, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto. J. 30/05/

251 8 CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO DE COMPETÊNCIA E A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA TERRITORIAL ABSOLUTA RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº , Décima Quarta Câmara Cível, Relator: Dorval Bráulio Marques, Julgado em 11/11/2009. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 6ª Câmara Cível. Relator: Des. Ney Wiedemann Neto. J. 13/05/14. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento Nº , Sétima Câmara Cível. Relatora: Liselena Schifino Robles Ribeiro, Julgado em 14/11/2013. RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 14ª Câmara Cível. Relatora: Judith dos Santos Mottect. J. 07/05/14. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento nº , 14ª Câmara Cível. Relatora: Judith dos Santos Mottect. J. 30/04/14. RIO GRANDE DO SUL.Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível nº , 17ª Câmara Cível. Relatora Desª Liége Puricelli Pires, j. 24/03/11. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Conflito de Competência nº Décima Sétima Câmara Cível. Relator: Des. Gelson Rolim Stocker, julgado em 21/05/14. Rio GRANDE DO SUL. Apelação Cível nº , Rel. Décima quinta Câmara Cível. Tribunal de Justiça do RS, Rel. Vicente Barroco de Vasconcellos, Julgado em 15/03/2006. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº MG (2007/ )RELATOR : Min. Luiz Felipe Salomão, publicação 09/06/

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253 9 TUTELA DE URGÊNCIA Jaqueline Mielke Silva 1 SUMÁRIO: 9.1. Tutela Cautelar Principais características da tutela cautelar de acordo com o Código de Processo Civil (na concepção de Piero Calamandrei) A adoção da concepção de tutela cautelar de Piero Calamandrei pelo legislador em Classificação das medidas cautelares segundo Piero Calamandrei As ações cautelares inominadas Distinção entre ações cautelares e medidas cautelares Autonomia e dependência da ação cautelar O poder geral de cautela Mérito cautelar Competência para o ajuizamento de ações cautelares Competência internacional e medidas cautelares Requisitos da petição inicial Liminar cautelar Caução contracautela e substitutiva Citação e resposta do réu Ação declaratória incidental Contestação Intervenção de terceiros e litisconsórcio Natureza da sentença que julga o processo cautelar Coisa jugada e sentença cautelar Ação principal Cessação 1 Doutora e Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Pós-graduação stricto sensu da Faculdade IMED e da Faculdade INEDI - CESUCA e de outras instituições de ensino superior. Professora na Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul AJURIS, Escola Superior da Magistratura Federal ESMAFE, Fundação Escola Superior do Ministério Público FMP, Escola Superior da Magistratura do Trabalho FEMARGS. Advogada. jaquelinesilva@cesuca.edu.br 253

254 Jaqueline Mielke Silva da eficácia da medida cautelar Responsabilidade civil pela concessão de medidas cautelares A tutela antecipada genérica prevista no artigo Natureza da decisão que antecipa a tutela Requerimento e concessão do provimento antecipatório Momento para o deferimento/ indeferimento da tutela antecipada Requisitos necessários à concessão da tutela antecipada Tutela antecipada concedida a partir do propósito manifestamente procrastinatório do réu Efeitos passíveis de serem antecipados A responsabilidade civil decorrente da concessão de liminares antecipatórias e cautelares Revogação/modificação da tutela antecipada Tutela Cautelar Principais características da tutela cautelar de acordo com o Código de Processo Civil (na concepção de Piero Calamandrei): instrumentalidade, provisoriedade e periculum in mora 2 A instrumentalidade do procedimento cautelar significa que o mesmo tem por função proteger o processo principal. Os procedimentos cautelares não são nunca fins em si próprios, mas são infalivelmente predispostos à emanação de um ulterior procedimento definitivo, do qual estes preventivamente asseguram o proveito prático. Segundo Piero Calamandrei 3, os procedimentos cautelares nascem, por assim dizer, a serviço de um procedimento definitivo, com a função de predispor o terreno e de preparar os meios mais adequados para o seu êxito. Há, portanto, nos procedimentos cautelares, mais do que o objetivo de aplicar o direito. Existe a finalidade imediata de assegurar a eficácia do procedimento definitivo que servirá, por sua vez, para o exercício do direito. A tutela cautelar é, em comparação ao direito substancial, 2 Neste sentido, o entendimento de José Roberto dos Santos Bedaque (In: Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 34), verbis: As características fundamentais dessa modalidade de tutela são a instrumentalidade, a provisoriedade e a sumariedade. Guarda com a tutela final relação de subordinação instrumental, pois visa a preservar sua efetividade, pelo que carece de autonomia. Por isso é provisória ou interina, ou seja, deixa de existir se o direito, para cuja proteção foi admitida, não for reconhecido afinal, no provimento definitivo. Tendo em vista a urgência que lhe é inerente, a tutela cautelar se caracteriza pela sumariedade da cognição. 3 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p

255 9 TUTELA DE URGÊNCIA uma tutela mediata: mais do que fazer justiça, serve para garantir o eficaz funcionamento da justiça 4. A partir do exposto, conclui Piero Calamandrei, no sentido de que [...] se todos os procedimentos jurisdicionais são um instrumento de direito substancial que, através destes, se cumpre, nos procedimentos cautelares verifica-se uma instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada, por assim dizer, ao quadrado: estes são de fato, infalivelmente, um meio predisposto para o melhor resultado do procedimento definitivo, que por sua vez é um meio para a aplicação do direito; são portanto, em relação à finalidade última da função jurisdicional, instrumentos do instrumento 5. Assim, a nota peculiar da instrumentalidade do processo cautelar reside no aspecto de que ele é um instrumento de outro instrumento, ou seja, o processo cautelar tem por escopo salvaguardar a eficácia e o resultado profícuo do processo principal, ou, nas palavras de J.J. Calmon de Passos 6, o processo cautelar é processo a serviço do processo, não processo a serviço do direito material. Daí acentuar Donaldo Armelin 7 quando salienta que o processo cautelar tem uma dependência genética em relação a um outro processo, simultâneo ou sucessivo, seja ele cognitivo, seja ele de execução. Segundo Piero Calamandrei, uma das características marcantes dos procedimentos cautelares é a provisoriedade. Segundo ele, [...] a opinião mais difundida, da qual partilham os nossos processualistas mais importantes, é aquela que vê um caráter constante ou ainda um 4 Ibid.,p Neste sentido, o entendimento de José Roberto dos Santos Bedaque (In: Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 33), verbis: Autonomia da função cautelar, como categoria diversa daquelas exercidas pelo juiz, foi identificada por Chiovenda, que, juntamente com Calamandrei, foi dos que mais contribuíram para o desenvolvimento das ideias a respeito dessa modalidade de tutela jurisdicional. Foi deles a primeira tentativa de ampliar a ideia de tutela cautelar, até então restrita às hipóteses de seqüestro, para outras situações, concluindo pela necessidade de conceber essa tutela de forma genérica, com o objetivo de garantir o resultado útil do processo. Encontra-se aí, portanto, o germe do poder geral de cautela. 6 In: Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, Vol. X, Tomo I, p In: Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. Col. de Estudos de Direito de Processo Enrico Tullio Liebman. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p

256 Jaqueline Mielke Silva caráter diferencial dos procedimentos cautelares na sua provisoriedade, ou seja, na limitação da duração dos efeitos (declarativos ou executivos) próprios desses procedimentos. 8 De acordo com esta concepção, os procedimentos cautelares se diferenciam de todos os outros procedimentos jurisdicionais não pela qualidade de seus efeitos, mas por uma certa limitação no tempo dos efeitos em si 9. O doutrinador italiano adverte para a distinção entre provisoriedade e temporariedade, afirmando ser o primeiro termo mais restrito do que o segundo. Assim, a qualificação de provisório dada aos procedimentos cautelares significa, em última análise, que os seus efeitos jurídicos não só têm duração temporânea, mas têm duração limitada àquele período de tempo que deverá transcorrer entre o emanar do procedimento cautelar e a promulgação de outro procedimento jurisdicional; que, na terminologia comum, vem indicado, em contraposição à denominação cautelar dada ao primeiro, com a denominação definitivo. A provisoriedade dos procedimentos cautelares seria, portanto, um aspecto e uma consequência de uma relação que transcorre entre os efeitos do procedimento antecedente (cautelar) e aqueles do procedimento subsequente (definitivo), que assinalaria o início da cessação dos efeitos do primeiro 10. A concepção de provisório para Piero Calamandrei 11 tem incluída em seu interior a ideia de substituição e, por via de consequência, de antecipação In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares. Tradução da edição italiana de 1936 por Carla Roberta Andreasi Bassi. Campinas: Servanda, 2000, p Segundo o entendimento de José Roberto dos Santos Bedaque (In: Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 42), verbis: Fala-se em provisoriedade no sentido de que os provimentos cautelares não são idôneos a regulamentar definitivamente a relação de direito material controvertida. Destinamse a produzir efeitos pelo tempo necessário à prolação do provimento final. Por isso, não possuem autonomia; mantêm-se sempre ligados à tutela definitiva, que depende de cognição exauriente. 10 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p Ibid.,p Segundo Piero CALAMANDREI, depois de ter isolado a substância do procedimento cautelar como antecipação provisória de certos efeitos do procedimento definitivo, dirigida a prevenir o dano que poderia derivar do atraso deste, [...] (In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p. 42 3). 256

257 9 TUTELA DE URGÊNCIA A partir do momento em que o provisório foi substituído por algo definitivo é porque houve antecipação. Logo, a satisfação será inafastável. O procedimento cautelar tem efeitos provisórios não porque (ou não necessariamente porque) o conhecimento no qual se baseia seja menos pleno que aquele ordinário, e deva, portanto, ser equilibrado por uma menor estabilidade de seus efeitos; mas porque a relação que o procedimento cautelar constitui é por sua natureza destinada a esgotar-se, quando o seu objetivo terá sido finalmente alcançado no momento em que for emanado um procedimento sobre o mérito da controvérsia 13. Diante do exposto, observa-se que mesmo entendendo que a provisoriedade tem atrelada a ideia de antecipação, ainda assim Piero Calamandrei afirma a provisoriedade dos procedimentos cautelares. Partindo desta concepção, o autor reconhece a existência de cautelares satisfativas. O periculum in mora, 14 que é a base das medidas cautelares para Piero Calamandrei 15, não se caracteriza como o genérico perigo de dano jurídico, ao qual se pode remediar com a tutela ordinária 16. Trata-se, especificamente, do perigo daquele ulterior dano marginal, que poderia derivar do atraso, tido como inevitável em razão da lentidão do procedimento ordinário, do procedimento definitivo. Segundo Piero Calamandrei 17, 13 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p Andrea Proto PISANI (In: Per l utilizzazione della tutela cautelare anche in funzione di economia processuale, Il foro italiano, 1998, V. p. 8), citado por Alberto José Lafuente TORRALBA (Ob. cit., p. 80), entendió que las medidas cautelares podían asumir no solo la función de garantizar la efectividad de la tutela jurisdicional, sino también una función de economia procesal, evitando que la adopción de la medida debiera acompañar, siempre y necesariamente sob pena de ineficácia -, un proceso de cognición plena. 15 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p Ao tratar do tema, refere José Roberto dos Santos Bedaque (In: Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgência (tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 42): Importante destacar que o periculum in mora, que a tutela cautelar visa a afastar, pode ser considerado em duas situações distintas. Na primeira verifica-se o perigo de a execução se frustrar, ante a ameaça concreta causada por determinado acontecimento, que poderá tornar-se realidade antes de proferida a sentença. Outras vezes, o tempo necessário ao desenvolvimento do processo, por si só, representa perigo de dano ao titular do suposto direito. 17 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p

258 Jaqueline Mielke Silva [...] é a impossibilidade prática de acelerar a prolação do procedimento definitivo que faz surgir o interesse na emanação de uma medida provisória; é a mora desse procedimento definitivo, considerada em si mesmo como possível causa de ulterior dano, que se provê a tornar preventivamente inócua com uma medida cautelar que antecipe provisoriamente os efeitos do procedimento definitivo. A função dos procedimentos cautelares nasce, portanto, da relação que se passa entre dois fatores: a necessidade de que o procedimento, para ser praticamente eficaz, seja proferido sem atraso e a inaptidão do processo ordinário para criar sem atraso um procedimento definitivo 18. É esse um daqueles casos em que a necessidade de ser breve debate-se contra a necessidade de fazer bem feito: a fim de que o procedimento definitivo nasça com maiores garantias de justiça, este deve ser precedido do regular e ponderado desenvolvimento de toda uma série de atividades, ao cumprimento das quais é necessário, muitas vezes, um período não breve de espera; mas essa mora indispensável ao cumprimento do ordinário interprocessual ameaça tornar praticamente ineficaz o procedimento definitivo, o qual parece destinado, por amor à perfeição, a alcançar muito tarde, como a medicina longamente elaborada para um doente já morto A adoção da concepção de tutela cautelar de Piero Calamandrei pelo legislador em 1973 O legislador inexoravelmente adotou a concepção de tutela cautelar de Piero Calamandrei no Livro III do Código de Processo Civil (DO PROCESSO CAUTELAR). Diversos dispositivos legais refletem a adoção deste modelo (arts. 796, 806, 807 e 808, inc. III do CPC). Os dispositivos legais supratranscritos trazem no seu bojo a ideia de instrumentalidade e provisoriedade dos procedimentos cautelares. 18 Mais recentemente Ricci (In: Rivista di Diritto Processuale, jan.mar.003, p. 215), assinalou que tutela efetiva hoje, quer dizer tutela rápida. Segundo o autor, o tempo razoável é mencionado também no art. 111 da Constituição como imperativo dirigido a evitar a demora do procedimento. Como princípio interno do processo a regra da duração do mesmo dentro de um prazo razoável tem como parâmetro o tipo de resultado que se quer obter; e, quando para obter um certo resultado parece necessário o emprego de um tempo excessivamente amplo, a tutela jurisdicional garantida pelo art. 24 da Constituição requer que se explore também a possibilidade de melhores resultados, se estes são úteis e é possível obtê-los com maior celeridade. 19 In: Introdução ao Estudo Sistemático dos Procedimentos Cautelares, p

259 9 TUTELA DE URGÊNCIA Como a função dos procedimentos cautelares é a de proteger o processo principal, eles sempre serão dependentes dos mesmos (art. 796). Por outro lado, se são provisórios, terão eficácia apenas no curso do processo principal (art. 807). Tão logo o processo principal seja extinto, cessará a eficácia da medida cautelar (art. 808, inciso III) Classificações das medidas cautelares segundo Piero Calamandrei Segundo Piero Calamandrei 20, as medidas destinadas a assegurar a efetividade do processo podem representar 21 : a) provimentos instrutórios antecipados: normalmente são proferidos no bojo do processo de cognição, no momento procedimental próprio para a produção da prova. Se, todavia, houver risco para o resultado dessa atividade, é possível antecipar o respectivo provimento, pela via da tutela cautelar, aqui destinada à conservação da prova; b) provimentos destinados a assegurar a efetividade da execução, obstando o desvio de bens sobre os quais poderão recair os atos executórios; c) provimentos interinos, que antecipam provisoriamente a sentença de mérito, com o objetivo de evitar danos irreparáveis a uma das partes. A relação de instrumentalidade, aqui, é diversa daquela identificada nos provimentos anteriores, que se limitam a assegurar meios para a emissão do provimento cognitivo ou executivo. A tutela cautelar concedida mediante provimento interino de mérito constitui antecipação do provável resultado definitivo, inerente ao provimento principal. Essa modalidade de cautelar se assemelha muito aos provimentos de cognição sumária, deles se afastando pelo caráter provisório do provimento, que jamais se torna definitivo, pois está instrumentalmente ligado à tutela principal. Esta constituirá na única regulamentação da relação substancial litigiosa. Não configura mera ratificação do provimento cautelar, que é substituído e deixa de existir. 20 In: Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari. Opere giuridiche. V. IX. Napoli, Morano Editore, p Sobre o tema, vide: José Roberto dos Santos BEDAQUE. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas sumárias e de urgências (tentativa de sistematização). São Paulo: Editora Malheiros, p

260 Jaqueline Mielke Silva d) provimentos judiciais determinando prestação de caução, para garantir eventual prejuízo àquele contra quem foi proferida tutela cautelar ou de outra natureza mas não definitiva. A construção de Piero Calamandrei serviu de base para a classificação elaborada por Galeno Lacerda 22 à luz do sistema brasileiro, verbis: 1) Classificação das cautelas segundo a finalidade: a) segurança quanto à prova (cognição) ex: asseguração de provas, exibição, justificação; b) segurança quanto aos bens (execução) ex: arresto, sequestro, caução e também as medidas inominadas; c) segurança mediante antecipação provisória da prestação jurisdicional 23 ex: alimentos, guarda de filhos, de incapazes, outras medidas do direito de família e grande parte das cautelas inominadas. 2) Classificação segundo a posição processual e o caráter da medida: a) antecedentes preventivo; b) incidentes; b.1) preventivo; b.2) repressivo (atentado 24, falsidade de documentos, prisão). 25 3) Classificação segundo a natureza da tutela cautelar: a) Jurisdicional; In: Comentários ao Código de Processo Civil, p Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA não considera os provimentos antecipatórios cautelares, por serem os mesmos satisfativos (vide item 1.3, Capítulo I, Parte 1). 24 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA não considera o atentado como uma verdadeira cautelar (Vide item 8.2, Capítulo I, Parte 3) 25 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA refere ainda uma terceira categoria de medidas cautelares, por ele denominadas de autônomas (vide item , Capítulo I, Parte 1). 26 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Ob. cit., p. 27) não aceita a classificação de medidas cautelares jurisdicionais e administrativas, por divergir da concepção de jurisdição de Francesco CARNELUTTI, verbis: (...) cremos que as notas essenciais, capazes de determinar a jurisdicionalidade de um ato ou de uma atividade realizada pelo juiz, devem atender a dois pressupostos básicos: a) o ato jurisdicional é praticado pela autoridade estatal, no caso pelo juiz, que realiza por dever de função; o juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto, pratica essa atividade como finalidade específica de seu agir, ao passo que o administrador deve desenvolver a atividade específica de sua função tendo a lei por limite de sua ação, cujo objetivo não é simplesmente a aplicação da lei ao caso concreto, mas a realização do bem comum, segundo o direito objetivo; b) o outro componente essencial do ato jurisdicional é a condição de terceiro imparcial em que se encontra o juiz em relação ao interesse sobre o qual recai sua atividade. Ao realizar o ato jurisdicional, o juiz mantém-se numa posição de independência e estraneidade relativamente ao interesse que tutela. Como observa Micheli ( Per uma revisione della 260

261 9 TUTELA DE URGÊNCIA a.1) ação-lide sentença- exemplo: arresto, sequestro, caução, busca e apreensão, exibição, alimentos, atentado, cautelar inominadas (em regra); b) Administrativa; b.1) voluntária pedido sem lide ou fora da lide homologação ex: produção antecipada da prova, justificação, protestos, notificações e interpelações, homologação do penhor legal (em regra), posse em nome do nascituro etc.; b.2) decreto de ofício pelo juiz exemplo: reserva de bens em inventários (art. 1000, parágrafo único); suspensão do processo ou da execução (arts. 266 e 793), etc As ações cautelares inominadas Distinção entre ações cautelares e medidas cautelares As ações cautelares são dotadas de autonomia procedimental, possuindo um regramento próprio, contemplado no Livro III do Código de Processo Civil. As medidas cautelares, previstas no art , por sua vez, não possuem autonomia de procedimento, sendo deferidas incidentalmente no curso de outros processos. As medidas previstas no art. 797 jamais poderão ser preparatórias ou antecedentes, sendo invariavelmente incidentes. Tratam-se de medidas do processo em que ocorrem, no sentido de não integrarem uma lide cautelar especial, como acontece com as verdadeiras ações cautelares. nozione di giurisdizione volontaria, RDP, 1947, V. 1, p. 31; agora em Estúdios de derecho procesal civil, v. 4, p. 18), não é tanto o caráter de substitutividade, como afirmava Chiovenda, que define a jurisdição, mas seu caráter de imparcialidade. A norma a aplicar é, para a administração pública, a regra que deve ser seguida para que uma certa finalidade seja alcançada; a mesma norma é, para o órgão jurisdicional, o objeto de sua atividade institucional, no sentido de que a função jurisdicional se exercita como o único fim de assegurar o respeito ao direito objetivo. O juiz, por conseguinte, é portador de um interesse público na observância da lei (MICHELI, Curso de derecho procesal civil, v. 1, p. 7), enquanto o administrador, cumpre e realiza o direito objetivo, tem posição similar à de qualquer particular. 27 Segundo Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 83), a cautela legal de ofício, do art. 797, constitui providência de natureza administrativa, emanada de autêntico poder de polícia do juiz, no resguardo de bens e pessoas confiados por lei à sua autoridade. 261

262 Jaqueline Mielke Silva Se por um lado, as ações cautelares não podem ser desencadeadas ex officio, em razão do princípio da inércia (art. 2 do Código de Processo Civil), por outro, as medidas cautelares podem ser deferidas ex officio, diante da expressa previsão do art. 797 do Código de Processo Civil, desde que estejam previstas na legislação. Essas normas obrigam o juiz a reservar quinhão e bens suficientes para assegurar a efetividade da tutela do direito do herdeiro excluído e do credor. A caracterização dos pressupostos legais (não acolhimento do pedido e não concordância de todas as partes, aliada a documento que comprove suficientemente a obrigação e impugnação não fundada em quitação) é suficiente para obrigar o juiz a conceder a tutela cautelar. Entendemos que o atrelamento da concessão das medidas cautelares à previsão legislativa apenas confirma a influência do paradigma racionalista em nosso sistema, em que a atividade jurisdicional se resume a mera aplicação de dispositivos legais. Sem dúvida, seria muito estranho que o legislador impusesse ao juiz essa restrição genérica de só poder defender a jurisdição se a medida indicada para essa defesa estivesse expressamente prevista em lei. Haveria, sem dúvida, maior coerência doutrinária se as medidas de polícia judiciária pudessem ser sempre decretadas pelo juiz, independentemente de prévia permissão legal Autonomia e dependência da ação cautelar A autonomia cautelar, prevista no art. 796 do Código de Processo Civil, significa apenas autonomia de procedimento. Já a dependência, nos termos do mesmo diploma legal, significa que o processo cautelar depende do processo principal, justamente porque o protege, tendo função meramente instrumental 29. Trata-se de uma conclusão bastante simples, se partirmos da ideia de que o Livro III do Código de Processo Civil adotou a concepção de Piero Calamandrei 30, no tocante à tutela cautelar. 28 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 95). 29 Neste sentido, Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 469), verbis: sem embargo do caráter instrumental, pois o processo cautelar serve à realização prática de outro processo e de sua reconhecida acessoriedade pois sempre depende da existência ou da probabilidade de um processo principal (art. 796), é inegável a autonomia técnica do processo cautelar. Essa autonomia decorre dos fins próprios perseguidos pelo processo cautelar que são realizados independentemente da procedência ou não do processo principal. 30 Ao tratar do tema, leciona Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar. Forense: Rio de Janeiro, p. 91): o art. 796 é rigorosamente coerente com os princípios 262

