Violência, polidez, mediação de conflitos e acesso à justiça: alguns caminhos

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3 Ana Cristina Pelosi Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos Janete Pereira do Amaral (Organizadores) Violência, polidez, mediação de conflitos e acesso à justiça: alguns caminhos 1ª Edição Fortaleza Ceará 2017

4 Copyright Ana Cristina Pelosi, Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos, Janete Pereira do Amaral (Organizadores) Normalização e Padronização Luiza Helena de Jesus Barbosa - CRB-3/830 Capa Janete Pereira do Amaral Programação Visual e Diagramação Janete Pereira do Amaral Dados Internacionais de Catalogação na Fonte V795 Violência, polidez, mediação de conflitos e acesso à justiça: alguns caminhos/ Organizadores Ana Cristina Pelosi, Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos, Janete Pereira do Amaral. Fortaleza: Centro Universitário Estácio do Ceará, p.; 30cm. ISBN: Violência, Aspectos sociais 2. Polidez 3. Mediação de Conflitos 4. Acesso à justiça I. Pelosi, Ana Cristina II. Santos, Letícia Adriana Pires Ferreira dos III. Amaral, Janete Pereira do IV. Centro Universitário Estácio do Ceará CDD CENTRO UNIVERSITÁRIO ESTÁCIO DO CEARÁ Pró-Reitoria de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão Núcleo de Publicações Acadêmico-Científicas

5 CONSELHO EDITORIAL Dra. Ana Cristina Pelosi Universidade Federal do Ceará Ms. Ana Flávia Alcântara Rocha Chaves Centro Universitário Estácio do Ceará Dra. Andrine Oliveira Nunes - Centro Universitário Estácio do Ceará Ms. Janete Pereira do Amaral - Centro Universitário Estácio do Ceará Ms. Joana Mary Soares Nobre - Centro Universitário Estácio do Ceará Dra. Kariane Gomes Cezario - Centro Universitário Estácio do Ceará Dra. Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos Centro Universitário Estácio do Ceará, Universidade Estadual do Ceará, Universidade Federal do Ceará Dra. Marcela Magalhães de Paula - Embaixada do Brasil na Itália Dra. Maria Elias Soares Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará Ms. Maria da Graça de Oliveira Carlos Centro Universitário Estácio do Ceará Dra. Margarete Fernandes de Sousa Universidade Federal do Ceará Dra. Rosiléia Alves de Sousa Centro Universitário Estácio do Ceará Dra. Suelene Silva Oliveira Nascimento - Universidade Estadual do Ceará Dr. Vasco Pinheiro Diógenes Bastos - Centro Universitário Estácio do Ceará Núcleo de Publicações Acadêmico-Científicas Rua Vicente Linhares, Aldeota CEP: Fortaleza CE - Fone: (85)

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7 SUMÁRIO PREFÁCIO THE GRAMMAR OF PRISON VIOLENCE: REVISITING THE STANFORD PRISON EXPERIMENT (1971) OBSERVANDO A FILA: DISCRIMINAÇÃO RACIAL, VIOLÊNCIA E MORTE NAS INTERAÇÕES COTIDIANAS ENTRE CEARENSES E AFRICANOS VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM INTERAÇÕES SOCIAIS CATEGORIZAÇÃO DE VIOLÊNCIA EMOCIONAL PARA UNIVERSITÁRIAS GUINEENSES E BRASILEIRAS NA UNILAB POSICIONAMENTO E ADJETIVOS EM CORPUS FORENSE: UM ESTUDO FUNDAMENTADO NA LINGUÍSTICA DE CORPUS OLHAR PROS LADOS É ENTENDER A VIOLÊNCIA? A METÁFORA PRIMÁRIA COMPREENDER É VER NO DISCURSO SOBRE VIOLÊNCIA URBANA EM FORTALEZA A PRIMAZIA DA METONÍMIA EM RELAÇÃO À METÁFORA SOB O PRISMA DOS SISTEMAS ADAPTATIVOS COMPLEXOS E DA TEORIA FRACTAL UMA ANÁLISE DO DISCURSO DE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA URBANA VIOLÊNCIA URBANA, JUVENTUDES E A GESTÃO DAS VIDAS NUAS NAS MARGENS URBANAS IMPACTOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INFANTO JUVENIL: O QUE ESPERAR PARA O FUTURO? [1]

8 10 A IMPOLIDEZ COMO PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DOS JOGOS DE LINGUAGEM: O SENTIDO PARCIAL E VIOLENTAMENTE COMPARTILHADO UMA PROPOSTA DE MODELO EMPÁTICO ENTRE EMPATIZANTE E EMPATIZADO MEDIAÇÃO DE CONFLITOS: PREVENÇÃO À CRIMINALIDADE E DEFESA SOCIAL JUSTIÇA RESTAURATIVA: TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS, CORRESPONSABILIDADES E MEDIAÇÃO PENAL A PARTIR DE UM NOVO OLHAR SOBRE O CRIME NORMA E LINGUAGEM: PARADOXOS DO EXCEDENTE DO DISCURSO JURÍDICO ENTRE A CRISE DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO CEARENSE E AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS METÁFORAS SISTEMÁTICAS: CONSTRUÇÕES COLABORATIVAS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NA FALA DE SUAS VÍTIMAS AUTORES [2]

9 PREFÁCIO É com grande satisfação que disponibilizamos aos autores, apresentadores e público interessado, este e-book que contém trabalhos selecionados de comunicações, mesas-redondas e conferências apresentadas durante o I Congresso Internacional sobre Violência, Polidez, Mediação de Conflitos e Acesso à Justiça (I CIVIP), realizado em Fortaleza-Ceará, no período de 09 a 11 de setembro de 2016, como iniciativa do Grupo de Pesquisa sobre Linguagem e Pensamento Cognição e Linguística (GELP-COLIN) em parceria com a Universidade Federal do Ceará UFC, Universidade Estadual do Ceará UECE e o Centro Educacional Estácio do Ceará. O I CIVIP se constitui como um dos frutos das atividades de pesquisa sobre violência urbana, que, em especial desde 2010, com a assinatura de parceria internacional com a Universidade Aberta da Inglaterra para desenvolvimento do projeto sobre Metáfora, Empatia e a Constante Ameaça de Violência Urbana no Brasil, se tornaram o foco de atenção dos pesquisadores do grupo de pesquisa GELP-COLIN que reúne, na sua maioria linguistas, mas, também, profissionais das áreas do direito, psicologia e saúde, na busca pelo entendimento mais abrangente de conceptualizações, sentimentos e atitudes de vítimas de violência urbana a partir da análise da linguagem figurada emergida em seus discursos. O congresso que teve como objetivo primordial possibilitar a troca de conhecimentos entre pesquisadores, alunos e público interessado a respeito de seus eixos temáticos violência, polidez, mediação de conflitos e acesso à justiça, reuniu um público diverso proveniente de várias áreas do país e de outros continentes como a África e a Europa, estudiosos do Direito, Sociologia, Educação, Saúde, além, de Linguístas. A seguir, procurando manter na ordem de apresentação dos vários trabalhos, as mesmas linhas temáticas do CIVIP - violência, polidez, mediação de conflitos e acesso à justiça apresentamos uma síntese dos 16 capítulos que compõem o e-book, como um antegosto da leitura que a publicação proporcionará. Inicialmente, o capítulo intitulado A gramática da violência prisional: revisitando o Experimento da Prisão Stanford (1971) de autoria de Jean-Rémi Lapaire, analisa trechos do vídeo original e partes de três adaptações [3]

