LITERATURA E PSICANÁLISE: QUAL A RELAÇÃO? Gilcia Gil Beckel
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- João Henrique Azeredo Miranda
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1 LITERATURA E PSICANÁLISE: QUAL A RELAÇÃO? Gilcia Gil Beckel O que o canavial ensina ao mar e o que o mar ensina ao canavial? O processo de aprendizagem mútua é o foco central do poema O Mar e o Canavial, de João Cabral de Melo Neto, que nos leva a refletir sobre um aprender e um ensinar constantes que se evidencia nas interações humanas. A exemplo do poeta, podemos também nos perguntar o que a literatura ensina à psicanálise? O que a psicanálise ensina à literatura? Para o poeta, para o escritor, o que de fato importa é o ato de escrever. É sublimar sua pulsão, atendendo a um desejo de expressão. É o brincar com a palavra, fazer dela seu instrumento e seu objeto, envolver-se com ela e por seu intermédio, mostrar-se. É isto o que interessa à psicanálise? Por ser expressão do inconsciente, despertar a livre associação e instigar o imaginário do leitor, a literatura não é apenas a forma que cada um viaja em seu imaginário, não é puro diletantismo para quem lê e lhe aprecia o valor estético, mas alguma coisa que instiga e aguça a curiosidade dos mais atentos. Um leitor que se delicia com um poema, um conto, romance, ou outra qualquer forma de expressão literária, e que busca nas entrelinhas das palavras escritas, aquelas que ficaram ao nível do não dito, assemelha-se ao analista atento que, pinçando os significantes nas histórias de vida que lhe são contadas, capta o que não está sendo enunciado. Como fruto da subjetividade e forma sublimatória da pulsão, a literatura fornece preciosos elementos para análise das manifestações inconscientes. Freud sempre reconheceu o quanto a arte e a literatura anteciparam e confirmavam as descobertas da clínica psicanalítica. A literatura pré-existe à psicanálise. Poderíamos dizer que esta Apresentado na III Jornada de Psicanálise do Fórum Baiano de Psicanálise, em dezembro de 2004, e no Café da Manhã de da ELBA.
2 funda a psicanálise, pois o conceito chave do complexo de Édipo tem como pano de fundo a tragédia de Sófocles. Mas não apenas o autor grego, como Shakespeare, Dotoiévski, Jensen, Leonardo da Vinci, Michelângelo, Goethe, Hoffmann, Diderot e outros povoaram a obra freudiana. Ao longo da construção de sua teoria, o pai da psicanálise buscou interpretar autores, baseando-se em suas obras literárias, buscando conhecer de que fonte o artista retira seu material, material este capaz de nos despertar emoções que desconhecíamos. Em Escritores Criativos e Devaneios, vai buscar na infância os fundamentos do caráter imaginativo do artista. Encontra-os nas atividades favoritas e mais intensas das crianças: os jogos e as brincadeiras. Ele nos diz que o poeta, assim como a criança, cria um mundo de fantasia, leva-o a sério, investe nele grande quantidade de emoção, mas o distingue perfeitamente da realidade. Segundo Freud, ao se tornarem adultas, as pessoas perdem o prazer da infância e param de brincar. No entanto, trocam o brinquedo pelas fantasias, das quais se envergonham e as ocultam, por serem infantis e, muitas vezes, proibidas. Para ele, a obra literária é um substituto do brincar infantil. O artista exprime suas fantasias, torna-as aceitáveis e até prazerosas a outros, realizando assim seus desejos e os alheios. O poeta deixa sua fantasia se evadir pelo uso das metáforas, o romancista, pela criação de histórias, situações e tipos. Da literatura, a psicanálise toma referências, exemplos, extrai características que traçam o perfil de um autor, e por meio dela enriquece a própria teoria. Igualmente, a psicanálise oferece aos literatos a oportunidade de utilizar novas metáforas, de aprofundar o processo de criação, de liberação do inconsciente. Um sujeito em análise, ao contar e recontar a história de que é o protagonista, passa a interpretar com um novo olhar o livro de sua própria vida, dando-lhe outro sentido, ao tempo em que igualmente vai remodelando esse personagem. Um analista é, ao mesmo tempo, um leitor atento. Não um leitor preso à história que lhe narra o protagonista, mas aquele que, por meio de sua atenção flutuante, busca o enunciado na enunciação, o sentido oculto naquilo que lhe está sendo dito. Pela sua presença silenciosa ou pelas intervenções que faz, leva o sujeito a refletir sobre sua própria história e ressignificá-la. Estaria assim na posição de co-autor da nova história? 2