263 9 TUTELA DE URGÊNCIA Todavia, para Ovídio Araújo Baptista da Silva, autonomia cautelar é muito mais do que autonomia procedimental. Para o autor, a autonomia cautelar também significa a possibilidade de existir uma autêntica cautelar que, portanto, não é satisfativa e que prescinde de uma ação principal. Esta conclusão apenas pode ser alcançada partindo-se do pressuposto de que a função do processo cautelar não é meramente instrumental, mas sim de que o mesmo tem por escopo a proteção de direitos. A partir do momento em que se concebe a tutela cautelar vinculada à proteção de direitos e não do processo principal, pode-se desvincular o processo cautelar de um processo principal. Como exemplo de ação cautelar autônoma, podemos citar as ações de asseguração de provas. Entretanto, a autonomia cautelar poderá estar presente apenas nas chamadas cautelares conservativas. Naquelas ações em que há a restrição de direitos da parte, imperiosa, se revela o ajuizamento de uma ação principal, como forma de limitar-se no tempo eventuais prejuízos sofridos pelo réu da ação cautelar O poder geral de cautela Há dois modos de se conceber o poder geral de cautela do magistrado. Um deles, indicado por Piero Calamandrei, correspondente ao conceito de medida cautelar como polícia judiciária ou como o grupo de poderes que o juiz exerce para disciplinar a boa marcha do processo, preservando-lhe de todos os possíveis percalços que possam prejudicar-lhes a função e utilidade final de seu resultado. Tratam-se das medidas cautelares, tomadas pelo magistrado no curso de uma demanda de conhecimento ou execução 31. Essas medidas cautelares não teriam o conteúdo de ação, mas de um mero incidente processual, pois, por meio delas, o juiz não decidiria propriamente uma demanda cautelar, sendo que daria disciplina a um incidente da lide. consagrados pelo legislador brasileiro segundo os quais o processo cautelar tem por finalidade a proteção da relação processual do simultâneo ou futuro processo de conhecimento, ou eventualmente do processo de execução. Se assim é, evidentemente não se poderá jamais conceber o instrumento só, apartado e autônomo do processo principal a que este por natureza e por destino deve servir. 31 Neste sentido, o posicionamento de Pontes de MIRANDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil.Tomo VIII. Rio de Janeiro: Forense, p. 310), a regra é de que as medidas preventivas estão subordinadas ao princípio ne iudex procedat ex officio, salvo quando a lei ou a natureza da ação principal autorize o juiz a decretá-la sem provocação. 263

264 Jaqueline Mielke Silva O outro modo de conceber o poder cautelar geral provém da redação do próprio art. 798 que o indica como sede para as ações cautelares inominadas 32, ao prescrever que: além dos procedimentos cautelares específicos, o juiz poderia permitir procedimentos cautelares não específicos. Quando, pois, o legislador, no art. 798, fala de medidas provisórias, havemos de entender que se encontram inseridas nesse conceito, além das simples medidas, sem conteúdo de ação, que o juiz poderia tomar para acautelar o interesse das partes, no curso da relação processual satisfativa (ou até mesmo cautelar), também as ações cautelares inominadas, que teriam um indispensável procedimento cautelar 33. Enquanto as medidas provisórias, que não têm conteúdo de ação, são invariavelmente incidentais e jamais preparatórias, as ações cautelares inominadas tanto podem ser incidentais quanto preparatórias de alguma outra demanda. Não é demasiado referir que, deixando ao critério do juiz a determinação das medidas práticas cabíveis no âmbito do poder geral de cautela, a lei, na realidade, investe o magistrado de um poder discricionário de amplíssimas dimensões. Apreciando o tema, Galeno Lacerda 34 refere que [...] no exercício desse imenso e indeterminado poder de ordenar as medidas provisórias que julgar adequadas para evitar o dano à parte, provocado ou ameaçado pelo adversário, a discrição do juiz assume proporções quase absolutas. Estamos em presença de autêntica norma em branco, que confere ao magistrado, dentro do estado de direito, um poder puro, idêntico ao do pretor romano, quando, no exercício do imperium, decretava os interdicta. Todavia, impõe-se reconhecer, desde logo, que discricionariedade não é o mesmo que arbitrariedade, mas apenas possibilidade de escolha 32 Neste sentido, o posicionamento de Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, p. 99), verbis: Os arts. 798 e 799 consagram o poder cautelar geral do juiz, qualificado na doutrina como inominado ou atípico, exatamente porque se situa fora e além das cautelas específicas previstas pelo legislador. No exercício desse imenso e indeterminado poder de ordenar as medidas provisórias que julgar adequadas para evitar o dano à parte, provocado ou ameaçado pelo adversário, a discrição do juiz assume proporções quase absolutas. 33 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 99) 34 In: Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, Vol. VIII, Tomo 1, 2. ed., p

265 9 TUTELA DE URGÊNCIA ou opção dentro dos limites traçados pela lei. Na verdade, a outorga de um poder discricional resulta de um ato de confiança do legislador no juiz; não, porém, um bilhete em branco para desvencilhá-los dos princípios e parâmetros que serviram de fundamento à própria outorga 35. A Lei n , de , introduziu importantes restrições ao poder cautelar geral do juiz, tendo em conta, especificamente, quando este poder tiver por objeto a oneração do patrimônio público. Em contrapartida, a Lei n , de , suprimira a concessão de liminares nas ações e processos judiciais de qualquer natureza, que objetivem a liberação de bens, mercadorias ou coisas de procedência estrangeira. Também a Lei n , de , proibiu a concessão de medida liminar em mandado de segurança impetrado, visando à reclassificação ou à equiparação de servidores públicos, ou a concessão de aumentos ou extensão de vantagens (art. 5º), estabelecendo, ainda, que o recurso voluntário interposto ou o reexame necessário, em tais casos, teria efeito suspensivo (art. 7º), de tal forma que a execução apenas é possível após o trânsito em julgado da sentença. Todos esses textos legais impedem que o magistrado se valha do poder geral de cautela nas hipóteses neles contempladas. As ações cautelares revestem-se de completa autonomia, diversamente com o que ocorre nas medidas cautelares. Além dos procedimentos cautelares específicos, nosso Código de Processo Civil possibilita à parte o direito de requerer medidas provisórias adequadas (art. 798), exemplificando-as, mais adiante, no art Estas normas oportunizam a chamada tutela cautelar atípica para qualquer situação substancial que a mesma tenha cabimento. Como o legislador não poderia instituir infinitos procedimentos - quantas forem as necessidades de tutela cautelar- e aliado à circunstância de que essas respectivas necessidades variam conforme as particularidades de cada caso concreto, não há alternativa senão deixar uma válvula de escape para a utilização da técnica processual adequada à situação concreta. Vale dizer: não há alternativa senão outorgar ao juiz poder cautelar geral Neste sentido, Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil. 39. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, ANO?, p v.ii). 36 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 744) 265

266 Jaqueline Mielke Silva Não é demasiado referir que o conceito de tutela cautelar inominada significa que a tutela cautelar pode ser requerida pela parte mesmo que os seus pressupostos de concessão não estejam previstos em procedimento cautelar específico. Trata-se de tutela cautelar atípica. O direito societário apresenta um campo vasto de aplicação do poder cautelar geral. É legítima, por exemplo, uma decisão judicial que suspenda a convocação de uma assembleia geral, sob alegação de irregularidade do procedimento Mérito cautelar No âmbito do processo cautelar há três grandes posicionamentos sobre o mérito cautelar, a seguir explicitados. a) Inexistência de mérito no processo cautelar: os autores que atrelam a concepção de jurisdição e de mérito aos juízos de certeza afirmam que o processo cautelar não tem mérito. Neste sentido, leciona Humberto Theodoro Júnior 38 : Enquanto o processo principal (de cognição ou execução) busca a composição de uma lide, o processo cautelar contenta-se em outorgar situação provisória de segurança para os interesses dos litigantes. Ambos os processos giram em torno da lide, pressuposto indeclinável de toda e qualquer atuação jurisdicional. Mas enquanto a lide e sua composição apresentam-se como objetivo máximo do processo principal, o mesmo não se dá com o processo cautelar. A este cabe uma função auxiliar e subsidiária de servir à tutela do processo principal, onde será protegido o direito e eliminado o litígio, na lição de Carnelutti. Na realidade, a atividade jurisdicional cautelar dirige-se à segurança e garantia do eficaz desenvolvimento e do profícuo resultado das atividades de cognição e execução, concorrendo, dessa maneira, para o atingimento do escopo geral da jurisdição. 37 De acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp /SP, Rel. Min. César Asfor ROCHA, j. em ), é possível a postulação de nomeação de administrador judicial temporário para empresa em que ocorreu quebra da affetiosocietatis mediante ação cautelar inominada. 38 In: Curso de Direito Processual Civil, p

267 9 TUTELA DE URGÊNCIA b) Todavia, diversos autores entendem que a concepção de jurisdição e de mérito não está necessariamente vinculada aos juízos de certeza. Consequentemente, também há mérito no processo cautelar 39. Neste sentido, apresenta-se o posicionamento de Galeno Lacerda 40 : Se a doutrina reconhece, com razão, a autonomia da função cautelar em face das funções jurisdicionais de conhecimento e de execução, parece certo atribuir-lhe também conteúdo diverso, isto é, mérito próprio, em virtude da finalidade específica. Como na cautela não se cuida da declaração do direito material (função de conhecimento), nem de sua realização coacta (função de execução), mas da existência ou não de necessidade de segurança em face de risco iminente, não resta a menor dúvida de que a avaliação desta necessidade e deste risco, ou seja, do periculum in mora, singulariza interesse legítimo em eliminálo, como condição peculiar, não só da ação como de toda a função cautelar, incluídas as providências voluntárias. Sua falta provoca juízo de carência. Para a procedência ação, porém, exige-se algo mais. Não basta o perigo. Indispensável se faz que a aparência do direito socorra o postulante. O fumus boni juris, portanto, não constitui condição da ação cautelar, mas representa-lhe, na verdade, a própria avaliação do mérito. Se o autor satisfaz as três condições e se sua pretensão se apresenta revestida da aparência de direito, o pedido merece provimento. Trata-se, porém, de juízo provisório, que não representa prejulgamento definitivo da demanda principal. E nisto reside, precisamente, a característica do mérito da sentença cautelar: em ser juízo de mera verossimilhança dos fatos. Por isso, se distingue da sentença de conhecimento, que é juízo de realidade e de certeza. Como se pode observar, Galeno Lacerda entende que há mérito na ação cautelar, mas que o mérito corresponde apenas ao fumus boni iuris. Para o autor o periculum in mora não integra o mérito por corresponder ao interesse de agir, que, segundo ele, é uma das condições 39 Neste sentido o entendimento de Athos Gusmão CARNEIRO, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n /6.278-M, julgado em , cujo acórdão foi por ele relatado, verbis: Sublinhou Calamandrei que o mérito da ação cautelar não é o mesmo mérito da demanda principal: ma si tratta di un merito diverso da quello a cui si referisce il provvedimento principale, cioè di un a zione cautelar, che hacondizioni distinte e independente da quelle proprie dell azione principale (Introduzione allo studio sistemático dei provvedimenti cautelari, p 141). (In: Jurisprudência brasileira, vol. 165, p. 114). 40 In: op. cit., p

268 Jaqueline Mielke Silva da ação. Não é demasiado referir, que Galeno Lacerda é partidário da teoria eclética da ação, sustentada por Enrico Tullio Liebman. c) Ovídio Araújo Baptista da Silva 41 concorda em parte com Galeno Lacerda. Para Ovídio, tanto o fumus boni juris quanto o periculum in mora integram o mérito cautelar. Isto se deve à concepção desse autor a respeito das condições da ação. Para o autor, as condições da ação se confundem com o próprio mérito da demanda. Em razão dessa circunstância, mesmo correspondendo o periculum in mora ao interesse de agir, entende o escritor que o mesmo também integra o mérito cautelar 42. A partir do exposto, observa-se que o mérito da ação cautelar não se confunde com o mérito da ação principal. Consequentemente, entendemos não ser possível que em sede de demanda cautelar, o magistrado se antecipe sobre o mérito da ação principal, pois correr-se-á o risco de pré-julgamento, o que implicará em flagrante cerceamento de defesa Competência para o ajuizamento de ações cautelares O art. 800 do Código de Processo Civil, fiel à doutrina de Piero Calamandrei, atrela a competência para o ajuizamento das ações cautelares à ação principal. Assim, em se tratando de cautelares preparatórias, as mesmas deverão ser ajuizadas no foro competente para processar e julgar eventual ação principal que será ajuizada. No caso de cautelares incidentes, as mesmas serão ajuizadas no foro onde estiver tramitando a ação principal. O Código não contemplou a competência para processar e julgar as chamadas ações cautelares autônomas, visualizadas por Ovídio Araújo Baptista da Silva, em razão de ter adotado a concepção de Piero 41 In: Comentários ao Código de Processo Civil, XI, p v.v 42 Neste sentido, José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: op. cit., p. 154), verbis: A efetiva presença do fumus boni iuris e do periculum in mora implica concessão da tutela cautelar. Tais requisitos, portanto, representam o mérito do processo. Constituem condições para obtenção do provimento pleiteado, que, mais do que afirmados, necessitam ser provados. Não se trata, pois, como equivocadamente afirma boa parte da doutrina, de condições da ação cautelar. O fumus boni iuris e o periculum in mora estão relacionados com o interesse de agir. Se a descrição feita pelo requerente da tutela cautelar revela, em tese, a necessidade e a adequação da medida pleiteada, isso significa que tais requisitos foram corretamente afirmados na inicial. Se provados, concederá o juiz a tutela pretendida. 268

269 9 TUTELA DE URGÊNCIA Calamandrei 43. É de se indagar: qual o foro competente para processá -las e julgá-las? Nada melhor do que recorrermos à doutrina de Ovídio Araújo Baptista da Silva 44, que alude ser este o mais grave defeito na redação do art. 800, [...] supor esse dispositivo que apenas existam medidas cautelares incidentes e preparatórias. Segundo se deduz deste preceito, ou as medidas seriam incidentes, caso em que haveriam de ser requeridas ao juiz da causa ou seriam antecedentes e, neste caso, sempre preparatórias. Sabe-se, porém, que as medidas cautelares, anteriores à propositura da demanda principal, podem ser simplesmente preventivas sem qualquer vínculo de prepatoriedade que as ligue a uma determinada demanda satisfativa. Segundo o autor 45, nas denominadas cautelares autônomas, a competência há de ser do forum rei sitae ou ainda do local onde deva ser efetivada a medida cautelar - e não a de uma ação principal de que o requerente não é titular -, o que vai de encontro ao princípio da eficiência da medida cautelar. Por outro lado, há ainda o problema da competência para processar e julgar as cautelares na fase recursal. As seguintes hipóteses podem ocorrer: a) o processo está no segundo grau de jurisdição, estando pendente de julgamento o recurso de apelação; b) o magistrado a quo proferiu a sentença, havendo recurso de apelação, ainda não remetido ao segundo grau de jurisdição; c) o magistrado a quo proferiu sentença, mas ainda não há recurso de apelação interposto; 43 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 141), critica esta vinculação do Código de Processo Civil à doutrina de Piero CALAMANDREI, verbis: o segundo dos defeitos apontados como existentes na concepção do art. 800 está intimamente ligado às idéias de Calamandrei e Carnelutti sobre a natureza instrumental e acessória do processo cautelar, a ponto de reduzirem o provimento cautelar, pelo menos o último, a uma espécie de interlocutória de luxo pertencente ao processo principal. Esta, sem dúvida, a razão principal a determinar o vínculo de dependência do processo cautelar ao processo principal, que inspirou, aliás, o preceito no art Não se cuida, em todo o Livro III do Código, de vincular a cautela ao direito acautelado, como seria de esperar, mas invariavelmente, liga-se a medida cautelar e o respectivo processo principal que, afinal, na concepção de Calamandrei, seria o interesse a ser protegido. 44 In: Processo Cautelar, p In: Processo Cautelar, p

270 Jaqueline Mielke Silva d) o tribunal ad quem proferiu o respectivo acórdão, e o recorrente interpôs Recurso Especial e/ou Recurso Extraordinário, sendo que o mesmo pretende agregar efeito suspensivo ao(s) mesmo(s), por meio do ajuizamento de uma ação cautelar. Nos termos do parágrafo único do art. 800, nos casos urgentes, se a causa estiver no tribunal será competente o relator do recurso. Em razão dessa previsão legislativa, na hipótese prevista na letra a, supra, a competência será do relator do recurso. Já, na hipótese contemplada nas letras b quando o recurso interposto ainda estiver sendo processado no juízo a quo o requerente da medida cautelar deverá instruir o pedido com cópias dos documentos existentes nos autos, considerados indispensáveis para que o relator do incidente possa contar com os elementos que o capacitem a decidir. Neste caso, como ainda não há relator 46, compete ao Regimento Interno definir a competência 47. Na hipótese prevista na letra c recurso ainda não interposto, ou no caso de já ter se esgotado o prazo de interposição a solução será atribuir ao magistrado prolator da sentença uma competência residual para apreciar a medida cautelar. Na última hipótese, aplicável a Súmula 635 do Supremo Tribunal Federal, verbis: Cabe ao Presidente do Tribunal de origem decidir o pedido da medida cautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade. Assim, se ainda não houver despacho na origem a respeito da admissibilidade do recurso, a cautelar deverá ser ajuizada junto ao Tribunal de origem (v.g. Tribunais de Justiça, Tribunais Regionais Federais). Em contrapartida, se já houver despacho na origem sobre a admissibilidade do Recurso Especial e/ ou do Recurso Extraordinário, a cautelar deverá ser ajuizada diretamente junto ao Superior Tribunal de Justiça e/ou Supremo Tribunal Federal. 46 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 748) ao tratar do tema, referem: Não há dúvida que, uma vez interposto o recurso de apelação, mesmo que o processo ainda esteja em primeiro grau de jurisdição, a medida cautelar deve ser requerida ao tribunal. Nesse caso, como não há apelação distribuída e, portanto, relator, a medida cautelar deve ser requerida ao tribunal para o qual a apelação deverá ser encaminhada, notadamente, ao presidente do tribunal competente para conhecer da apelação. 47 Segundo Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Processo Cautelar, p. 145), nesta hipótese, de duas uma, ou o Regimento Interno atribui esta competência para a fase liminar ao Presidente, ou quem o substitua na jurisdição; ou haverá de sortear-se relator para conhecer da medida cautelar incidente, com a natural prevenção do órgão colegiado a que pertence o relator. 270

271 9 TUTELA DE URGÊNCIA Conforme já mencionado, em se tratando de ação cautelar incidental, o juiz da demanda em curso estará prevento para conhecer e julgar as medidas urgentes. Em contrapartida, se a tutela cautelar é antecedente, a determinação da competência se faz examinando as regras comuns do processo de conhecimento (arts. 91 a 111 do CPC) ou de execução (arts. 475P e 576 do CPC). Segundo a doutrina 48, ajuizada a medida cautelar, fica preventa a competência do juiz que dela conheceu para o posterior ajuizamento da ação principal. Todavia, nas providências, apenas procedimentalmente cautelares ou só topologicamente cautelares, como justificações, protestos, notificações, interpelações, vistorias e inquirições ad perpetuam rei memoriam, não previnem a competência do juízo Competência internacional e medidas cautelares Em 16 de dezembro de 1994, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e o Uruguai celebraram um Protocolo de Medidas Cautelares, concluído em Outro Preto, posto em vigor no Brasil, após aprovação pelo Congresso nacional, pelo Decreto n de 15 de junho de O objeto do Protocolo é regulamentar entre os Estados Contratantes o cumprimento de medidas cautelares ordenado por juiz ou tribunal de um Estado e que deva recair sobre pessoas ou bens situados em outro. 48 Neste sentido: Luiz ORIONE NETO (In: op. cit., p. 145); Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil, p. 491); 49 Neste sentido Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: op. cit., p. 782), ao tratarem da asseguração de provas, referem: Inexiste prevenção. É conveniente, todavia, que o juízo da asseguração de prova seja o juízo em que a prova será eventualmente produzida e valorada, mormente se ainda pendente a asseguração de provas no momento da propositura da ação em que a prova assegurada será eventualmente produzida. A imediatidade e a identidade física do juiz apontam essa solução como sendo a mais conveniente. A jurisprudência é vacilante em tema de prevenção pela ação de asseguração de prova. Alguns julgados impõem a prevenção entendendo aplicável o art. 800, CPC (STJ, 3ª Turma, REsp /SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em , DJ , p. 305). Outros entendem inexistente prevenção, na medida em que a ação de asseguração já estará possivelmente extinta no momento da propositura da ação em que será eventualmente produzida a prova assegurada (STJ, 4ª Turma, AgRg na MC /RJ, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. em , DJ , p. 324). Outros, ainda, entendem existente a prevenção toda vez que há intervenção do juiz no feito para além da homologação da prova por exemplo, na nomeação de perito para asseguração de prova (STJ, 2ª Turma, REsp /SP, Rel. Min. Franciulli Netto, j. em , DJ , p. 245). 271