10 cinematográficas sucessivas do experimento Stanford na tentativa de estabelecer a importância do uso de mecanismos linguísticos por meio de um pequeno conjunto de construções modais na orquestração gramatical de autoridade e submissão na encenação do poder por meio da desfiguração de presos. O segundo capítulo de autoria de Ercílio Langa, sob uma ótica sociológica, busca analisar interações cotidianas entre africanos e cearenses verificando as formas de violência que afetam a vida dos africanos no Ceará que perpassam incidentes caracterizados pela rispidez, preconceito, discriminação racial, chegando à violência verbal, roubos e assaltos e; em casos extremos, a violência física e morte. A seguir, Adriana Martins e Tatiana Martins Oliveira da Silva e Meire Virgínia Cabral Gondim, refletem em seus capítulos, respectivos, sobre a violência contra a mulher. A primeira autora, se debruça sobre a preconceito e a violência de gênero na internet ao analisar à luz dos atos de fala (AUSTIN, 1975) e da Metapragmática (SILVA, 2010), duas postagens do Blog Testosterona, enquanto, sob um viés linguístico-cognitivo, as segundas autoras buscam entender à luz de Rosch (1975) e Lakoff (1987), como se organiza a categoria da violência emocional para universitárias guineenses e brasileiras, alunas da UNILAB. Ainda na temática de violência contra a mulher, o quinto trabalho intitulado Metáforas sistemáticas: construções colaborativas sobre a violência doméstica contra a mulher na fala de suas vítimas, de Monica Carneiro, inserido na Linguística Cognitiva e fundamentado na abordagem da Análise do Discurso à Luz da Metáfora, proposta por Cameron (2003, 2007a, 2007b, 2008; CAMERON; DEIGNAN, 2009; CAMERON et al., 2009; e CAMERON; MASLEN, 2010), enfoca a violência doméstica contra mulheres, buscando conhecer, a partir da análise da fala de seis vítimas diretas, como ideias e sentimentos relativos a este tipo de violência se manifestam em suas falas. Sob os aportes da Linguística de Corpus e da Linguística Aplicada, o sexto capítulo intitulado Posicionamento e adjetivos em corpus forense: um estudo fundamentado na linguística de corpus de autoria de Agnes dos Santos Scaramuzzi- Rodrigues tem como objetivo, a partir de uma investigação da linguagem verbal coletada e compilada em corpus eletrônico oriundo de um conjunto de oitivas processuais em processo penal de violência doméstica, investigar por meio da análise de posicionamento e linguística forense, evidências linguísticas reveladas no corpus relativas à classe gramatical dos adjetivos, que marcam o uso de posicionamento e suas diferenças por função processual. [4]

11 Sob os aportes da Linguística Cognitiva e Análise do Discurso à Luz da Metáfora, os capítulos sete e oito de autoria de João Paulo Rodrigues de Lima (capítulo sete) e Pedro Jorge da Silva Marques e Maria Elias Soares (capítulo oito), investigam respectivamente a linguagem figurada na fala de vítimas de violência urbana. O capítulo de Lima, sob a ótica dos sistemas dinâmicos complexos e considerando o discurso um de tais sistemas, entende a metáfora sistemática como resultado provisório que emerge não somente do discurso, mas, também da cognição em uma dupla direcionalidade (discurso-cognição e vice-versa). A partir dessa ótica da metáfora, o capítulo analisa algumas das metáforas emergidas nas falas de vítimas de violência urbana em Fortaleza-Ce. Já o capítulo de Marques e Soares contestando a primazia da metáfora, defende, a partir da análise de alguns excertos de fala de vítimas de violência urbana, a importância da metonímia sob os vieses da Linguística Cognitiva, da Teoria dos Sistemas Adaptativos Complexos e da Teoria Fractal, conferindo a primazia desta sobre aquela. O capítulo nono intitulado Violência urbana, juventudes e a gestão das vidas nuas nas margens urbanas, de Ingrid Lorena da Silva Leite, Leila Maria Passos de Souza Bezerra e Neyla Priscila de Araújo Castro, com foco em jovens pobres, moradores de territórios estigmatizados, propõe, a partir de pesquisas bibliográfica, documental e de campo, discutir violência urbana, sociabilidade violenta e o paradoxo do biopoder e da biopolítica sustentada na premissa do poder do soberano de fazer viver e deixar morrer, Diante das reflexões apresentadas, as autoras sinalizam para um contexto no qual os jovens residentes em territórios estigmatizados tornaram-se alvos potencias de sujeição criminal e das ações penal-punitivas estatais. O décimo capítulo, Impactos da violência doméstica infantojuvenil: o que esperar para o futuro?, de autoria de Maria Isabel Rocha Bezerra Sousa, Vanessa de Lima Marques Santiago e Raquel Coelho de Freitas, com base na legislação vigente, analisa, por meio dos métodos explicativo, observacional e descritivo, a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes. A partir da investigação realizada, as autoras constatam que a violência doméstica é um fenômeno de causas múltiplas e que avanços quanto à mobilização social e educação, são necessários para que a violência doméstica infanto-juvenil deixe de ameaçar o pleno desenvolvimento das crianças e dos adolescentes de nosso país. Os capítulos onze intitulado A impolidez como princípio constitutivo dos jogos de linguagem: o sentido parcial e violentamente compartilhado de Marcos Roberto dos Santos Amaral analisa com base em autores tais como Leezamberg [5]

