2.3 - A "CONSTRUÇÃO" DOS FUNDAMENTOS DA MALÍCIA,
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- Kátia da Cunha Neiva
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1 2.3 - A "CONSTRUÇÃO" DOS FUNDAMENTOS DA MALÍCIA, Quando penso no futuro não me esqueço do passado. (Desilusão, Paulinho da Viola) A malícia, como a conhecemos hoje, não apareceu já prontinha para ser usada com os primeiros capoeiras. Ela foi sendo lentamente "construída" através das gerações. Rio de Janeiro: os escravos africanos ladinos, No Rio de Janeiro, no comecinho dos 1800s, já temos notícias de pequenos aglomeradas de negros capoeiras, que eram alvo da perseguição das autoridades. Estes grupos, normalmente, eram constituídos de menos de meia dúzia de escravos, e todos (ou, a grande maioria) eram africanos ladinos, já conhecedores da cidade (em oposição ao africano boçal, recem-chegado da Africa). Logo após a chegada de D. João VI (1808), e com a criação da Guarda Real (que se desenvolveu até tornarse a atual Polícia Militar do Rio de Janeiro), estes pequenos grupos de escravos ladinos se tornaram um dos principais alvos da nova força policial.
2 a. Um tipo social. No início dos 1800s, como nos ensinou Líbano Soares no livro Negregada Instituição, os escrivães de polícia comumente referiam-se a "jogar capoeira" - indicando uma prática lúdica. Mas nas décadas seguintes a prisão será feita simplesmente "por capoeira" - que indica o uso do termo para identificar um "tipo social" e, aí incluídos, toda sorte de desordeiros e malfeitores (24). Ou seja, aí vemos o início da identidade do capoeira; e o início da construção de uma maneira de ser, agir e pensar deste "tipo social" - o início da malícia. Este "tipo social" já é um antecessor direto do malandro carioca, decantado nos 1920s, reprimido por Vargas nos 1930s, mas sobrevivendo até nossos dias; não somente nos sambas dos recém falecidos Morreira da Silva e Bezerra da Silva, ou do atual Zeca Pagodinho; mas também no imaginário brasileiro, e até mesmo numa linha de umbanda. Vamos ver, a seguir, que o Malandro, assim como o Valente; paralelo a muitas outras características de "ser um capoeirista"; já começam a ser parte da incipiente da maneira de ser, da malícia, desde o início do Brasil Império em Já existia uma identidade entre os escravos capoeiras - não só por serem africanos e ladinos, mas por serem especificamente "capoeiras" -, que se manifestava com o
3 uso de fitas com as cores vermelha e amarela (talvez ligadas ao Congo, na África centro-ocidental), e o uso do barrete vermelho, nas primeiras décadas de 1800s. E também, entre outras coisas, determinados assobios para se comunicarem - escravos eram presos por "assobiarem como capoeiras". (25) Estes pequenos grupos - que vão evoluir até se tornarem as maltas de capoeira - eram mais fortemente visíveis, e também era assim com outras manifestações com raízes africanas em toda a América e Caribe rebeldes, nos dias de folga da escravaria e durante as festas populares - dançando e fazendo arruaça na frente de procissões religiosas, desfiles militares, festas de rua. Não eram, no entretanto, grupos de assaltantes ou ladrões, como se poderia pensar; eram apenas arruaceiros. Já vemos aí, algumas características que irão se imbricar na maneira de ser e na filosofia dos capoeiristas, e da capoeira: - a vontade, a verdadeira mania, de aparecer, de ter visibilidade, de se pavonear diante da população obediente e domada; - o gostar pela "arruaça"; - o gosto pela festa, pela dança, pela música; a "alegria de viver". b. O território. Apesar de constituídos por escravos, estes grupos se
4 consideravam donos de determinadas partes da cidade. Tanto era assim que a capoeiragem e as fugas para os quilombos eram práticas paralelas mas geralmente dissociadas. Ficar na cidade, como escravo, mas pertencendo a uma malta (que era "dona" de um território), era uma opção política e de poder, que os capoeiras escolhiam voluntariamente. Apesar de serem "donos" de áreas específicas no Rio dos 1800s, geralmente praças com chafarizes (centros nevrálgicos onde os escravos vinham buscar água para abastecer a casa dos senhores brancos), os capoeiras movimentavam-se pela cidade com estonteante mobilidade, sempre fazendo badernas e tocando o terror - "estratégia sinuosa". E que talvez, hoje, tenha enxameado a estonteante mobilidade de jovens "mestres" que perambulam pelo mundo, dando aulas, apresentando-se em teatros e espetáculos, comendo as "gringas", tornando-se efetivos e atuantes vetores da cultura brasileira no exterior sem nenhum apoio, monetário ou estratégico, da mídia, do Governo, ou do capital privado. No entanto, esta característica de "ser dono de um determinado território" foi algo que se perdeu e não foi transmitido das maltas dos 1800s para os grupos de capoeiras atuais. O "território" é característica de outro segmento marginal que são as gangues do narcotráfico carioca que dominam, cada uma, determinada favela. Aliás, em relação a estas gangues de traficantes, é bom
5 lembrar como seus jovens integrantes também se amarram num baile funk ("o gosto pela festa, pela dança, pela música"). Além disto, as maltas nunca se interessaram em "fazer a revolução"; derrubar os "senhores" brancos através de um levante armado como fizeram os negros escravos no Haiti no começo dos 1800s. Optaram (como as gangues do narcotráfico, hoje em dia, também) por conquistar espaços dentro da urbe constituída; como se soubessem que a derrubada de um sistema injusto e autoritário leva irremediavelmente a outro similar; como se soubessem que o problema não são os "sistemas" mas, sim, o ser humano irremediavelmente predador: - "urubu come folha? é conversa fiada?", "olha a cobra que morde, senhor são bento", dizem os cantos de capoeira. Por volta de 1830, pela primeira vez, aparecem relatos de capoeiras escalando, por fora, as torres de igrejas e saltando sobre os sinos - com perigo de queda e morte -, fazendo-os soar inesperadamente de madrugada, ou em dias de festa e procissão, ante o olhar embabascado da multidão. As igrejas eram marcos nítidos e importantes das diferentes áreas e freguesias da cidade, e "dominá-las" era simbólico de dominar aquela freguesia, aquele território. (26) Aqui também vemos novamente a vontade de aparecer, tornar-se visível, pavonear-se frente a
