UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS DEPARTAMENTO DO CURSO DE HISTÓRIA
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1 0 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS DEPARTAMENTO DO CURSO DE HISTÓRIA A SOBREVIVÊNCIA DO DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO Andrey Borges Pimentel Ribeiro Anápolis (GO) 2009
2 1 Andrey Borges Pimentel Ribeiro A SOBREVIVÊNCIA DO DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Coordenação do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás para obtenção do grau de Licenciatura em História. Professora Orientadora: Dra. Renata Cristina de Sousa Nascimento Anápolis (GO) 2009 o n o
3 Aos meus pais e aos pais de meus pais. Sem eles, minha história e minhas histórias jamais seriam possíveis. 2
4 3 AGRADECIMENTOS À professora e orientadora desta monografia, Renata Cristina de Sousa Nascimento, pela paciência, compreensão, dedicação e ensinamentos. Aos meus professores e professoras, os quais serão sempre lembrados, pela sua dedicação e profissionalismo. Aos meus amigos que sempre me acompanharam durante a graduação. Mais uma vez, o agradecimento à Fernanda de Sousa Fernandes cujo tempo só aumentou o carinho.
5 4 A majestade imperial deve ser ornada não só com as armas, mas também com as leis, para que possa reger com justiça nos tempos de paz e nos tempos de guerra, e para que o príncipe romano fique vitorioso não só nos combates com os inimigos, mas também no expurgo das injustiças que se ocultam sob fórmulas legais, e para que seja, ao mesmo tempo, religiosíssimo cultor do direito e vencedor dos inimigos. (Imperador Justiniano)
6 5 SUMÁRIO RESUMO ABSTRACT INTRODUÇÃO BIZÂNCIO: CONTINUIDADE DO IMPÉRIO ROMANO A queda livre A divisão Bizâncio (Constantinopla) e os imperadores Justiniano O DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO O direito e o direito romano Direito romano em Bizâncio A empreitada jurídica de Justiniano O Corpus Juris Civilis O Código (Lei) O Digesto (Jurisprudência) As Institutas (Doutrina) As Novelas (Emendas) A SOBREVIVÊNCIA Concepção geral do direito romano em Bizâncio Estrutura do direito romano em Bizâncio Divisão geral Parte geral Direito de família Direito das coisas... 46
7 Direito das sucessões Direito das sucessões e contratos Demais institutos constantes do Livro Quarto das Institutas CONCLUSÃO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 69
8 7 RESUMO O objeto de estudo da pesquisa é o direito romano compilado pelo Imperador Justiniano no século VI, mais especificamente, uma das obras componentes do Corpus Juris Civilis, as Institutas. A obra é estudada tendo em vista o contexto histórico de formação do Império Bizantino a partir da decadência do Império Romano do Ocidente, com o propósito de vislumbrar a compilação de Justiniano enquanto aspecto cultural romano, sendo que, esse legado se constitui no principal modelo jurídico do mundo, inclusive o Brasil. Portanto, a análise das Institutas é feita de forma comparada com o direito civil brasileiro.
9 8 ABSTRACT The object of study of the research is the roman law compiled by the Emperor Justiniano in the century VI, more specifically, one of the component workmanships of the Corpus Juris Civilis, the Institutas. The workmanships is studied in view of the historical context of formation of Byzantine Empire from the decay of the Occident Roman Empire, with the intention to glimpse the Justiniano s compilation while roman cultural aspect, being that, this legacy constitutes in the main legal model of the world, also Brazil. However, the analysis of the Institutas is made of form compared with the Brazilian civil law.
10 9 INTRODUÇÃO É muito intrigante pensar que o direito romano ainda é a base jurídica da maior parte das sociedades atuais sendo que Roma perdeu seu vigor no século V. O lapso de tempo é assaz considerável para permanecerem intactos tantos institutos jurídicos cuja essência é a mesma desde a Lei das XII Tábuas. Durante o período da Idade Média o direito romano continuou a ser aplicado no Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente), portanto, sobreviveu fora do ambiente da Europa Ocidental. Apenas com o Renascimento a cultura romana é resgatada na Europa Ocidental, e nesse contexto as bases jurídicas romanas começam a ser vislumbradas. O direito romano continuou no Império Bizantino graças às compilações empreendidas pelo imperador, Justiniano ( ). Justiniano não criou um direito bizantino independente do direito romano, pois não inovou na ordem jurídica. O que ele fez foi compilar a confusa e dispersa legislação de Roma em um cânone jurídico harmônico. Reuniu o direito romano, mas não o modificou em sua essência. Por isso, como o Corpus Juris Civilis é a obra de Justiniano que resgata a cultura jurídica romana, o estudo dessa obra consiste, logicamente, no estudo do direito romano. No presente estudo, o direito romano é analisado a partir de uma das obras componentes do Corpus Juris Civilis, as Institutas, que é um manual feito pelos juristas escolhidos por Justiniano destinado aos estudantes do direito. Ou seja, é um estudo a partir de uma fonte histórica.