272 Jaqueline Mielke Silva As medidas cautelares poderão ser solicitadas para assegurar a eficácia de processos de natureza civil, comercial, trabalhista e em processos que objetivem a reparação civil de dano decorrente de crime (art. 2º do Decreto n /98). O juiz (ou tribunal) competente para o processo principal será o competente para o processo cautelar, e se o valor a ser resguardado estiver em Estado estrangeiro, signatário do tratado, solicitará que ali se efetive a medida. A admissibilidade da medida cautelar será regulada pelas leis e julgada pelos juízes ou tribunais do Estado requerente (art. 5º), mas o seu cumprimento e suas contracautelas e respectivas garantias serão processadas pelos juízes ou tribunais do Estado requerido, segundo suas leis (art. 6º). Da mesma forma, as modificações de cautela, sua redução, substituição, sanções em razão de litigância de má-fé e questões de domínio e outros direitos reais serão da competência dos juízes e tribunais do Estado requerido (art. 7º). A solicitação da medida será feita mediante exhortos (também denominados pelo decreto cartas rogatórias art. 18), que serão transmitidos pela via diplomática ou consular, por meio da respectiva Autoridade Central, ou pelas partes interessadas. A competência para o cumprimento dos exhortos será da Justiça Federal (art. 109, III e X da Constituição Federal); serão eles cumpridos independentemente de homologação ou exequatur da mais alta Corte Judiciária do estado requerido, cabendo ao juiz competente do estado solicitado providenciar o cumprimento. A recusa ao cumprimento do exhorto somente poderá ter por fundamento sua absoluta improcedência, nos termos do protocolo, ou se for o pedido manifestamente contrário à ordem pública nacional, ocasião em que a rogatória será devolvida ao juízo rogante. Julgado definitivamente o processo cautelar, o valor relevante para o processo principal protegido permanecerá no estado requerido e a sentença proferida no processo principal somente será cumprida no Estado requerido (para valer-se dos bens acautelados) depois de homologada por seu órgão jurisdicional competente Neste sentido, João Penio BURNIER JÚNIOR (In: op. cit., p. 73); 272

273 9 TUTELA DE URGÊNCIA Requisitos da petição inicial Os requisitos da petição inicial das ações cautelares estão contemplados nos arts. 801 e 282, ambos do Código de Processo Civil, a seguir elencados: a) Autoridade judiciária a que é dirigida: este requisito se refere à competência para processar e julgar a ação cautelar; b) O nome, o estado civil, a profissão e a residência do requerente e do requerido: a ideia Carneluttiana de uma lide única é visível no art. 801, e está implícita neste requisito quando denomina de requerente e requerido os integrantes da relação processual, ao invés de denominá-los de autor e réu. Este requisito reflete a legitimação para a demanda cautelar. A legitimação natural para a demanda cautelar há de ser daquele que se diz titular do direito ou do interesse ameaçado. A legitimação passiva deve recair naquela que haja provocado ou seja, de alguma forma, responsável pelo estado perigoso. No tocante à legitimação de terceiros, Ovídio Araújo Baptista da Silva 51 observa que: [...] em resumo, se dermos legitimidade para o terceiro postular em ação cautelar, como autor, defendendo direito de terceiro seu devedor, teríamos de dar-lhe também legitimidade para a subsequente ação satisfativa que ao titular do direito protegido pudesse caber. Não cremos que o Código vá tão longe, em tema de legitimação extraordinária, a ponto de haver, através do art. 6, introduzido a ação sub-rogatória no Direito brasileiro. c) A lide e seu fundamento: Apenas as cautelares antecedentes ou preparatórias devem preencher esse requisito. A ratio essendi dessa exigência prende-se à instrumentalidade qualificada ou hipotética do processo cautelar, sustentada por Piero Calamandrei. De acordo com sua concepção, como já vimos, a ação cautelar pressupõe ordinariamente uma ação principal. Consequentemente, aquele que pretenda uma cautelar antecedente deverá demonstrar a plausibilidade da ação a ser proposta. Somente com o atendimento a esse 51 In: Processo Cautelar, p

274 Jaqueline Mielke Silva requisito é possível avaliar a legitimidade, o interesse e a plausibilidade do direito a ser acautelado 52. É naturalmente dispensável esse requisito nas cautelares incidentes, pois a ação principal já está em curso. O requisito também não se aplica nas ações cautelares autônomas (v.g. ações de asseguração de prova) e nas chamadas pseudo cautelares, na linguagem de Ovídio Baptista da Silva ou cautelares satisfativas, nas palavras de Calamandrei (v.g. ação de separação de corpos). d) A exposição sumária do direito ameaçado e o receio da lesão: tratam-se dos requisitos essenciais para a concessão da tutela cautelar, que se traduzem no fumus boni juris e no periculum in mora. Convencer o juiz da probabilidade quanto à procedência do direito ameaçado nada mais representa que aludir ao fumus boni iuris, constituindo este pré-avaliação provisória de direito alegável pelo autor em ação principal. Nem se pode dizer que o juiz, ao apreciar a provável procedência do direito ameaçado, estaria prejulgando o mérito do processo principal, pois um entendimento dessa ordem significaria desconhecer a intrínseca diversidade entre a sentença cautelar e a sentença de conhecimento; esta juízo de realidade e de certeza, aquela juízo de verossimilhança 53. Já o periculum in mora, corresponde ao risco de dano iminente, consoante já abordado no ítem , Capítulo I, Parte I. e) As provas que serão produzidas: tendo em vista tratar-se a tutela cautelar de tutela jurisdicional de simples aparência, não há que se falar na busca exauriente da verdade. Em razão dessa circunstância, deve-se admitir no processo cautelar algumas provas unilateralmente produzidas (v.g. declarações unilaterais, periciais unilaterais etc.). Até porque, na instrução do processo cautelar, será possível a ouvida das testemunhas, assim como a realização de prova pericial. Entre tutelar o direito da parte ou sacrificá-lo, a primeira opção deve ser a escolhida Nesse sentido: Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Processo cautelar. São Paulo: Leud, 2002, p. 89); Luiz ORIONE NETO (In: Tratado das medidas cautelares: teoria geral do processo cautelar, Col. Tratado das Medidas de Urgência. São Paulo: Lejus, 2000, Vol. III, Tomo I, p ); Sérgio SHIMURA (In: Arresto cautelar, p São Paulo: Revista dos Tribunais, Estudos de direito de processo. Enrico Tullio Liebman, vol. 23). 53 Neste sentido: Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Arrolamento Cautelar, Ajuris 40/ Ao tratar do tema, leciona Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo 274

275 9 TUTELA DE URGÊNCIA f) O pedido, com as suas especificações: em que pese a omissão do art. 801 do Código de Processo Civil, o mesmo necessariamente deverá constar na inicial cautelar em atenção ao princípio da inércia (arts. 2 e 128 do Código de Processo Civil). Uma questão é relevante de ser destacada, e diz respeito até que ponto o pedido formulado pelo autor vincula o magistrado, tendo em vista o princípio da fungibilidade das medidas cautelares. No âmbito do processo cautelar vige o princípio de que o magistrado pode conceder medida cautelar diversa daquela que tenha sido pleiteada, quando as circunstâncias do caso recomendarem a concessão de provimento diverso daquele que o autor formulara. Todavia, este princípio deve observar outros, que também norteiam o direito processual civil; como, por exemplo, o princípio da estabilidade da demanda. Assim, entendemos que a concessão de provimento diverso será possível sempre que não houver alteração da causa petendi. Sem qualquer dúvida, a fungibilidade apresenta limites. g) O requerimento para citação do réu: trata-se de requisito essencial da petição inicial, previsto no art. 282 do Código de Processo Civil, cuja finalidade é a complementação da relação processual. h) Valor da causa: Nos termos do art. 258 do CPC, a toda a causa será atribuído um valor certo, ainda que não tenha conteúdo econômico Civil, p. 139): Ora, se esta situação probatória pode atingir grupos inteiros de casos, como mostra Gerhardt, mesmo em procedimentos comuns ordinários, que dizer da mesma exigência de redução do módulo da prova, quando o julgador tiver de enfrentar-se com um pedido de liminar cautelar? As próprias solenidades e o ritualismo complicado, próprio do procedimento probatório, aqui terão de ceder caminho para formas mais ágeis e efetivas de procedimento, pois sua excepcionalidade demanda padrões diferentes da ordinariedade, precisamente por não tolerar a demora na aquisição do material de convencimento judicial. De modo que o regresso às formas procedimentais comuns para a colheita da prova provocaria a total e irremediável negação do que se poderia considerar, para empregar uma vez mais a sugestão de TOMMASEO, a ética da jurisdição de urgência, que impõe o sacrifício do improvável como única alternativa para a proteção daquilo de que apresente ao julgador com um grau mais elevado de verossimilhança. A) Diversamente do que ocorre no procedimento comum, é perfeitamente adequada e legítima, na jurisdição de urgência, seja cautelar ou satisfativa a pretensão que por meio dela se veicula, a tomada de depoimento pessoal de incapazes, impedidos e suspeitos de depor (art. 404 do CPC). Elas prestarão depoimento naturalmente sem prestar compromisso e o julgador avaliará livremente o valor das informações que as mesmas prestarem em juízo. B) É igualmente admissível, no procedimento cautelar, oferecimento de declarações escritas firmadas por terceiros, informando sobre os fatos relevantes para a causa, possibilidade esta, como se sabe, vedada no procedimento comum. C) É legítima também a prova formada por pareceres e laudos, informalmente elaborados por especialistas, que substituam, na emergência, os exames periciais de longo e complicado procedimento, desde que, concedida que seja a medida liminar, fique assegurado ao demandado o direito ao contraditório, ensejando-se-lhe a oportunidade de contraprova. 275

276 Jaqueline Mielke Silva imediato. O valor da causa na ação cautelar não se identifica com o valor da causa na ação principal. O valor da causa, na ação cautelar, deve ser estimado com base na afirmação de probabilidade de dano, sendo na maior parte dos casos o valor mínimo para o recolhimento de custas Liminar cautelar O regramento das liminares cautelares é diverso do estabelecido para outras liminares (como, por exemplo, as liminares possessórias que exigem justificação prévia). As possibilidades de concessão das liminares cautelares são as seguintes: a) liminares sem a ouvida da parte contrária (inaudita altera parte) e sem justificação prévia: nesta hipótese não há que se falar em violação ao princípio do contraditório, tendo em vista que estamos diante do chamado contraditório diferido ou postergado. O réu não é ouvido antes, mas após a concessão da liminar. Esta primeira hipótese de concessão deve ser utilizada sempre que a urgência determinar nas hipóteses de risco de perecimento do direito e também nos casos em que, se ouvido o réu, o mesmo possa frustrar a execução da medida Segundo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, o valor da causa nas ações cautelares deve corresponder ao benefício econômico oriundo do acolhimento do pedido cautelar (STJ, 2ª Turma, EDcl no REsp , Rel. Min. Eliana Calmon, j ). É irrelevante para a fixação do valor da causa na ação cautelar o valor do direito que se pretende assegurar com a sua propositura (STJ, 1ª Turma, AgRg na Pet /CE, Rel. Min. Francisco Falcão, j. em ). Já se decidiu, entretanto, que no caso de cautelar com a finalidade de impedir a configuração da mora e a cobrança dos respectivos encargos, deve o valor da causa refletir a soma desses valores (STJ, REsp /SP, Rel. Min. Milton Luiz Pereira, ). 56 Parte da doutrina interpreta literalmente o art. 804 do CPC e entende, de forma restritiva, que a única hipótese em que o juiz pode deferir a liminar inaudita altera parte é quando ocorre a possibilidade de ineficácia da medida, por atitude omissiva ou comissiva do réu. Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, v. V., p. 134), segue este entendimento. Em sentido contrário, com razão, leciona Luiz ORIONE NETO (In: Ob. cit., p. 161), verbis: Não nos afigura correto esse entendimento. A melhor exegese do art. 804 do CPC não se coaduna com a interpretação literal, mas sim com aquele que amplia o seu âmbito de aplicação. Em primeiro lugar, entendemos que a ineficácia da medida não precisa estar umbilicalmente relacionada a uma atitude omissiva ou comissiva do réu. Basta que o ato de citá-lo importe numa demora que acabe por causar prejuízos que ponham em risco a efetivação da própria medida cautelar. No mesmo sentido, J.J. CALMON DE PASSOS (In: Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, Vol. X, Tomo I, p ); Betina Rizzato LARA (In: Liminares no processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 87). 276

277 9 TUTELA DE URGÊNCIA b) liminares concedidas após justificação prévia em audiência, sem a ouvida da parte contrária: a audiência e justificação prévia será designada sempre que for necessária a ouvida de testemunhas para a concessão da liminar. O Código de Processo Civil, no art. 804, não estabelece como vai se desenvolver esta audiência. Entendemos que não possa ser seguido o regramento previsto no art. 454 do Código de Processo Civil, por não se tratar de audiência de instrução e julgamento. A finalidade exclusiva desta audiência é oportunizar ao autor a possibilidade de provar os fatos que sustentam o pedido de liminar. Em razão dessa circunstância, e até em nome da urgência, entendemos não ser necessária a convocação do réu 57. Por outro lado, se o réu tiver ciência por qualquer outro meio de que existe uma audiência designada, obviamente que não se poderá impedir a sua participação. A dúvida que se levanta é: qual é a extensão da participação do réu na audiência de justificação prévia? Poderá ele levar testemunhas? Poderá inquirir as testemunhas do autor, e também contraditá-las? Entendemos que o réu não poderá levar testemunhas por se tratar de uma audiência realizada exclusivamente para que o autor tenha a possibilidade de deferimento da liminar. O réu, posteriormente, na audiência de instrução e julgamento, poderá ouvir as testemunhas que entender necessárias ao deslinde da controvérsia. Possibilitar a inquirição de testemunhas do réu na audiência de justificação prévia poderia implicar na antecipação da instrução, o que não é recomendável, já que sequer apresentação de contestação houve nesta fase processual 58 Todavia, ao réu deve ser possibilitada tanto a contradita, quanto a inquirição de testemunhas do autor. 57 Neste sentido, Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 754), verbis: essa justificação, a princípio, é feita sem a presença do réu. 58 Ao tratar do tema, refere Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil., p. 145): Resta saber se o demandado poderá, neste momento processual, juntar documentos em contraprova. Se pretendêssemos manter-nos fiéis aos princípios, teríamos de responder negativamente a esta indagação. Contudo, a natureza especial do processo cautelar sugere-nos conclusão oposta. É certo que a audiência para substanciar o direito à obtenção da liminar é assunto que diz respeito apenas ao autor, não cabendo ao demandado o direito de servir-se deste procedimento liminar para defender-se ou produzir contraprova. Apesar de tudo, casos haverá, perfeitamente imagináveis, em que a exibição de documentos em contraprova, neste momento trazidos aos autos pelo réu, poderá ser igualmente de interesse para o próprio autor, uma vez que essas liminares, em nosso sistema, são sempre concedidas a risco do requerente, que fica sujeito a indenizar os prejuízos porventura causados a outra parte. Se o documento em causa for capaz de esclarecê-lo sobre algum ponto decisivo da causa, demovendo-o de prosseguir na demanda, não vemos como recusar-lhe um tal benefício. 277

278 Jaqueline Mielke Silva c) liminares concedidas após a ouvida da parte contrária e após a audiência de justificação prévia: nesta hipótese o contraditório é prévio. O réu será ouvido antes da concessão da liminar. Esta modalidade de concessão é recomendável sempre que for possível aguardar, e naqueles casos em que a ouvida do réu não inviabilizar a execução da medida. A liminar proferida por juiz incompetente deve prevalecer até que o juízo competente se pronuncie a respeito. Ou seja, apresentada exceção de incompetência, a mesma não suspende a eficácia da tutela cautelar concedida. Não é demasiado referir que a tutela cautelar conserva a sua eficácia durante o período de suspensão do processo, nos termos do art. 807 do CPC. Segundo J.J. Calmon de Passos 59, a regra da competência deve ceder ao risco de dano irreparável. Por outro lado, a apresentação da exceção de incompetência não elimina a possibilidade de concessão da tutela cautelar; pois, durante o período de suspensão do processo, em que pese ser defeso a prática de qualquer ato processual, nada impede a realização de atos urgentes, a fim de evitar a prática de ato ilícito ou dano irreparável, nos termos do art. 266 do CPC 60. Em se tratando de incompetência absoluta, os atos decisórios serão nulos, nos termos do art. 113, 2º do CPC, remetendo-se os autos ao juízos competentes. Em tese esta regra implica na revogação automática da tutela cautelar eventualmente deferida. Porém, como o desaparecimento da tutela cautelar sujeita o litigante a grave dano, [...] há racionalidade e legitimidade em se manter eficaz a tutela até a sua necessidade ser aferida pelo juízo competente. Nesse caso, o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV, CRFB) justifica a manutenção da eficácia da tutela concedida pelo juiz absolutamente incompetente, por curso período que deve ser controlado pelo juiz e pelas partes -, até que o juiz competente se pronuncie sobre os pressupostos da tutela cautelar antes deferida. No caso de decisão que concede ou indefere o pedido de liminar, indubitavelmente o recurso cabível é o de agravo de instrumento, tendo 59 Ver Comentários ao Código de Processo Civil. v. VIII, p Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 747) 278

279 9 TUTELA DE URGÊNCIA em vista a incompatibilidade do agravo retido, em razão da possibilidade de dano irreparável. O prazo para a interposição do agravo contra a decisão que concede a liminar conta-se da data da juntada aos autos do mandado de efetivação da tutela cautelar Caução contracautela e substitutiva Em qualquer das hipóteses acima contempladas (item 2.8), o magistrado poderá 62 determinar a prestação de caução inclusive ex officio -, destinada a ressarcir eventuais danos que a medida possa vir a causar ao réu 63. Esta caução poderá ser real ou fidejussória, sendo sempre facultativa, o que se conclui a partir do verbo poderá presente no art. 804 do Código de Processo Civil 64. A preocupação com o tema é antiga, e sobre ela se manifestou Giuseppe Chiovenda 65, referindo que 61 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp /PR, 4ª Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, ): Nos termos do parágrafo único, inc. II, do art. 802, CPC, conta-se o prazo da juntada aos autos do mandado da execução da medida cautelar, quando concedida liminarmente ou após justificação prévia. Se esse é o sistema da contagem dos prazos, não se justifica que, em se tratando de cautelar concedida liminarmente, e sem justificação prévia, o prazo para agravar tenha curso da data da intimação e não da juntada aos autos do mandado devidamente cumprido. 62 A imposição da prestação da caução contracautela é uma faculdade ao juiz. Neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp /4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j ) 63 Vide art. 811 do Código de Processo Civil. 64 Na Itália, o sistema é semelhante ao brasileiro. Neste sentido, Luigi Paolo COMOGLIO, Corrado FERRI e Michele TARUFFO (In: Lezioni sul processo civile. II. Procedimenti speciali, cautelari ed esecutivi.bologna: Il. Mulino, 2005, p. 59), verbis: Non va peraltro dimenticata nella descrizione dei profili strumentali del provvedimento che accolga la domanda cautelare (oppure di quello che confermi o modifichi un precedente provvedimento di pari contenuto) la possibilita che il giudice, valutata ogni circostanza, imponga anche d ufficio all istante una cauzione per l eventuale risarcimento dei danni a titolo di responsabilità aggravata ) art. 96, comma 2; art. 669 indecies). La cauzione che viene estesa a tutte le misure cautelari, sulla scia del previgente art. 674, limitato ai sequestri va prestata nelle forme prescritte dallo stesso giudice (art. 119, e art. 86 disp. Att), rappresentando una controcautela, cioè la garanzia di un équo contemperamento fra le esigenze di sollecita tutela di chi invoca la misura cautelare e le esigenze di difesa degli interessi patrimoniali di chi la subisce. 65 In: Instituições de direito processual civil. Tradução de Guimarães Menegale. São Paulo: Saraiva, 1969, Vol. 1; 1965, Vol. II, 11, n. 82, p

280 Jaqueline Mielke Silva [...] para garantir a reparação dos danos àquele a quem se haja interrompido ou reduzido a fruição de um bem em virtude de uma medida provisória, pode esta fazer-se acompanhar de uma medida de contracautela, isto é, a ordem ao autor de prestar caução. O fundamento nuclear do instituto da caução contracautela encontra guarida no princípio da igualdade entre as partes, num tipo de procedimento que necessariamente pressupõe a desigualdade inicial entre elas. Sobre fundamentar-se a contracautela no princípio da igualdade, instrui Ramiro Podetti 66, La contracautela, que se funda en el principio de igualdad, reemplaza, en cierta medida, a la bilateralidad o controversia, pues implica que la medida cautelar debe, ser doble, asegurando al actor un derecho aún no actuado y al demandado la efectividad del resarcimiento de los daños, si aquel derecho no existiera o no llegare a actualizarse. Não é demasiado referir que a concessão liminar da medida cautelar não dispensa a cognição sumária (fumus boni juris e periculum in mora), mesmo que a caução contracautela seja prestada 67. Em que pese a caução contracautela facilitar a concessão da liminar, ela não pode ser elevada à condição de super pressuposto, de modo a dispensar os demais. Por outro lado, é certo que a prestação de caução pelo autor tranquiliza o magistrado por ocasião da concessão da medida liminar. Todavia, ela jamais poderá ser uma regra, no sentido de sempre ser exigida. E isto por uma razão muito simples: a situação econômica e social do Brasil faz com que a maioria dos brasileiros não tenha condições financeiras de prestar caução. Torná-la obrigatória significaria inviabilizar o acesso à tutela cautelar à maioria da população brasileira In: Tratados de las medidas cautelares: derecho procesal civil comercial y laboral. Buenos Aires: Ediar, 1956, n. 20, p Neste sentido Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Processo Cautelar, p. 157). 68 Segundo Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, p. 247), a exigência de caução prévia, como garantia contra os danos que o requerido possa vir a sofrer em virtude da liminar, só cabe nas ações cautelares jurisdicionais, de natureza ou de reflexo patrimonial. Não tem sentido, a toda evidência, exigi-la nas cautelas voluntárias e nas jurisdicionais concernentes a relações de família e a direitos personalíssimos, enfim, nos casos despidos de conotação patrimonial, desde que o cumprimento da liminar não provoque dano dessa natureza. Se, acaso, a vistoria ad perpetuam, que é cautela voluntária, causar dano ao requerido, a questão resolver-se-á na ação principal, ou em ação própria de ressarcimento, mas a vistoria como tal, não pode ficar condicionada à caução prévia. 280

281 9 TUTELA DE URGÊNCIA No tocante ao valor da caução, deverá ela ser fixada de acordo com os danos que possam ser causados pela efetivação da medida cautelar 69. A discricionariedade judicial está presente por ocasião de sua fixação. É possível a substituição da providência cautelar eventualmente deferida quando existir outra igualmente idônea, porém menos gravosa, nos exatos termos do art. 805 do CPC. Não é demasiado referir que a regra da menor restrição incide apenas depois de adotada a regra do meio idôneo. Não há como indagar se uma providência cautelar causa menor restrição antes de se verificar se essa é realmente idônea à tutela cautelar. Não se pode pretender menor restrição à custa da idoneidade da medida 70. O preceito legal continua a exigir a ocorrência de dois requisitos: a) adequação e b) suficiência da medida. Por adequação entende-se a disposição inata da caução para desempenhar garantia compatível com a providência anteriormente decretada, ou seja, com a mesma serventia substancial. Daí falar-se em fungibilidade das medidas cautelares. Fungível é aquilo que pode ser substituído por outro. Assim, v.g., a caução de dinheiro pode ser substituída por coisa móvel (automóvel, sacas de soja etc.) ou coisa imóvel (terreno, apartamento etc.) porque passível de converterem-se em pecúnia. Todavia, se a providência decretada for de natureza infungível v.g., alimentos provisionais -, não pode ser substituída por caução. Por suficiência da caução entende-se a sua expressão quantitativa, isto é, o volume apto para, em concreto, cobrir o valor do risco de prejuízo acobertado. Assim, nas medidas de natureza econômica, a caução é sempre adequada, mas cumpre também seja consubstanciada em valor suficiente 71. Pode-se ainda indagar: se concedida a liminar (v.g. arresto, sequestro, busca e apreensão, depósito de bens) e o requerido ofertar caução, o juiz fica obrigado a substituir a medida pela prestação de caução? 69 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p ). 70 Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp /GO, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. em ) 71 Neste sentido: Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Curso de Direito Processual Civil, 1.035, p. 528) 281