6 população obediente e servil (em oposição a maioria da marginalidade que primava por passar desapercebida). Este traço vai também aparecer no próprio jogo, nos saltos e floreios acrobáticos estonteantes que pouco têm a ver com a objetividade das artes marciais e dos desportos; assim como na persona esfuziante e no visual do malandro das décadas de 1920 a 1950; assim como na figura de muitos mestres contemporâneos, verdadeiras personagens de estória-em-quadrinho (mas, já em oposição, por volta de 1970 aparece um novo um tipo de capoeirista, "sério" e careta, influenciado pela mentalidade da Educação Física e pelos valores do Sistema e da classe média). c. Os conflitos Os conflitos com a polícia carioca, no início dos 1800s, existiam paralelo à guerra crônica entre as maltas: "tanto uns quanto outros (os policiais e as outras maltas) eram invasores, beligerantes, se bem que em planos diferentes" (27), nos diz Soares. A cidade era deles, mas não toda a cidade, ou toda de uma vez; as maltas "forjaram uma cidade (negra) dentro da outra" (28). Esta "guerra crônica", que também é típica de todos grupos com estrutura "nômade" (29), teve sequência em toda a história do Jogo e reaparece no conflito "capoeira regional x capoeira angola" (aprox. de 1940 em diante); e tem seguimento nas inimizades entre os grupos de
7 capoeira de nossos dias. d. A influência dos presos políticos, e marinheiros estrangeiros Na década de 1820, os escravos presos "por capoeira" ficavam em um navio-prisão - a Persiganga -, e trabalhavam nas obras de construção de um colossal dique para reparos de navios - 37 anos para ser concluído -, no Arsenal da Marinha, na Ilha das Cobras (Rio de Janeiro). Misto de prisão e trabalhos forçados, o Arsenal com sua explosiva mistura - capoeiras, escravos fugidos, delinquentes e malfeitores, marinheiros nacionais e estrangeiros, rebeldes e prisioneiros políticos de levantes regionais, prisioneiros argentinos e uruguaios das Guerras Cisplaltinas, mulheres de sentenciados e escravas de ganho (vendedoras de comida etc.) -, todos participando do cotidiano da ilha, forjou um caldeirão de troca de experiências e vivências que seguramente ajudou a forjar o perfil e as estratégias dos capoeiras e das maltas. (30) As inacreditáveis "fugas atlânticas" - escravos presos no Arsenal que fugiam e depois eram recapturados em, p.ex., Londres, como foi o caso de Bento Creoulo (31) - foram alguns dos frutos de semelhante convivência; especificamente com a ajuda dos marinheiros estrangeiros que desertavam de seus navios e, quando capturados, também ficavam presos na Persinganga.
8 Isto nos faz lembrar a facilidade com que os capoeiristas atuais "dão um jeito" e viajam pelo mundo, ensinando a capoeira; mesmo aqueles que vêm das classes economicamente desfavorecidas e normalmente jamais teriam esta chance. Lembra-nos também que, desde mestre Bimba (1930); e, a partir dos 1960s, passando pelo Grupo Senzala no Rio, e os jovens mestres baianos que emigraram para São Paulo (como Acordeon e Suassuna); os capoeira sempre tiveram facilidade em absorver o "saber" de outros contextos: p.ex., o convívio dos capoeiristas da atual "era das academias" com outras artes marciais, especialmente as orientais com séculos de experiência, ajudou a forjar o perfil dos grupos contemporâneos. O convívio de presos "comuns" com presos "políticos" têm gerado graves consequencias para os orgãos de repressão. Bem recentemente, durante a ditadura militar de , a convivência de presos políticos com narco-traficantes teria sido um dos vetores que agenciou a estrutura do crime organizado - que se sofisticou e cresceu após aproximadamente , em megagangues, como o Comando Vermelho e o Terceiro Comando, que dominaram a cidade do Rio de Janeiro, inclusive mandando ocasionalmente fechar o comércio local ( e sendo obedecidos) no início dos atuais 2000s (algo que as maltas, após 1850, também faziam).
9 Uma convivência, algo semelhante, no Arsenal de Marinha na década de 1820, foi um dos vetores que formou, após 1850, a infraestrutura e as estratégias das mega-maltas, Nagoas e Guaimus, que dominaram as ruas e praças da cidade do Rio no final dos 1800s, delineou o Malandro dos 1920s, e contribui na construção da malícia da capoeira de nossos dias. e. A "brasilidade" Em 9 de junho de 1828, os batalhões de mercenários alemães e irlandeses com cerca de duas mil praças - a serviço de D. Pedro I -, se revoltaram: "e, de armas em punho, abandonaram os quartéis e fizeram uma carnificina, matando, devastando e saqueando tudo". Mas foram atacados "por magotes de pretos denominados capoeiras", e caíram os estrangeiros "pelas ruas e praças públicas, feridos em grande parte, e bastante sem vida" (32). Depois do fim da rebelião, uma grande quantidade de negros e escravos "continuou armada, causando temores iguais ou maiores na população e nas autoridades da Corte"(33). Os escravos também continuaram a usar "topes" - fitas com as cores da bandeira brasileira -, algo que causava um certo desconforto nas classes hegemônicas. Este sentimento de "brasilidade", que nada tem a ver com o respeito às leis do governo, ou com a moral burguesa ou proletária, impera até hoje dentro das
10 academias e grupos. Provavelmente tem algo a ver com o sentimento de territorialidade; de pertencer a um determinado "território"; e até mesmo ser "dono" daquele terrítório, mesmo quando eram escravos nos 1800s. O mesmo - sentimento de brasilidade - acontece hoje em dia com muitos mestres; mesmo com aqueles de pouco sucesso econômico e que nunca foram ajudados, nem apoiados pelo Estado. Vale salientar o ano de já o início do período regencial - quando lusitanos, de um lado, e pardos e pretos, do outro, se enfretaram nas ruas centrais da capital do Império, o que culminou com abdicação e a partida de D.Pedro I para a Europa.... (em 1831) o papel de libertos e cativos foi importante, até para se contrapor aos chumbos (lusitanos), mas, agora, sua permanência nas ruas e o uso de símbolos nacionais ("topes", fitas com as cores da bandeira nacional, por exemplo) eram perigosos e tinham de ser combatidos. O mesmo ocorreu em relação a 1828, quando os "moleques" foram úteis para derrotar os irlandeses e alemães, mas após o fim do motim transformaram-se de solução em problema. De certa forma era um padrão
11 que se repetia. (34) f. Os artistas estrangeiros que documentaram a capoeira Então, como estamos vendo, no Rio do início dos 1800s a capoeira já era bem visível e documentada, principalmente "pela pena do escrivão de polícia", como nos ensinou Líbano Soares (35). Em oposição à Salvador que é considerada a "terra da capoeira", mas onde a capoeira só começa a ter visibilidade após Muitas características daquela época continuaram ativas e fazem parte da maneira de ser, da identidade do capoeirista atual, e também de sua filosofia de vida - a malícia. Esta visibilidade da capoeira carioca também está documentada em textos de "insuspeitados visitantes estrangeiros", como o artista alemão Rugendas (1835), que nos deixou a conhecida gravura colorida - "Jogar capuëra, ou dance de la guerre" -, acompanhada do texto abaixo. Os negros tem ainda um outro folguedo guerreiro muito mais violento, a capoeira: dois campeões se precipitam um sobre o outro procurando dar com a cabeça no peito do adversário que desejam derrubar. Evita-se o ataque com saltos de lado e