11 10 A tese da pesquisa é no sentido de que Roma continuou culturalmente viva mesmo que fora da cidade de Roma. Como a obra jurídica romana mais completa é do período bizantino, nada mais salutar do que explorar a sobrevivência do direito romano a partir de Bizâncio. E, refletindo acerca do direito romano enquanto aspecto cultural da sociedade romana credita-se ao direito uma parcela de responsabilidade pela própria sobrevivência de Roma enquanto referência de sociedade. A presente pesquisa compreende três capítulos. O primeiro capítulo aborda o contexto histórico em que o Império Bizantino surgiu, a partir da decadência do Império Romano do Ocidente. Neste capítulo a figura de Justiniano é abordada como o imperador que marca a história do Império Bizantino em diversos setores: religião, arquitetura, artes, política, expansão militar e relações sociais aplicadas através do direito. O segundo capítulo aborda o direito enquanto produção cultural de Roma. Nesse sentido, o direito bizantino é reflexo social da tradição jurídica romana, tendo Justiniano como o responsável por compilar a produção jurídica romana de forma sistêmica. E, o empreendimento de Justiniano possibilitou a permanência dos institutos jurídicos através do tempo. E, o terceiro capítulo trabalha um dos livros componentes do Corpus Juris Civilis, as Institutas, ressaltando a concepção geral do direito, a estrutura e a divisão da obra bem os institutos jurídicos previstos. Cada instituto jurídico romano das Institutas é analisado tendo em vista sua situação atual na legislação brasileira, de forma comparada. A proposta da pesquisa é aliar a obra jurídica à importância histórica de manutenção da cultura romana, sendo tão importante quanto a língua latina e o
12 11 Cristianismo. Aliás, o latim mesmo se extinguiu e o Cristianismo em Bizâncio foi completamente modificado se comparado a Roma. O direito, por outro lado, manteve sua essência. E mais, depois do Renascimento houve uma disseminação da cultura romana pela Europa Ocidental, chegando aos países ibéricos os quais foram pioneiros na expansão marítima europeia e também na colonização de grande parte da Ásia, África e América. No caso da América, a América Latina sofreu influência majoritária de Espanha e Portugal. O Brasil, em especial, herdou o direito lusitano como forma de regulamentar as relações sociais. O direito lusitano tem por base o direito romano, logo, o direito brasileiro, até hoje, é um direito de base romana e diversos institutos jurídicos pertinentes à sociedade romana continuam vigentes, em especial no ramo do direito civil. Estudar o direito brasileiro e as bases sociais pertinentes a esse componente cultural implica em um estudo a respeito de institutos jurídicos romanos cuja permanência se deve, em grande medida, ao período bizantino, em especial sob o governo do imperador Justiniano.
13 12 1 BIZÂNCIO: CONTINUIDADE DO IMPÉRIO ROMANO O estudo a respeito do Império Bizantino não pode ser feito de forma isolada. Isto porque há um cordão umbilical que une Bizâncio a Roma. Sem os problemas conjunturais pelos quais passavam o Império Romano do Ocidente que vão desde as invasões bárbaras até as crises internas, talvez não houvesse a mudança do centro gravitacional do Império Romano do Ocidente para o Oriente. 1.1 A queda livre O século III marcou Roma de forma negativa, sendo caracterizado como um período de intensas crises internas que demonstravam a fragilidade do Império: As dificuldades que o império enfrentou no século III resultaram, em grande parte, de deficiências nas instituições culturais, sociais e políticas. Foram estas deficiências inatas, mais do que o poderio das nações bárbaras, que prostraram o Estado e o ameaçaram de destruição em meados do século que precedeu o reinado de Diocleciano. (VRYONIS, s.d., p. 11). O Império Romano que até então parecia inabalável, no século III dava claras mostras de um ambiente instável. Num cenário imperial, os exércitos sobrepunham o Senado nas tomadas de decisões. Aliás, a importância do Senado nesse contexto, se não era nula, também já não era a mesma dos tempos republicanos. Vale ressaltar que os exércitos tinham cada um, seu general. Cada general, por sua vez tinha suas pretensões políticas. A isso se soma o contexto romano de vaidades em que a conciliação era algo bastante complicado. O resultado é a dispersão do
14 13 poderio romano. Como não havia unidade, o exército era também um epicentro de instabilidade em que diversas vezes os generais romanos mobilizavam suas tropas, romanos contra romanos, acentuando a crise institucional. Ademais, não havia, no século III, uma norma reguladora da sucessão imperial. Tal fato acentuava a disputa pelo poder do governo. E, como visto, os generais aproveitavam disto para ascender ao poder. A economia romana também passava por problemas graves, assim, com a falta de estabilidade política, a crise econômica se agravava: A falta de estabilidade política mais agravou, sem dúvida, o mal-estar econômico que afligiu o império durante o século III. As causas que a determinaram eram muito mais complexas do que as que provocaram as agitações políticas. (VRYONIS, s.d., p. 11). Considerando que a principal fonte de riqueza do Império eram os tributos cobrados dos povos dominados: O grande defeito da economia romana é não ter sabido criar novas fontes de riqueza. Durante o período das conquistas, Roma viveu dos tributos que impunha aos povos vencidos, a partir do século III vive das suas reservas, no século IV esgotou-as. (RICHÉ, s.d., p. 26). Como o Império não estava em suas melhores condições, houve significativa diminuição dos créditos provenientes dos impostos. Não havia estrutura para viabilizar a cobrança. Os próprios povos bárbaros, não só deixavam de pagar os tributos devidos como também, por vezes, assaltavam os domínios romanos. No século III também ocorreram lutas civis que deixavam a economia interna mais fraca. Sem o movimento econômico dentro do próprio território, e, mais, se
15 14 tratando de uma cidade importadora de quase todos os produtos (Roma não se preocupou em estruturar uma produção própria forte), em especial do Oriente, a balança comercial do Império tornou-se extremamente desfavorável: O Estado compra aos comerciantes sírios, gregos ou egípcios, mas, em troca, não pode vender nada, não tendo nenhuma grande indústria. (RICHÉ, s.d., p. 26). Outra questão que traduz a crise econômica é o alto gasto para a manutenção da máquina administrativa, ainda mais sendo um Império. E, por ser um Império, o exército é um anexo de suma importância, sendo assim, os subsídios para manter o mesmo eram cada vez maiores. O somatório dessa conta era pago pela população. A irresponsabilidade administrativa era tamanha que, em meio a crise, uma das medidas foi o aumento na produção da moeda. Naturalmente, a moeda perdeu seu valor gerando uma inflação meteórica. A sociedade deixa de confiar na moeda e volta à prática da economia a base de troca, o que, não deixa de ser, em termos econômicos, um retrocesso. Com toda essa instabilidade, os limites do Império Romano estavam sendo postos à prova constantemente pelas invasões bárbaras. Os limites do Império modificavam constantemente bem como novas capitais vinham sendo escolhidas: Convém notar, no entanto, que, nesse belo conjunto, o despertar das nacionalidades e a escolha de novas capitais criaram outras linhas de força cujos pontos de chegada são Trèves, Milão, Sírmio e Constantinopla. Roma já não tem a preponderância de outrora e o Império, ao defender-se contra os Bárbaros, corre o risco de se dividir se a sua organização política não se adaptar à nova situação. (RICHÉ, s.d., p. 21). A crise dentro do Império, nesse diapasão, é conjuntural. Vários fatores interligados desencadearam problemas, em especial dentro de Roma, que importarão
16 15 na queda do poder romano. Roma já não é a mesma. O Império precisa de uma nova organização política para conseguir se manter. A divisão administrativa do Império torna-se uma necessidade. 1.2 A divisão Para tentar resgatar a força do Império, algumas mudanças estruturais, principalmente na forma de governo, deveriam ser realizadas. As figuras de dois governantes ficaram marcadas por empreenderem reformas: Foram, no entanto, Diocleciano e Constantino que mediram a gravidade do declínio e levaram a bom termo a operação regeneradora por meio de reformas institucionais em grande escala. As suas medidas não foram promulgadas e postas em vigor em todo o império de uma só vez; apareceram a pouco e pouco durante as cinco décadas e meia que separam a ascensão de Diocleciano da morte de Constantino. (VRYONIS, s.d., p. 18). Não cabe no presente trabalho dissertar sobre as reformas, mas apenas contextualizar que a partir de um momento de crise geral no Império, medidas foram tomadas cujo precursor foi Diocleciano. Em comum, esses governantes patrocinaram uma mudança no regime administrativo: A manifestação mais clara da mutação do regime administrativo foi o abandono de Roma como capital do império. Embora Milão a tenha substituído como centro imperial do Ocidente, a principal residência do imperador veio a ser fixada no Oriente. Diocleciano escolheu Nicomedia; Constantino, Constantinopla. A escolha destas duas cidades gregas mostra que o centro de gravidade político do império se deslocara para o Oriente. (VRYONIS, s.d., p ).