282 Jaqueline Mielke Silva Na doutrina, Sérgio Sahione Fadel 72 entende que a substituição, uma vez fundada em caução firme, é obrigatória 73. Em posição contrária, entendemos com razão Ovídio Araújo Baptista da Silva 74, que refere não se poder falar em direito subjetivo do réu, quando o art. 805 alude ao verbo poderá, indicando que ao juiz se reserva o mesmo arbítrio judicial inerente à cognição cautelar. Mesmo que a caução seja adequada e suficiente, ao juiz fica facultado conceder ou não a substituição da medida cautelar, sempre, é claro, justificando a sua decisão, visto que discricionariedade não se confunde com arbitrariedade absoluta, isto é, por ser ato jurisdicional, mister seja convenientemente motivado Citação e resposta do réu O princípio do contraditório também é preservado no processo cautelar 75. Este princípio vem expressamente contemplado no art. 802 do Código de Processo Civil, verbis: O requerido será citado, qualquer que seja o procedimento cautelar, para, no prazo de cinco (5) dias, contestar o pedido, indicando as provas que pretende produzir In: Código de Processo Civil Comentado. Rio de Janeiro: Konfino, 1974, Tomo IV, p No mesmo sentido: Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII, Tomo I, n. 64, p. 262) 74 In: Curso de Processo Civil, p Nas medidas só procedimentalmente cautelares ou só topologicamente cautelares, como protestos, notificações e interpelações (art. 871), protesto e apreensão de título (art. 882) e justificação (art. 865), não há lugar para contestação (Neste sentido, Luiz ORIONE NETO. Op.. cit., p. 154) 76 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil, p. 115), ao tratar da contestação nos procedimentos cautelares, leciona: O cabimento de contestação em todos os procedimentos cautelares ou é falso ou é no mínimo controvertido. Se admitirmos como verdadeiras ações cautelares os protestos, notificações e interpelações (arts ) e as justificações (arts ), o princípio é falso, posto que o próprio legislador que o consagrara no art. 802 suprime-o em todas estas hipóteses (arts. 865 e 871). Para os que, por uma razão ou outra, recusem a atribuição de natureza cautelar a essas medidas, ainda restaria controverso o princípio para as ações de asseguração de prova (arts ), sendo muitos os juristas que entendem incabível contestação nestes procedimentos, como, por exemplo, Galeno Lacerda (Comentários, n. 51) e Carlos Alberto Álvaro de Oliveira (ob. cit., n. 149, p. 350). Em sentido contrário, no entanto, entendendo cabível a contestação nas ações de asseguração de provas, Theodoro Júnior (Curso..., V. 2, n ). 282

283 9 TUTELA DE URGÊNCIA A citação cumpre-se de acordo com os artigos 213 a 233 do Código de Processo Civil, sempre que houver compatibilidade com o procedimento cautelar Ação declaratória incidental e Reconvenção Tendo em vista que um dos princípios que norteia o processo cautelar é o da celeridade, entendemos não ser cabível a apresentação de reconvenção 78. E pela mesma razão que sustentamos não caber a reconvenção no processo cautelar, entendemos não ser admissível a ação declaratória incidental. Ademais, em sede de processo cautelar, os provimentos são proferidos com base em juízo de verossimilhança e os pro- 77 O jurista Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, p. 230) indaga se a citação nas medidas cautelares provocará os mesmos efeitos da citação para as ações principais? Segundo ele, a resposta se revela complexa, verbis: Litispendência somente será admissível entre processos cautelares. Não se pode reiterar medida assecuratória na pendência de outra com o mesmo objetivo, embora sob denominação diversa. Se a iniciativa parte de mais de um interessado, em processos separados, não existirá litispendência (salvo solidariedade), mas poderá haver conexão entre ações cautelares, ou duplicidade, p. ex., de vistorias sobre o mesmo objeto, hipóteses em que reunir-se-ão os processos perante o juiz prevento. Claro está que jamais haverá litispendência entre as ações cautelar e principal. O efeito de tornar litigiosa a coisa não pode provocar a citação para as medidas cautelares. Para as voluntárias, seria absurdo, porque por definição excluem a litigiosidade. Para as jurisdicionais, porque não é a citação que, nelas, torna litigiosa a coisa, e sim a decretação da medida que poderá ocorrer até antes da citação. Para a constituição em mora, há as medidas específicas da interpelação, referidas no parágrafo único do art. 397 do Código Civil de A interrupção da prescrição, último efeito da citação indicado pelo art. 219, ocorre em todas as citações para as ações cautelares jurisdicionais porque nestas já se acha manifesto o interesse do autor em propor a ação principal. Quanto à medidas voluntárias, a citação para protesto possui efeito interruptivo específico (arts. 172, do Código Civil de 1916 e 202, II, do Código Civil e 2002). Em relação às demais, como as antecipações de prova, admite-se idêntica eficácia, se clara a intenção do requerente em mover a demanda posterior, hipótese em que essa intenção equivale a autêntico protesto. Não nos parece certa a Súmula 154 do Supremo, em seu enunciado conciso e radical: Simples vistoria não interrompe prescrição. 78 Neste sentido, Luiz ORIONE NETO (In: Op. cit., p. 155), verbis: Não cabe reconvenção em ação cautelar, pelo simples motivo de que a reconvenção é ação principal contrária a outra principal (art. 315), e a responsabilidade prevista no art. 811 dispensa pedido reconvencional. Se o réu quiser obter medida cautelar de seu interesse, deve propor outra ação cautelar, caso em que, se houver conexão, serão reunidas para julgamento conjunto. Com a mesma opinião: Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, T. I, n. 51, p. 232; Humberto THEODORO JÚNIOR. Processo Cautelar, n. 92, p. 146; Sérgio SHIMURA, Arresto Cautelar, p. 289.Neste sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: AÇÃO CAUTELAR. PRETENSÃO DE BLOQUEIO DE VALORES RECEBIDOS. GARANTIA DA FUTURA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. PEDIDO RECONVENCIONAL. DESCABIMENTO. É manifestamente descabido o pedido de reconvenção em sede de ação cautelar, pois é incompatível com o procedimento especial próprio da demanda cautelar. Recurso desprovido. (Agravo de Instrumento Nº , Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 10/10/2007) 283

284 Jaqueline Mielke Silva vimentos proferidos na ação declaratória incidental são proferidos com base em juízo de certeza Contestação A contestação poderá versar tanto sobre questões de natureza processuais 80 v.g. ausência de pressupostos processuais, condições da ação quanto sobre o mérito da própria ação cautelar (inexistência de fumus boni juris ou do risco de dano iminente) 81. Nos termos do art. 802 do Código de Processo Civil, a contagem do prazo de contestação obedece dois diferentes princípios: a) conta-se o prazo da data da juntada aos autos do mandado de citação devidamente cumprido, ou; b) da data da juntada aos autos do mandado da 79 Neste sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: CAUTELAR INOMINADA. ENSINO PRIVADO. DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE DÍVIDA. AÇÃO DECLARATÓRIA INCIDENTAL. IMPOSSIBILIDADE. Trata-se de ação cautelar em que a cognição é sumária e limitada, tendo em vista que a finalidade do processo cautelar é assegurar o resultado útil da demanda principal. No caso dos autos, o objetivo era garantir a matrícula, evitando que o autor perdesse o semestre ou fosse reprovado por excesso de faltas. A questão relativa ao débito, portanto, é alheia ao pedido e à causa de pedir, devendo ser discutida em ação própria, não o sendo possível em sede de cautelar. Por este motivo, igualmente se mostra descabido o julgamento da ação declaratória incidental para declarar a inexistência de dívida, pois é matéria que refoge aos limites da lide. Apelo desprovido. (Apelação Cível Nº , Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 24/02/2005) 80 Luiz ORIONE NETO (In: Op, cit., p. 155), ao tratar do tema, refere: No concernente ao conteúdo da contestação, a matéria preliminar referida no art. 301 é passível de argüição. Nada a objetar se argua: I inexistência ou nulidade da citação; II incompetência absoluta; III inépcia da petição inicial; IV perempção; V litispendência; VI coisa julgada; VII conexão; VIII incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização; IX convenção de arbitragem; X carência de ação; XI falta de caução ou de outra prestação, que a lei exige como preliminar. Além das preliminares cabíveis constantes do art. 301, pertence especificamente ao objeto da contestação impugnar as condições e o mérito da tutela cautelar, mormente o fumus boni iuris e o periculum in mora, que integram a causa de pedir da ação cautelar. 81 Segundo Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil, v. 2, p. 116), a questão dos limites ou da extensão permitida à contestação na ação cautelar é problema que oferece dificuldades e gera seguidamente incompreensões que devem ser examinadas, e o serão sempre que o assunto emergir na exposição subseqüente. É possível, no entanto, dizer desde logo que a faculdade reconhecida ao demandado de argüir na contestação, todas as defesas que seriam cabíveis na eventual demanda satisfativa (principal) não corresponde, pelo lado do julgador, a uma análoga extensão do julgamento. Quer dizer, o réu poderá alegar e intentar demonstrar a improcedência da ação com as defesas próprias da ação principal, mas o julgador as receberá, exclusivamente como alegações e provas tendentes a demonstrar a inexistência de fumus boni júris, jamais como defesa idônea a comprovar a inexistência do direito cuja proteção se pretenda oferecer com a ação cautelar. 284

285 9 TUTELA DE URGÊNCIA execução da medida cautelar, quando concedida liminarmente ou após justificação prévia. A hipótese descrita na letra a, supra não apresenta maiores problemas, pois segue a mesma sistemática prevista no art. 241 do Código de Processo Civil. No tocante a ela, cabe indagar: no caso de litisconsórcio no polo passivo, o prazo conta-se da data da última juntada ou de cada juntada em separado? E se os réus tiverem mais de um procurador, o prazo de contestação será dobrado, nos termos do art. 191 do Código de Processo Civil? Entendemos aplicável ao processo cautelar o art. 241 na hipótese de litisconsórcio entre os réus, contando-se o prazo de contestação da data da última juntada 82. Do mesmo modo, entendemos que o prazo de contestação deva ser dobrado se os réus estiverem representados nos autos por diferente procuradores, pela simples razão de que a contestação é defesa. Logo, se o princípio geral na contagem de prazo que consta no Livro I foi aplicado pelo legislador no Processo Cautelar, não há razão para se afastar as demais regras relativas à contagem de prazo. No tocante à hipótese contemplada na letra b, supra, entendemos que o art. 802 não possa ser interpretado literalmente, pois há casos em que a execução da medida cautelar no caso de concessão liminar ou após justificação prévia se dá independentemente de cientificação do réu. Ora, enquanto não cientificado o réu da execução da medida cautelar, não há como fluir o prazo de contestação, sob pena de restarem violados os princípios do contraditório e da ampla defesa. Assim, entendemos ser indispensável a intimação do réu para que o prazo comece a fluir Neste sentido a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: Apelação cível. Ação cautelar de atentado. Preliminar de nulidade da sentença. Contestação apresentada pelos dois réus constando dos autos apenas comprovante de citação de um deles. Revelia afastada, posto que o prazo para defesa só inicia após a juntada do comprovante de citação de todos os réus, conforme o art. 241, III, do CPC. Preliminar acolhida. Sentença desconstituída. Unânime. (Apelação Cível Nº , Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em 10/03/2005) 83 Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, Tomo I, n. 51, p. 233), refere que só prevalece o prazo de cinco dias a contar da data da juntada do mandado executório da liminar, se o réu tiver ciência dessa execução, certificada pelo oficial de justiça, ato que equivale à citação. Sim, porque pode acontecer que a execução da liminar se cumpra através de precatória, sem ciência do réu, ou só com ciência de terceiro, como, p. ex., a busca e apreensão, sem ciência do réu, ou só com ciência de terceiro, como, p. ex., a busca e apreensão de bens em poder de terceiro, ou o bloqueio de conta bancária (ciência só do banco). A estas situações é que se refere o art. 811, II. Em tais hipóteses, o prazo para contestar só fluirá após a juntada do mandado 285

286 Jaqueline Mielke Silva Nos termos do art. 803 do Código de Processo Civil, não sendo contestado o pedido, presumir-se-ão aceitos pelo requerido, como verdadeiros, os fatos alegados pelo requerente (arts. 285 e 319); caso em que o juiz decidirá dentro em cinco (5) dias. A mesma disciplina adotada para o processo de conhecimento foi adotada pelo legislador para o processo cautelar, no tocante aos efeitos da revelia. Todavia, os efeitos da revelia que eventualmente se produzam no procedimento cautelar não atingem o processo principal 84. Ou seja, os efeitos da revelia são restritos à lide cautelar 85. Não é demasiado mencionar que se trata de presunção relativa e que sua adoção pelo Código não afasta o princípio da livre convicção do juiz, consagrado no art. 131 do Código de Processo Civil. Assim, contestada ou não a ação cautelar, de qualquer modo deverá o juiz examinar de ofício não só os pressupostos processuais, senão que a ocorrência no caso concreto das condições da ação e do mérito, especialmente o fumus boni iuris e o periculum in mora Intervenção de terceiros e litisconsórcio Sem qualquer dúvida, é possível o litisconsórcio no processo cautelar. Por exemplo, o autor de futura ação reivindicatória promove uma ação cautelar de sequestro do imóvel cuja restituição ele pretende obter na ação satisfativa. Se o imóvel pertencer a dois condôminos, ambos serão litisconsortes passivos na ação cautelar de sequestro. Todavia, mesmo que se entenda necessária a citação de litisconsortes necessários, poderá o juiz, antes de ordená-la, conceder a medida liminarmente, se o cumprimento da citação puser em risco o cumprimento da medida. de citação cumprido, e não a contar da anexação do mandado ou carta de execução liminar. No mesmo sentido: Luiz ORIONE NETO (Ob. cit., p. 156). Também: João Penido BURNIER JÚNIOR (In: Ob. cit., p. 115). 84 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (MC 4.891/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Laurita VAZ, j Neste sentido, o entendimento de J.J. Calmon de PASSOS (In: Ajuris 6/155): a regra do art. 803 diz respeito apenas aos fatos relativos ao próprio procedimento cautelar. 86 Neste sentido. Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, Tomo I, n. 53, p

287 9 TUTELA DE URGÊNCIA No tocante ao ingresso do assistente no processo cautelar, entendemos não haver qualquer restrição que possa impedir. Já no tocante às demais modalidades de intervenção de terceiros, entendemos não ser possível no processo cautelar, tendo em vista a urgência que é inerente ao mesmo. As modalidades de intervenção de terceiros implicam na postergação do procedimento, o que vai de encontro ao princípio da duração do processo dentro de um prazo razoável, previsto no art. 5, inciso LXXVIII da Constituição Federal Natureza da sentença que julga o processo cautelar Entendemos ser de mérito 88 a sentença que julga o processo cautelar. Trata-se de uma sentença com conteúdo eficacial preponderante mandamental 89. Segundo Pontes de Miranda 90, [...] na sua maior parte, essas medidas são objeto de mandamentos. De modo que se trata de ações mandamentais, que se exercem em processos cujo fito é a sentença de mandamento da sua medida de segurança, específica. Não se pense, portanto, em declaratividade preponderante, 87 Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Curso de Processo Civil, p. 122), ao tratar do tema, refere: (...) b) A denunciação da lide (arts ) não poderá ter lugar no processo cautelar, precisamente por não ser ela uma simples denúncia do litígio, mas, ao contrário, implicar na proposição simultânea de uma ação satisfativa que o denunciante formula contra o denunciado. Este seria, naturalmente, um resultado impossível no procedimento cautelar. c) É possível a intervenção de terceiro no processo cautelar através de uma ação incidental de embargos de terceiro, sempre que houver constrição ou ameaça de constrição de bens que este afirme pertencer-lhe, como se dá com o arresto, o seqüestro, a busca e apreensão, o arrolamento de bens e outras medidas cautelares análogas. d) cabendo, no entanto, embargos de terceiro no processo cautelar, não nos parece admissível, ao contrário, o ajuizamento da oposição (art. 56 do CPC), não obstante a reconhecida semelhança entre estes dois institutos. 88 A doutrina e a jurisprudência discutem se a sentença prolatada no processo cautelar deve ser proferida de forma independente, ou se pode ser proferida juntamente com a do processo principal. Após expor as vantagens (economia processual) e as desvantagens (segurança e adequação) de uma sentença uma para o feito principal e cautelar, conclui Márcio Louzada CARPENA (In: Do processo cautelar moderno. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p ) que a prolação de sentença una para ambos os feitos não é nula; contudo, se o julgador, em função disso, violar a regra do art. 458 do CPC, deixando de firmar relatório, analisar os fundamentos particulares de cada ação ou prolatar dispositivo a cada uma, ainda que de forma conjunta para ambas, nulidade clara se vislumbrará no decisum, passível de decretação inclusive ex officio pelo tribunal. 89 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Do processo cautelar, p. 182); Luiz ORIONE NETO (Op. cit., p. 200); Alexandre Freitas CÂMARA (In: Lições de Direito Processual Civil, 4 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2002, Vol. III, p. 70). 90 In: Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo VIII. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p

288 Jaqueline Mielke Silva nem em condenação, ou em constitutividade. De todos esses elementos tem a sua porção, sem que a medida de segurança suponha a condenação, ou sequer a declaração da relação jurídica, sem que constitua mais do que a situação processual transitória; e sem que seja execução forçada ou parte integrante de execução. O conteúdo da sentença cautelar será formado, no mínimo, por dois elementos: a ordem, que se traduz na eficácia mandamental e, em dose menos intensa, a declaração que está invariavelmente presente como parte de seu conteúdo. Frise-se que a declaração se dá em dose menos intensa, rarefeita, pois o juiz nada declara com força de coisa julgada, uma vez que seu julgamento baseia-se em juízo de verossimilhança do direito invocado pelo autor. Embora exista, sob o ponto de vista da função cautelar, acentuada diferença entre uma medida inominada, um arresto ou sequestro, ou entre estes e uma caução, no que diz respeito à estrutura interna de suas eficácias preponderantes, todas elas se assemelham. Tanto as medidas cautelares inominadas quanto as nominadas executam-se por meio de ordens que o magistrado, ao julgar procedente a demanda cautelar emite, determinando que o demandado faça ou deixa de fazer alguma coisa, tal como ocorre na ação de mandado de segurança que, como as cautelares, é também uma ação mandamental Coisa julgada e sentença cautelar A aptidão da sentença cautelar em produzir coisa julgada material não é pacífica na doutrina brasileira, muito pelo contrário, pois a maioria das vozes é pela tese negativa. A negativa de produção de coisa julgada material no processo cautelar é sustentada por Galeno Lacerda 92, verbis: Não há coisa julgada material na concessão, ou não, de medida cautelar, porque o juízo sobre as necessidades de segurança prévia não se estende à totalidade da lide à existência ou não da relação jurídica material e do direito subjetivo material alegado. Como afirma Liebman (In: Unità del procedimento cautelare. Revista cit. IX-I/253), o objeto da decisão 91 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. Curso de Processo Civil, Vol. 2, p In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, Tomo II, n. 73, 7ª ed., p

289 9 TUTELA DE URGÊNCIA cautelar e sua natural variabilidade e temporariedade excluem a duração de eficácia que caracteriza a coisa julgada material. Todavia, o autor ressalva: A tese vale, porém, apenas, para as cautelas jurisdicionais preventivas; não, de todo, para as repressivas. Nestas, p. ex., no atentado, no incidente de falsidade, embora não se julgue a demanda principal, há definitividade na respectiva sentença, porque desce aos fatos materiais da lide, para repô-los, ou não, no estado anterior. Ovídio Araújo Baptista da Silva 93 comunga com a tese da não produção da coisa julgada material, mas com o fundamento diverso. Inicialmente, o autor considera a sentença cautelar como sendo de mérito, como outra qualquer. Refere que o mérito reside no objeto do litígio, que é a sua res deducta; o que a distingue é que apenas assegura sem satisfazer o direito que se assegura. Para esse jurista, a inaptidão de a sentença cautelar alcançar a estabilidade peculiar à coisa julgada material advém da ausência de qualquer declaração sobre relações jurídicas que possam ser controvertidas na demanda cautelar. O juiz, ao decidir a causa, limita-se a afirmar a simples plausibilidade da relação jurídica de que o autor se afirma titular e a existência de uma situação fática de perigo. E sobre fatos não incide o selo da indiscutibilidade, própria da coisa julgada material. Não havendo declaratoriedade relevante sobre uma situação jurídica, o juiz da futura demanda poderá reapreciar livremente a mesma causa, e decidir de maneira diversa. Partilhamos do mesmo entendimento dos autores supracitados, com uma ressalva: se a extinção do processo cautelar se der pela prescrição ou pela decadência há que se falar em coisa julgada material, em razão do julgamento ser prolatado com base em juízo de certeza. Portanto, a sentença será apta à produção de coisa julgada material In: Curso de processo Civil, p Em sentido contrário, Luiz Edson FACHIN (In: Revista de Processo n. 49, p. 57), verbis: Em que pese, de um lado, a controvérsia doutrinária, e de outro, a opinião ainda dominante sobre a inexistência de coisa julgada no processo cautelar, há produção de coisa julgada nas efetivas cautelares (v.g. seqüestro, arresto, inominadas com esse caráter e sob a égide do art. 799 do CPC, arrolamento, e dependendo das circunstâncias na caução, busca e apreensão, exibição e produção antecipada de provas). No mesmo sentido, leciona Fritz BAUR (In: Tutela jurídica mediante medidas cautelares. Trad. De Armindo Edgar Laux. Porto alegre: Sérgio A. Fabris Editor, 1985, p. 126), verbis: Os princípios desenvolvidos no processo principal, concernentes ao efeito da coisa julgada 289