12 paradas igualmente hábeis; mas lançando-se um contra o outro, mais ou menos como bodes, acontece-lhes chocarem-se fortemente cabeça contra cabeça, o que faz com que a brincadeira não raro degenere em briga e que as facas entrem em jogo ensangüentandoa. (36) Então vemos que, em 1835, já existia a cabeçada e os "saltos hábeis" no Jogo. A presença das facas "ensanguentando o jogo", por sua vez, revela a presença do Valente na "maneira de ser" do capoeira carioca - na malícia que se estruturava no Rio de Janeiro de Vemos com clareza que, em 1835, a "filosofia", a "maneira de ser dos capoeiras", era ainda uma coisa primária e incompleta em relação ao que é hoje. Pode-se ver a mesma coisa - uma forma ainda primária e incompleta - na maneira de jogar: apenas cabeçadas e "saltos ágeis". Aliás, não poderia ser de outra forma: a "maneira de jogar" e a "filosofia" caminham juntas; o corpo aprende a malícia do Jogo, e só depois este "saber" extrapola pra cabeça e se constitui em "filosofia". No entanto, apesar da forma primária e incompleta, elementos básicos, tanto do jogo quanto da filosofia, já existiam: a capüera era jogada ao som de um atabaque. Além disto já era jogo - "jogar capüera" -, além de ser luta e também dança - "dance de la guerre". E muito dos
13 elementos que faltavam ao jogo já existiam no Rio de Janeiro, embora ainda não associados à capoeira: - Augusto Earle já tinha pintado sua aquarela, "Negros lutando" (1822), onde um escravo africano dava uma "benção" (chute com a sola do pé no abdomem) em outro; - Debret já havia desenhado e comentado o berimbau, "tocado por um escravo cego numa praça pública", em 1824 (37); - Debret, também já havia desenhado e descrito, em 1824 (38), os "negros volteadores", que iam à frente dos enterros dos africanos importantes no Brasil, dando saltos mortais e outros pulos acrobáticos (o "floreio"). g. A capoeira baiana em Por sua vez, na Bahia, sabemos que a capoeira só começa a ser visível a partir de (39) Mas apesar da capoeira baiana, dos 1800s, até hoje não estar documentada; certamente ela existiu, talvez em outra forma. Acreditamos nisto devido a pujança da capoeira de Salvador e do Recôncavo no comecinho dos 1900s, e que não poderia ter surgido do nada - como bem nos ensinou mestre Frede Abreu. Vejam este texto de 1831:... alguns cativos (em Salvador) ousaram ocupar cadeiras e participar dos debates da Câmara. A história de um deles é
14 contada pelo Secretário da Câmara (de Salvador, em 1831), Attaíde Seixas: "E reparando eu num negro, José Ignacio, cativo de Felix da Silva Monteiro, sentado nas cadeiras da Câmara, perguntei-lhe quem era, respondeu-me que era hum cidadão como eu, e mostrou-me hua faca de ponta batendo com ella sobre a meza". (40) Vejam bem este texto, acima. Ninguém fala que o escravo, José Ignacio, era "um capoeira". Mas a atitude do escravo, a valentia, a arrogância, e a faca de ponta, seguramente eram características da "maneira de ser"; eram características da identidade do capoeira (como já vimos na descrição de Rugendas, no Rio de Janeiro, de 1835); características do capoeira, tanto em 1831 em Salvador, como também em muitos de nossos colegas atuais. Em suma, vemos neste texto acima, que também já existia a presença do Valente na maneira de ser do capoeira baiano; já existia a presença do Valente na malícia que se estruturava em Salvador no início dos 1800s.
15 As maltas, os brabos, e os valentões: A "construção" da malícia começa, então, com os pequenos grupos de escravos africanos ladinos; estes grupos crescem e se transformam nas maltas cariocas. Paralelo a esta dinâmica, vimos a capoeira que já existia em Salvador (mas não é documentada), no mesmo período , e que também vai dar sua contribuição neste processo. a. A Guerra do Paraguai e o "guerreiro brasileiro" Em 1865, o Brasil, a Argentina e o Uruguai entraram em guerra com o Paraguai e seu caudillo mestiço, Solano López. O exército brasileiro formou batalhões de capoeiras; muitos foram agarrados à força nas ruas do Rio. No entanto, estes marginais revelaram-se combatentes tão admiráveis que, aos poucos, foi se formando, no exército, o mito do capoeira ser o "guerreiro brasileiro". Tanto foi assim que, mais tarde, em como nos ensinou mestre Jair "Perigo" Moura (41) -, quando a capoeira já é proibida por lei pela primeira constituição da República, surge dentro do próprio exército um "manual de capoeiragem", O Guia da Capoeira ou Ginástica Brasileira, escrito por um "distincto official do exército brazileiro, mestre em todas as armas, proffessor de militares e habilissino na gymnastica deffensiva ou
16 verdadeira arte do capoeira", "ilustrado e destinado ao manuseio, ao uso, dos seus companheiros de farda". Muita gente dizia que o "distincto oficial" tinha as iniciais O.D.C.; que, apesar de aparecerem na página de rosto, na verdade quer dizer: "Ofereço, dedico e consagro à Distincta Mocidade". O libtreto - "Tendo-se esgotado, com rapidez, a primeira edição desta obrinha..." - abrange cinco partes, que focalizam: I) - Posições; II) - Negaças; III) - Pancadas simples; IV) - Defesas relativas; V) - Pancadas afiançadas". (41) A prática (proibida) da capoeiragem, nas forças armadas, foi se tornando tão popular que o general Nestor Sezefredo dos Passos, Ministro da Guerra do presidente Washington Luis e que tinha encaminhado um projeto de lei para a Educação Física Brasileira, era um conhecido praticante de capoeira. Em 1921, quando era um coronel de 49 anos de idade e comandava o Regimento Sampaio (RJ), o tenente Buys de Barros, de 22 anos, invadiu a sala do coronel Nestor, pistola numa mão e fuzil na outra, anunciando que estava tomando o Regimento junto com outros jovens oficiais; era mais um levante militar característico da época. Nestor Sezefredo colocou seu cinto com coldre e revólver em cima da mesa, levantou-se, e delicadamente perguntou ao tenente os motivos da rebelião. O jovem tenente empolgou-se com a teoria e descuidou-se das armas em riste. O general foi se aproximando pensativo