17 16 É perceptível que há uma movimentação do Ocidente para o Oriente. Diocleciano já vislumbrava essa tendência, mas foi Constantino quem a promoveu, e Teodósio a efetivou. Não por acaso. O Oriente era a parte mais rica do mundo até então conhecido, com maior quantidade de pessoas, de produtos, com um comércio intenso. Manter a estrutura imperial no Ocidente improdutivo e constantemente ameaçado pelas invasões bárbaras não era algo salutar. Na realidade, Roma estava desgastada pelas crises e não havia soluções aparentes dentro da extensão local. Quando Constantino consegue reunir para si todo o poder imperial, ele decide inaugurar Constantinopla: Constantino é senhor do Império. No mesmo ano, decidiu criar uma segunda capital. Para tal, escolheu Bizâncio, que indicava a rota estratégica, indo da Ásia até ao Ocidente, e evitava um longo trajecto marítimo. Daqui resultava que o eixo do Império já não passava por Roma. (GRIMAL, s.d., p. 140). Constantinopla é continuidade de Roma. Ao escolher a nova capital, para lá são transportadas a cultura e identidade romana. De 378 a 395 Teodósio governou Roma e, em 395 concretiza a separação entre Oriente e Ocidente ao repartir o Império Romano entre seus dois filhos, Arcádio, que ficou com as províncias orientais e Honório, que ficou com as províncias ocidentais Bizâncio (Constantinopla) e os imperadores Localizada às margens do Bósforo, a cidade de Bizâncio era uma antiga cidade-
18 17 estado grega. Apesar de seu ponto estratégico, na antiguidade não exercia papel chamativo, só adquirindo importância inegável a partir do governo de Constantino. Em termos de geografia, Bizâncio é o meio termo entre o Oriente e o Ocidente: Constantinopla era o lugar ideal para a capital de um Estado que devia a sua aliança tripla à geografia. A cidade ergue-se nas margens da Europa e da Ásia. E a Trácia, por um lado, e a Ásia Menor Ocidental, por outro, constituíram, do princípio ao fim do apogeu do Império, as partes mais vitais do seu território. (RICE, 1970, p. 30). Batizada de Constantinopla pelo imperador Constantino como forma de se autohomenagear, a cidade foi inaugurada como capital do Império em 11 de maio de 330: Constantino promove a consagração da nova capital em 330. Esta solenidade marca o fim de meio século de reformas importantes. Com raízes nas desordens do século III, as reformas realizadas institucionalizaram os esforços isolados para modificar a sociedade romana. (VRYONIS, s.d., p. 30). Constantino ficou no poder de 324 a 337 tendo construído algumas obras como o foro, por exemplo. Quando morreu, assumiu seu filho, Constâncio, que deu continuidade aos anseios de seu pai entre 337 e 361. Fundou um senado aos moldes do Senado Romano e equivalente ao mesmo. Isso reforça a ideia de Bizâncio continuar Roma. Depois de Constâncio, foram os seguintes os imperadores bizantinos: Juliano ( ), Joviano ( ), Valente ( ), Teodósio ( ), Arcádio ( ), Teodósio II ( ), Marciano ( ), Leão I ( ), Leão II (474), Zenão ( ), Basilisco ( ), novamente Zenão ( ), Anastásio I ( ), Justino I ( ), até chegar a Justiniano (muitas vezes recebe o título de Justiniano I
19 18 por ser o primeiro imperador bizantino com o nome de Justiniano, tendo seguido outros sem sucessão a ele que continuam a numeração do título). Justiniano é o imperador que mais se notabiliza no sentido de resgatar o passado romano e é através dele que um aspecto muito importante da cultura romana vai ganhar sobrevida, o direito, e mais do que isso, continuará ainda depois de Roma e Bizâncio, sendo o escopo do trabalho: demonstrar a sobrevivência do direito romano em Bizâncio. Sem Justiniano e os juristas que gravitavam na corte bizantina seria difícil o direito romano ter o mesmo êxito Justiniano O Império Bizantino consolida-se com Justiniano. Com Justiniano, Bizâncio torna-se referência arquitetônica, urbanística, organizacional e bélica. Construções são erguidas, a cidade ganha contornos próprios ao mesmo tempo em que a postura do Império modifica a partir das políticas implantadas por Justiniano. É impossível afirmar com precisão se Justiniano pretendia restabelecer o Império Romano. As suas realizações sugerem uma forte influência de Roma. Enquanto imperador demonstrava ser romano. Um império se justifica pela política de expansão territorial. Nesse sentido, Justiniano moveu grandes esforços na tentativa de recuperar territórios ocidentais antes romanos, em guerras travadas principalmente contra os bárbaros: Apesar de enormes dificuldades, Justiniano conseguiu em grande parte pôr as províncias ocidentais pelo menos aquelas em torno do Mediterrâneo sob seu controle. Criara um novo Império Romano em termos assim tão literais, porque era governado a partir da nova Roma. (ANGOLD, 2002, p. 32).