12 (2014); Rajagopalam (2010, 2014), a polêmica on-line entre o blog Não Me Kahlo e um comentador sobre a expressão mulheres do grelo duro proferida por Lula. Ao problematizar a visão de mundo liberal sobre os jogos de linguagem, o autor defende que o princípio da cooperação não é o único fundamento nas práticas discursivas de construção de sentido e talvez mesmo nem seja o mais produtivo, pois há casos em que o significado, nos jogos de linguagem, é disputado recorrendo-se à impolidez. Kaline Girão Jamison (capítulo doze), em seu trabalho intitulado Uma proposta de modelo empático entre empatizante e empatizado, busca um melhor entendimento sobre empatia, promovendo, com base em autores tais como Lewis e Hodges (2012), Stueber (2006), Thompson (2001) e Morse et al.(1992), uma discussão sobre sua natureza dinâmica. Sob tais bases propõe um esboço de modelo empático (JAMISON, 2015) que busca elucidar como se processam movimentos de natureza empática entre empatizante e empatizado. O capítulo treze de Vinícius Lopes Drumond e Cynara Silde Mesquita Veloso, Mediação de conflitos: prevenção à criminalidade e defesa social, busca, a partir do estudo do fenômeno do conflito e do exame da redução da criminalidade e vulnerabilidade nos territórios, investigar, sob a luz da política pública de prevenção à criminalidade em Minas Gerais, a ampliação do acesso à justiça por meio da implementação do Programa de Mediação de Conflitos (PMC-MG). Concluem, os autores, que a mediação de conflitos, por meio de suas técnicas e princípios, almeja o empoderamento e a autonomia das partes, as quais são autoras do próprio desfecho da emenda, contribuindo para a propagação da cultura de paz e redução da criminalidade. A seguir, ainda em linha com a temática da mediação de conflitos, o trabalho de Elaina Cavalcante Forte e Flavianne Damasceno Maia Campelo (capítulo catorze) objetivam a partir de uma discussão do conceito de justiça restaurativa no Brasil, apresentar um novo enfoque sobre a justiça criminal em contraposição ao modelo tradicional de penas privativas de liberdade. Para tanto, buscam um conceito mais contemporâneo do que seja crime e de como a sociedade tem lidado com esse fenômeno social, que, segundo Durkheim é necessário e útil. Concluem por ressaltar a importância da atuação da Justiça Restaurativa no Brasil pois transmite a sensação de que a democracia brasileira poderá enfim adentrar em outro estágio, onde possa se afastar da hegemonia estatal no que diz respeito à solução dos conflitos. A seguir, os capítulos quinze e dezesseis, intitulados Norma e linguagem: paradoxos do excedente do discurso jurídico e Entre a crise do sistema [6]

13 socioeducativo cearense e as práticas restaurativas, assinados, o primeiro, por Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos e Ana Maria Almeida Marques e, o segundo, por Vanessa de Lima Marques Santiago, Maria Isabel Rocha Bezerra Sousa e Raquel Coelho de Freitas fecham a publicação. Santos e Marques, sob um viés linguístico envolvendo pragmática e atos de fala discutem a questão da performatividade da fala, buscando uma aproximação entre o Direito e a linguagem, pois, segundo as autoras, pensar o Direito é, acima de tudo, pensar naquilo que o estrutura e o constitui, ou seja, a linguagem Nessa perspectiva, entendem as autoras, que o Direito é mais do que um conjunto complexo de regras ou normas, podendo as codificações jurídicas serem vistas como princípios de racionalidade que não esgotam o Direito, mas o posiciona para além dos Códigos. Afirmam ser o não-dito aquilo que está nas entrelinhas da norma, que permite ao operador do Direito o trabalho interpretativo, que, como refém do seu próprio dizer busca atingir a um outro com seu repertório de tal modo a convencê-lo ou demovê-lo de algo. Finalmente, o capítulo de Santiago, Sousa e Freitas, sob a ótica da mediação de conflitos e da justiça restaurativa, discute a questão da violência que atinge menores de 18 anos, ressaltando episódios conflituosos envolvendo Unidades de Atendimento Socioeducativo que atendem adolescentes do sexo masculino em Fortaleza-Ce. Em meio a essa situação, as autoras se posicionam favoravelmente ao fortalecimento de ações de mediação de conflitos e a prática da justiça restaurativa, reforçando a pertinência da resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em sugerir possíveis formas de reforçar e criar novas experiências de justiça restaurativa no país. Esperamos que as leituras desses trabalhos ofereçam oportunidades de reflexões profícuas em torno das questões abordadas. Boas leituras! Ana Cristina Pelosi - UNISC / UFC Letícia Adriana Ferreira dos Santos UECE / Estácio do Ceará Janete Pereira do Amaral Estácio do Ceará [7]

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15 01 THE GRAMMAR OF PRISON VIOLENCE: REVISITING THE STANFORD PRISON EXPERIMENT (1971) Jean-Rémi Lapaire 1 INTRODUCTION In 1971, Professor Philip Zimbardo and his team 2 staged a controversial experiment in the basement of the psychology department at Stanford University. 24 healthy male students were chosen among 70 applicants and arbitrarily divided into guards and prisoners. Surprise arrests 3 were made in Palo Alto (by real police officers), a makeshift prison was set up and interactions between the subjects were filmed. We wanted to see just what were the behavioral and psychological consequences of becoming a prisoner or prison guard. To do this, we decided to set up our own prison, to create or to simulate a prison environment and then to carefully note the effects of this total institution on the behavior of all those within its walls. (Zimbardo 1971) The Stanford Prison Experiment, as it is now universally known, was meant to last two weeks but had to be terminated after 6 days only when it became apparent that many of the prisoners were in serious distress and many of the guards were behaving in ways which brutalized and degraded their fellow subjects. Mental breakdowns, sadistic behavior and eventually 1 Université Bordeaux-Montaigne, FR. jrlapaire@u-bordeaux-montaigne.fr 2 Researchers: Philip Zimbardo, Craig Haney, W. Curtis Banks, David Jaffe. Primary Consultant : Carlo Prescott. Police cooperation in Palo Alto: James C. Zurcher, Joseph Sparaco, Marvin Herrington. Prison construction: Ralph Jilliams, Bob Zeiss, Don Johann (Zimbardo 1971). 3 «On a quiet Sunday morning in August, a Palo Alto, California a police car swept through the town picking up college students as part of a mass arrest for violation of Penal Codes 211, Armed Robbery and Burglary, a 459 PC. The suspect was picked up at his home, charged, warned of his legal rights, spread-eagled against the police car, searched and handcuffed; often as surprised and curious neighbors looked on. The suspect was put in the rear of the police car and carried off to the police station, the sirens wailing. (Zimbardo 1971) [9]

16 a hunger strike demonstrated the power of situational determinants in both shaping behavior and predominating over personality, attitudes and individual values (Zimbardo 1973). Despite the sustained attention paid to verbal behavior during and after the experiment (debriefing sessions were held with all the participants), Zimbardo s perspective remained primarily behavioral and sociopsychological, with a strong focus on environmental contingencies and interpersonal dynamics. Individual behavior is largely under the control of social forces and environmental contingencies rather than personality traits, character, or will power. Thus, we create an illusion of freedom by attributing more internal control to ourselves, to the individual, than actually exists. We thus underestimate the power and pervasiveness of situational controls over behavior. (Zimbardo 1972) The aim of the present study is to establish the centrality of languagebased mechanisms in the processes at work: the enactment of power through the systematic defacement of prisoners, the grammatical orchestration of authority and submission through a small set of modal constructions. The mixed data used will be taken from the original video footage available and three successive film adaptations: Das Experiment (Hirschbiegel 2001), The Experiment (Scheuring 2010), The Stanford Prison Experiment (Alvarez 2015). A MOCK PRISON WITH REAL EFFECTS Zimbardo and his research assistants designed a simple yet realistic simulation of prison life : environmental, structural, institutional and social variables were manipulated in an effort to create a psychology of imprisonment in a group of subjects who role-played being guards (for eight hours a day over three shifts) and a group who acted as prisoners (for twentyfour hours a day) (Zimbardo, 1973). [10]