3 O discurso do paciente, assim como um texto literário, demanda interpretação. Existe sempre um sentido manifesto e um sentido latente nos significantes que emergem do dizer do paciente, das suas reticências, esquecimentos e tropeços. Tal sentido revela o caráter ambíguo e equívoco das palavras. A interpretação fornece ao paciente novas significações, como acontece quando se interpreta um texto literário. Mas a psicanálise tanto é um instrumento de que o analista se utiliza para trazer à luz e interpretar o conteúdo inconsciente, quanto pode ser utilizada como lente de aumento para o entendimento em profundidade de uma obra, seja romance, poema, filme, pintura, ou outra forma qualquer de manifestação artística, pois são elas expressão do inconsciente, bem como, para encontrar na obra características da personalidade do sujeito de quem receberam a autoria. Os romancistas e poetas muito nos podem ensinar sobre a subjetividade humana. Um romance nos revela, por meio dos personagens, traços da vida introspectiva do autor. Os grandes romances têm sido referência para os psicanalistas. Muitos fornecem matéria para estudo. Freud se deu conta disto e não foi à toa que usou e abusou de exemplos e referências literárias em toda a sua obra. Para ilustrar nosso trabalho, buscaremos analisar, à luz dos conceitos psicanalíticos, o conto O Espelho, de Machado de Assis. Nesse conto, o personagem principal, Jacobina, narra a alguns amigos um episódio que lhe acontecera quando tinha 25 anos. Aos 25 ele se torna alferes e é assim que passa a ser reconhecido, tanto na família (especialmente por sua mãe, que o chamava meu alferes ) quanto na sociedade, a este significante se identificando e recalcando sua verdadeira identidade. A convite da tia, vai hospedar-se em sua fazenda e é por ela tratado da mesma forma que a mãe o tratava. A tia põe no quarto dele um enorme espelho, uma das peças mais nobres da casa. Certo dia, a tia se ausenta e os empregados, que inicialmente o cortejavam, desaparecem. A solidão e o desamparo deixam Jacobina numa situação de desespero. Frente ao espelho, não se vê, não se reconhece, até o dia em que decide vestir novamente sua farda de alferes. 3
4 De início, o título do conto nos remete à questão da importância do olhar. Do olhar-se e do olhar do outro, do ver-se e do ser visto. Como nos diz Lacan, eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte. Em sua narrativa, Jacobina afirmava a existência de duas almas: não há uma só alma, há duas (...) uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro (...) A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. (...) as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. Vemos aí a presença de um Outro, representado pela alma exterior. O eu interior, a outra alma, poderíamos entender como o Sujeito do inconsciente? A afirmação de Jacobina sobre a existência de duas almas nos faz pensar que aí está um sujeito dividido. A sala... é agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina... Escreve Machado de Assis. Mais uma vez a questão do olhar aparece. Se, ao ser abandonado na fazenda, ele não se reconhece, anos depois, alferes assumido, ele é o sujeito que narra aos amigos a própria história, e os olhares estão fixos nele. Diz ele: Tinha 25 anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da guarda nacional. (...) Minha mãe ficou tão orgulhosa! Tão contente! Chamava-me o seu alferes! Eis a relação com o Outro materno, a importância do discurso deste Outro, que o nomeia alferes, que lhe imprime este significante. Não é mais o filho, mas o alferes. Continuando sua história, conta Jacobina: Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, (...) Chamava-me também o seu alferes! (...) E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para lá, alferes a toda hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o senhor alferes. Essa tia parece representar a continuidade da mãe. Ambas provocam nele a perda da verdadeira identidade. Para a mãe, não é mais o filho, para a tia, não é mais o sobrinho. Para ambas e os demais, é apenas o senhor alferes. E como afirma o próprio personagem, O alferes eliminou o homem... 4