20 19 Um novo Império Romano, mas ainda assim, romano. A zona do Mediterrâneo sob controle de Bizâncio é significativa. O Mediterrâneo é o começo da sociedade romana, sua fonte primeira de comércio com outros povos. A partir do Mediterrâneo, Roma conseguiu expandir sua influência. Controlar o Mediterrâneo é uma constante na antiga sociedade romana, mesmo antes do período imperial. O exemplo foi seguido à risca pelo imperador Justiniano. Devido à localização de Bizâncio, o contato com o Oriente era dinâmico, e isso era algo que ao mesmo tempo em que significava um comércio intenso, representava maior proximidade com inimigos poderosos. Justiniano não almejou qualquer expansão territorial rumo ao Oriente, o êxito de tal empreendimento era pouco provável. O imperador preferiu, portanto, uma neutralidade defensiva: Explorando o isolamento diplomático dos seus inimigos no Ocidente, e assumindo uma atitude defensiva no Oriente, Justiniano conseguiu converter, mais uma vez, o Mediterrâneo em lago imperial e dar ao seu nome um brilho temporário, mercê da destruição dos reinos bárbaros. (VRYONIS, s.d., p. 52). Fica evidente que Justiniano implantou uma política imperial aos moldes romanos, que, muito embora comedida com relação ao Oriente, não deixa de ser expansionista. Reconquistar territórios outrora romanos perdidos para os bárbaros deixa transparecer uma atitude passional, tentativa de retomar o orgulho da sociedade romana ferido pelas invasões bárbaras. No que diz respeito à política interna, interessante notar a presença da tradicional política do pão e circo de Roma. Em Roma as arenas de gladiadores ficaram famosas por ser uma distração popular patrocinada pela administração governamental. Em Bizâncio ficaram marcados os hipódromos, também conhecidos por
21 20 circos, locais destinados à realização de jogos. A ideia é semelhante à de Roma: realizar espetáculos direcionados ao povo, essa forma de lazer importava uma promoção do próprio imperador patrocinador dos jogos nos hipódromos. Não foi Justiniano quem criou os hipódromos, mas deu continuidade ao espetáculo que seguia o padrão romano de distrair a sociedade em troca do apoio da mesma. Seguindo a política imperial romana, também em Bizâncio havia um senado que, praticamente era simbólico frente ao poder do imperador. Isso também ocorreu em todo o período de Roma enquanto Império, sendo que o Senado servia apenas para legitimar os atos do imperador. No governo de Justiniano essa condição permanece, mas é demasiada romana porque Justiniano ditou as regras de seu governo como bem entendeu, afirmando ainda mais a política imperial romana. Aliás, Justiniano imperou sob seus domínios de forma muito unilateral. Seu poder imperial foi consolidado a partir de 532 com a Sedição de Nica. Os hipódromos tinham duas facções esportivas responsáveis pelos jogos, os Azuis e os Verdes. Esses organismos desportivos existiam bem antes de Justiniano. Acontecia, com certa frequência, de as facções extrapolarem os limites desportivos e promoverem arruaças urbanas. Em 532 houve uma série de revoltas promovidas pelas facções e ficou conhecida como Sedição de Nica a retaliação promovida pelo imperador: Essas revoltas foram desencadeadas pelas facções do circo, que se opuseram às medidas tomadas por Justiniano para discipliná-las. Os adversários do Imperador na aristocracia senatorial usaram a insatisfação das facções como encobrimento para suas ambições políticas. Fizeram um dos sobrinhos de Anastácio ser proclamado imperador. Justiniano sentira-se inclinado a aplacar os membros das facções, mas então, incitado por sua imperatriz, Teodora, partiu para a repressão brutal. Mandou seus guardas, sob o comando de Belisário, ao hipódromo, onde dizem que eles massacraram 30 mil pessoas. Mandou executar seus mais destacados adversários políticos e confiscou a propriedade de outros senadores. Em conseqüência da Sedição de Nica, Justiniano teve não apenas o controle total de sua capital, mas também uma esplêndida oportunidade de construir. (ANGOLD, 2002, p. 33).
22 21 Depois da Sedição de Nica, Justiniano governou sem a presença do Senado e demais opositores. Em relação à estrutura física da cidade, seu governo é marcado por grandes obras e monumentos. Claro que há inovações que marcam as construções bizantinas. Exemplo disso são as abóbadas, em especial a da Igreja de Santa Sofia construída após a Sedição de Nica. Essas peculiaridades não fazem com que a influência romana dilua. A própria suntuosidade das obras é uma herança romana: Seus monumentos colunas que exibiam seus feitos em relevo, arcadas triunfais, foros eram todos de inspiração romana. Até as igrejas correspondiam ao tipo da basílica romana. (ANGOLD, 2002, p. 32). Na posição de imperador, Justiniano ainda tinha a questão religiosa como preocupação. Aliás, foi pauta essencial de seu governo e logo de início acaba com esse problema de isolamento da Igreja de Constantinopla: Sob Justiniano, linhas claras substituíram a deriva característica do reinado de Anastácio. Sua primeira ação importante foi liquidar o cisma que isolara a Igreja de Constantinopla do papado. A restauração da unidade eclesiástica era uma condição essencial para a restauração da unidade política. (ANGOLD, 2002, p. 31). Até aqui é perceptível que há, em Justiniano, uma forte referência às tradições romanas, explicitadas pelas suas ações governamentais. É um compromisso com Roma e suas instituições mais evidentes: Perfeitamente cônscio dos seus deveres, decidiu reconstruir territorialmente o império, unificar as facções que dividiam a Igreja e simplificar o acúmulo de matéria legal dos últimos séculos. Destes elevados ideais, das inesgotáveis energias de Justiniano (os súditos chamavam-lhe o imperador que não dorme), proveio a reconquista da maior parte do Ocidente, a codificação do Direito e uma extraordinária produção artística. (VRYONIS, s.d., p. 46).