17 Figure 1 The Stanford Prison Experiment (1971) - Prisoners and guards PLAYING THE PRISON DRAMA (ZIMBARDO 1971) The 24 volunteers involved in the experiment were described as normal, average, healthy American college males. All had been recruited through newspaper advertisements in the United States and Canada. All had been administered a battery of psychological tests to eliminate candidates with any kind of psychological problem, medical disability or history of crime or drug abuse (Zimbardo 1971). In return for participating in a study of prison life each participant was promised a daily wage of fifteen dollars. The group was arbitrarily divided into two subgroups by a flip of the coin. Half were randomly assigned to be guards, the others to be prisoners. Roledistribution was not based on personal preference or predisposition. No special coaching was provided in the art of role-playing guards or prisoners. Only gowns, uniforms and a few props were made available to the mock wardens and inmates: Neither group received any formal training in these roles the cultural mass media had already provided the models they used to define their roles. The mock guards were impressed with the seriousness of the experiment and by the demeanor of the research staff; the prospective prisoners began to take their roles seriously when they were subjected to an unexpected arrest by the city police. After being processed and temporarily detained at the police station, they were escorted to the experimental setting. Uniforms and differences in power further served to differentiate the two groups of subjects. (Zimbardo 1973) [11]

18 The volunteers were left to work out their own strategies, both verbal and non verbal, on how to run the mock-prison: The guards were given no special instruction ( ) on how to be guards. Instead they were free, within limits, to do what ever they thought was necessary to maintain law and order in the prison and to command the respect of the prisoners (Zimbardo 1971). Although few students were initially attracted to the guard role, it was not long before they felt empowered. Prisoners were told to strip and clean toilets. They were forced to relieve themselves in buckets in their rooms. Push-ups were routinely imposed as a punishment for showing disrespect to guards or breaking prison rules. When rebellion unexpectedly broke out on the second day, fire-extinguisher spray was used to control and humiliate inmates. They got a fire extinguisher which shot a stream of skin-chilling carbon dioxide and forced the prisoners away from the doors, they broke into each cell, stripped the prisoners naked, took the beds out, forced some of the prisoners who were then the ringleaders into solitary confinement, and generally began to harass and intimidate the prisoners. ( ) About a third of the guards were extremely hostile, arbitrary, inventive in their forms of degradation and humiliation, and appeared to thoroughly enjoy the power they wielded when they put on the guard uniform and stepped out into the yard, big stick in hand. (Zimbardo 1971) The spread of sadistic behavior and sudden eruption of brutality, Zimbardo claims, could only be explained by the dynamics of the prison situation: The guard-subjects displayed a behavioral profile that was marked by its verbal and physical aggressiveness, arbitrariness and dehumanization of the subjects in the prisoner condition. None of these (and other) group or individual behavior patterns was predictable from the medical, social or educational histories of the subjects, nor from a battery of personality test scores. (Zimbardo, 1973) The rebellion fostered in-group solidarity among the guards while creating a split among the prisoners, some resisting others yielding, some getting preferential treatment for their submissiveness, others undergoing harsher punishments for their rebelliousness, some being trusted (by guards or fellow inmates) others becoming suspect. Those prisoners perceived as activists or ring-leaders were singled for tougher treatment by guards. [12]

19 Gradually, prisoners started to show signs of depersonalization and demoralization: stress and depression set in. Five prisoners had to be released because of extreme emotional depression, crying, rage and acute anxiety. The pattern of symptoms was quite similar in four of the subjects and began as early as the second day of imprisonment. The fifth subject was released after being treated for a psychosomatic rash which covered portions of his body. (Haney, Banks & Zimbardo, 1973) A former prison chaplain, who was allowed to visit the prisoners and talk to them individually, was surprised to find that most inmates introduced themselves by giving their numbers rather than their name (Zimbardo 1971). The Roman Catholic priest played his part so realistically that some of the students accepted his offer to contact their parents and seek legal aid. The line between reality and fiction was blurred to the point that everyone, observers included, found themselves caught up in the situation: The priest's visit highlights the growing confusion between reality and illusion, between role-playing and self-identity that was gradually taking place in all of us within this prison which we had created, but which now was absorbing us as creatures of its own reality ( ) We were all trapped in our roles. (Zimbardo 1971) Within six days the simulated prison had developed into a dangerously hostile social environment. The situation was clearly spinning out of control, and the ethics of the experiment started to be challenged. Tension developed to levels that could no longer be sustained without harmful consequences on the weaker subjects. Eventually, the experiment had to be called off. At this point it became clear that we had to end this experiment. We had to do so because it was no longer an experiment. We had indeed created a prison in which people were suffering, in which some boys called prisoners were withdrawing, becoming isolated and behaving in pathological ways. On the other hand, some of the guards were behaving sadistically, delighting in what could be called the "ultimate aphrodisiac of power," and many of the guards who were not behaving that way felt helpless to do anything about it. In fact, they allowed it to go on, never once interfering with an order by one of the cruel guards. (Zimbardo 1971) [13]

20 SELF-REVELATION In the year that followed the prison experiment, the 24 subjects were called back for individual and group interviews. Some of the video footage collected by Zimbardo s team was edited and eventually made available to a broader academic audience through Stanford Instructional Television Network (1988). A 50 documentary film was produced and released in 1992, The Quiet Rage, on which the remarks below are based. The testimonies clearly show that the dominant feeling among the young male volunteers was one of self-revelation. The mock prisoners realized their own vulnerability and lack of resilience: At first, I thought I could manage prison for a while. Right now, I don t think I could manage it at all. The mock guards were disturbed by their own unabashed cruelty to others: I really thought I was incapable of this sort of behavior. I was really surprised dismayed to find out that I could act and become accustomed to doing things I couldn t even dream I was doing. And while I was doing it, I didn t feel any regret, I didn t feel any guilt. It was only after that this behavior began to dawn on me, that I realized that there was this part of me that I had not noticed before. Depersonalization was another disquieting experience. The ease with which the healthy young men were deprived of their former identity came as shock to most of them: (Mock prisoner) I thought I was going to a prison run by psychologists instead of run by the state. I began to feel that identity the person that I was and that had decided to go to prison was distant from me was remote until finally I wasn t that, I was 416, I was really my number, and 416 was going to decide what he had to do. Forcing the students to shed their clothes and wear uniforms undoubtedly played a key role in the process: (Mock guard) When you wear a uniform and are given a role saying Your job is to keep these people in line you re certainly not the same person as if you were in street clothes and in a different role. You really become that person once you put on that khaki uniform. One of the prison guards, nicknamed John Wayne for his good looks and self-assurance, confesses that he used the main experiment to run little experiments of his own. He recalls: I wanted to see just what kind of verbal abuse people can take before they start objecting. This was a very relevant question indeed, since public defacement was probably the most powerful strategy used by the guards to overcome prisoner resistance and establish their authority, as will be shown in the last section. Wayne insightfully remarks that the prisoners took all the verbal abuse cast at them. They put up with his cruel and demeaning demands without opposing much [14]