17 e, súbito, aplicou uma violenta e traiçoeira rasteira na mais perfeita tradição capoeirista, jogando pro alto o tenente, o revóver, o fuzil, e a ideologia. E em poucos minutos reassumiu o controle do Regimento Sampaio. O "Nestor", nome do general e meu também, não é coincidência: Nestor Sezefredo foi meu avô paterno. O mito do "guerreiro (capoeirista) brasileiro" se manteve durante décadas entre determinados círculos de oficiais e praças das Forças Armadas. Por exemplo, bem mais tarde, em 1968, o jovem capoeirista Dick Fersen só conseguiu organizar o 1º Simpósio Nacional de Capoeira devido o apoio que teve da Força Aérea, que forneceu as passagens de avião para os mestres de outros estados, arrumou alojamento para mais de 50 participantes, e cedeu o auditório no Campos dos Afonsos; este curioso e inusitado apoio deve ter acontecido devido ao fascínio de algum velho coronel ou brigadeiro pelo mito do "guerreiro brasileiro". O mito, no entanto, não é sem fundamento: os capoeiras do Batalhão de Zuavos, especialistas em tomar as trincheiras inimigas na base da arma branca, fizeram misérias na Guerra do Paraguai. Destacam-se dois capoeiras nos combates corpo-a-corpo: o alferes Cezario Alves da Costa - posteriormente
18 condecorado com o hábito da Ordem do Cruzeiro pelo marechal Conde d'eu -, e o alferes Antonio Francisco de Melo, também tripulante da já citada corveta Parnahyba que, entretanto, teve sua promoção retardada devido ao seu comportamento, observado pelo comandante de corpos: "O cadete Melo usava calça fofa, boné ou chapéu à banda pimpão, e não dispensava o jeito arrevesado dos entendidos em mandinga" [p.79]. (42) Já havia claramente, em 1865, uma maneira de se vestir, de falar, e de ser, "dos entendidos em mandinga". Já havia, até mesmo, a ligação entre a "mandinga" (algo relacionado a magia, mas também um sinônimo da malícia) e a capoeira. Cinco anos depois , os sobreviventes da Guerra do Paraguai voltaram como heróis. Muitas destas feras, agora transformados em "heróis", engrossaram as fileiras das maltas cariocas; vários ingressaram na polícia (sem necessariamente abandonar as maltas). Esta infiltração - das classes perigosas nos meios militares e, especialmente, na instituição policial -, nos meados dos 1800s, é uma das causas históricas que
19 explicam a contemporânea corrupção policial, a intimidade grotesca, e a falta de uma fronteira nítida, entre muitos policiais cariocas contemporâneos e os traficantes de armas e drogas. Uma outra causa, óbvia, da corrupção que impera nas instituições policiais, é serem parte de um sistema político/econômico que sempre, desde seus primórdios, foi corrupto e extremamente injusto. Talvez porque sempre fomos uma "colônia" - dos portugueses, dos ingleses, das norte-americanos, das multinacionais -; e nossos dirigentes e homens-de-poder-e-dinheiro foram, e são, em grande parte, os testa-de-ferro e gerentes de interesses alienígenas. Enfim, estes "homens de negócios" e politicos - na verdade otários com grana e poder - são homens de visão muito curta, deslumbrados com as "luzes da Europa" ou com o "dinheiro e a modernidade dos Estados Unidos"; homens que ainda se apoiam num modelo do tipo "massa de trabalhadores ignorantes de baixo custo", e que não têm culhões, nem competência, nem criatividade para instaurar uma "nova ordem" em nosso país. b. Um capoeirista, jornalista, escritor, e teatrólogo português, documenta o método de ensino das maltas de capoeira em Plácido de Abreu, capoeira e jornalista, nos deixa entrever a continuação da "construção" de um "método de ensino"; e de uma "ética", de uma "filosofia", de "uma
20 maneira de ser" - enfim, da malícia -, nas maltas cariocas em 1886, através de seu livro Os Capoeiras. Nesta época além dos escravos africanos ladinos, a capoeira carioca já tinha absorvido os negros livres, os creoulos (negros nascidos no Brasil), muitos brancos, e até estrangeiros (um em cada três capoeiras cariocas presos em 1863, era estrangeiro, a maioria português). Há pouco tempo o bando Guaiamu costumava ensaiar os noviços no morro do Livramento, no lugar denominado Mangueira. Os ensaios faziam-se regularmente nos domingos de manhã e constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpe de navalha e faca. Os capoeiras de mais fama serviam de instrutores.... se os chefes decidiam que uma questão fosse resolvida em combate singular, enquanto os dois representantes das cores vermelha e branca se batiam, as duas maltas conservavam-se à distância e, fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados rompiam aclamações ao triunfador. A chegada da polícia desarticulava os dois grupos que fugiam de forma
21 organizada. (43) Já existia, em 1886, não somente a capoeira com uma identidade e filosofia - a malícia -, mas também um método de ensino racional e estruturado para transmitir, não somente as técnicas - "constavam dos exercícios de cabeça, pé, e golpe de navalha e faca" -, como também do axé e do saber - "os capoeiras de mais fama serviam de instrutores". Já existia também uma "ética": "se os chefes decidiam que uma questão fosse resolvida em combate singular, as duas maltas conservavam-se à distância e, fosse qual fosse o resultado, de ambos os lados rompiam aclamações ao triunfador". Além disto, vejam bem: "... os dois grupos fugiam de forma organizada". Certamente, além do Valente, já podemos sentir uns ares de malandragem - e de malandragem organizada! -, em Aliás, esta "fuga organizada", que já é parte da malícia naquela época, vai ser citada por mestre Bimba como característica da capoeira baiana quase cem anos depois (1960): "Quem aguenta tempestade é rochedo" Ou seja, o capoeirista, que é um homem e não um rochedo, foge quando a parada é dura demais. Então esta "fuga organizada", que é citada por
22 Plácido de Abreu em 1886, e também é mencionada por mestre Bimba por volta de 1960, é incorporada definitivamente à malícia e vai dar na "estratégia da esquiva" (em oposição à uma estratégia de "bater de frente", ou de "bloquear", de várias artes marciais). A esquiva, assim como a rasteira (o capoeira desce se esquivando, ao mesmo tempo que derruba o adversário), é parte do jogo; e também da maneira do capoeirsta lidar com os "ataques" que sofre no seu dia-adia. c. Um desenhista e chargista registra a malandragem e a capoeiragem carioca de 1906 Em 1906, vinte anos depois de Plácido de Abreu, as maltas cariocas tinham sido desbaratadas pela perseguição que veio com a República (1890). Curiosamente temos uma reportagem de Lima Campos enfocando a capoeira na sofsiticada revista carioca Kosmos (44). Nesta reportagem, Kalixto Cordeiro apresenta desenhos dos Guaimus e Nagoas - as duas principais maltas do final dos 1800s -, e dá voz a estes personagens, reproduzindo a maneira de falar destes incipientes e seminais malandros. O Valente ainda está poderoso na "construção" da malícia; mas vemos que o Malandro começa a ter quase tanta importância, e já começa, até mesmo, a ter uma "fala malandreada".