23 22 O direito romano, que é o cerne do trabalho, será abordado nos capítulos seguintes, evidenciando que a compilação das leis romanas empreendida por Justiniano bem como as demais obras jurídicas se constituem em um legado que atravessou séculos e fez com que o direito romano não só sobrevivesse, mas se firmasse como base jurídico-legal para grande parte do mundo, não só Ocidental. Seguindo o título da obra de Michael Angold sobre o Império Bizantino: Bizâncio: a ponte da antiguidade para a Idade Média, em que Bizâncio é vislumbrada como uma forma de viabilizar a passagem da antiguidade para o mundo medieval, sugerimos que Bizâncio, mais notadamente no período de Justiniano ( ), é a ponte que possibilita a permanência da cultura romana sob o aspecto jurídico.
24 23 2 O DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO 2.1 O direito e o direito romano A definição de direito, assim como de história, é bastante variável e não definitiva. Diferentes abordagens levam a conceitos distintos. Todavia, há uma forma de considerar o direito como um fenômeno social peculiar, pois é condição de existência da própria sociedade. O direito não pode ser vislumbrado como algo extrínseco à sociedade. Um antigo brocardo sempre renova a noção de direito enquanto parte inerente à sociedade: ubi societas, ibi ius (onde está a sociedade está o direito). É como se um não existisse sem o outro, porque a partir do momento em que houve qualquer relação social, existiu também uma relação jurídica: De experiência jurídica, em verdade, só podemos falar onde e quando se formam relações entre os homens, por isso denominadas relações intersubjetivas, por envolverem sempre dois ou mais sujeitos. Daí a sempre nova lição de um antigo brocardo: ubi societas, ibi ius (onde está a sociedade está o Direito). A recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas, não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas, nem qualquer regra que não se refira a sociedade. (REALE, 2002, p. 02). O entendimento acima transposto é pautado no brocardo transcrito e não por acaso está em latim. Desde Roma antiga essa percepção do direito enquanto parte integrante da condição de existência da sociedade é válida. A relação entre as pessoas, a alteridade, importa num mínimo de organização social que os romanos entendiam por direito. Dessa maneira, para entender muitos dos institutos do direito romano e, em
25 24 especial, as Institutas do imperador Justiniano no Império Bizantino, a noção de que para o romano a sociedade é inconcebível sem o direito é muito importante. Como condição de existência da sociedade romana e, por conseguinte, da sociedade bizantina, o direito romano será considerado no presente estudo sob seu aspecto cultural. Essa ressalva é importante porque o direito pode ser estudado sob a perspectiva predominantemente jurídica, social, ou ainda econômica. Produto cultural, o direito é, sempre fruto de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um fenômeno universal e atemporal (GRAU, 2008, p. 20). O enfoque a partir da cultura serve para demonstrar que o direito possui também essa característica de forma de expressão cultural de uma sociedade. A tradição romana de organizar a sociedade através do direito tem por base a codificação e a legislação, ou seja, são as leis e os códigos que orientam a convivência entre as pessoas. Pessoas, não somente cidadão, porque cidadão em Roma é apenas uma parte da população, principalmente se considerarmos o Império Romano e toda sua extensão territorial. Tanto é verdade que o direito romano é dividido de acordo com a destinação em função das pessoas: Todos os povos que se regem por leis e costumes usam, em parte, do seu próprio direito, e em parte de um direito comum a todos os homens. (INSTITUTAS, p. 23). 1 O seu próprio direito é o direito civil, destinado aos cidadãos romanos. Direito comum é o direito das gentes. 1 A referência às Instituas do Imperador Justiniano será sempre por INSTITUTAS com a relativa página, obra traduzida para o português por J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, e segue dessa forma no restante do capítulo.
26 25 As leis ou códigos são formas positivadas escritas, ou seja, há uma previsão legal reduzida a termo do que pode ou não ser feito. Por outro lado, nem todas as formas de organizar uma sociedade a partir do direito são escritas. Não foi em Roma que surgiu o direito escrito. Se considerarmos o Código de Talião ou mesmo os Dez Mandamentos previstos na Bíblia, podemos afirmar que formas escritas de organizar a sociedade já existiam. Todavia, em Roma o direito não era apenas uma forma de organizar a sociedade. O direito romano se constituiu em uma verdadeira expressão da cultura, uma peculiaridade, sendo objeto de estudos e muitos trabalhos. Sendo assim, podemos afirmar que o legado jurídico romano é o mais importante: Não existe, doutra parte, nenhuma legislação antiga tão conhecida como a romana. Os monumentos legislativos e doutrinários que chegaram até nós permitem um seguimento das variações do Direito Romano, de suas origens até a época moderna e, raramente, tais variações deixam de afetar o direito que ora aplicamos. (VENOSA, 2004, p. 56). O fato de ser um direito baseado em leis escritas possibilitou a permanência dessa forma de organização. Também existiram e existem maneiras de estipular o direito baseado não em leis escritas, mas em costumes, chamado direito consuetudinário. Contudo, parece um tanto lógico que algo escrito sobreviva mais tempo do que algo baseado em costumes. A escrita tem maior possibilidade de se tornar uma fonte histórica. É o que aconteceu com o direito romano. Ainda que muitas leis tenham sido elaboradas baseadas em costumes, elas foram feitas de forma escrita em sua maioria: O nosso direito divide-se em escrito e não escrito, como o dos gregos, cujas leis são algumas escritas e outras não-escritas. (INSTITUTAS, p. 24). Quando
27 26 escrito é como se reduzisse o costume a um tratado, conservando o mesmo, o que corrobora para a permanência de uma cultura, nesse caso, a partir do diploma jurídico. O direito romano pode ser entendido de formas distintas de acordo com a classificação de cada autor, é o que diz José Cretella Júnior em seu Curso de Direito Romano: A expressão direito romano é tomada em diferentes sentidos pelos autores. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07). Uma forma de perceber o direito romano é a partir do período em que de fato ele existiu: Num primeiro sentido, a referida expressão designa o conjunto de regras jurídicas que vigoraram no império romano durante cerca de 12 séculos, ou seja, desde a fundação da Cidade, em 753 a.c., até a morte do imperador Justiniano, em 565 depois de Cristo (para outros de 753 a 1453). (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07). Partilhamos da ideia de que a cronologia mais correta seja de 753 a.c. até 1453, ano em que o Império Bizantino é dominado pelos Turcos Otomanos e marca o fim do Império Romano do Oriente. A explicação está na própria existência das estruturas de Bizâncio que só foi modificado de forma contundente com a dominação turca. Ademais, o direito bizantino inaugurado por Justiniano não morreu com ele. Outra definição de direito romano que merece destaque porque define bem a tendência privada de encarar o direito pelos romanos: Num segundo sentido, direito romano é expressão que designa um ramo apenas daquele direito, isto é, o direito privado romano, com exclusão do direito público, que não atingiu, em Roma, o mesmo grau de desenvolvimento e perfeição que aquele outro ramo (...). (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07).