5 Em outro trecho, ele diz: Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. (...) A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. (...)...em que a consciência do homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. A importância dada pelo social à posição, ao posto, reforçaram o significante. Ele só podia existir dentro da farda. Tomado pela palavra, Jacobina perde sua identidade. O discurso e o olhar do Outro eram o que lhe dava reconhecimento. Olhar do Outro, projetado na imagem do senhor alferes. Ao se ver só, sente-se abandonado, perdido. Abandono que lhe gera um sentimento estranho, que significa aí o confrontar-se com a falta, o corte, a castração. Passa a utilizar então mecanismos de defesa: atividades físicas, trabalhos intelectuais, o sono... para suportar a sensação esquisita de uma não existência, já que não havia agora o olhar nem a palavra do Outro que lhe remetesse a sua identidade. Conforme Lacan, Na medida em que o olhar, enquanto objeto a pode vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele é objeto a reduzido... a uma função evanescente ele deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência. Prosseguindo, diz Jacobina: O sono dava-me alívio... o sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma interior. Nos sonhos, fardavame, orgulhosamente, no meio da família e dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes... (...) quando acordava, dia claro, esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único, - porque a alma interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava em não tornar... O sono era um mecanismo de fuga que lhe colocava em contato com o desejo de ser alguém. A tal alma interior aparecia apenas nos momentos de vigília e ele não a reconhecia. No seu sonho, ele deseja que as pessoas retornem, que voltem a lhe olhar, a lhe falar, que se acabe a sua solidão. No conteúdo manifesto, aparece a alma exterior. No conteúdo latente, estaria o seu desejo de voltar a existir? 5
6 Sentia-se como um fantasma a vagar pela casa, a procurar o que lhe preenchesse o tempo, o que o livrasse da angústia, da solidão, do desamparo. Passa a ter medo de olhar-se no espelho e não se reconhecer, de não encontrar ali sua própria identidade. Certo dia, toma coragem e olha-se, mas não se vê, não se reconhece diante do imenso espelho. Há um episódio na vida de Freud, em que, viajando num trem, de repente a porta do seu compartimento se abre devido a um solavanco e ele vê um homem estranho entrar em seu vagão. No entanto, o intruso, era sua própria imagem no espelho. Antipatiza com a própria aparência, não se reconhece. Segundo Quinet, Freud é afetado pelo objeto olhar que emerge do espelho, olhar que desfaz a imagem especular impedindo-o de reconhecer-se: ele é o objeto do olhar antipático do Outro. Tem algo de semelhante no que acontece com Jacobina, só que ele não se vê nem simpático nem antipático, mas deformado, inexistente. Ele simplesmente não se vê! Assustado por não se reconhecer diante do espelho, Jacobina lembrou-se de vestir a farda de alferes e então ele consegue se ver. Daí em diante, fui outro, diz ele. A farda lhe restitui a identidade. É ela a metáfora que lhe remete ao significante alferes (seu eu ideal?). A farda o identifica, remete-o à palavra e ao olhar do Outro, dá-lhe existência. Jacobina, tão impregnado estava desse olhar, que já não podia existir por si mesmo. O ver-se depois de pôr a farda é o existir pelo olhar do Outro materno e do Outro social. A análise deste conto nos mostra o quanto a psicanálise enriquece uma interpretação de texto e o quanto um texto literário pode enriquecer a psicanálise. Tanto podemos analisar psicanaliticamente uma criação literária, como podemos enriquecer nosso processo criativo, a partir de reflexões que são frutos de uma análise. Sublimar é desviar o desejo para o campo do simbólico. O sujeito, numa análise, conta a sua própria história, sua verdade. Num romance, num conto, são elementos do inconsciente de um sujeito que permeiam a história que é contada, sua verdade está subjacente à ficção. 6
7 Assim, se um autor pode aprofundar e enriquecer sua obra à luz da teoria psicanalítica ou de um processo analítico a que se submeta, um analista, quanto mais seja um bom leitor, tanto mais entenderá do inconsciente. Para concluir, eu diria que a relação entre a literatura e a psicanálise é uma antiga relação de amor. Um amor que se pretende eterno.... 7
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