290 Jaqueline Mielke Silva Ação principal Nos termos do art. 806 do Código de Processo Civil, cabe a parte propor a ação, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data da efetivação da medida cautelar, quando esta for concedida em procedimento preparatório. O prazo de 30 (trinta) dias contemplado no dispositivo legal decorre da necessidade de evitar-se um constrangimento excessivo ao réu que, porventura, haja sofrido alguma medida cautelar constritiva que importe restrição à sua liberdade de disposição. Ou seja, o réu não poderia ter uma restrição em seus direitos ad infinitum. O prazo de 30 (trinta) dias para ajuizamento da ação principal evita que o procedimento cautelar preparatório se transforme em odioso instrumento de vindita; perpetuando, no tempo, eventuais danos causados ao demandado. Uma primeira indagação que se extrai a partir do dispositivo legal acima transcrito diz respeito ao significado da expressão efetivação da medida cautelar. Entendemos por efetivação o cumprimento da ordem contida no respectivo provimento jurisdicional que conceder a tutela cautelar. Ela ocorre a partir do momento em que o réu sofre restrições em seus direitos. A ordem contida na sentença que conceder a tutela cautelar será dirigida ao demandado se a medida cautelar consistir que o mesmo faça ou deixe de fazer algo, incapaz de ser realizado por terceiros (sempre que se trate de fazer ou não fazer infungíveis). Se, todavia, o órgão judicial, por meio de seus auxiliares, puder efetivar a medida cautelar, prescindindo de ato pessoal do demandado como se dá via de regra nas cautelares nominadas (v.g. arresto, sequestro, busca e apreensão) a sua efetivação será inteiramente cumprida pelo próprio órgão judiciário. Por outro lado, é imperioso referir que a efetivação da medida cautelar não se confunde com a execução. Se, por um lado, a execução forçada tende a tornar realizado o direito, as medidas cautelares apenas asseguram o direito. Por outro lado, a execução pressupõe a existência de uma sentença condenatória (art. 475-N do CPC), e a sentença no Processo Cautelar é de natureza mandamental. E não sendo efetivada a material de uma sentença denegatória, valem também para uma decisão que indefere o pedido de uma medida temporária, todavia, com a peculiaridade única de que o peticionário não fica tolhido pela preclusão de apresentar novos meios de prova que não pôde alegar no primeiro procedimento. 290

291 9 TUTELA DE URGÊNCIA medida cautelar, não há porque se falar no prazo de 30 dias para o ajuizamento da ação principal 95. No tocante à contagem do prazo de 30 dias, indaga-se: o termo inicial do prazo de 30 dias é o momento em que o oficial de justiça torna efetiva a medida, ou do instante em que realizada a diligência, dela intima o requerente, ou da data da juntada aos autos do mandado devidamente cumprido? Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva 96, o prazo de 30 dias há de correr a partir do momento em que a parte toma ciência formal da juntada aos autos do mandado de execução da medida cautelar devidamente cumprida. Todavia, entendemos que o prazo de 30 (trinta) dias começa a fluir a partir do momento em que o autor teve ciência da data da efetivação da medida, 97 e não a partir da data da juntada do mandado O Superior Tribunal de Justiça (REsp /DF, 1ª Turma, Rel. Min. Garcia Vieira, ), já decidiu que se a tutela cautelar não é deferida liminarmente, o ônus de propor a ação principal somente aparecerá se a tutela for concedida pela sentença cautelar. 96 In: Do Processo Cautelar, p Ao tratar do tema, refere Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII, Tomo I, p. 276), verbis: A primeira questão suscitou dúvida, principalmente no início da vigência do Código de 1939, logo superada, pela quase unanimidade da doutrina e da jurisprudência, no sentido de que a simples concessão da liminar já importa ordem capaz de tornar efetiva a medida. Com efeito, cumprido o mandado inicial, os bens se subtraem ao poder de disposição do réu, a coerção se torna atuante, e é exatamente essa situação que não pode permanecer se o autor não instaurar o processo principal no prazo do art. 806, nas hipóteses de incidência desse dispositivo. 98 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL. MEDIDA CAUTELAR. PRAZO PARA AJUIZAMENTO DA AÇÃO PRINCIPAL DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. CPC, ARTS. 806 E 808. CIÊNCIA DA LIMINAR. DATA DA ASSINATURA DO TERMO DE CAUÇÃO. I. Deferida a liminar de sustação de protesto em despacho que determinou, concomitantemente, a prestação da caução respectiva, a realização desta, mediante o oferecimento da garantia e a lavratura do termo próprio configuram a ciência da autora cautelar sobre a efetivação da aludida liminar, daí fluindo o prazo de trinta dias para o ajuizamento da demanda principal, aqui inobservado. II. Liminar tornada sem efeito, corretamente, pelo Tribunal estadual, porém determinado o processamento da cautelar, em consonância com o entendimento firmado pela 2ª Seção do STJ (REsp n /RS, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, julgado em ). III. Recurso especial não conhecido. (Resp , Quarta Turma, Min. Aldir Passarinho Júnior, ) PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA. TERMO A QUO PARA A PROPOSITURA DA AÇÃO PRINCIPAL. DATA DA CIÊNCIA AO AUTOR DO CUMPRIMENTO DA MEDIDA. CPC, ART EXEGESE. ENTENDIMENTO DA TURMA. ARRESTO. REQUISITOS. PRECEDENTES. CPC, ART RECURSO DESACOLHIDO. I - Nos termos do posicionamento da Turma, o prazo para a propositura da ação principal conta-se, em princípio, da data em que o autor teve ciência da efetivação da medida. II - Considerando que a medida cautelar de arresto tem a finalidade de assegurar o resultado prático e útil do processo principal, é de concluir-se que as hipóteses contempladas no art. 813, CPC, não são exaustivas, mas exemplificativas, bastando, para a concessão do arresto, o risco de dano e o perigo da demora. (REsp Rel. Min. Sálvio de 291

292 Jaqueline Mielke Silva Outra questão a ser levantada é: como contar o prazo se a diligência comportar o cumprimento fracionado em vários atos processuais distintos, como por exemplo, o caso de um arresto que deva ser realizado em várias comarcas, para as quais tenham sido expedidas diversas cartas precatórias? Novamente Ovídio Araújo Baptista da Silva 99 observa que: [...]a solução só pode ser uma: ter-se-á por efetivado o arresto a contar da juntada do último mandado aos autos, ainda que o arresto determinado por precatória se tenha tornado impossível por inexistência de bens na comarca, ou nas comarcas correspondentes 100. Entendemos que o prazo previsto no art. 806 é de natureza processual, sendo, portanto, peremptório. É inaceitável a tese que sustenta ser o prazo do art. 806 à semelhança dos prazos decadenciais insuscetível de ser interrompido, prorrogado ou mesmo suspenso 101. Os critérios de direito material, pertinentes à prescrição e à decadência, não são adequados à disciplina dos prazos processuais. Sem dúvida, o prazo do art. 806 não poderá ser interrompido assim como se interrompem os prazos prescricionais, mas isso não autoriza concluirmos que, não sendo prescricional, o prazo se deva sujeitar rigorosamente à disciplina dos prazos de decadência e, como tais, incapazes de serem suspensos 102. Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, ) 99 In: Do Processo Cautelar, p Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (EResp /SP. Rel. Min. Ari Pargendler, ), verbis: Liquidação extrajudicial. Arresto. Ação Principal. Decadência. Enquanto não cumprido integralmente o mandado de arresto dos bens dos administradores da empresa liquidanda, não flui para o Ministério Público o prazo de decadência do direito de promover a ação principal. Por isso, não se pode cogitar da cessação da eficácia da medida cautelar, contado o tempo da efetivação parcial da ordem. 101 Ao tratar do tema, refere Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII, Tomo I, p. 275): O prazo do art. 806 é peremptório, de decadência. Escoado sem a propositura da ação principal pelo autor, caduca a medida, nas cautelas sobre as quais recai o dispositivo legal. O caráter peremptório impede seja reduzido ou prorrogado pelas partes, ainda que de acordo, nos termos do art Isto não significa, contudo, que as causas legais de suspensão previstas no Livro I, Título V, Capítulo III, do Código, a ele não se apliquem, assim como as demais regras relativas à fluência e contagem dos prazos fatais. Assim a superveniência de férias provoca a suspensão. Permitese também a prorrogação nas hipóteses autorizadas pelo Código: dificuldade de transporte (art. 182), calamidade pública (art. 182, parágrafo único) e justa causa (art. 183 e ). Em caso de direito eventual, sujeito à condição suspensiva ou resolutiva, vige o disposto no art. 130 do Código Civil de 2002, em conseqüência de o prazo do art. 806 só começar a fluir a partir do advento da condição. 102 Neste sentido: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA (In: Do Processo Cautelar, p ) 292

293 9 TUTELA DE URGÊNCIA Como se trata de um prazo com natureza processual, o mesmo se suspende no recesso forense, assim como se prorroga no caso do dies ad quem cair em final de semana ou feriado 103. Todavia, sendo apresentada exceção de incompetência, o prazo para a propositura da ação principal não se suspende 104. Ovídio Araújo Baptista da Silva 105, ao tratar do tema refere: Tendo em vista esses princípio e sua própria natureza, costuma-se dizer que o prazo de 30 dias estabelecido pelo art. 806 é fatal e improrrogável. Mesmo assim a superveniência de férias forenses o suspende (cf. nosso As ações cautelares, cit., p. 143; Galeno Lacerda, Comentários, 382), ou quando haja suspensão do processo cautelar em virtude de alguma causa prevista pelo art. 265, incisos I, II e V, do Código, bem como nos casos em que o juiz determine a suspensão do processo segundo o art. 13. Se há obstáculo judicial (art. 180), igualmente suspende-se o prazo (Marcos Afonso Borges, Comentários, 21). É inaceitável a tese que sustenta ser o prazo do art. 806 à semelhança dos prazos decadenciais insuscetível de ser interrompido ou suspenso. Os critérios de direito material, pertinentes à prescrição ou à decadência, não são adequados à disciplina dos prazos processuais. Sem dúvida, o prazo do art. 806 não poderá ser interrompido assim como se interrompem os prazos prescricionais, mas isso não se autoriza concluirmos que, não sendo prescricional, o prazo processual deva sujeitar-se aos prazos de decadência e, como tais, incapazes de serem suspensos 106. Nos termos do art. 808, I do Código de Processo Civil, cessará a eficácia da medida cautelar se a parte não propuser a ação principal no prazo de 30 (trinta) dias. Entendemos que a expressão cessação da 103 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: MEDIDA CAUTELAR. SUSTAÇÃO DE PROTESTO. EFICÁCIA. PRAZO PARA A PROPOSITURA DA DEMANDA PRINCIPAL. - Vencido o trintídio (art. 806, c.c. o art. 808, I, do CPC) em um sábado, ao autor é permitido ajuizar a ação principal no primeiro dia útil subseqüente. Precedentes. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n , Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, ) 104 O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a oposição de exceção de incompetência suspende o curso do processo, entretanto, não interfere no cumprimento da exigência estabelecida no art. 806 do CPC. (REsp , 3ª Turma, Rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j ) 105 In: Do Processo Cautelar, p Em sentido contrário, Luiz ORIONE NETO (In: Op.. cit., p. 188, verbis: Daí estabelecer o Código o prazo de trinta dias para a parte promover a actio principalis, quando a ação cautelar for antecedente. Esse prazo é de decadência, portanto, não se interrompe nem se suspende. Se o último dia do prazo cair num sábado, a parte deve propor a ação principal na sexta-feira e não prorrogá-la para segunda-feira, uma vez que se trata de prazo fatal ou peremptório, e, por isso, improrrogável. 293

294 Jaqueline Mielke Silva eficácia da medida cautelar refere-se à extinção do processo cautelar 107, tendo em vista a falta de interesse no prosseguimento do procedimento, pela falta de requisito essencial, que é o periculum in mora 108. Segundo Pontes de Miranda ( Ano), a perda da eficácia da medida cautelar em virtude do não ajuizamento da ação principal no prazo de 30 dias se dá independentemente de qualquer decisão judicial que a desconstitua. A medida não precisa ser expressamente revogada; ela perde automaticamente a eficácia. Contudo se a medida cautelar importar em constrição de bens pertencentes ao demandado ou a terceiros, deve-se expedir mandado de levantamento, ou, se for o caso, comuni- 107 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA - AÇÃO CAUTELAR PREPARATÓRIA - AÇÃO PRINCIPAL - NÃO AJUIZAMENTO NO PRAZO ESTABELECIDO PELO ART. 806 DO CPC - EXTINÇÃO DO FEITO - PRECEDENTES. - A ação cautelar é sempre dependente do processo principal e visa apenas garantir a eficácia da futura prestação jurisdicional. - O não-ajuizamento da ação principal no prazo estabelecido pelo art. 806 do CPC, acarreta a perda da medida liminar e a extinção do processo cautelar, sem julgamento do mérito. - Embargos de divergência conhecidos e providos. (EREsp / DF EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NO RECURSO ESPECIAL 2004/ Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS (1094, ). Também a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: MEDIDA CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. AJUIZAMENTO INTEMPESTIVO DA AÇÃO PRINCIPAL. CESSAÇÃO DA EFICÁCIA. EXTINÇÃO DO PROCESSO CAUTELAR. O não-ajuizamento da ação principal no prazo do art. 806 do CPC implica não apenas a cessação da eficácia da medida cautelar (art. 808, I, do CPC), como também a extinção do processo cautelar por falta de interesse processual superveniente (art. 267, VI, do CPC). Agravo de instrumento provido. (Agravo de Instrumento Nº , Décima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Voltaire de Lima Moraes, Julgado em 21/11/2007) CAUTELAR DE SUSTAÇÃO DE PROTESTO. CHEQUE PRÉ-DATADO. NÃO INTERPOSIÇÃO DA AÇÃO PRINCIPAL NO PRAZO LEGAL CONDUZ A EXTINÇÃO DA CAUTELAR. PERDA DE EFICÁCIA NOS TERMOS DO INCISO I DO ARTIGO 808 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. O ajuizamento de ação cautelar de sustação de protesto de cheque, sem natureza satisfativa, não dispensa a propositura da ação principal no trintídio legal, sob pena de extinção da cautelar por perda de eficácia. Inteligência do art. 806 do CPC. A discussão sobre a validade do título encaminhado a protesto, portanto, deverá ser objeto de análise na ação principal e não na ação cautelar como pretendeu o apelante. APELAÇÃO DESPROVIDA. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº , Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo Augusto Monte Lopes, Julgado em 14/11/2007) Em sentido contrário, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CAUTELAR. NÃO AJUIZAMENTO DA AÇÃO CAUTELAR NO PRAZO DO ART. 806 DO CPC - PERDA DA EFICÁCIA - CPC A inobservância do prazo do artigo 806, do CPC, não acarreta a extinção do processo, mas apenas a perda da eficácia da liminar concedida. - Precedentes. (REsp Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, ) 108 Em sentido contrário, Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 760), verbis: como a não propositura da ação principal conduz apenas à cessação da eficácia da tutela cautelar, não impondo a extinção do processo, há aí uma decisão interlocutória, impugnável mediante agravo de instrumento. 294

295 9 TUTELA DE URGÊNCIA cação ao órgão ou repartição onde eventualmente a medida haja sido averbada para que se anote a sua caducidade. Por outro lado, as cautelares autônomas (v.g. assegurações de prova), defendidas por Ovídio Araújo Baptista da Silva, prescindem do ajuizamento de uma ação principal. Já, para Galeno Lacerda ( Ano) as cautelares administrativas e as satisfativas também prescindem do ajuizamento de uma ação principal Cessação da eficácia da medida cautelar 109 Além do não ajuizamento da ação principal no prazo de 30 (trinta) dias, o Código de Processo Civil, nos incisos II e III do art. 808 elenca outras hipóteses de cessação de eficácia da medida cautelar. Vejamos: a) Não efetivação da medida no prazo de 30 (trinta) dias: como a obtenção da cautelar depende de sua efetivação, a cessação prevista na hipótese contemplada no art. 808, inc. II não é da eficácia da medida, mas da decisão que concedeu oportunidade para a efetivação da tutela cautelar. Se o autor não promoveu a efetivação da tutela cautelar no prazo de 30 (trinta) dias é porque falta requisito essencial à concessão da tutela cautelar: periculum in mora. Evidentemente, se ausente periculum in mora é o caso de extinção do processo. Em havendo obstáculo à efetivação da medida, incide o art. 265, inc. V do CPC, suspendendo-se o respectivo prazo. b) Sentença de procedência: o art. 808, inc. III sugere que a tutela cautelar perde a eficácia com o trânsito em julgado da sentença de 109 O Direito italiano também contempla diversas hipóteses de perda da eficácia da medida cautelar. Neste sentido, a lição de Luigi Paolo COMOGLIO, Corrado FERRI, Michele TARUFFO (In: Ob. cit., p. 59): Nello schema delineato dalla nuova norma (commi e 3-4), il provvedimento cautelare diventa inefficace: - quando, nel caso di misure cautelari domandate ante causam, il succesivo procedimento di merito non sai iniziato nel termine perentorio fissato dal provvedimento che accoglie la domanda, oppure quando, dopo il suo inizio, esso si estingua (situazione, lo si ripete, estranea alla tutela cautelare nel processo societário, nonché alle misure cautelari a regime speciale; - quando non sai stata versata, secondo le modalità stabilite dal giudice, la cauzione prevista dall art. 669 undecies; - quando con sentenza (anche non passata in giudicato) sai dichiarato inesistente, dal giudice del procedimento di mérito, il diritto a cautela del qual la misura provvisoria era stata concessa (situazione di inefficacia che si applica anche alle cautele del processo societario e alle misure cautelari a regime speciale); - quando, nel caso in cui la causa di merito sai devoluta alla giurisdizione di un giudice straniero o a un arbitrato italiano o estero, la parte istante non abbia proposto domanda di esecutorietà in Itália della sentenza straniera o del lodo arbitrale, entro i termini decadenzialei eventualmente previsti dalla legge o dalle convenzioni internazionali (...); - quando, nel medesimo caso, la sentenza straniera di mérito (anche non passata in giudicato: il che comporta una deroga alle condizioni generali per la sua esecutorietà, già previste dall art. 797 n

296 Jaqueline Mielke Silva procedência proferida no processo principal 110. Indubitavelmente, consoante exposto no item 1.1.1, Capítulo I, Parte 1, o Código de Processo Civil vinculou a tutela cautelar à duração do processo principal. Seguindo-se a concepção de Ovídio Araújo Baptista da Silva, a eficácia da tutela cautelar, contudo, não se subordina à pendência do processo principal, mas à obtenção da tutela do direito buscada através da ação principal, à cessação da situação de perigo que a ensejou 111. Como salienta Ovídio Araújo Baptista da Silva 112, a cessação de eficácia da medida cautelar, em virtude da sentença final proferida na demanda satisfativa, dar-se-á apenas se a sentença for de rejeição do pedido, sentença de improcedência, ou uma daquelas a que a doutrina denomina sentença de carência da ação. Nestas hipóteses, é natural que a medida cautelar perca a eficácia, desde que o direito que ela pretendia proteger foi declarado inexistente. Se a sentença, porém, for de acolhimento do pedido, portanto sentença de procedência, a medida cautelar não perderá a eficácia até ser substituída por outra medida satisfativa, salvo se as circunstâncias ou a natureza de tal sentença por si só dispensem, a partir dela, a proteção cautelar 113. Em suma, a cessação de eficácia de medida cautelar por extinção do processo principal só ocorre na hipótese de decisão desfavorável ao autor. c) Sentença de extinção do processo sem resolução do mérito e de improcedência: o trânsito em julgado da sentença que extingue o processo sem resolução do mérito ou que julga improcedente a ação cautelar implica na cessação da eficácia da medida. Porém, estas sentenças, quando são impugnadas e estão sendo analisadas pelo tribunal não eliminam a possibilidade de dano. 110 No caso de sentença de procedência não transitada em julgado não há que se falar em cessação da eficácia da medida cautelar. Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp , 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. em ). 111 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 760). 112 In: Curso de Processo Civil, p. 147 e seguintes. 113 No mesmo sentido, a lição de Galeno LACERDA (In: Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. VIII, Tomo I, n. 74, p ), verbis: A cessação de eficácia por extinção do processo principal, com ou sem julgamento do mérito (n. III), pressupõe a não-condenação do réu. Se condenado este, a medida não se extingue: ou passa ao processo de execução, para nele se transformar em ato executório, ou se converte no próprio comando definitivo da sentença (p. ex. alimentos provisionais em definitivos) 296

297 9 TUTELA DE URGÊNCIA Responsabilidade civil pela concessão de medidas cautelares A responsabilidade civil contemplada no artigo 811 do Código de Processo Civil é de natureza objetiva. O legislador ligou o dever de indenizar perdas e danos apenas ao fato de ter o requerente, que tornou efetiva a medida cautelar, sucumbido no processo principal (remissão ao art. 808 do CPC), sem qualquer indagação no tocante à existência de culpa, dolo ou má-fé processual, que porventura tivesse se revestido a conduta do requerente ao obter a concessão da medida cautelar. Basta a sucumbência no processo principal para que o dever de indenizar se estabeleça. a) Sentença no processo principal desfavorável (art. 811, inc. I): quando a sentença no processo principal é desfavorável ao demandante da tutela cautelar, esse responde objetivamente pelo eventual dano ocasionado pela efetivação da medida cautelar. Contudo, não há que se falar em dever de indenizar como resultado direto da sentença de improcedência proferida no processo cautelar. Note-se que a tutela cautelar pode ser inicialmente necessária e nessa hipótese ter causa e, mais tarde, vir a perder a sua justificativa, sendo revogada pela sentença cautelar. Nesse caso, o demandante não pode ser responsabilizado pelo dano que a efetivação da tutela cautelar tenha causado à parte. Em semelhante situação, porque é imprescindível que se pergunte sobre a causa ou a justificativa da tutela cautelar, a responsabilidade depende de culpa, exigindo uma ação (autônoma) para a obtenção de tutela ressarcitória 114. b) Demandante que não promove a citação do demandado no prazo de 5 (cinco) dias (art. 811, inc. II): conforme já mencionado, uma medida cautelar não pode causar gravame despropositado ao demandado, devendo obedecer a regra da menor restrição do possível. A não citação do réu no prazo de 5 (cinco) dias impede ao réu de obter a substituição da medida prevista no art. 805 do CPC, tornando excessivamente grave a postergação do contraditório. Assim, quando não promovida a citação no prazo de 5 (cinco) dias, o demandante responde objetivamente pelo dano ocasionado pela efetivação da tutela liminar Neste sentido Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 763) 115 Segundo Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 297