28 27 De fato, o direito romano propriamente dito cujos institutos jurídicos permanecem até os dias de hoje sendo base de vários modelos jurídicos é o direito civil. E, outra forma de interpretar o direito romano que merece destaque, e que nos interessa bastante no cerne do trabalho é a partir do direito bizantino: A expressão direito romano é empregada ainda para designar as regras jurídicas consubstanciadas, no Corpus Juris Civilis, conjunto ordenado de leis e princípios jurídicos, reduzidos a um corpo único, sistemático, harmônico, mas formado de várias partes, planejado e levado a efeito no VI século de nossa era por ordem do imperador Justiniano, de Constantinopla, monumento jurídico da maior importância, que atravessou os séculos e chegou até nossos dias. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07). Esse direito romano compilado pelo Imperador Justiniano é o objeto central da pesquisa. A partir do Corpus Juris Civilis, torna-se perceptível a sobrevivência do direito romano em Bizâncio. Por ter sido elaborado em um período em que o próprio direito romano já estava bastante estruturado, o direito bizantino consiste no direito romano amadurecido, de grande envergadura. Para tanto, a noção de que direito romano é essencialmente direito civil bem como a cronologia apontada acima também são importantes para delimitar o estudo do tema. O direito bizantino é, portanto, continuidade do direito romano. É forma de expressão cultural de Roma em Bizâncio. 2.2 Direito romano em Bizâncio Como visto, o Império Romano foi dividido definitivamente em duas sedes administrativas pelo imperador Teodósio, o qual dividiu as províncias romanas para
29 28 seus dois filhos, Honório (parte Ocidental) e Arcádio (parte Oriental). A finalidade dessa divisão de poder é a própria manutenção do poder de Roma. Bizâncio foi uma tentativa de restabelecimento do vigor romano cuja localização é de suma importância para continuar a ter influência junto ao Oriente. A tentativa de restabelecer o Império Romano em seus próprios domínios não poderia ser feita apenas a partir do poderio bélico. Mesmo porque Roma não tinha mais o mesmo porte militar de antes devido às invasões bárbaras e ao esfacelamento do Ocidente. Nesse sentido, mais importante do que qualquer imposição através da força foi a importação da própria cultura romana para a região da Ásia Menor, e nela, Bizâncio. A opinião é no sentido de que o latim, a religião e o direito foram os maiores responsáveis pela manutenção da cultura, mas é o direito que nos interessa mais, mesmo porque o modelo jurídico romano encontra amparo na maior parte do mundo. Vale consignar que o direito romano sofreu alterações significativas através dos séculos, mesmo dentro da própria vigência de Roma antiga. Entretanto, a essência permaneceu intacta, em especial se pensarmos no direito romano enquanto direito civil que regulava as condutas dos cidadãos romanos e majoritariamente dentro de Roma, e, no mesmo diapasão, o direito bizantino: Chama-se direito civil o direito de cada cidade, como, por exemplo, o direito dos atenienses (...). Todas as vezes que dissermos direito, sem especificar de que povo se trata, queremos aludir ao nosso próprio direito.... (INSTITUTAS, p. 24). Esse trecho demonstra a importância dada ao direito do próprio local, o direito civil, utilizado dentro da cidade de Bizâncio. A expressão direito conota o direito da cidade, o direito civil, e não a qualquer direito. Como a maior parte dos institutos jurídicos no âmbito civil foi importada de Roma para Bizâncio, a tese de que Roma sobrevive em Bizâncio começa a ganhar tona.