23 Na verdade, talvez Kalixto, em 1906, não se recordasse do "falar malandreado" de 25 anos antes, dos Guaiamus e Nagoas de Por isso é mais provável que retratou a "fala malandra" de sua própria época - o comecinho dos 1900s, onde não existem mais as maltas, mas já começa a aparecer o malandro. Apesar da "malandragem carioca" ser mais fortemente difundida nas décadas de 1920 a 1950 quando a "produção da música popular carioca teve na malandragem seu motivo central ou seu motor poético" (45) - como ensinou Claudia Matos -, já em 1906 podemos constatar uma "maneira de ser" malandra, uma "filosofia da malandragem", um "texto malandro" da qual se ouvem os ecos nas falas reproduzidas por Kalixto. Vejam só a pujança; a importância da corporalidade; do suíngue; e da "alegria de viver" (que também são elementos integrantes da malícia da capoeira atual); que transparece no falar destes primeiros malandros, reproduzido por Kalixto, já em Cahi no bahiano rente a poeira, e isqueilhe um rabo-de raia que o marreco voôu na alegria do tombo, indo amarrotar a tampa do juizo n'uma canastra, e ahi gritei: Entra negrada! O turuna enfeitouse outra vez... Oh! cabra cutuba! Não te conto nada seu compadre! o
24 samba esteve cuerê-réca. No fim que houve uma choramella de escacha. O Cara Queimada estava de sorte com a Quinota quando o marchante chegou. Ih! seu camarada! Foi um estrompicio! O Marchante era sarado, foi logo encaroçando a joça. Eu tive que entrar com o meu jogo, sim, tu sabes, que não vou nisso, e ali eu estava separado, não havia cara que me levasse vantagem. Quando a coisa estava preta eu fui ver como era p'ra contar como foi. Com pouco vi um cabra peneirando na minha frente, dansei de velho, o typo era bom! sambou e entrou no caterêté commigo... Fiz duas chamadas nos materiaes rodantes, de uma palma,sempre com os mirones grelados no mecco, o cabra não leu... Fiz uma figuração por cima para o bruto fugir com o carão, e grampeei o individuo. Chamei o cabra na
25 xinga, levei a caveira de lado, e fui buscar o machinismo mastigante do poeta. O cabra engolio a lingua, damnouse, não perdeu a scisma, ganhou tento e compareceu de novo... Não fiz questão do preço da banha... Grimpei, perdi a estribeira, coceime, dei de mão na barbeira e... ia sapecar-lhe um rabo de gallo, quando o cabra cascou-me uma lamparina que eu vi vermelho! Ahi não conversei, grudei na parede, escorei o tronco, e metilheo andante na caixa de comida. O dreco bispando que eu não erapecco, chamou na canella que si bem corre, está muito longe... Eu voltei p'ro samba garganteando: "Meu Deus que noite sonorosa"(46) Fica óbvio que o malandro, que "cai no bahiano", aplica o "rabo-de-arraia", e que "mete a mão na barbeira" (navalha), é um descendente direto das maltas; ainda mais por viver no mesmo espaço geográfico (a Lapa, no Rio de Janeiro) das maltas em 1906, menos de 20 anos
26 depois de serem desbaratadas. d. O Negro Ciriaco derrota o japonês Sado Miako em Também vemos esta maneira de falar, 6 anos depois, no depoimento do Negro Cïriaco (1909), após sua vitória sobre Sada Miako, campeão japonês de jiujitsu, e instrutor de defesa pessoal dos oficiais da marinha brasileira. Esta "fala malandreada" irá se desenvolver nas décadas de 1920 e 1930, e será usada pelos malandros e sambistas. Vamos examinar o artigo de mestre Jair "Perigo" Moura (47) que recorta trechos do depoimento de Ciríaco ao jornal "A Notícia" (17/5/1909), à revista "A Careta" (29/5/1909), e à revista "O Malho" (13/8/1910): O embate de Ciríaco da Silva com Sada Miako contribuiu decisivamente para a credibilidade, a difusão, o renascimento da capoeiragem, que atravessava uma fase de declínio, de ostracismo, desde os tempos da ofensiva desencadeada pelo Dr. João Batista de Sampaio Ferraz, o primeiro Chefe de Polícia do Rio de Janeiro republicano... Com sua vitória, Ciríaco tornou-se o alvo de todas as atenções, mormente porque
27 vários capoeiras já tinham sido postos fora de ação pela destreza, habilidade e vigor dos golpes demolidores de Sada Miako. "Cheguei em frente com ele (declara Ciriaco ao jornal "A Notícia"), dei as minhas cuntinenças e fiz a primeira ginga, carculei a artura do negrinho, a meiada das pernas, risquei com a mão pra espantá tico-tico, o camarada tremeu, eu disse: Antão? Como é? Ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo. O japonês tremeu, risquei ele por baixo, dei o passo da limpeza gerá, o negrinho aturduou, mexeu, mas não cahio". O repórter inquiriu sobre a reação da platéia que, entusiasmada, incitava Ciríaco e aplaudia o seu desempenho espetacular, gritando: "Aí, Ciríaco! Entra com teu jogo inteiro!". "Eu me queimei e já sabe: tampei premero, distroci a esquerda, virei a
28 pantana, e oiá o homê levando com o rabo-de-arraia pela chocolateira. Deu o ar comprimido e foi cumê poeira. Ahi eu fiz o manejo da cumprimentação e convidei o home pro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por satisfeito"... "Você a princípio não queria dar a mão ao japonês?" Retrucando, o interrogado esclareceu: "Quá o que, meu sinhô: se ele quizé eu dou as duas mão e atiro com ele pru cima do piano, da música e até das madamas dos camarotes". (48) As declarações de Ciríaco não confirmam o mito da cusparada nos olhos - vitória sem fair play -; nem a versão de que, logo nos primeiros instantes da luta, Koma tentou o "arrastão" e Ciríaco soltou o "rabo-dearraia" pegando o adversário na cabeça - vitória por um "golpe de sorte" e/ou "esperteza". Na versão do capoeirista, o golpe fatal foi dado após alguns momentos de estudo: Ciríaco desnorteou o adversário com a ginga; fintou um tapa ("...risquei com a mão pra espantá tico-tico"); tentou derrubar com a "rasteira" ("risquei ele por baixo... mexeu, mas não cahio"); movimentou-se, enganando e novamente desnorteando o adversário ("tampei premero, distroci a