21 resistance: It surprised me that no one said anything. No one said You can t say those things to me. Those things are sick! No one said that. Don t tell that man he s the scum of the earth. They d do push-ups without question. Here they are abusing each other because I requested them to. No one questioned my authority at all. And it really shocked me. The discoveries were painful. Yet, no lasting effects were reported in the ten years that followed: The consensus is that they did suffer during that week but they learned a great deal about themselves, about human nature, which most of them say is quite valuable, Zimbardo claims in The Quiet Rage (1992). The effects, he adds, were situation-bound : What we saw, what they experienced was the power of the situation. They told us about the situation they were in. What they said was not diagnostic of any personal pathology, it was diagnostic of prison-like situations. THE PATHOLOGY OF IMPRISONMENT AND THE LUCIFER EFFECT (ZIMBARDO 2007) During the experiment, Zimbardo acted as prison superintendent. His standpoint nonetheless remained that of the social psychologist. Although a close audio analysis was performed that included structured descriptions of verbal expressions (Hany, Banks & Zimbardo 1973), Zimbardo s priority never ceased to be the study of the mental and behavioral processes associated with the exercise of power, control and domination in a prison-like situation: how the prison environment creates conditions for aggressive behavior or submissive conformity; how the pathology of power takes hold of individuals; how personality and attitude dispositions 4 evolve in context (Hany, Banks & Zimbardo 1973). Zimbardo s initial perspective was aptly summarized in The Pathology of Imprisonment (1972), where most of the attention was focused on the dramatic changes (that took place) in virtually every aspect of behavior, thinking and feeling, with prominence given to: - Mental confusion: It was no longer apparent to most of the subjects (or to us) where reality ended and their roles began. The majority had indeed become prisoners or guards, no longer able to clearly differentiate between role-playing and self. (Zimbardo 1972) 4 The team used the Comrey Personality Scales (1970) with the following 8 factors: trustworthiness (vs. defensiveness), orderliness (vs. lack of compulsion), conformity (vs. rebelliousness), activity (vs. lack of energy), stability (vs. neuroticism), extraversion (vs. introversion), mental toughness / masculinity (vs. sensitivity), empathy (vs. egocentrism). [15]

22 - Social and moral regression: In less than a week the experience of imprisonment undid (temporarily) a lifetime of learning; human values were suspended, self-concepts were challenged and the ugliest, most base, pathological side of human nature surfaced ( ) We were horrified because we saw some boys (guards) treat others as if they were despicable animals, taking pleasure in cruelty, while other boys (prisoners) became servile, dehumanized robots who thought only of escape, of their own individual survival and of their mounting hatred for the guards. (Zimbardo 1972) Interestingly, during the prison study, Zimbardo also showed some concern for moral issues, as is apparent in the articles he wrote or coauthored just after the experiment. From the outset, what he defined as the pathology of imprisonment rested on a clear division between right and wrong, good and evil : good guards vs. bad guards ; good prisoners vs. bad prisoners (Zimbardo 1972); good men engaging in evil deeds ; people doing evil things (Zimbardo 1973). Yet, questions like What happens when you put good people in an evil place? Does humanity win over evil, or does evil triumph? 5 were never asked so bluntly in the 1970s. A much-needed clarification of the moral issue came with the publication of The Lucifer Effect. How Good People Turn Evil (Zimbardo 2007). To promote his new book, Zimbardo gave numerous presentations and interviews. In his 2008 TED talk (22 ) on The Psychology of Evil 6 he can be heard using bad 11 times, Lucifer and devil 9 times, good and evil 40 times. Yet, it would be a mistake to think that by using strong moral terms with such insistence, by making repeated cultural references to Biblical stories, literary myths pitting good against evil, Zimbardo cast himself in the role of moralist or mixed religion with science. Lucifer the light bearer, was God s favorite angel until he challenged God s authority and was cast into Hell, along with his band of fallen angels. Better to reign in Hell than serve in Heaven, boasts Stan the adversary of God in Milton s Paradise Lost. ( ) Lucifer s sin is what thinkers in the Middle Ages called cupiditas. For Dante, the sins that spring from that root are the most extreme sins of the wolf, the spiritual condition of having an 5 Official Stanford Prison Experiment website, Social Psychology Network, Zimbardo s viral TED talk on The Psychology of Evil has already attracted over 6 million viewers and been subtitled in 30 different languages. [16]

23 inner black hole so deep within oneself that no amount of power or money can ever fill it. (Zimbardo 2007) Zimbardo did indeed exploit religious imagery and vocabulary that his North American audience found congenial and meaningful, but his definition of evil never ceased to be social, behavioral and motivational. It was never theological in any way. Evil, he wrote, consists in intentionally behaving in ways that harm, abuse, demean, dehumanize or destroy innocent others or using one s authority and systemic power to encourage or permit others to do so on your behalf (Zimbardo 2006: 5). The dominant religionbased model of morality, he claimed, overly personalizes and essentializes evil by attributing wrongdoing to a person s dark side or devious disposition. Although pertinent, inner determinants are not alone in guiding humans up the good paths or down the bad ones. The alternative model that he proposed stresses the influence of context. Outer determinants play an even more decisive part than disposition in shaping behavior and determining human actions. All social creatures, he argued, end up being creatures of the situation, of the moment, of the mob (Zimbardo 2007). The Lucifer effect is my attempt to understand the process of transformation when good or ordinary people do bad or evil things. (I) deal with the fundamental question What makes people go wrong? But instead of reverting to a traditional religious dualism of good versus evil, of wholesome nature versus corrupting nurture, (I) look at real people engaged in life s daily tasks, enmeshed in doing their jobs ( ) (I) will seek to understand the nature of their character transformations when there are faced with powerful situational forces. (Zimbardo 2007) Writing on the Lucifer effect and deconstructing the psychology of evil allowed was Zimbardo s (successful) attempt at reaching out to a broader, non-academic audience, unfamiliar with research in social psychology. His situationist theory of evil (Pignotti 2006) was intended as a dispassionate, enlightened response to a major political scandal that had shaken the United Sates in 2004 and thrown ordinary citizens into disarray: the startling revelation that human rights violations had taken place inside the Abu Ghraib prison (Irak), which was run by the American military. 17 US soldiers and officers had abused detainees. None had any previous record of brutal or sadistic behavior. They were not bad apples, yet they had become perpetrators of evil who had inflicted torture and humiliation upon detainees. Some had even used their cameras or smartphones to take pictures. How could good soldiers undergo such a transformation of character (Zimbardo 2008)? Could the mixed war and prison situation, not [17]