30 29 Se o direito civil é o direito da cidade, e o direito civil bizantino é praticamente o direito civil romano, então é como se a própria Roma fosse refletida em Bizâncio, afirmando a ideia de sobrevivência do direito romano em Bizâncio. O grande responsável por essa sobrevida do direito romano em Bizâncio foi o Imperador Justiniano. 2.3 A empreitada jurídica de Justiniano A produção jurídica romana foi uma constante durante o período em que Roma teve seu esplendor. Mesmo nos períodos cuja força de Roma era menos evidente, o direito teve um papel de destaque na cultura da sociedade. Por outro lado, não havia uma compilação jurídica que refletisse o direito romano. O direito não era sistematizado, abrindo margem a várias dúvidas e manifestações díspares dos magistrados: Há, na realidade, um intervalo de três séculos entre os juristas clássicos e o trabalho a ser realizado por Justiniano. (VENOSA, 2004, p. 77). Claro que havia jurisconsultos, constituições e obras doutrinárias de direito, mas, como continua o mesmo autor,... até o aparecimento do trabalho de Justiniano (...), a codificação realizada no século V mostra-se incompleta e insuficiente. (VENOSA, 2004, p. 77). A figura do Imperador Justiniano já foi trabalhada no capítulo anterior, contudo, é digno ressaltar que tal imperador é o responsável por erguer o Império Bizantino de uma forma muito particular. O objetivo dele não era somente fazer de Bizâncio uma
31 30 cidade importante e forte junto ao mundo Oriental, ou mesmo erguer um novo império distinto de Roma. O intuito de Justiniano era afirmar a cultura romana: Justiniano ( ) pretendeu restaurar o prestígio do Império e o fez em todos os campos. Subiu ao trono do Império Romano do Oriente, em Constantinopla, a 1º Era natural de Ilíria, Tauresium. Fez grandes conquistas militares, pretendendo que o Império Romano retornasse a sua grandeza. (VENOSA, 2004, p ). Claro que existem posicionamentos contrários à tese de que Justiniano tenta resgatar o passado romano: A contribuição de Justiniano para a divisão definitiva foi considerável. Embora ele se orgulhasse de falar latim e admirasse muito o passado romano, ele fez mais do que qualquer outro imperador para transformar Bizâncio na sede de uma cultura política destacada. Um aspecto dessa política foi o combate à enorme confusão e complicação das leis, em parte originárias do início da República. (ROBERTS, 2001, p. 256). É razoável considerar que após Justiniano, o Império Bizantino firmou bases autônomas e criou uma identidade própria. Mas, as atitudes de Justiniano sempre consideraram a cultura romana, em especial a questão jurídica. Nesse viés, o combate à confusão e consequente complicação das leis resultou em um compêndio legal, doutrinário e jurisprudencial que recebeu o nome latim de Corpus Juris Civilis: A expressão Corpus Juris Civilis não foi lançada por Justiniano, mas pode ser creditada ao estudioso do direito romano Denis Godefroy, a que atribuiu à compilação de quatro livros, Institutas, Pandectas, Digesta, e Codex, feita por uma comissão de juristas dirigidas por Triboniano, jurista de Beirute, a serviço do Império Romano do Oriente. Essa comissão foi designada para compilar o direito do período clássico romano feito pelos jurisconsultos antigos do período clássico (Digesta e Pandectas). Queriam também compilar as constituições imperiais (Codex) e criar o material didático acessível ao direito romano para o estudante de direito (Institutas). (VÉRAS NETO, 2009, p. 129).
32 31 O Corpus Juris Civilis não recebeu esse nome de Justiniano, mas foi empreendido pelo imperador bizantino. A nomenclatura Corpus Juris Civilis, como se extrai da citação acima foi dado por um romanista, estudioso do direito de base romana. Da leitura dos textos compilados, em especial das Institutas, que foi a obra de maior porte jurídico por se tratar de um manual próprio ao estudante do direito, é perceptível a visão romanista dispensada ao direito enquanto área do conhecimento. 2.4 O Corpus Juris Civilis Os nomes das obras de Justiniano podem variar de acordo com o autor pesquisado, pois alguns conservam os nomes em latim. Contudo, a preferência da presente pesquisa é utilizar a nomenclatura em português, portanto, as obras são as seguintes: Código, Digesto, Institutas e Novelas. Sobre Justiniano e sua obra: Esse imperador bizantino, já no segundo ano de seu governo, dá início a sua obra legislativa. Remaneja as fontes de direito conhecidas, e seu trabalho de compilação e correição compreende quatro obras monumentais para a cultura jurídica universal: o Código, o Digesto, as Institutas e as Novelas. Ao conjunto dessas obras juristas mais modernos chamam Corpus Juris Civilis, como até hoje é conhecido. (VENOSA, 2004, p. 78). O romanista José Cretella Júnior acrescenta ao Corpus Juris Civilis as 50 decisões (Quinquaginta Decisiones) a respeito de pontos controvertidos entre antigos jurisconsultos. (CRETALLA JÚNIOR, 2000, p. 51). Não concordamos com essa visão porque essas decisões não tiveram a mesma natureza das demais compilações as quais foram elaboradas pelo poder oficial do Império.
33 32 Apenas a título de esclarecimento tendo em vista afastar qualquer dúvida, deve estar claro que não foi o próprio Imperador Justiniano que elaborou as obras jurídicas. O trabalho jurídico para o romano não era uma simples edição de leis e textos. Havia verdadeira preocupação com a técnica do trabalho: O trabalho de Justiniano foi atribuído a uma comissão, em que despontava o jurista Triboniano, que ele não se cansa de elogiar. Esse jurista, principal colaborador, era professor de direito da escola de Constantinopla. Triboniano cerca-se de juristas, professores, e advogados, com os quais inicia enorme trabalho de compilação. Foi eficazmente auxiliado nessa missão por Teófilo, outro professor da mesma escola. (VENOSA, 2004, p. 79). A importância da obra de Justiniano não consiste em criar um direito novo, um direito posto casuístico, mas em sistematizar a cultura romana a partir do direito. Cada obra tem um conteúdo específico conforme será demonstrado em seguida O Código (Lei) O Código que sobreviveu foi feito em 16 de novembro de 534. É a primeira obra jurídica de Justiniano em sua segunda edição. A edição anterior, com o mesmo formato, publicado em 07 de abril de 529, não chegou até nós. Como o segundo Código é uma segunda edição com novas constituições, o entendimento é no sentido de que o Código se trata da primeira obra justiniana. Todavia, o Código Antigo se perdeu, não tendo chegado a nossos dias. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 51). Por isso alguns autores chamam o Código de 534 de Código Novo. A preferência é por utilizar simplesmente o nome Código.
34 33 Mesmo assim, é consenso que o segundo Código, ou Código Novo, ou simplesmente Código, de 534, tem o mesmo teor do Código de 529, modificado apenas o necessário para ser considerada uma obra reeditada e ampliada. A respeito da estrutura do de tal obra jurídica: O Código redigido de acordo com o sistema das compilações anteriores é dividido em 12 livros, subdivididos em títulos. As constituições estão ordenadas em cada título por ordem cronológica, como nos códigos anteriores. (VENOSA, 2000, p. 79). As constituições presentes no Código de Justiniano já existiam em Roma. O trabalho de Triboniano e os juristas da comissão que desenvolveu a compilação era no sentido de reunir todas as constituições de forma sistemática e harmônica. Em outras palavras, o trabalho dos juristas foi uma compilação, não uma criação. Ou seja, continua a cultura jurídica originária de Roma, tanto que o mérito da compilação, colocando todas as constituições no Código, é torná-lo obrigatório como lei do Império. (VENOSA, 2000, p. 80). Nesse contexto, interessante ainda refletir sobre a divisão do Código em 12 livros, significativo se for comparado à Lei das XII Tábuas cuja estrutura era similar, mantendo a tradição romana O Digesto (Jurisprudência) Digesto é o nome em latim dessa obra, e Pandectas é o nome grego, ambos têm o mesmo significado prático para o direito romano.