298 Jaqueline Mielke Silva c) c) Cessação da eficácia da medida nas hipóteses contempladas no art. 808 (art. 811, inc. III): em sendo cessada a eficácia da liminar concedida, o autor da ação cautelar também responde objetivamente, nos termos do art. 811, inciso III, pelos prejuízos sofridos pelo réu. d) d) Reconhecimento de prescrição ou decadência (art. 811, inc. IV): tem exatamente o mesmo significado da sentença desfavorável no processo principal. Deste modo, como o autor responde objetivamente quando a sentença no processo principal lhe é desfavorável, também responderá objetivamente quando for reconhecida a prescrição ou decadência A tutela antecipada genérica prevista no artigo Natureza da decisão que antecipa a tutela As medidas que antecipam efeitos da tutela pretendida pelo autor realizam, quer dizer, antecipadamente satisfazem, efeitos da sentença final. Elas sempre serão antecipações de efeitos de uma sentença satisfativa; portanto, realização provisória dos eventuais efeitos da sentença de procedência Requerimento e concessão do provimento antecipatório Nos termos do artigo 273, os provimentos antecipatórios não podem ser concedidos ex officio 116, ao contrário dos provimentos cautelares nas hipóteses previstas no artigo 797. É possível que o requerimento de tutela antecipada seja formulado na petição inicial, no curso do processo, por simples petição, ou mesmo na esfera recursal ), a particularidade, nesse caso, é que a liquidação deve tomar em conta apenas o dano provocado durante o espaço de tempo em que o réu não esteve no processo em virtude do atraso em sua citação. 116 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 270), entendem que excepcionalmente a tutela antecipada pode ser concedida ex officio, verbis: A tutela antecipada tem de ser requerida pela parte. Excepcionalmente, em casos graves e de evidente disparidade de armas entre as partes, contudo, à luz da razoabilidade, é possível antecipar a tutela de ofício no processo civil brasileiro. 117 A tutela antecipada na esfera recursal recebe o nome de efeito ativo ou efeito suspensivo-ativo. 298

299 9 TUTELA DE URGÊNCIA Há três possibilidades de deferimento da tutela antecipada, quando no curso do procedimento: 1º) inaudita altera parte; 2º) mediante a designação de audiência de justificação prévia; 3º) mediante a ouvida da parte contrária. No tocante à primeira das hipóteses, recomenda-se cautela, tendo em vista que na tutela antecipada há antecipação de mérito. Entretanto, em algumas hipóteses, poderá se revelar recomendável a concessão da tutela antecipada sem a ouvida da parte contrária, como por exemplo, quando houver risco de perecimento do direito, em razão da demora (ou seja, se ouvido o réu, talvez já não mais seja eficaz a concessão da tutela antecipada), ou ainda naqueles casos em que, se ouvido o réu, este puder frustrar a execução da medida. Não há que se falar em violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa, porque o réu será ouvido posteriormente à concessão da medida, podendo o magistrado inclusive modificá-la. Há o chamado contraditório postergado ou diferido. A segunda das hipóteses, supramencionadas, configurar-se-á naquelas hipóteses em que a concessão da medida antecipatória depender da inquirição de testemunhas. O magistrado, então, deverá designar audiência de justificação prévia, que deverá ser realizada nos moldes da justificação prévia que pode ser designada no procedimento cautelar (artigo 804). É de se indagar: a) precisará o réu ser convocado para comparecer a esta audiência? b) se convocado, ou mesmo se tomar conhecimento por outros meios, o que poderá participar desta audiência? Poderá levar testemunhas? Parece-nos que o réu não precisa ser convocado para participar da audiência de justificação prévia, na exata medida em que é possível a concessão inaudita altera parte. Todavia, se o mesmo tomar conhecimento por outros meios, ou mesmo tiver sido convocado, não há como lhe negar a participação. Todavia, entendemos que sua participação deve ser restrita: poderá inquirir as testemunhas do autor e contraditá -las, não podendo levar testemunhas, tendo em vista que a audiência de justificação prévia é para o autor obter a liminar. O réu terá a possibilidade, por ocasião da audiência de instrução e julgamento, de arrolar testemunhas e, consequentemente, ouvi-las. Do mesmo modo, a audiência de justificação prévia não se presta para a tomada de depoimentos pessoais. Se o contrário fosse verdadeiro, estaríamos possibilitando a 299

300 Jaqueline Mielke Silva realização de verdadeira instrução no início do procedimento, quando sequer houve a apresentação de contestação. Já no caso da terceira hipótese, quando a tutela é concedida mediante a ouvida da parte contrária, não há maiores problemas em razão do contraditório efetivo que se apresenta. Entretanto, a mesma só será concedida deste modo, se for possível aguardar ou seja, se o tempo não comprometer a eficácia da medida e, a ouvida do réu não comprometer o resultado útil do processo Momento para o deferimento/indeferimento da tutela antecipada A tutela antecipada poderá também ser concedida/negada no curso do processo ou no próprio corpo da sentença 118, o que é reconhecido pela maioria da doutrina 119 e da jurisprudência 120. O grande problema é no tocante ao recurso cabível contra a decisão. Até a edição da Lei n de , havia uma forte tendência na jurisprudência, principalmente na Justiça Federal e na doutrina, em afirmar o cabimen- 118 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 272) ao tratar do tema, lecionam: como é ilógico admitir que alguém possa ter o seu direito realizado quando há verossimilhança e receio de dano, e não possa obter esse mesmo resultado quando o direito já está evidenciado e ainda está presente o fundado receio de dano, admite-se a tutela antecipatória ao final do procedimento, quando o juiz já está em condições de proferir a sentença. No mesmo sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp /SP, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. em ). 119 Neste sentido o entendimento de José Eulálio Figueiredo de ALMEIDA (In: Revista dos Tribunais, n. 774, p. 99. Concessão do pedido da tutela antecipatória na própria sentença), verbis: Diante do quadro que se nos apresenta, nenhum empecilho há em que se possibilite a antecipação da tutela na própria sentença. Trabalha-se aqui com a hipótese de não haver sido a tutela antecipatória deferida ab origine, nem tampouco imediatamente após o oferecimento da contestação pelo réu; ou mesmo imediatamente após haver sido concluída a instrução processual. Convencido da real possibilidade de julgamento antecipado da lide, restará ao Magistrado como momento exato para decidir sobre o deferimento da antecipação da tutela a fase de proferimento da sentença de mérito, mas isso somente será possível se as partes colaborarem com o funcionamento da justiça, trazendo ao conhecimento do Juiz os elementos de que necessita para a composição do litígio. 120 Antecipação de tutela. Concessão no bojo da sentença. Possibilidade. Efeitos. Recursos. Execução. Artigo 273, 3º e 5º do CPC. Nenhum óbice há a que, em uma mesma peça, profira o juiz a sentença e defira a tutela antecipada, que poderia ter concedido antes, mas que não o fizera por qualquer razão, inclusive eventual produção de provas apenas em audiência, ou melhor e mais acurada análise da prova somente quando da oportunidade do julgamento antecipado. Não seria evidentemente jurídico e justo negar-se a tutela antecipada, quando presentes seus pressupostos. (TJDF, Ac. Unânime, 3ª CC, Rel. Des. Mário Machado, RJ 246/74). 300

301 9 TUTELA DE URGÊNCIA to de dois recursos: o provimento antecipatório seria atacado por meio do agravo de instrumento 121, já o restante do provimento com natureza de sentença, seria atacado através do recurso de apelação. O grande problema deste entendimento é a violação ao princípio da singularidade ou unicidade recursal. Em 2001, com a alteração legislativa no artigo 520 pela Lei n , houve a inserção do inciso VII, que obteve a seguinte redação: Art A apelação será recebida em seu efeito devolutivo e suspensivo. Será, no entanto, recebida só no efeito devolutivo, quando interposta de sentença que: [...] VII - confirmar a antecipação dos efeitos da tutela. A inserção do inciso VII, no artigo 520, soluciona em parte o problema; todavia, não o resolve, por uma simples e incontestável razão: apenas se confirma o que um dia foi concedido e somente se concede o que não foi concedido anteriormente. Ou seja, confirmação não possui o mesmo significado de concessão. Novamente surge a dúvida: será possível a aplicação analógica do artigo 520, inciso VII, também aos casos de concessão da tutela antecipada no próprio corpo da sentença? A resposta ao questionamento esbarra no princípio da taxatividade que vigora em matéria de recursos, verbis: A preocupação que amiúde vimos mencionando neste trabalho, de que o ordenamento jurídico deve sempre procurar conciliar a rapidez com a segurança e justiça do provimento jurisdicional, é externada pelo CPC quando do tratamento regulamentador dos recursos. Não foi deixada ao alvedrio das partes a possibilidade de criação de recursos para exercitarem o inconformismo diante de decisão judicial, tampouco a escolha, dentre os recursos previstos na lei, daquele que melhor consultar-lhes os interesses. 121 Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 273) ainda entendem deste modo, verbis: A parte prejudicada, pela concessão ou não da tutela antecipatória, deve ter a seu dispor o recurso adequado, que no caso é o agravo, que é interposto diretamente no tribunal. Assim, nada impede que na mesma folha de papel o juiz profira a decisão interlocutória e logo após a sentença, a primeira abrindo ensejo para o recurso de agravo e a segunda para o recurso de apelação. 301

302 Jaqueline Mielke Silva No primeiro caso, a vedação à criação de novos recursos é fruto da adoção do princípio da taxatividade, segundo o qual somente são considerados tais aqueles designados, em numerus clausus, pela lei federal. Em razão do princípio da taxatividade, parece também não ser possível a aplicação analógica do artigo 520, inciso VII, às hipóteses de concessão da tutela antecipada no próprio corpo da sentença. Logo, mesmo após a edição da Lei n , o problema persiste. Na verdade, deveria o legislador ter contemplado o inciso VII, do artigo 520, também para as hipóteses de concessão. Como se observa, esta é mais uma das tantas alterações legislativas realizadas pela metade. Diante da inexistência de previsão legislativa, entendemos que o recurso mais adequado com a ressalva acima realizada é o de apelação, sem o efeito suspensivo, por aplicação analógica do art. 520, inc. VII, do CPC Requisitos necessários à concessão da tutela antecipada O artigo 273 afirma que o juiz pode antecipar a tutela desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança da alegação. A prova inequívoca significa a prova evidente de que o direito está ao lado daquele que pretende a antecipação de tutela, que dificilmente estará presente no início de um processo judicial. Segundo Luiz Guilherme Marinoni 123, [...] a grande dificuldade da doutrina e dos tribunais, diante dessa imprescindível análise, decorre da relação, feita pelo art. 273, entre prova inequívoca e verossimilhança. Melhor explicando: há dificuldade de compreender como uma prova inequívoca pode gerar somente verossimilhança. Essa dificuldade é facilmente explicável, pois decorre de vício que se encontra na base da formação dos doutrinadores e operadores do direito, os quais não distinguem prova de convencimento judicial. Ora, como o art. 273 fala em prova inequívoca e convencimento da verossimilhança, qualquer tentativa 122 Neste sentido o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. em ). 123 In: Revista Jurídica n. 328, p. 9. Prova, Convicção e Justificativa diante da Tutela Antecipada. 302

303 9 TUTELA DE URGÊNCIA de explicar a relação entre as duas expressões será inútil se não se partir da distinção entre prova e convencimento. A prova existe para convencer o juiz, de modo que chega a ser um absurdo identificar a prova com convencimento, como se pudesse existir prova de verossimilhança ou prova de verdade. A intenção da parte, ao produzir a prova, é sempre a de convencer o juiz. Assim, a denominada prova inequívoca, capaz de convencer o juiz da verossimilhança da alegação, somente pode ser entendida como a prova suficiente para o surgimento do verossímil, entendido como o não suficiente para a declaração da existência ou inexistência do direito 124. Do contrário, a maioria das antecipações de tutela deixariam de ser concedidas pela ausência de prova inequívoca. Trata-se, na verdade, da prova necessária para a demonstração da probabilidade do direito invocado. Concordamos com o entendimento de Luiz Guilherme Marinoni 125, para quem a denominada prova inequívoca, capaz de convencer o magistrado da verossimilhança da alegação somente pode ser entendida como a prova suficiente para o surgimento do verossímil, um passo aquém da certeza. Não é demasiado salientar que o autor, quando pleiteia a tutela antecipada, pode se valer de prova documental, de prova testemunhal ou pericial antecipadamente realizada e de laudo ou pareceres de especialistas, que poderão substituir, em vista da situação de urgência, a prova pericial 126. O autor ainda poderá requerer que sejam ouvidas, imediata e informalmente, testemunhas, bem como solicitar inspeção judicial 127. Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva 128, o silêncio do legislador quanto à previsão de uma instrução liminar não impede a realização de dilação probatória para a concessão da tutela antecipada, devendo-se aplicar analogicamente as regras que disciplinam a liminar no processo cautelar, pois, segundo ele, no que diz respeito à demons- 124 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI. A antecipação da tutela. São Paulo: Malheiros Editores, p In: Antecipação da Tutela na Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1995, p Neste sentido: Paulo Afonso de Souza SANT ANNA, Ob. Cit., p Luiz Guilherme MARINONI (In: Novas linhas do processo civil, 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI. A antecipação da tutela, p In: Curso..., Vol. 1, p

304 Jaqueline Mielke Silva tração do periculum in mora, não há diferença significativa entre proteção cautelar e proteção antecipatória. A verossimilhança, por sua vez, deve considerar: (a) o valor do bem jurídico ameaçado; (b) a dificuldade de o autor provar a sua alegação; (c) a credibilidade, de acordo com as regras de experiência, da alegação e (c) a própria urgência descrita 129. O artigo 273 dispõe que não se concederá a tutela antecipada no caso de irreversibilidade do provimento. A doutrina critica de um modo geral a terminologia irreversibilidade do provimento, tendo em vista que, via de regra, todos os provimentos antecipatórios são reversíveis (em face da possibilidade de interposição do recurso de agravo de instrumento). O questionamento elaborado, então, é o seguinte: se todos os provimentos antecipatórios são reversíveis, a qual reversibilidade se refere o artigo 273? De um lado, parte da doutrina posiciona-se no sentido de que o dispositivo trata de reversibilidade dos efeitos fáticos do provimento, que nada mais é do que a possibilidade de retornar-se às coisas, ao status quo anterior. Por outro lado, parte da doutrina e da jurisprudência, da qual compartilhamos, afirmam que a irreversibilidade dos efeitos fáticos do provimento não pode constituir obstáculo para a concessão da tutela antecipada 130. Ao tratar do tema, Cândido Rangel Dinamarco 131 observa que, [...] é preciso receber com cuidado o alvitre de Marinoni, para quem se legitimaria o sacrifício do direito menos provável, em prol da antecipação do exercício de outro que pareça provável. O direito não tolera sacrifício de direito algum e o máximo que se pode dizer é que algum risco de lesão pode-se legitimamente assumir. O direito improvável é direito que talvez exista e, se existir, é porque na realidade inexistia aquele que era provável. O monografista fala da coexistência entre o princípio da probabilidade e o da proporcionalidade, de modo a permitir-se o sacrifício do bem menos valioso em prol do mais valioso. 129 Neste sentido: Luiz Guilherme MARINONI. A antecipação da tutela, p O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o possível risco de irreversibilidade dos efeitos do provimento da antecipação da tutela contida no art. 273, 2º, CPC não pode ser interpretado ao extremo, sob pena de tornar inviável o direito do reivindicante (AgRg no Ag /RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. em ). 131 In: A Reforma do Código de Processo Civil, p

305 9 TUTELA DE URGÊNCIA Mesmo com essa atenuante, não deve o juiz correr riscos significativos e, muito menos, expor o réu aos males da irreversibilidade, expressamente vetados pela lei vigente (art. 273, 2º). No caso da tutela antecipada deve-se falar de uma tutela do provável, ao contrário do que refere Cândido Rangel Dinamarco, pois não se sabe se o direito afirmado pelo autor existe ou não existe 132. Falar de sacrifício do direito improvável, não seria correto, pois a alusão a um direito improvável já traz em si a ideia de que o direito pode existir. Segundo Luiz Guilherme Marinoni 133, [...] o que pode ser dito, e com razão, é que o direito material não pode ser qualificado de provável ou de improvável, pois ele existe ou não existe. Porém a existência do direito é algo que pertence ao plano do direito material. Quando estamos no plano do processo e, em particular, do juízo sumário, está em jogo a probabilidade da existência do direito afirmado e, portanto, o direito provável, que é uma categoria, assim como a do direito líquido e certo, pertencente ao processo. Diante do exposto, resta evidente que ao ser analisado o pedido de tutela antecipada, deverá o magistrado fazer um juízo de ponderação do interesse mais relevante no caso concreto, aplicando o princípio da proporcionalidade Tutela antecipada concedida a partir do propósito manifestamente procrastinatório do réu A tutela antecipada baseada no abuso do direito de defesa ou propósito protelatório do réu é um instrumento de correção do uso indevido do processo. Não se obstrui o direito de ampla defesa, mas tãosomente se redistribui o ônus do tempo do processo, devendo suportar a demora a parte que conta com probabilidade menor de êxito 134. Para Sérgio Cruz Arenhardt e Luiz Guilherme Marinoni 135, essa distribuição do tempo no processo deve ser feita de acordo com a evi- 132 Neste sentido: Luiz Guilherme Marioni. A antecipação da tutela, p In: A antecipação da tutela, p Neste sentido: Marcelo M. BERTOLDI. Tutela antecipada, abuso do direito e propósito protelatório do réu. Aspectos..., p In: Manual do Processo de Conhecimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p

306 Jaqueline Mielke Silva dência do direito afirmado pelo autor e a fragilidade da defesa apresentada pelo réu, não bastando apenas a caracterização do primeiro. Um direito é evidenciado de pronto quando é demonstrado, ainda que com base em um critério de probabilidade. A defesa é frágil quando deixa entrever a grande probabilidade de o autor resultar vitorioso. Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva 136, o que o legislador quis significar, na hipótese contemplada no inciso II, do artigo 273, não foi, de modo algum, a consideração de que essa antecipação teria caráter punitivo contra a litigância temerária 137. O que se dá, com a conduta do réu, nestes casos, é que o índice de verossimilhança do direito do autor eleva-se para um grau que o aproxima da certeza. Se o juiz já se inclinara por considerar verossímil o direito, agora, frente à conduta protelatória do réu, ou ante o exercício abusivo do direito de defesa, fortalece-se a conclusão de que o demandado realmente não dispõe de nenhuma contestação séria a opor ao direito do autor. Daí a legitimidade da antecipação da tutela. A tutela antecipada, fundada em abuso do direito de defesa, apenas é possível quando a defesa ou o recurso do réu deixam a entrever a grande probabilidade de o autor resultar vitorioso e, consequentemente, a injusta espera para a realização do direito. Por outro lado, entendemos que para a caracterização do abuso do direito de defesa ou propósito protelatório, não se faz necessária a intenção do réu de se servir indevidamente do processo, podendo ocorrer tanto na contestação e em recursos, como em atos extraprocessuais anteriores à propositura da ação, como notificações, interpelações, protestos ou correspondências Efeitos passíveis de serem antecipados Muito embora a tutela antecipada seja providência que beneficie o autor do processo, pode o réu requerê-la quando reconvir ou na 136 In: Curso de Processo Civil, v. 1, p No mesmo sentido, Sérgio Cruz ARENHARDT e Luiz Guilherme MARINONI (In: Manual..., p ), verbis: Para efeito de tutela antecipatória, é possível extrair do art. 17 do CPC alguns elementos que podem colaborar para a caracterização do abuso de direito de defesa. Isto não significa, porém, que as hipóteses do art. 17 possam servir de guia para a compreensão da tutela antecipatória fundada em abuso de direito de defesa. 138 Neste sentido: Teori Albino ZAVASCKI. Antecipação da tutela e colisão de direitos fundamentais. Coord, Sálvio de Figueiredo Teixeira. A reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p

307 9 TUTELA DE URGÊNCIA contestação das ações dúplices 139. Assim como Nelson Nery Júnior 140, entendemos que a legitimidade para requerer a antecipação de tutela é estendida a todos aqueles que deduzem pretensão em juízo, como o denunciante, na denunciação da lide; o oponente, na oposição; os intervenientes que agem ad coadjuvandum, como o assistente (simples e litisconsorcial) e o Ministério Público, no interesse e em benefício do assistido e daquele por quem intervém. No âmbito da doutrina nacional reconhece-se duas grandes tendências no tocante aos efeitos passíveis de serem antecipados. Uma restritiva, sustentada por Ovídio Araújo Baptista da Silva, e outra ampliativa 141, sustentada por outros doutrinadores. Segundo Ovídio Araújo Baptista da Silva 142, apenas os efeitos executivo lato sensu e mandamental são passíveis de serem antecipados. Os demais efeitos, segundo o autor, são incompatíveis com a ideia de antecipações provisórias. Segundo ele, [...] o juiz não poderá antecipar declaração, constituição ou condenação sob forma de tutela provisória, e, se o fizer, seu provimento será inteiramente inócuo, sem qualquer relevância processual. Se o juiz dissesse, por exemplo, numa ação declaratória de ilegalidade de exigência fiscal, que tudo indica que o tributo é realmente ilegal ; ou dissesse que, pelas provas até agora existentes nos autos, sou levado a supor que o autor realmente tem razão ; ou dissesse, em seu provimento liminar, mais ou menos isto: o direito do autor apresenta-se com um elevado grau de verossimilhança ; ou então, numa ação de anulação de contrato, dissesse o magistrado: pela prova de que disponho até agora, considero verossímil a alegação do autor, razão pela qual decreto a anulação provisória do contrato ; ou então, numa ação condenatória, expedisse decisão liminar com este teor: o réu é provisoriamente condenado, até que eu possa confirmar ou revogar esta condenação na sentença final, todas essas proposições não teriam nenhuma relevância processual. 139 Neste sentido: Paulo Afonso de Souza SANT ANNA. Novos Contornos do Instituto da Tutela Antecipada e os Novos Paradigmas do Sistema Processual Civil (Lei /02). Revista de Processo 112, p In: Procedimentos e Tutela antecipatória. Teresa Arruda Alvim WAMBIER (Coord.). Aspectos polêmicos da antecipação de tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p Neste sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp /SP), verbis: a antecipação de tutela é possível em todas as ações de conhecimento. 142 In: Curso de Processo Civil, v.. 1, p