29 esquerda, virei a pantana"); para só então desferir o "rabo-de-arraia na chocolateira" (cabeça). Pode-se compreender a força do mito da "cusparada" por estar baseado na "falsidade" (uma "qualidade", no entender dos capoeiristas). Pode-se também compreender o potencial de uma explicação da vitória de Ciríaco, baseada na "esperteza" (Ciríaco prevendo que Miako iria "entrar agarrando por baixo tentando levá-lo para o chão, para a luta agarrada"); e o fim da luta com um único "golpe de sorte". Ainda mais que o próprio capoeirista recusava-se a lutar agarrado ("...antão? como é? ou tu leva o 41 dobrado ou tu está ruim comigo, pruque eu imbolá, não imbolo"). Por outro lado, entende-se também a surpresa geral face a vitória de Ciríaco ("tornou-se o alvo de todas as atenções, mormente porque vários capoeiras já tinham sido postos fora de ação pela destreza, habilidade e vigor dos golpes demolidores de Sada Miako"). Vigorava um diagnóstico depreciativo, uma "ideologia do pessimismo" do "homem brasileiro" (que irá desaguar em Moreira Leite, "O caráter nacional brasileiro", 1968), desde o Visconde de Taunay, no Segundo Reinado, com suas esperanças da redenção antropológica atrvés de uma imigração dos povos da Europa do Norte (alemães, escandinavos).
30 Era necessário justificar a vitória do negro brasileiro sobre o estrangeiro, contratado para "ministrar os ensinamentos das regras do jiu-jitsu, difundidos pela Marinha do Brasil" - o ramo aristocrático da Forças Armadas Brasileiras. Esta justificativa alegaria uma "traição" ou "esperteza". Seria impensável imaginar que Ciríaco - negro capoeira - pudesse sair vitorioso em condições de fair play; embora o capoeira testemunhase que no início da luta "cheguei em frente com ele e dei as minhas cuntinenças" e que, após o "rabo-de-arraia" demolidor, "fiz (novamente) o manejo da cumprimentação e convidei o homê pro relógio de repetição, mas o gringo se acontentou com a chamada e se deu por satisfeito". Na fala do reporter nota-se claramente a dúvida, a incredulidade numa vitória "honesta" de Ciríaco: "você, a princípio, não queria dar a mão ao japonês?"; e, mesmo tantos anos depois, sentimos claramente o despertar da irritação do capoeira que comprende claramente os preconceitos do sinhô jornalista: "quá o que, meu sinhô: se ele quizé eu dou as duas mão e atiro com ele pru cima do piano, da música e até das madamas dos camarotes". Ciríaco faleceu três anos depois, em 1912, aos quarenta anos de idade, vitimado por uremia. Com Ciriaco vemos que a "construção" da malícia já incorporou definitivamente o Malandro (além do Valente);
31 e que ocasionalmente o capoeira emerge como "herói". Mas nesta construção, nem sempre se trata de adicionar. Muitas vezes, períodos inteiros, ou características básicas, são apagadas e jogadas foras por uma nova geração. c. O esquecimento, pela História, das maltas cariocas dos 1800s A memória da capoeiragem carioca do final dos 1800s, que nos deixou seu herdeiro destronado - o malandro -; que vetorizou indivíduos como o capoeira Negro Ciríaco, como João Candido da Revolta da Chibata, e os capoeiras da Revolta da Vacina; foi praticamente apagada: - apagada da "memória oficial" da "História do Brasil"; - apagada da memória da capoeira, e da memória dos capoeiristas em geral (e só é retomada após 1970, por pesquisadores com o mestre Jair "Perigo" Moura, Bretas, e Libano Soares,); - e também da memória da própria malandragem carioca. 1. O desaparecimento da memória oficial é fácil de entender: a capoeira das maltas estava imbricada com a malandragem e a navalha. Quando Getúlio sobe ao poder na década de 1930 e permite uma "capoeira domesticada e vigiada" (extirpada de seus valores marginais e malandros, como também acontece hoje em
32 dia nas academias), esta capoeira das maltas é jogada para escanteio, não é mais mencionada, como se nunca tivesse existido. 2. Por outro lado, Letícia Reis estudou a parte referente ao "sumiço" da capoeira das maltas cariocas dos 1800s, da memória da capoeiragem:... alguns estudiosos que abordaram a capoeira baiana não perceberam criticamente essa 'invenção de tradições', acabaram por adotar a perspectiva dos capoeiristas. (49) Isto é: muitos capoeiristas nem sabem que existiu esta capoeira caioca dos 1800s. E a maioria acredita que "a capoeira nasceu na Bahia", e que a capoeira baiana é "mais pura" e, dentro da capoeira baiana, acham que a angola é "mais pura" e "mais tradicional" que a regional. E muitos estudiosos e pesquisadores também embaracaram nesta onda. Seguiu-se, então, a desvalorização da capoeiragem das maltas cariocas dos 1800s, e o obscurecimento de sua memória entre os próprios capoeiras das décadas seguintes; um fade-out ajudado pelos trabalhos literários que (até aprox. 1965) glorificavam a "nova" Luta Nacional (a capoeira castrada de suas origens negras e marginais).