24 just moral depravity, be blamed for those sickening incidents? The Stanford Experiment was brought back into the spotlight, and the lessons taught in 1971 spelled out again by Zimbardo, some 35 years later. I was shocked, but I wasn't surprised, because I had seen those same visual parallels when I was the prison superintendent of the Stanford Prison Study. Immediately the Bush administration military said what all administrations say when there's a scandal: "Don't blame us. It's not the system. It's the few bad apples, the few rogue soldiers." My hypothesis is, American soldiers are good, usually. Maybe it was the barrel that was bad. (Zimbardo 2008) In his assessment of the Abu Ghraib torture and prisoner abuse of 2004, Zimbardo not only made a more generous use of moral vocabulary than in his earlier writings, but he also relied more heavily on the stage metaphor for human action: humans are actors playing out scenes that define their character and behavior. Social psychologists like me come along and say, "Yeah, people are the actors on the stage, but you'll have to be aware of the situation. Who are the cast of characters? What's the costume? Is there a stage director?" And so we're interested in what are the external factors around the individual. (Zimbardo 2008) Although Zimbardo never used Goffman s dramaturgical model of speech and social interaction (1959, 1967, 1983), he clearly suggested that the utterances produced in face-to-face interaction were similar to lines delivered by actors on the stage of life. The suggestion was a valid one and deserves to be further specified. Most actors are not solitary figures improvising soliloquies on the empty stage of life. Rather, they are often in an ensemble of different players, on a stage with various props and changing costumes, scripts, and stage directions from producers and directors. Together, they comprise situational features we must come to appreciate as influencing how behavior can be dramatically modified. By recognizing the impact of those off the stage, in the wings, who make the human drama work for any given play, we implicate systemic features into our analysis. (Zimbardo 2007) In spontaneous interaction, lines are mostly unrehearsed. Yet the type of scene being played out largely determines the form and function of utterances. This is why the peaceful, easy-going male students developed speech forms that clearly departed from their usual conversational style but were nonetheless consistent with their new simulated prison environment. What Zimbardo calls the power of the situation is primarily the power of [18]

25 the speech situation over language use, and the power of social role over identity. The moment is the main shaper of communicative behavior: Not men and their moments. Rather, moments and their men (Goffman 1967). The social setting in which speakers perform prevails over personality in shaping and determining conversational style. Here is a good example: [Guard addressing fellow guards] Good evening gentlemen. How about we make this one a night to remember? [Next shot shows him in his prison uniform, addressing prisoner 416 who is detained in solitary confinement] You mean to tell me that you spent all day long in that stinking hole because you wouldn t eat two lousy, little sausages? Goddamn boy. Well, maybe you want us to take them sausages and cram em up your ass, huh? Bet you like that, 416, won t you? ( ) [Breaks out in anger] What did you expect boy? Huh? What the fuck did you expect? Did you expect this to be a fucking nursery school? Huh? Is that what you thought this was gonna be? You thought you were gonna get some playtime in the yard, boy? [Door bangs. Guard yells at prisoner] You listen to me, 416! You ain t going nowhere but this FUCKING hole until you eat those FUCKING sausages! Do you fucking hear me, boy? [Chuckles] The Stanford Prison Experiment, directed by Kyle Patrick Alvarez (2015) The sudden change of setting, from the prison guards room to the hole, is accompanied by an abrupt shift in communicative behavior. The same man, endowed with the same personality features, and performing the same role, adopts completely different discourse strategies. In the guard s room, interaction with peers is friendly, cheerful and egalitarian. The guard is careful to consult the wishes of his colleagues and makes a tactful use of How about? He caters to the negative face needs of his interlocutors, and avoids direct interpersonal manipulation. But when confronting prisoner 416 in the prison cell, the guard s voice changes dramatically (in tone, pitch, loudness), and so do his grammar and vocabulary. The interaction is no longer egalitarian but hierarchical. The brutality of his injunctions ( You listen to me ; You ain t going ), the coarseness of his admonishments ( What the fuck did you expect? ), the humiliating reference to sodomy ( maybe you want us to take them sausages and cram em up your ass Bet you like that ) are meant to deface de prisoner in front of the other guards and shame him into submission. [19]

26 Thus speech situations are not just social gatherings where communicative interaction takes place. Speech situations are social settings (Goffman 1967) that constrain the forms of speech in many more ways than we expect. The lines delivered by speakers in the social performance of speech are situation-bound and rule-governed. For speech is not only shaped by contextual forces but also follows established patterns lexical, syntactic, pragmatic typical of the communal verbal repertoire (Gumperz 1964). Yet, the rules and patterns that constrain speakers also empower them, by providing them with a powerful arsenal in which the weapons of everyday communication are stored (Gumperz 1964). In summary, the violence and power plays that unfolded before Zimbardo s eyes were fought with the ordinary resources of language, not just with nightsticks and fire extinguisher spray, as will be confirmed in the next two sections. FILM ADAPTATIONS OF ZIMBARDO S ORIGINAL PRISON DRAMA The Stanford prison experiment (1971) inspired three major film adaptations in 2001, 2010 and 2015, which supply precious verbal and kinetic material for a discourse pragmatic approach to the grammar of prison violence. DAS EXPERIMENT (2001) The first drama film to be released was Das Experiment (2001) by Oliver Hirschbiegel. The screenplay was based on the eponymous novel by the German novelist Mario Giordano (Das Experiment. Black Box, 1990) who was directly involved in writing the new script. The cast included Moritz Bleibtreu as Tarek (prisoner 77), Justus von Dohnányi (Berus, guard), Edgar Selge (Dr. Klaus Thon, scientist) and Andrea Sawatzki (Dr. Jutta Grimm, research assistant). [20]

27 Figure 2 Prisoner lineup (Das Experiment 2001) The film was well distributed in Europe and America, and officially described as a psychological thriller inspired by real life incidents that had occurred at Stanford University, Palo Alto, California, during a psychological experiment. Although it incorporated recognizable features of Zimbardo s prison study (1971), Das Experiment (2001) did more than just fictionalize what had taken place in the basement of the psychology department. It contained added layers of brutality and perversity, and had more violent twists in its plot than the original prison drama. In the second half of the story, Dr. Thon s colleagues are captured while he is away at a conference. The guards take total control of the prison. Berus (the head warden) even tries to rape Ms. Grimm. The central character, Tarek, escapes from solitary confinement, frees the other prisoners and leads the final rebellion. Shots are fired, two participants killed and three injured. The nightmare is over. Dr. Thon and Berus are sued for their involvement and responsibility in an illegal, unethical experiment. Das Experiment triggered controversy in European academic circles and was labeled irresponsible by the American Psychology Association (Murray 2002). Because it recycled authentic material from the Stanford prison experiment and extrapolated Zimbardo s psychology of evil, Hirschbiegel s outrageous (but clever) screen adaptation of Giordano s novel elicited angry reactions from the scientific community. The film struck a very sensitive chord in showing researchers losing control (as had been the case in real life, although in a less dramatic way), and crossing the ethical line (Zimbardo was indeed accused of unethical practice and had to defend himself in a 1973 paper entitled On the ethics of intervention in human [21]