35 34 É a obra mais densa empreendida pelos jurisconsultos bizantinos e levou cerca de 03 (três) anos para ser concluída, tendo sido iniciada em 15 de dezembro de 530 e publicada em 16 de dezembro de 533. O tempo foi relativamente curto, já que o trabalho era assaz árduo: A organização do Digesto foi confiada a uma comissão de 16 juristas, entre os quais se inscreviam os professores Teófilo, Cratino, Doroteu e Anatólio dirigidos por Triboniano. Esperava o imperador que a obra terminasse em 10 anos, mas os esforços dos organizadores abreviou o tempo, entregando-se o trabalho concluído em menos de três anos. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 52). O Digesto consiste na compilação de jurisconsultos clássicos. O significado para o português é digerido, organizado, classificado. Como se tratava de organizar todo o entendimento clássico, seriam mais de anos de produção jurídica a serem pesquisados: A tarefa era enorme. Cerca de anos de cultura jurídica deveriam ser pesquisados, requerendo o exame de aproximadamente livros. São citados 38 ou 39 jurisconsultos no Digesto, desde o século II a. C. até o final do século III de nossa era. (VENOSA, 2004, P. 81). Essa compilação de Justiniano é o que hoje é conhecido por jurisprudência (aqui o entendimento consolidado dos órgãos do Judiciário, e não o termo Jurisprudência no sentido de ciência do direito como era conhecido no direito romano clássico). O Digesto é o entendimento dos magistrados acerca dos institutos jurídicos, a aplicabilidade das normas (abstratas e genéricas) ao caso concreto e específico. A estrutura do Digesto consiste em 50 livros divididos em títulos cujos fragmentos são atribuídos aos juristas.
36 As Institutas (Doutrina) Publicada em 21 de novembro de 533, esta obra trata-se de verdadeira doutrina destinada aos estudantes do direito romano: As Institutas ou Institutiones ou Elementa são um Manual de Direito Privado Romano, elementar, para uso dos estudantes de direito de Constantinopla. Foram organizados por ordem de Justiniano, quase paralelamente na época da elaboração do Digesto, orientando o trabalho o mesmo Triboniano auxiliado por Teófilo e Doroteu. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 52). Essa é a obra mais difundida por ser mais simples do que as demais. É muito prática vez que condensa diversas noções do direito de forma didática e explicativa, trazendo noções gerais, definições e classificações. Como foi muito difundida e chegou até os dias atuais com o texto original e seguras traduções do latim para o português, permanece sendo fonte histórica do direito. Ademais, traz conceitos que traduzem a cultura jurídica romana, sendo material importante para o cerne do trabalho no sentido de abordar a sobrevivência do direito romano em Bizâncio, e, por essa razão, será trabalhado de forma mais precisa no capítulo seguinte As Novelas (Emendas) Como visto o direito enquanto produto cultural da sociedade acompanha a dinâmica da mesma. Como o direito romano é positivado de forma escrita, com o lapso
37 36 do tempo, novas leis devem ser feitas atendendo aos anseios sociais. Sendo assim, mesmo com a edição do Código em 534, a atividade legislativa empreendida por Justiniano não parou: As Novelas ou Autênticas são um conjunto de novas constituições imperiais, decretadas por Justiniano, nos últimos anos de seu reinado, para atender aos novos casos que surgiam. Essas constituições, escritas em grego umas, em latim outras, em redação bilingüe outras, foram registradas e conservadas nos arquivos do palácio, sendo divulgadas, mais tarde, em coleções sem cunho oficial. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 53). Nada mais natural. O imperador Justiniano organizou o legado jurídico romano, e, a partir de um direito sólido e estruturado, na condição de imperador pôde dar continuidade ao direito romano. Após a morte de Justiniano, outras Novelas continuaram a ser editadas e publicadas, mas, geralmente, em coleções sem cunho oficial. Porém, mesmo que não fosse um imperador editando as Novelas, o que importa é saber que a base jurídica e a tradição romana do direito continuaram presentes. O direito bizantino, que é praticamente baseado no Corpus Juris Civilis, é continuidade do direito romano.
38 37 3 A SOBREVIVÊNCIA O Renascimento costuma ser um dos indicadores da Idade Moderna e é caracterizado como uma volta ao passado greco-romano. Formas arquitetônicas e artísticas foram retomadas assim como a filosofia. Quer dizer, há um renascimento da cultura greco-romana. Em especial da cultura romana que absorvera estruturas gregas durante o período de dominação de Roma em continente europeu. Claro que essa retomada ao passado não é plena. Toda uma cultura medieval havia sido estabelecida na Europa. A Igreja Católica dominara o cenário social influenciando os aspectos políticos. Sob monarquias teocráticas, o apoio da Igreja era condição para legitimar a divindade do rei. Em suma, a Idade Média é um período em que a Igreja Católica é preponderante e na Idade Moderna isso continua. No que diz respeito ao direito, e é nessa perspectiva que defendemos a sobrevivência romana, a Europa estava sob jurisdição eclesiástica, tendo sido formado um compêndio legal conhecido como direito canônico. A partir do Renascimento, o direito canônico e o direito romano vão se encontrar. Aliás, o próprio direito canônico e o direito romano, em questão de estrutura são similares, ambos positivados de forma escrita, afastando a aplicação pelos costumes. O que diferencia ambos são os institutos. Enquanto o direito canônico regula a conduta a partir do plano imaterial e abstrato, o direito romano, até mesmo por ser um direito civilista, preocupado com as relações entre os indivíduos, regula a conduta a partir do plano material e concreto.
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