33 3. No entanto, a parte mais curiosa: o obscurecimento da memória da capoeiragem carioca dos 1800s no imaginário da própria malandragem carioca, é uma coisa curiosa e aparentemente sem explicação. Já em 1910, menos de vinte anos após o apogeu das maltas cariocas (em 1890), o malandro Madame Satã, em suas memórias, não menciona a capoeira das maltas. Isto nos leva a pensar que a malandragem, e muitas outras atividades marginais das classes economicamente desfavorecidas, não têm, e nem se importam, com o passado. Eles vivem a "loucura" do aqui e agora. Por outro lado, quem insiste em preservar a "história", em "construir" a idéia de um encadeado de ações no tempo que podem dar um certo sentido (racional) à vida (e à sociedade), é o Sistema, são os "sedentários" (no sentido dada por Deleuze e Guatari em Mille Plateaux, que veremos mais adiante). "Marginal", aqui, obviamente não inclui o candomblé; ou o próprio samba, a partir dos 1920s. "Marginal", aqui, é marginal mesmo: a bandidagem; ou a boemia desregrada de determinados artistas e pessoas. Eles não tem memória pois não se importam nem em preservar a sua própria vida, vivem num turbilhão que sabem que terá curta duração.
34 d. Os brabos em Recife, e o valentão em Salvador No entanto, independente do obscurecimento da memória, esta "fala malandra" - que era reflexo de uma "identidade do malandro", já em 1906 (Kalixto), e em 1912 (Ciríaco) - foi se sofisticando. Quando chegamos em 1930, este tipo de falar, e o próprio tipo social - o Malandro -, já existem em definitivo, e já têm grande visibilidade no universo do samba, e na capoeira. Paralelo a esta "construção da malícia" no Rio de Janeiro, isto também acontecia com os brabos das bandas de música do carnaval de Recife, no começo dos 1900s. E também com os valentões da capoeira de Salvador. Estes valentões eram sujeitos rudes e afeitos ao autoritarismo policialesco, como vemos neste artigo do jornal A Tarde, Salvador 1920: Foi um rolo feio na Baixinha... A navalha e a faca trabalharam (...) João Batista ou "Guruxinha", trabalhador das Docas, vinha com um companheiro de trabalho, João de Tal, vulgo "Rajado", quando ao chegar ao alto do elevador do Taboão, encontraram "Pedro Porreta" e "Piroca" (irmão de Pedro), que estavam a beber numa
35 taverna. O primeiro destes, que é peixeiro na Baixa dos Sapateiros, e antigo desafecto de de "Guruxinha", chama "Rajado" e indaga: - Que é que veio fazer aqui nesta zona? - Viemos buscar uma roupa na casa do alfaiate, na baixinha - reponde "Rajado". - Pois então os dois estão presos por que aqui quem manda sou eu! - grita o "Porreta" (apesar de não ser policial). A esta voz, "Rajado" sai em disparada pela ladeira abaixo, enquanto "Guruxinha" se revolta contra a esquisita prisão dizendo: - Não o conheço com autoridade de me prender. (50) Oliveira conclui a história contando que "Piroca" atacou e foi esfaqueado "Guruxinho"; "Porreta" sacou de sua "inestimável navalha... e começa a retalhar o inimigo"; e "o único a sair ilesa de ferimentos foi o Pedro Porreta". Ou seja, neste relato, assim como na imagem de Besouro - um ícone da capoeira -, em Salvador no início dos 1900s, vemos claramente o Valente, mas nem tanto o Malandro.
36 Mas estes rudes valentões baianos serão substituídos, após a década de 1930, pelos Educadores, como Bimba, Pastinha, Waldemar da Paixão, Noronha, e tantos outros. e. Os educadores baianos A capoeira veio da África trazida pelo africano todos nóis sabemos disco porem não era educada quem educor ella famos nois bahiano para sua defeiza pessoal. (51) Mestre Noronha, Estes educadores vão se travestir com valores da sociedade para, justamente, seduzir esta sociedade, e conquistar espaço para a capoeira e para o homem negro. Mas algo que não é comentado, é que paralelo a esta "sedução" (que já é, obviamente, um agir malandro altamente sofisticado), estes educadores - Bimba, Pastinha, e todos os outros mestres baianos entre 1930 e , também vão introduzir elementos "filosóficos" e de "malandragem" (não necessariamente idênticos ao da malandragem carioca) na incipiente capoeira baiana daquela época. Ou seja: vão ser muito importantes na "construção" da malícia, após 1930.
37 Mas paralelo à Bimba e Pastinha, já acontecia o samba (carioca) e o rádio (em todo o Brasil), por volta de , que foram elementos extremamente importantes desta mesma dinâmica. O malandro e o sambista No início dos 1900s, não havia rádio nem televisão; as experiências, as vivências, e o "saber" dos capoeiras de uma cidade não influía diretamente e on line sobre os capoeiras das outras cidades. Ainda assim, estas capoeiras não eram completamente estanques e isoladas. Já havia uma troca de saberes, e havia canais de comunicação. Especialmente porque o Rio e Salvador e Recife eram cidades portuárias com enorme movimento de navios e marinheiros, e um dos espaços privilegiados da capoeira - dos 1800s e início dos 1900s - era justamente a área portuária das três cidades, com seus navios e marinheiros que iam de um local ao outro. Por volta de 1920 e mais fortemente a partir de 1930, o Rio era a capital da República e o grande centro irradiador de cultura; tudo que acontecia por lá ressoava pelo resto do país. A "filosofia da malandragem" carioca começou a ser divulgada através dos "sambas de malandro", que estavam sendo gravados em disco e
38 tocados no rádio, que já existia nesta época, com grande sucesso em todo o país. No Rio de Janeiro, enquanto segmentos sociais hegemônicos cariocas tentavam mudar, no imaginário, a imagem da capoeira; observava-se também a reação das "classes populares" com a construção, popularização, e consagração do "malandro". O Malandro vai atravessar horizontalmente toda a cultura, e maneira de ser, do carioca - e, em última instância, do brasileiro -; e, verticalmente no tempo, vai também ser vetor ativo e atuante na formação da atual "filosofia da capoeira" - a malícia. O Malandro vai se tornar tema de muitos sambas até que, com a política de Vargas de valorização do trabalho na década de 1930 (52), ele começará a apresentar-se como o "malandro redimido". O Malandro era o herdeiro destronado e solitário das maltas cariocas extintas pela perseguição policial na virada do século XIX para o XX. "Solitário": agindo individualmente e sem o poder do grupo, não se tornou um risco para a polícia e para o novo Regime Republicano, como tinham sido as maltas de capoeira do Império). "Destronado": sem o apoio de algum político poderoso; como (no passado) o poderoso e rico parlamentar conservador, monarquista, e abolicionista,