28 psychological research: With special reference to the Stanford prison experiment ). In her assessment of the controversy, Murray (2002) quotes an interview with Zimbardo in which he strongly condemned the inclusion of links to the official Stanford Experiment website in the film s promotional material. The connection set up between fact and fiction blurred the line between reality and fantasy. 7 Worse, it made Stanford and ( ) psychology look bad. Zimbardo was nonetheless forced to admit that the first half of the plot was close to the original story, but with no clear indication of when the narrative shifted into fantasy: "The audience doesn't know at what point this is fiction. Does anyone get raped in the Stanford Prison experiment? No. Did anybody get killed? No. Does anybody even bleed? No." What Zimbardo acknowledged as real were the following: recruiting paid male volunteers through newspaper advertisements; interviewing them and spelling out rules for the simulated prison experiment; guards developing sadistic behavior and prisoners showing signs of stress and depression; the need to terminate the experiment early. But he angrily discarded the beatings, torture, rape and murders, as well as the gratuitous sex and violence which, he claimed, were gross inventions that had misled the public into thinking that his team had acted cruelly and irresponsibly. Despite the voluminous scientific literature published on the Stanford prison experiment and the continuous media interest it has aroused, few recordings are available to the general public. Video footage is fragmentary and reduced to a small collection of scenes edited for The Quiet Rage (Zimbardo 1992). The original shots are blurred and the sound quality is extremely poor. A study of realistic scenes, taken from the three main film adaptations (2001, 2010, 2015) thus constitutes a sensible alternative to carry out an empirical investigation of the verbal strategies of empowerment and disempowerment at play. All the more so, as the perspective adopted in the present study is not psychological but discourse pragmatic. To illustrate this point, let us consider one of the early scenes in Das Experiment (2001) in which Dr. Thorn and his assistant Dr. Grimm are 7 What s wrong is they are masquerading the movie as documentary of a real-life experiment with real people at Stanford University. Quoted in (Murray 2002). [22]

29 shown addressing the group of male volunteers who have just been recruited for the experiment. (Dr. Grimm) I would like to introduce Professor Thon, the director of this experiment. (Pr. Thon) Gentlemen, I would like to thank you all for participating. You are brave men. (Laughter) You laugh, but I m serious. The next two weeks will be a new experience for you. You ll undergo and exert pressure. Some of you will have no civil rights for two weeks. Do not underestimate that. If anyone wants to go, it s your last chance. Das Experiment, directed by Oliver Hirschbiegel (2001) This scene provides an apt illustration of how situational properties override identity and disposition in shaping a person s conversational style. The hall, the white lab coats and the seating arrangement are an integral part of the social occasion. The moment (Goffman 1967) strongly determines the nature and style of the communicative interaction. Formal instructions are issued: the tone is civil, the mood relaxed. Face needs are addressed: polite introductions are made, thanks given, compliments paid, options left, as the underlined segments attest. Warnings and guidance (for the days to come) are expressed with authority, using simple declarative statements. Figure 3 Issuing and receiving instructions (Das Experiment 2001) The division of space between instructors (researchers) and students is maintained. Speakers and listeners adopt bodily postures that are both relaxed and respectful. Mutual attention is sustained. It is hard to imagine, at [23]

30 this point, that the same group of subjects will soon engage in forms of communicative behavior that are far less civil and controlled. Their speech style will be dramatically modified by a dramatic change in the situational features. The confusion and panic, the outburst of anger, the swearing and name-calling, the brutal commands, the constant defacements which would have been thoroughly out of place in the lecture hall, will become commonplace in the dark cells and grim corridors of the simulated prison. Figure 4 Confrontation between guards and prisoner 7 You stupid little asshole! You think you re smart! (Das Experiment 2001) THE EXPERIMENT (2010) The second major film adaptation to be released, The Experiment (2010), was a drama thriller directed by Paul Scheuring, with Adrien Brody (Travis, prisoner) and Forest Whitaker (Barris, head warden). The film is an American remake of the German psychological thriller Das Experiment (2001), based on the same novel by Mario Giordano. 8 The plot was however altered, shortened and simplified, the murderous violence toned down. The film struggled to find a U.S. distributor and was finally released in DVD 8 The film was dubbed and distributed in Brazil under the title Detenção. The distributors defined the movie as little else than the American version of the German film Das Experiment ( Versão americana do filme alemão A Experiência ). [24]

31 format. Paul Scheuring s screenplay shows greater proximity to the original Stanford prison experiment but major distortions remain: not all the male volunteers are students (one of them turns out to be a former inmate); a young man with a severe diabetic condition is recruited but denied insulin; the makeshift prison is nothing less than a highly sophisticated, state-ofthe-art prison compound; one of the guards sexually harasses a prisoner and nearly rapes him; prisoners are routinely bullied and some get physically harmed (although none of them dies). In The Experiment (2010), Dr Archaleta (the chief scientist) is shown issuing general guidelines to the volunteers, alone, inside the prison compound. (Scientist in white lab coat) Good afternoon gentlemen. The next two weeks will be a new a new experience for you. Some of you will have no civil rights. Do not underestimate that. If any of you want to leave, now is your last chance. No? Good! Again, your safety is our number one priority. If there is any violence, any at all, the experiment will be immediately terminated. Clear? When I call your name, please stand. (The guards names are disclosed). Good. So the rest of you, please stand up and follow the yellow line. Good luck gentlemen..the Experiment, directed by Paul Scheuring (2010) The usual repertoire of greetings ( Good afternoon gentlemen ), formulaic wish-phrases ( Good luck gentlemen ), and polite imperatives ( Please stand [up] ) are used. Remarkably, the weapons of everyday grammar are used more forcefully than in the corresponding German scene to establish complete authority and control over the participants. - A declarative construction like your safety is our number one priority is strategically used to code absolute certainty in an unmarked way. The basic assertive function of the present tense in English is used to manipulate the volunteers into believing that the experts are in control and should be trusted, which is illusory. But who, upon hearing such a plain statement, would dare to challenge its truth-value? - A manipulative use of will constructions is made that combines prediction with volition, leaving no room for contradiction ( The next two weeks will be a new experience for you, Some of you will have no civil rights ). - A negative imperative occurs that is meant to dispel all illusions and counter possible objections ( Do not underestimate that ). [25]