308 Jaqueline Mielke Silva Todavia, se o juiz puder extrair, desse juízo declaratório de verossimilhança, algum efeito executivo ou mandamental, teríamos então composto inteiramente uma medida antecipatória dos efeitos da tutela pretendida pelo autor, segundo a previsão do art Já outros doutrinadores 143 sustentam a possibilidade de antecipação de tutela de alguns ou de todos demais efeitos de uma sentença. Ao tratar do tema, refere Araken de Assis 144 : Feitas as distinções, um só efeito, neste aspecto, rejeita quaisquer antecipações: o efeito da sentença declarativa, que é a certeza. Admitirse-á, em linha de princípio e ignorando as travas do art. 273, a antecipação do efeito constitutivo (o estado de divorciado), da condenação (o título executivo), da execução (o intercâmbio patrimonial forçado) e do mandamento (ordem). O obstáculo deriva de razão singular: l accertamento, percebeu Liebman, sensa cosa giudicata sembra privo di importanza e non serve a nulla (a declaração sem a coisa julgada parece privada de importância e nada serve). Quer dizer e dando razão a Hellwig, o efeito da declaração (certeza) nascerá com o trânsito em julgado da sentença. Luiz Guilherme Mariononi 145, por sua vez, ao tratar do tema refere que quando se está diante de um pedido declaratório ou de um pedido constitutivo, a noção de tutela antecipatória não é tão clara como 143 Humberto THEODORO JÚNIOR (In: Revista LTR, v /1313), ao tratar do tema, leciona: A doutrina nacional a nosso ver, com razão parece propender no sentido positivo, isto é, admitindo a antecipação da tutela constitutiva. Nesse sentido, Cândido Rangel DINAMARCO observou que o ato de concessivo da tutela pode ter natureza constitutiva, antecipando situações novas desejadas pelo demandante. ( A Reforma do Código de Processo Civil, São Paulo, Malheiros, 3ª edição, 1996, n. 105, p. 144). No mesmo sentido pronunciaram-se Nelson NERY JÚNIOR ( As atualidades sobre Processo Civil, São Paulo, Ed. RT, 1996, p. 73), Ernane Fidélis dos SANTOS ( Novos Perfis do Processo Civil Brasileiro, Belo Horizonte, Del Rey, 1996, n. 7, pág. 10). Prossegue o autor: Em outros casos o cabimento da antecipação é mais evidente ainda, como quando, por exemplo, ao pedido declaratório ou constitutivo, se acumula um condenatório, que pressupõe o prévio acolhimento do primeiro (caso, v.g., da rescisão ou anulação de um contrato com restituição do bem contratual ao primitivo alienante). A pretensão antecipatória refere-se à condenação a restituir, mas sua apreciação somente será possível depois de um acertamento provisório acerca da pretensão de rescindir ou anular o contrato sub judice. Sempre, pois, que de uma demanda declaratória ou constitutiva for possível extrair uma pretensão executiva ou mandamental, haja ou não cumulação de pedidos, é irrecusável a possibilidade de usar a antecipação de tutela, se presentes, naturalmente, os seus pressupostos legais. 144 In: Doutrina e Prática do Processo Civil Contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p In: A antecipação da tutela. Op. cit., p

309 9 TUTELA DE URGÊNCIA quando a hipótese envolve pedidos condenatório, executivo ou mandamental. Prossegue o seu raciocínio apontando alguns exemplos, verbis: Tratando-se de ação declaratória que objetiva demonstrar a ilegitimidade de um ato, o autor pode requerer, mediante tutela antecipada, que o juiz ordene ao réu não-fazer o que a procedência da demanda declaratória demonstrar ser ilegítimo fazer. Assim, por exemplo, o autor de uma ação declaratória de que um contrato social impede a prática de um ato pela maioria simples da vontade dos sócios poderá requerer que o juiz ordene que não seja praticado o ato que, ao final e em virtude da sentença declaratória, poderá ser considerado ilegítimo. A tutela que impede a prática do ato que a demanda objetiva declarar ilegítimo previne com base em cognição sumária da ilegitimidade do ato. Note-se que tal tutela não objetiva garantir a possibilidade de exercício do direito, porém impedir a violação do direito que ainda deverá ser declarado. É possível, ainda, que o autor da demanda que objetiva declarar a legitimidade de um ato tenha a necessidade de pedir que o réu se abstenha de impedir a prática do ato que não poderia ser contestado se já houvesse sido proferida a sentença declaratória. No caso em que o autor obtém tutela para poder exercer um direito que ainda será declarado, fica fácil perceber o seu caráter antecipatório. A tutela, neste caso, não está assegurando a possibilidade de o autor realizar o direito no futuro, porém viabilizando o seu imediato exercício. Nestas hipóteses o caso não é de mera declaração sumária. Se da declaração sumária extrai-se algum efeito mandamental ou executivo, não se está, à evidência, diante de uma declaração sumária. A declaração sumária, por si só, ainda que seja da ilegitimidade de um ato, nada vale, já que a sua efetividade fica na dependência da vontade do réu. No caso de demanda constitutiva, o autor pode requerer, mediante tutela antecipatória, que o réu se abstenha de praticar atos que possam impedir o exercício das faculdades que estão contidas no direito a ser constituído. É o que pode ocorrer, v.g., na ação constitutiva de servidão. Também é inegavelmente antecipatória a tutela que suspende a eficácia de um ato que se pretende ver anulado. Neste caso impede-se, antecipadamente, que o ato produza efeitos contrários ao autor. Há uma correlação nítida entre a suspensão da eficácia e a sentença; o autor, através da suspensão da eficácia, desde logo se vê livre dos efeitos do ato impugnado. 309

310 Jaqueline Mielke Silva Os exemplos mencionados por Luiz Guilherme Marinoni não contemplam a hipótese de antecipação de efeito constitutivo ou declaratório, mas sim de efeito mandamental, que é perfeitamente passível de ser antecipado. No tocante ao efeito condenatório, grande parte da doutrina inclina-se por admitir sua antecipação, em razão da expressa vinculação do artigo 273 à integralidade do artigo 475-O, que revogou o art. 588 do Código de Processo Civil, que contempla a execução provisória. O raciocínio realizado pela maioria da doutrina é simples: se o artigo 273 está vinculado ao processo de execução e se este está vinculado a ações condenatórias, então é possível a antecipação do efeito condenatório. O grande problema que existe é no tocante à execução do provimento condenatório antecipado. A tutela antecipada insere-se no âmbito da tutela de urgência. O processo de execução no Brasil é moroso. Se o autor da demanda precisar executar o provimento antecipatório, certamente o seu direito ao final do processo de execução já terá perecido. Por esta razão, parece-nos que a antecipação do efeito condenatório também não surtirá qualquer efeito. Luiz Guilherme Marinoni, em que pese concordar com a antecipação do efeito condenatório, sugere que, ao invés de se utilizar do processo de execução, de modo a garantir-se a efetividade do provimento, que se deva utilizar subsidiariamente a tutela específica prevista nos artigos 461 e 461-A: Contudo, pensando-se na antecipação da tutela e não apenas na antecipação dos efeitos da sentença que a presta, e admitindose que o instituto da tutela antecipatória existe para permitir a obtenção antecipada de um bem da vida, não há como conceber a impossibilidade do uso dos meios executivos que sejam realmente capazes de conferir a tutela na forma antecipada. Melhor explicando: se a tutela que implica a antecipação de soma não pode ser entregue mediante o uso do processo de execução que deve seguir a sentença condenatória, cabe ao juiz, de acordo com a situação concreta que lhe é apresentada, determinar a modalidade executiva mais adequada para a efetiva entrega da tutela (aplicando os princípios do meio mais idôneo e da menor restrição possível). Exemplificando a partir de ação voltada à obtenção de entrega de coisa: neste caso, como diz o art. 461-A do CPC, a tutela que determina a entregas de coisa na forma antecipada, pode ser executada, por exemplo, mediante a imediata expedição de mandado de 310

311 9 TUTELA DE URGÊNCIA busca e apreensão, ou mesmo mediante a imposição de multa não sendo preciso a aplicação do processo de execução que deve seguir a sentença condenatória. Ao que parece, a partir do exemplo de Luiz Guilherme Marinoni, o que vai se antecipar, na verdade, será o efeito executivo lato sensu ou mandamental e não o condenatório como se refere o autor A responsabilidade civil decorrente da concessão de liminares antecipatórias e cautelares 146 A responsabilidade objetiva do autor da cautelar pelos danos que a efetivação da mesma vier a causar, ainda que vitorioso nesta demanda, mas sucumbente na principal, acabou sendo acolhida em nosso Código de Processo Civil, como que por extensão ao princípio também vigente quanto às custas e aos honorários, estes mercê da regra constante no art. 20 do mesmo diploma, não revelando a doutrina em geral qualquer inquietude quanto ao ponto, na medida em que tal preceito seria justo. Hélio Tornaghi 147 afirma textualmente que [...] a obrigação do reembolso não provém de ato ilícito, mas da vontade da lei que não quer transformar o processo em arma de destruição dos direitos. A responsabilidade do vencido é meramente objetiva, como em tantos outros casos acolhidos em Direito. No mesmo sentido Celso Agrícola Barbi 148, que juntamente com Giuseppe Chiovenda 149 conclui no sentido de haver o direito processual evoluído quanto ao ponto, para chegar-se, enfim, à condenação absoluta. No que diz respeito às cautelares, os posicionamentos são quase que unânimes quanto à responsabilidade objetiva do autor, no caso 146 Sobre o tema, vide monografia exaustiva de Fábio Luiz Gomes (In: Responsabilidade Objetiva e Antecipação de Tutela A superação do paradigma da modernidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.006, p. 197 e seguintes) 147 In: Hélio TORNAGHI. Comentários ao Código de Processo Civil. v. I, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1976, p In: Celso Agrícola BARBI. Comentários ao Código de Processo Civil. v.i, tomo I, Rio de Janeiro: Ed. Forense, p In: Giuseppe CHIOVENDA. Instituições de Direito Processual Civil. São Pulo: Ed. Saraiva, 1945, p. 285/

312 Jaqueline Mielke Silva de improcedência da ação principal ou de haver cessado a eficácia da medida em qualquer das hipóteses arroladas no art. 811 do CPC, sob o fundamento do fato da sucumbência 150, não obstante não tenha o autor da ação cautelar praticado nenhum ato ilícito, por exercer um direito subjetivo à tutela 151. Convém relembrar que o artigo 811 do Código de Processo Civil dispõe que, [...] sem prejuízo do disposto no art. 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a execução da medida: (I) se a sentença no processo principal lhe for desfavorável; (II) se, obtida liminarmente a medida no caso do art. 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro em 5 (cinco) dias; (III) se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808 deste Código; (IV) se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou prescrição do direito do autor (art. 810); (parágrafo único) a indenização será liquidada nos autos do procedimento cautelar. À primeira vista, parece que a responsabilidade civil de que trata o artigo 811 diz respeito a uma responsabilidade objetiva de natureza essencialmente patrimonial, tendo sido instituída em nosso atual sistema, em substituição ao preceito constante no art. 688 do antigo Código de 1939, que dispunha o seguinte: A responsabilidade do vencido regularse-á pelos arts. 63 e 64; (parágrafo único) a parte que, maliciosamente, ou por erro grosseiro, promover medida preventiva, responderá também pelo prejuízo que causar. A nossa doutrina em geral não questionou a natureza objetiva da responsabilidade prevista no art. 811 do CPC, tendo Egas Moniz de Aragão 152 observado que dentre as características mais louváveis na disciplina que o legislador de 1973 atribuiu ao processo cautelar do Livro III estavam as salvaguardas que previu para o demandado, em atenção ao 150 In: Galeno LACERDA. Comentários.Vol. VIII, Tomo I, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1980, p In: Humberto THEODORO JÚNIOR. Processo Cautelar. São Paulo: Ed. Leud, 1976, p. 172.; Egas MONIZ DE ARAGÃO. Medidas Cautelares Inominadas, Revista de Direito Processual, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1988, p. 57; Alcidez MUNHOZ DA COSTA. Comentários ao Código de Processo Civil. v.11, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p In: Egas MONIZ DE ARAGÃO. Medidas Cautelares Inominadas, Revista de Direito Processual, Forense, 1988, p

313 9 TUTELA DE URGÊNCIA princípio da execução menos onerosa para o requerido, mediante a previsão da concessão da caução substitutiva de medida cautelar, de qualquer conteúdo, consoante a previsão do artigo 805 do Código de Processo Civil, bem como à previsão genérica da concessão de contracautela, com base no poder geral de cautela dos artigos 798 e 799 do CPC. Mais recentemente enfatizou Alcides Munhoz da Cunha 153 que o legislador foi ainda além nesse particular, estabelecendo norma específica sobre a responsabilidade do autor ou demandante que atua o fumus boni iuris para obter medidas cautelares, quando os interesses atuados como fumus são desqualificados como direitos subjetivos no plano das tutelas primárias, referindo-se à previsão da responsabilidade objetiva, disciplinada precisamente no art. 811 do Código de Processo Civil. Em seu curso de Direito Processual Civil, Luiz Fux noticia a incidência da responsabilidade objetiva pelo risco judiciário em decorrência de eventuais prejuízos que a efetivação do provimento cautelar possa causar, em aplicação do art. 811, do Código de Processo Civil, sem declinar sua posição quanto à coerência com o sistema 154. A justificação da doutrina 155 para esposar tranquilamente estas posições funda-se na circunstância de envolver a medida cautelar necessariamente um risco, que é assumido pelo requerente ao pleitear a tutela pretendida em juízo, e bem assim a de que, para a concessão da medida, não se poder indagar do direito em toda a sua profundidade cognição sumária sob pena de confundi-la com a principal. No processo cautelar indaga-se tão só da probabilidade, conforme frisa Carnelutti 156. A responsabilização do artigo 811, portanto, aparece com a contrapartida do juízo provisório e superficial que justifica a concessão da tutela cautelar. Para tal doutrina, portanto, a mesma razão que ensejou ao requerido alguma espécie de restrição em seu direito em decorrência da demonstração superficial de um fato, confere-lhe o direito de ser ressar- 153 In: Alcides Munhoz da CUNHA. Comentários ao CPC. Vol. 11, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2000, p In: Curso de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p In: SAVATIER. Traité de la responsabilité Civil em Droit Français, Tomo I, Paris: Ed. Libraire, 1951, p. 349, ao manifestar-se em torno da chamada teoria da responsabilidade objetiva, já afastava de início a culpa como fundamento do dever de reparar, transferindo tal suporte para o risco: La responsabilité née du risque créé est celle qui obligue à réparer des dommanges produits, même sans faute, par une activité que s exerçait dans votre intérêt et sous votre autorité. 156 In: Francesco CARNELUTTI. Diritto e Processo. N. 241, Morano, 1958, p

314 Jaqueline Mielke Silva cido dos prejuízos suportados quando demonstrado, já em cognição plena, que a pretensão do requerente era destituída de razão. Deste modo, quem pleiteia em juízo valendo-se apenas de aspectos prováveis terá que indenizar a parte contrária sempre que esta demonstrar sua razão. Ovídio Baptista da Silva foi um dos poucos, para não se dizer o único, que denunciou, quando do advento do novo Código, o verdadeiro e injustificado anacronismo do princípio da responsabilidade objetiva em tema de ação cautelar 157. Exatamente nesse sentido manifestou-se Teori Albino Zavascki, referindo que [...] todo o risco da execução antecipada é do demandante, como ocorre em qualquer execução (CPC, art. 574) e de modo especial e aqui se impõe a analogia com a execução provisória das sentenças condenatórias (CPC, art. 588, I 158 ) e das medidas cautelares (CPC, art. 811). A circunstância de não ter sido referido, no 3º do art. 273, como aplicável no que couber, o inc. I do art. 588 do CPC, obviamente não teve o desiderato de proibir a aplicação, ou de excluí-la. É que não teria sentido algum porque afrontoso a todo o sistema de direito carregarse à conta do litigante vitorioso os danos decorrentes de anterior execução de provimento jurisdicional fundado em juízo de mera verossimilhança (sem cognição exauriente, portanto) e antecipado a pedido expresso da parte 159 contrária. [Em obra mais recente ratificou o jurista esta 160 posição.] A redação dada ao art. 273, 3º do Código de Processo Civil, pela Lei n , de 07 de maio de 2.002, chancelou o mesmo tratamento da execução provisória às antecipações de tutela, pois remete à aplicação subsidiária do art. 588, hoje revogado pelo art. 475-O do Código de Processo Civil. Este último dispositivo legal, como se sabe, estabelece a responsabilidade objetiva do credor pelos danos que a execução provisória ensejar ao devedor. 157 In: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. Doutrina e prática do arresto ou embargo. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1976, p O art. 588, in. I foi revogado pelo artigo 475-O, introduzido no Código de Processo Civil pela Lei / In: Teori Albino ZAVASCKI. Antecipação da tutela e colisão de direitos fundamentais, Revista AJURIS n. 64, p In: Teori Albino ZAVASCKI. Antecipação da tutela, São Paulo: Ed. Saraiva, 1997, p

315 9 TUTELA DE URGÊNCIA J.E. Carreira Alvim 161, em monografia na qual tratou da tutela antecipada, sustenta igualmente que a natureza da responsabilidade na efetivação do provimento antecipatório é de índole objetiva. Ademais, enfatiza o autor, apurar-se-á, nesta hipótese, apenas a existência e o alcance do prejuízo, porquanto não estará em causa a culpa do exequente, que se presume iuris et de iure, esclarecendo que se trata, portanto, de uma presunção absoluta. Em obra de caráter geral e ressalvando a necessidade de provar-se o nexo de causalidade entre a execução da medida e o dano 162, Nelson Nery Junior alinha-se com os que entendem aplicável a responsabilidade objetiva na antecipação de tutela. A responsabilidade objetiva, com a condenação absoluta e aplicada generalizadamente, enseja a penalização inclusive daquele réu que contesta com razão, como mostra Ovídio Baptista da Silva 163, considerando este exagero o primeiro pecado cometido pelo Código no que se refere ao princípio geral adotado, ao frisar que [...] duas hipóteses podem ilustrar isso. Como o Código, no art. 462, manda que o juiz tome em consideração os fatos e o direito supervenientes, é possível que a defesa oferecida pelo demandado seja procedente, vindo porém algum fato ou direito supervenientes em socorro do autor, tornando procedente a demanda originariamente infundada. Nas ações de consignação em pagamento, o réu que haja contestado alegando insuficiência de depósito, depois complementado pelo autor, também tivera razão para contestar e, no entanto, será sucumbente. A estrita fidelidade ao sistema imporia ao juiz o dever de condenar o vencido em custas e honorários, também nestes casos. A questão central, no tocante à responsabilidade civil pela concessão de provimentos antecipatórios, é a ampliação do princípio da responsabilidade objetiva pelas custas e honorários, também aos danos sofridos pelo réu quando efetivada alguma daquelas medidas, o que foi acolhido pelo direito brasileiro, quando o direito italiano, nunca o acei- 161 In: J. E. CARREIRA ALVIM. Tutela antecipada na reforma processual. Rio de Janeiro: Ed. Destaque, p. 90/ In: Nelson NERY JR. Atualidades sobre o processo civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1995, p In: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. Antecipação de tutela e responsabilidade objetiva, Revista AJURIS n. 72, p

316 Jaqueline Mielke Silva tou, como observa o Ovídio Baptista da Silva Há de se fazer a distinção entre as custas do pleito, as quais devem pagar todos os vencidos, e os danos a serem pagos unicamente pelo vencido temerário, [...] sendo imperioso fazer a defesa de Chiovenda, neste particular, para mostrar que ele não unificava, num único princípio, a responsabilidade pela sucumbência, nela compreendidos as custas e os honorários, e o dever de indenizar os danos por ventura causados pelo processo Revogação/modificação da tutela antecipada É possível a revogação ou a modificação da tutela antecipada a qualquer tempo em decisão fundamentada (art. 273, 4º do CPC). A revogação ou modificação da tutela antecipada pode ser realizada ex officio 165. As razões que permitem a revogação ou a modificação da tutela antecipada são as novas circunstâncias da causa, vale dizer, as razões que foram apresentadas no momento da sua concessão. Não é apenas a alteração da situação de fato objeto do processo, mas também o surgimento, derivado do desenvolvimento do contraditório, de outra evidência sobre a situação de fato. A jurisprudência tem admitido, ainda, a revogação da tutela antecipada em face de reexame de questão jurídicas envolvida na causa pelo órgão jurisdicional 166. Por outro lado, entendemos que a sentença de improcedência provoca automaticamente a revogação do provimento antecipatório concedido no curso do processo, eis que proferida em sede de cognição plenária. Como leciona Teori Albino ZAVASCKI 167, a sentença 164 In: Ovídio Araújo BAPTISTA DA SILVA. A antecipação de tutela e responsabilidade objetiva. Revista AJURIS, n. 72, p Neste sentido, o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp , 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, ). Em sentido contrário, Luiz Guilherme MARINONI e Daniel Francisco MITIDIERO (In: Código de Processo Civil Comentado artigo por artigo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 274), verbis: A tutela antecipada só pode ser revogada ou modificada a requerimento da parte interessada, tal qual se exige para sua concessão. 166 Neste sentido a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp Rel. Min. Waldemar Zveiter, ) 167 In: Antecipação da Tutela. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p No mesmo sentido, Nelson NERY JÚNIOR (In: Teoria Geral dos Recursos. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 476), verbis: Julgado improcedente o pedido, a tutela antecipada anteriormente concedida fica sem 316

317 9 TUTELA DE URGÊNCIA de improcedência da demanda acarreta, por si só, independentemente de menção expressa a respeito, a revogação da medida antecipatória, revogação que tem eficácia imediata e ex nunc. Do mesmo modo, a sentença que extingue o processo sem resolução do mérito importa na automática revogação da medida urgente antes concedida 168. E isto se dá por uma simples razão: ao proferir a sentença de improcedência, o juiz de primeira instância entende que o direito alegado pelo autor se apresentou provável no momento em que foi concedida a tutela antecipada. É perfeitamente possível que, com a progressão da marcha processual, e sobretudo com o desenvolvimento da instrução probatória, venha este panorama a mudar de aspecto. Os elementos que pareciam justificar a impressão de uma vitória provável do autor vão cedendo passo a outros, que invertem a convicção do juiz, inicialmente exposta. Não é demasiado referir que a verossimilhança constatada em sede de cognição sumária desaparece com a cognição exauriente. Nas palavras de William Santos Ferreira 169, [...] como a antecipação da tutela se dá com base em cognição sumária, isto é, ante a probabilidade, ao ser proferida a sentença de improcedência ou de extinção do processo sem julgamento do mérito desaparece, ao menos para o juízo de primeira instância, aquilo que justificou até este momento a concessão e manutenção da tutela antecipada; em outras palavras, não há mais probabilidade, e com isso, mesmo que omissa a sentença sobre a revogação do provimento antecipatório, este deve ser entendido implicitamente revogado. Em razão do exposto, concordamos com o posicionamento de José Carlos Barbosa Moreira 170, para quem efeito, independentemente de o juiz a revogar expressamente na sentença. Isto porque é incompatível com o decreto de improcedência, feito depois de cognição exauriente, a manutenção de decisão contrária, dada em juízo de cognição sumária. A sentença de improcedência reconheceu depois de ampla produção de prova, que o autor não tinha mesmo razão, motivo por que será com ela incompatível a decisão que, mediante cognição superficial concedeu a tutela antecipada afirmando a plausibilidade de o autor ter razão. 168 Neste sentido: Eduardo TALAMINI. Recorribilidade das decisões sobre tutela de urgência. Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p In: Tutela antecipada no âmbito recursal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p In: A antecipação da tutela jurisdicional na reforma do Código de Processo Civil. Revista de Processo n. 81/211. São Paulo: Revista dos Tribunais,