39 Luiz Joaquim Duque-Estrada Teixeira, o Nhô-nhô da Gloria, que patrocinava a malta Flor da Gente. O malandro era um elemento fragilizado que contava apenas com sua esperteza, sua lábia, seu charme, seu know-how do jogo e das mulheres, sua capacidade de apelar inesperadamente para a capoeiragem e para a navalha quando se via acuado e sem possibilidades de resolver a situação "na conversa". Apesar desta herança - o Malandro -, a verdade é que a ação policial conseguiu atomizar as maltas dos 1800s. Não mais grupos, mas indivíduos isolados. Por outro lado, era a vitória - dentro da derrota - da estratégia de Manduca da Praia (aprox. 1870), que "não recebia influências da capoeiragem local nem de outras freguesias, fazendo vida à parte, sendo capoeira por sua conta e risco". Nós veremos muitos mestres, em Salvador e também no Rio e São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960, que eram indivíduos que ensinavam capoeira "à parte, por sua conta e risco", como o Manduca da Praia de cem anos antes Mas já em 1970, vemos o reaparecimento de grandes grupos de capoeira, principalmente no Rio e São Paulo, que amealhavam dezenas e, a partir dos 1990, centenas de professores (e alguns milhares de alunos). A capoeira das maltas cariocas de 1800s quase não
40 deixou registro de mão própria - exceto pelos relatos de Plácido de Abreu (1886) -; os registros que temos são de outros atores, como "a pena do escrivão de polícia". Por sua vez, a malandragem seminal do comecinho dos 1900s também não deixou registro próprio, exceto pelas falas de Kalixto e de Ciríaco. Sobrou principalmente a voz do sambista. As letras de samba por muito tempo constituiram o principal, senão o único, documento verbal que as classes populares do Rio de Janeiro produziram autônoma e espontaneamente. (53) Provavelmente (e, aqui, com este "provavelmente", entro no terreno das suposições e da "invenção de tradição"), os capoeiras de Salvador e Recife perceberam que aquela "malandragem" carioca - veiculado pelos marinheiros e músicos que aportavam vindos do Rio; e mais tarde, a partir dos 1930s, veiculada pelos sambas que tocavam no rádio -, era algo bastante "familiar". "Familiar" mesmo, no sentido de ser algo da mesma família. E rapidamente adotaram, absorveram, e encarnaram aquele "saber", e até mesmo parte de seu elegante e espalhafatoso visual.
41 Inicialmente o samba era composto grupalmente, era uma atividade comunitária. Mais tarde aparece o indivíduo "autor/compositor de samba" (vemos uma certa semelhança com as maltas que eram grupais, em oposição à estratégia de Manduca da Praia que obrava "por conta e risco"). Talvez pudéssemos dizer o mesmo das rodas de capoeira, em Salvador, por volta de era uma coisa grupal, como a turma que iniciou Noronha -; até o aparecimento do "mestre" com sua "academia", após a década de 1930 com mestre Bimba. Sinhô, o primeiro músico popular a se distinguir na sociedade global como autor-compositor de sambas, realiza a conjunção ambivalente do coletivo com o individual que caracterizaria mais tarde o samba malandro, do qual aliás pode ser considerado precursor. Se o desejo de ascender socialmente ou de ganhar dinheiro, orientava-lhe a conduta no momento de registrar e promover seus sambas, tal individualismo não chegava a determinar seu modo de produção, que permanecia vinculado aos fundamentos "comunalistas" - para retomar a expressão de Muniz Sodré - do músico
42 negro-proletário. (54) Geraldo Pereira, por sua vez, constituiu um modelo de malandro e sambista daquela época: sambista, compositor, valente, mulherengo, mas com emprego como motorista da Limpeza Urbana. Geraldo Deodoro Pereira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, a 23 de abril de Vindo ainda garoto para o Rio, foi morar em Mangueira, e depois no Engenho de Dentro por volta dos 18 anos. Em 1939, já morador da Lapa, teve sua primeira composição gravada pelo cantor Roberto de Paiva. Era o samba Se você sair chorando, de parceria com Nelson Teixeira. Em 1940 começa sua associação com Ciro Monteiro, seu grande amigo até o final e principal intérprete. Trabalhou em boates e teatros, sendo também cantor, melodista e letrista. De sua autoria, gravaram-se cerca de sessenta sambas em 78 rpm, e ao todo mais de 70 composições, embora muita coisa sua ainfda permaneça inédita.
43 Morreu precocemente, ao que se diz em consequência de uma briga com o afamado Madame Satã. Em 4 de maio de 1955, foi internado com hemorragia intestinal no Hospital dos Servidores Públicos, como funcionário público que era, motorista da Limpeza Urbana. Morreu no dia 8, um domingo, aos 37 anos de idade. Ciro Monteiro custeou seu enterro. Geraldo deixou viúva, Eulíria Salustiano Pereira e o filho Celso Salustiano Pereira. O jornalista Jorge Aguiar considerou Geraldo 'o maior sambista de sincopados que já apareceu', fazendo 'sambas diferentes de tudo o que se fazia na época, usando a língua dos trens de subúrbio, das gafieiras, das rodas de malandragem da Lapa, das subidas sinuosas dos morros'. Chamou-o também de 'malandro autêntico dos anos 30', esclarecendo: 'como malandro que era até a raiz dos cabelos (não confundir com vagabundo que é outra coisa), sempre na estica daquele linho branco amarrotado, balanceado naqule ginga de valente calmo e boa gente, quase dois
44 metros de altura, forte como um touro, isso tudo fazia de Geraldo Pereira dois tipos de que nunca se afastou: o mulherengo incontrolado, sempre cobiçado pelas cabrochas mais disputadas, e um valente invulgar... As histórias de valentia de Geraldo Pereira enchem o folclore carioca'. (55) A "filosofia da malandragem" estava, então, fina e legitimamente representada nos sambas de Geraldo, e outros, que eram excelente compositores, talentosos sambistas, e genuínos malandros. Vejam estes sambas, da década de 1930, quando o malandro já era o "rei da Lapa" - o bairro da vida noturna do Rio de Janeiro, cheio de bares, cassinos, casas de jogo e de prostituição. "Meu chapéu de lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho De ser tão vadio" (Lenço no pescoço, Wilson Batista,
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