318 Jaqueline Mielke Silva [...] a sentença de mérito, aquela que decida em caráter final litígio, deve sobrepor-se, de maneira total, à decisão que porventura haja concedido ou indeferido a antecipação da tutela [...]. Esse pronunciamento absorve o outro. A tutela definitiva absorve a tutela antecipada, e no caso em que esta haja sido denegada também. De qualquer maneira, numa ou noutra hipótese, proferida a sentença, seja ela a favor do autor ou do réu, perde, na minha opinião, todo e qualquer relevo o pronunciamento que decretou a antecipação da tutela. Entretanto, em alguns casos, a autorizada doutrina 171 reconhece que os efeitos da antecipação devam ser mantidos mesmo após a sentença de improcedência ou de extinção do processo sem resolução do mérito, a fim de que o julgamento do recurso de apelação não seja ab- 171 Em sentido contrário, Paulo Afonso de Souza SANT ANNA (In: Revogação da tutela antecipada na sentença de improcedência (ou extinção do processo sem julgamento do mérito) e seu restabelecimento: competência e meio processual. Revista de Processo n. 158, p. 151), verbis: Primeiramente, discordamos da possibilidade de o juiz de primeira instância, na sentença de improcedência, manter os efeitos da tutela antecipada anteriormente deferida no curso do processo. Não faz sentido admitir que o juiz de primeira instância possa manter os efeitos da antecipação de tutela na própria sentença de improcedência em que afirmou não existir razão ao autor. Estaria o juiz de primeira instância afirmando que o direito não existe e, ao mesmo tempo, que é provável (?). Não há lógica em se entender que o mesmo juiz que considerou o direito inexistente, mediante cognição exauriente, possa entendê-lo verossímil, em sentido contrário a tudo o que decidiu. Como bem observa Talamini, não se ignora a possibilidade de que o autor derrotado na sentença tenha efetivamente razão e corra o risco de que o provimento recursal, que lhe daria ganho de causa, venha a ser ineficaz. Esse problema, entretanto, haverá de ser solucionado pela concessão de tutela antecipada pelo tribunal competente para o julgamento do recurso, a quem caberá verificar a presença dos requisitos para a medida urgente e não pela manutenção da tutela antecipada pelo juiz de primeiro grau, que acabou de afirmar a ausência de um dos requisitos para tanto. A competência para restabelecer os efeitos da tutela antecipada revogada pela sentença de improcedência, portanto, é do tribunal (relator) e não do juiz de primeira instância. E é indiferente a circunstância de o pedido ser formulado antes ou depois da interposição do recurso: proferida a sentença de improcedência, o pedido de restabelecimento da tutela antecipada deve ser realizado perante o Tribunal. Teori ZAVASCKI (In: Antecipação de tutela, 2.000, p. 99) entende que o meio processual adequado para esse fim é o mandado de segurança: É cogitável a hipótese de restauração, pela instância superior, da medida antecipatória revogada, caso o risco de dano irreparável (que ensejou antecipação assecuratória) persistir de forma tal que possa prejudicar ou tornar inteiramente inútil eventual provimento do recurso interposto. O pedido, em tais casos, deverá ser dirigido ao tribunal, pelas mesmas vias de postulação da antecipação da tutela na fase recursal (mandado de segurança) e o seu sucesso ficará na dependência da comprovação dos requisitos do artigo 273, que deverão estar sobremaneira realçados, eis que terão contra si uma decisão ou sentença de primeiro grau. José Roberto dos Santos BEDAQUE (In: Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 396), também entende que a competência é do relator, porém afirma que o meio processual adequado é a ação cautelar: Nada impede, porém, dirija-se o apelante ao tribunal, em conformidade com o disposto no art. 800, parágrafo único, do Código de Processo Civil, e pleiteie novamente a concessão da tutela antecipada. Isso, evidentemente, para quem entenda tratar-se de medida com natureza cautelar. 318

319 9 TUTELA DE URGÊNCIA solutamente inócuo 172. Luiz Guilherme Marinoni 173 parte do seguinte exemplo: [...] imagine-se a hipótese em que alguém, com base no direito à honra, requer e obtém tutela que ordena a uma rede de televisão a não veiculação de um determinado programa. A revogação da tutela, tornando possível a veiculação do programa, tornaria completamente desnecessário o julgamento do recurso, ao menos para o que objetivava o autor: a proteção (e não a reparação) do seu direito da personalidade. Kazuo Watanabe 174 analisando a possibilidade de [...] manutenção da antecipação, liminarmente concedida, na hipótese de a sentença vir a julgar improcedente a ação, sustenta que em linha de princípio, a improcedência da ação deverá trazer como consequência a revogação da antecipação concedida. Mas o caso concreto poderá recomendar, pela sua peculiaridade, que o magistrado mantenha os efeitos antecipados até o julgamento do recurso. Outra não é a conclusão de Athos Gusmão Carneiro 175. Segundo o autor, não é de excluir, entretanto, que em casos excepcionais o magistrado possa (=deva) manter a antecipação da tutela para que seus efeitos persistam na pendência do recurso, assim o declarando expressamente na sentença de improcedência. Não é demasiado referir que o efeito suspensivo de eventual recurso de apelação interposto contra a sentença de improcedência não tem o condão de manter a tutela antecipada revogada, na exata medida em que não há compatibilidade lógica entre a manutenção da tutela antecipada e a sentença de improcedência proferida após a instrução probatória Neste sentido, Paulo Afonso de Souza SANT ANNA (In: Revista de Processo, n. 158, p. 144). 173 In: A antecipação da tutela. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 222, n In: Tutela antecipatória e tutela específica das obrigações de fazer (arts. 273 e 461 do CPC). Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 1996, p In: Da antecipação de tutela, 3 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p Cássio Scarpinella BUENO (In: Tutela antecipada. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 79) entende de modo diverso. Para o autor, o efeito suspensivo tem aptidão de impedir que a sentença passe a ter efeitos imediatos, e, nessa medida, a própria não confirmação da tutela antecipada é ineficaz. Sua revogação, embora tenha ocorrido, não pode produzir efeitos imediatos no mundo jurídico. 319

320 Jaqueline Mielke Silva O efeito suspensivo no qual é recebida a apelação interposta contra sentença de improcedência ou de extinção do processo não faz com que seja mantida a tutela anteriormente antecipada e, posteriormente, revogada pela sentença, ainda que implicitamente. Isto significa dizer que o efeito suspensivo do recurso de apelação não é capaz de revigorar a tutela antecipada anteriormente concedida, mas revogada pela sentença que julga o pedido improcedente ou extingue o processo Neste sentido, Teori Albino ZAVASCKI (In: Antecipação da tutela. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 99), verbis: O mesmo se dará se a revogação provier expressa ou implicitamente da sentença que extinguir o processo sem exame do mérito, ou que julgar improcedente o pedido. Aqui o recurso de apelação, mesmo com efeito suspensivo, não terá, por si só, o condão de suspender a revogação. 320

321 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS Ney Wiedemann Neto 1 - Kelly Lissandra Bruch 2 - Fabiana Prietos Peres 3 SUMÁRIO INTRODUÇÃO Magistratura Ministério Público Advocacia Quem pode ser advogado? E que tipo de advogado poderei ser? Honorários: honra e sustento! A linguagem forense - CONSIDERAÇÕES FINAIS - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. 1 Mestre em Poder Judiciário (FGV Direito Rio, 2009). Pesquisador e Professor de Argumentação Jurídica, CESUCA. Desembargador no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. neyneto@ cesuca.edu.br. 2 Pós-Doutora em Agronegócios pelo CEPAN/UFRGS. Doutora em Direito pela Université Rennes I, France em co-tutela com a UFRGS. Mestre em Agronegócios pelo CEPAN/UFRGS. Consultora Jurídica do Instituto Brasileiro do Vinho. Assessora Técnica do Instituto Rio Grandense do Arroz. Membro da Funcionária da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/RS. Expert indicada pelo Governo Brasileiro junto à Organização Internacional da Uva e do Vinho OIV. Pesquisadora e Professora de Direito Empresarial, CESUCA. kellybruch@cesuca.edu.br. 3 Mestre em Direito Privado pela UFRGS. Especialista Diplôme d Université Droit comparé et européen des contrats et de la consommation, pela Université de Savoie. Especialista em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela UFRGS. Membro da Comissão Especial de Defesa do Consumidor da OABRS. Assessora de Desembargador no TJRS. Pesquisadora e Professora de Estagio Supervisionado- CESUCA. fabianaperes@cesuca.edu.br. 321

322 Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres INTRODUÇÃO O mundo de um jurista envolve várias áreas do direito. Desde o direito civil, criminal, trabalhista, tributário, empresarial etc. A sua colocação em prática envolve a prática de uma relação preventiva, mediante a realização de contratos e mediação de conflitos; ou uma prática contenciosa, que pode resolver-se pela prática da arbitragem ou mediante os processos cíveis, os processos criminais, os processos trabalhistas, dentre outros. E estas diversas áreas do direito podem ser exercidas mediante inúmeras e distintas carreiras, que envolvem desde as mais tradicionais funções públicas, como o juiz de direito, às mais inovadoras profissões de um mercado globalizado, como um profissional de segurança da informação. Assim, o objetivo deste capítulo é estabelecer um panorama sobre as carreiras e as perspectivas que a prática jurídica pode oferecer ao acadêmico do direito. A atividade jurídica engloba diversas possibilidades, com o destaque para carreiras mais tradicionais - que serão as tratadas neste trabalho-, como a do magistrado, do advogado e do promotor de justiça. Certamente as carreiras do operador do direito se multiplicam e todas são essenciais para a promoção da Justiça. A título ilustrativo pode-se citar a carreira do delegado de polícia, do assessor legislativo do Senado e da Câmara dos Deputados, do assessor de juízes e membros do ministério público, do procurador do município, do advogado geral da união, do procurador geral do estado, do professor de direito, e até mesmo dos peritos judiciais, que especializados em suas determinadas áreas (medicina, contabilidade, engenharia, odontologia etc.) são figuras essenciais para a solução de casos de alta complexidade técnica. Muito embora a atuação do operador do direito não seja restrita à judicialização, o foco do trabalho será a apresentação e desmistificação das carreiras-chave que possibilitam que a engrenagem do Poder Judiciário se mobilize todos os dias. Desse modo, abordaremos aqui especialmente nesta edição do Formação Jurídica II, as carreiras de Juiz de Direito, Promotor de Justiça e Advogado. O Poder Judiciário é um dos três poderes da União, ao lado do Poder Legislativo e do Poder Executivo (CF, art. 2º). O Poder Legislativo tem como objetivo criar e aprovar as Leis que irão reger o Brasil. O 322

323 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS Poder Executivo deve executar estas Leis, por meio de Decretos e outros Atos Normativos. O Poder Judiciário tem como objetivo analisar se estas Leis e Decretos estão sendo respeitados e se estão de acordo com a Constituição Federal. Não há hierarquia entre eles, mas competências diferentes. Fonte: Bruch, 2012 Estes três poderes estão presentes na União, nos Estados Brasileiros são os poderes Federais, bem como nos Estados são os poderes estaduais. Nos municípios encontramos apenas os poderes legislativo e executivo, pois o poder judiciário abarca os Estados e Municípios. Fonte: Bruch, O Poder Executivo atua especificamente na composição dos conflitos de interesses perturbadores da paz social, visando à consequente 323

324 Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres solução dos respectivos conflitos. O Poder Judiciário possui a função precípua de julgar os conflitos de interesses que surgem na sociedade, fazendo aplicar a lei no caso concreto 4. A esse respeito, Martins 5 nos ensina que o tripé da Justiça, numa democracia, necessariamente necessita de três instituições fundamentais para que a ordem jurídica seja mantida, objetivando, atuação conjunta das três, a segurança e a certeza jurídica. Refere-se o autor ao Ministério Público, a Advocacia e ao Poder Judiciário, onde tramitam os processos judiciais. Quanto à estrutura do Poder Judiciário, este é constituído por diversos órgãos, sendo sua última instância o Supremo Tribunal Federal, que zela pelo cumprimento da Constituição, seguido pelo Superior Tribunal de Justiça, que mantém a unidade de interpretação da legislação federal. 4 HADDAD, José Ricardo et. al. Poder Judiciário e carreiras jurídicas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p MARTINS, Ives Gandra da Silva. Tabela de Honorários instituída pela Lei 8.906/1944 para ser observada pela Ordem dos Advogados do Brasil Incompetência dos órgãos disciplinares da concorrência econômica para interferir na remuneração do advogado advocacia não é mercancia Honorários advocatícios não estão sujeito ao Código de Defesa do Consumidor. Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, São Paulo, vol. 26, jul. 2010, p

325 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS Fonte: Bruch, Assim, têm-se a seguinte estrutura, a saber: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL STF: composto por 11 Ministros togados e vitalícios; escolha pelo Presidente com aprovação do Senado; tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional; subdivide-se em plenário e duas turmas (5 Ministros). A competência (art. 102, CF/88), pode ser originária, recursal ordinária ou extraordinária. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA STJ: composto, no mínimo, por 33 Ministros togados e vitalícios (art.104, CF); escolha pelo Presidente, com aprovação do Senado, sendo 1/3 de juízes dos TRF, 1/3 de desembargadores dos TJ e 1/3 de advogados e membros do MP; tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional. A competência (art. 105, CF/88) pode ser originária, recursal ordinária ou especial. Subdivide-se em corte especial (21 Min.), três seções (10 Min.) e seis turmas (5 Min.). Além destes, há o CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA CNJ: composto por 15 membros com mandato de 2 anos; nomeação pelo Presidente com aprovação prévia dos nomes pela maioria absoluta do Senado; 1 Min. STF, 1 Min. STJ, 1 Min. TST, 1 Des. TJ, 1 juiz estadual, 1 juiz TRF, 1 juiz federal, 1 juiz de TRT, 1 juiz do trabalho, 1 membro MPU, 1 membro MPE, 2 advogados e 2 cidadãos. (art. 103-B, CF). Incumbe-lhe o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e o cumprimento dos deveres funcionais dos juízes (103-B, 4º). A esfera da União é composta pela Justiça Federal, Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar. Cada uma destas com competências específicas e organização especializada. 325

326 Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres A Justiça Federal, de competência mais ampla, tem a seguinte organização: Fonte: Bruch, Vale lembrar que a Justiça Federal é organizada por Regiões, sendo que o Rio Grande do Sul encontra-se na quarta Região, que engloba Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Desta forma, o TRF/4 encontra-se organizado da seguinte maneira: TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO TRF/4: composto por 27 Desembargadores Federais vitalícios; nomeados pelo Presidente, sendo 4/5 por promoção de juízes federais (21) e 1/5 de advogados e membros do MPF (6); tem sede em Porto Alegre/RS e juris- 326

327 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS dição nos estados da região sul (RS/SC/PR) 4ª Região. A competência (art. 108, CF/88), pode ser originária ou recursal. Subdivide-se em plenário (27 Des.), quatro seções (6 Des.) e oito turmas (3 Des.). Já dentro do Rio Grande do Sul há uma Seção Judiciária que engloba todo o estado: JUSTIÇA FEDERAL DE 1º GRAU NO RS JFRS: tem competência originária prevista no art. 109 da CF/88. Cada Estado/DF constitui uma seção judiciária, com sede na respectiva capital. A Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, por sua vez, se divide em 21 Subseções Judiciárias. Com relação a Justiça do Trabalho, podemos vê-la da seguinte forma: Fonte: Bruch,

328 Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO TST: composto por 27 Ministros togados e vitalícios (art. 111-A); escolha pelo Presidente, com aprovação do Senado, sendo 1/5 advogados e membros do MPT, com mais de 10 anos de efetivo exercício; 4/5 dentre juízes de carreira dos TRTs, indicados pelo TST; tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional. A competência (art. 114, CF/88), pode ser originária (dissídios coletivos de nível nacional), por recurso ordinário ou recurso de revista (uniformização da jurisprudência trabalhista). Subdivide-se em pleno (17 Min.), uma seção, duas subseções (9 Min.) e cinco turmas (3 Min.). Assim como a Justiça Federal, a Justiça Trabalhista também é dividida por Regiões. O Rio Grande do Sul encontra-se na quarta região: TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 4ª REGIÃO TRT4 (RS): o território nacional é dividido em 24 Regiões. O TRT/4 é composto por 36 Juízes do Trabalho vitalícios. Nomeados pelo Presidente da República, sendo 4/5 por promoção de juízes do trabalho de 1º grau e 1/5 de advogados e membros do MPT. Tem sede em Porto Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio Grande do Sul (4ª Região). A competência (art. 114, CF/88) pode ser originária ou recursal. Subdivide-se em tribunal pleno, órgão especial, três seções e oito turmas. Com relação à Justiça Eleitoral, esta tem o seguinte funcionamento: 328

329 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS Fonte: Bruch, TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL TSE: composto, no mínimo, por 7 membros efetivos e outros 7 substitutos (3 Min. do STF, 2 Min. do STJ e 2 advogados) por um biênio (art , CF/88); eleição por voto secreto nos Tribunais Superiores e advogados escolhidos pelo Presidente da República em lista sêxtupla indicada pelo STF (art. 119, CF/88); tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional; as sessões do plenário ocorrem com a presença mínima de 4 membros além do Presidente. Tem competência originária e recursal. Já no Rio Grande do Sul temos a seguinte organização: TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO RS TRE/RS: composto por 7 membros (2 Des. do TJ, 2 juízes de direito escolhidos pelo TJ, 1 juiz de TRF ou juiz federal escolhido pelo TRF e 2 advogados nomeados pelo Presidente da República de lista sêxtupla elaborada pelo TJ) (art. 120, CF/88), para um biênio facultada 1 recondução (art. 121, 2º, CF/88). Tem sede em Porto Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio Grande do Sul (4ª Região). A competência (art. 121, CF/88) pode ser originária (I) ou recursal (II) (art. 29, CEB). JUSTIÇA ELEITORAL DE 1º GRAU NO RS JERS: a jurisdição em cada Zona Eleitoral cabe a um Juiz de Direito, que será o seu presidente (art. 32, CEB). Onde houver mais de uma Vara, o TRE designará aquela ou aquelas a que incumbe o serviço eleitoral (art. 33, CEB); Tem competência originária definida no art. 35 do CEB. Por fim, a Justiça Militar apresenta as seguintes especificidades: 329

330 Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres Fonte: Bruch, Desta forma, a Justiça Militar encontra-se assim organizada: SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR STM: composto por 15 Ministros vitalícios, sendo 3 Almirantes da Marinha, 4 Generais do Exército, 3 Brigadeiros da Aeronáutica e 5 Civis (3 advogados e 2 escolhidos de forma paritária entre juízes-auditores e membros do MPM). Escolhe seu Presidente com a aprovação do Senado. Tem sede em Brasília/DF e jurisdição nacional. Apresenta competência originária e recursal para processar e julgar crimes militares (art. 124, CF/88). 330

331 10 A PRÁTICA JURÍDICA: CARREIRAS E PERSPECTIVAS CONSELHOS DE JUSTIÇA MILITAR DA UNIÃO CJM: são 12 Circunscrições da Justiça Militar em todo o país. A 3ª Circunscrição tem jurisdição sobre o RS. A 3ª CJM possui 3 Auditorias (a 1ª com sede em Porto Alegre, a 2ª com sede em Bagé e a 3ª com sede em Santa Maria) cada uma com 1 Juiz-Auditor e um Substituto. Nas Auditorias reúnem-se os Conselhos de Justiça Militar (permanente e especial) compostos por 1 Juiz-Auditor e 4 Juízes Militares temporários (sorteados entre oficiais das forças armadas para o trimestre). No Rio Grande do Sul observa-se a seguinte organização: TRIBUNAL MILITAR DO ESTADO DO RS TME/RS: composto por 7 Juízes vitalícios, 4 militares e 3 civis (art. 232 e 234, Lei Estadual 7.356/80-COJE/RS). Nomeados pelo Governador, sendo os militares dentre os Coronéis da ativa e os civis dentre Juízes-Auditores (pelo menos 1), membros do MP e advogados. Tem sede em Porto Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio Grande do Sul. Tem competência originária e recursal (art. 106 da CE e art. 234, Lei Estadual 7.356/80-COJE/RS). CONSELHOS DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO CJM/RS: podem ser das seguintes categorias: Conselho Especial de Justiça, Conselho Permanente de Justiça ou Conselho de Justiça nas Unidades (art. 247, LE 7.356/80-COJE/RS). Os Conselhos Especial e Permanente são compostos por 1 Juiz-Auditor e 4 Juízes Militares (oficiais); os Conselhos nas Unidades, por 3 oficiais. São 3 Circunscrições Judiciárias e 4 Auditorias (sedes em POA (1ª e 2ª), PFU (3ª) e SMA (4ª)). Tem competência apenas originária (art. 259 da LE 7.356/80-COJE/RS). A esfera dos Estados da Federação é composta pelas Justiças Estaduais. 331

332 Ney Wiedemann Neto - Kelly Lissandra Bruch - Fabiana Prietos Peres Fonte: Bruch, No caso da Justiça Estadual, cada Estado regulamenta sua atuação. Assim também o é no Rio Grande do Sul: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS TJRS: composto por 140 Desembargadores estaduais vitalícios (art. 6º, Lei Estadual 7.356/80- COJE/RS). A composição é de 4/5 (100) por promoção de juízes de direito e de 1/5 de advogados e membros do MP estadual (25). Tem sede em Porto Alegre/RS e jurisdição no estado do Rio Grande do Sul. A competência pode ser originária ou recursal (art. 95 e 97 da CE). Subdivide-se em pleno órgão especial, três seções, quinze grupos e trinta e três câmaras separadas. 332

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