32 - Elliptical constructions are chosen that enhance speaker authority. The combination of terseness and briskness leaves no room for qualms or contradiction ( No? Good! ). Pragmatically, Clear? functions as an injunction meaning You get me right! The little lexical or grammatical material that is preserved in ellipsis always acquires greater salience and sharpness (as will later be confirmed in the elliptical command Push ups, ten! ). - The quantifying expression any at all radically excludes compromise ( If there is any violence, any at all ). - Finally, if constructions are successfully used by Dr. Archaleta to blackmail the volunteers and dictate his own law. If empowers him with the ability to open mental spaces (Fauconnier & Turner 2002) in which a potentially threatening scene is fictively played out (e.g. someone rejecting the rules, violence breaking out). From there, he draws the unavoidable, damaging consequences to everyone. The message is clear and may be reworded as follows: If you don t accept the rules set out for this experiment then you can t stay (and you won t be paid) ; If you behave violently then the game will be over. Conditional constructions in if (and equivalent constructions in or, e.g. Either you maintain order or you don t get paid ) are the absolute syntactic weapon to control behavior and overcome all forms of resistance. In the original Stanford experiment, a set of 17 prison rules were prepared by the guards and read out twice to the prisoners. Modal expressions played a key role in expressing deontic necessity 9 : - 13 rules were built on a obligational use of the modal must: e.g. Prisoners must not move, tamper with, deface or damage walls, ceiling, windows, doors, or any prison property (rule 5); Prisoners must address each other by number only (rule 7); Prisoners must always address the guards as "Mr. Correctional Officer," and the warden as "Mr. Chief Correctional Officer, etc. - 3 rules relied on the use of the modal may to disempower prisoners while empowering wardens: Prisoners may never operate cell lighting (rule 6); Visitors are a privilege ( ) The guard may terminate the visit at his discretion (rule 13). Rule 17 made use of may in its possibility (as 9 Pragmatic modals are used deontically when they express meanings such as obligation will and permissibility. From the Greek word for duty (deon). Must is said to express deontic necessity when it indicates immediate or future obligation / prohibition. [26]

33 opposed to permission) sense: Failure to obey any of the above rules may result in punishment (rule 17). The may-construction used in this last rule may be paraphrased by is likely to and is more tentative than the alternate will-construction: Failure to obey any of the above rules will (inevitably) result in punishment. But the tentativeness expressed by may is not a sign of weakness, since it works to the guards advantage: prison wardens have the power and discretion to decide whether some punishment should be applied to non-compliant prisoners. - 5 rules contained will-constructions (used alone or in combination with other modals). Will does more than predict the future with a high degree of certainty. In official documents, will has a constraining force that cannot be challenged. Rule-makers know this well and make abundant use of to define lines of action and behavioral pathways: Mail is a privilege. All mail flowing in and out of the prison will be inspected and censored (rule 12); All prisoners in a cell will stand whenever the Warden, the Prison Superintendent or any other visitors arrive on the premises. Prisoners will await an order to be seated and resume activities. (rule 14). Modal constructions are not the sole grammatical weapon available to control behavior. Enumeration is an equally powerful tool since it leaves little room for argumentation. Individual rules are laid down, one after the other. No justification is needed, no logical linkage required. The coercive power of enumeration is best summed up by the tautology Rules are rules which was repeatedly used by guards in the original Stanford experiment and its subsequent film adaptations. Interestingly, both Das Experiment (2001) and The Experiment (2010) adopt the same discourse strategies to lay out the 5 basic rules at the beginning: enumeration, must-, will- and if-constructions. Also worth noticing are passive constructions, which shift the focus to the disempowered subject. Prisoners are construed as patients being acted upon, rather than free agents ( Prisoners are allowed only Prisoners must speak when spoken to ). (Dr. Archaleta addressing the guards in their room, shortly before the experiments begin) Rule number one. Prisoners must eat three meals a day. All food must be consumed. Two. There will be thirty minutes of rec daily. [27]

34 Three. Prisoners are allowed only in prisoner-designated areas. Four. Prisoners must speak only when spoken to. And Five. Prisoners must not touch the guards under any circumstances. Those that break the rules must be punished commensurately. This experiment is not about individuals. If any one person leaves, it s over. If a prisoner does break the rules, you will have thirty minutes to choose proper disciplinary action. If you fail to do so, that red light will come on, the experiment will be terminated, and you will not get paid. The Experiment, directed by Paul Scheuring (2010) Day 1. The role-playing begins. The interaction is playful. Jokes are occasionally cracked. Changing into prisoner or guard uniforms does not seem to create much of a divide between the men, until one of the wardens is accidentally hit during a ball game. This is the first serious confrontation and punishment ensues. (Guard) Pushups. Ten! Do it now. (Prisoner) I just need a little civility, that s all. It was an accident! (Guard) This is not a fucking negotiation. Do the pushups! (Prisoner) Just a little civility, brother. Just a little! (Guard) Alright, then. Everyone 10 pushups! The Experiment, directed by Paul Scheuring (2010) The grammatical mood is jussive 10 : Do it now, Do the pushups! In ordinary life settings, attempts at direct interpersonal manipulation are commonly experienced as face-threatening, so politeness strategies are spontaneously applied by tactful speakers to avoid interpersonal friction, like adding please to an imperative construction, using a friendly intonation pattern or conditional construction to give orders ( Could you, Would you care to ). In the early moments of the experiment, prisoners still live by the normal code of civil interaction. Rough, elliptical commands such as Pushups. Ten! or Everyone 10 pushups! are experienced as particularly demeaning. 10 Jussive, from Latin jussus (ordered), from jubere (to command). A grammatical mood typically used to issue orders, give commands and grant permission. In English grammar, the word imperative, from Latin imperare (to command) is more commonly used. [28]

35 Figure 4 Maintaining face Just a little civility, brother. Just a little! (The Experiment 2010) As is clear in the prisoner s reply ( Just a little civility ) form matters more than content. Punishment is accepted, however unfair, but disrespectful language is not. Interestingly, one of the prisoners (who has a real-life experience of jail) views resistance as pointless and tries to convince fellow inmates to get on with the pushups: (Other prisoner) Do it, men! Let s go! Do it! Come on. Do it! (Guard) Yeah, follow your little brother, men. There we are. Count them out! The Experiment, directed by Paul Scheuring (2010) Come on! is a fixed form imperative that is typically used to persuade someone to give up and comply, the plural imperative Let s (in Let s go ) creates solidarity between the speaker and those he wishes to control (the suggestion made being we re in this together ). The strategy works and his prison mates eventually comply. THE STANFORD PRISON EXPERIMENT (2015) The third and last film adaptation to be released was the awardwinning 11 Stanford Prison Experiment (2015), directed by Kyle Patrick Alvarez. To this day, it is considered the most accomplished and accurate of the three. Tim Talbott s screenplay chronicles the mock arrests and six days spent by 24 college students inside their makeshift prison in Palo Alto. As happened 11 The Stanford Prison Experiment (2015) won the Waldo Salt Screenwriting Award: U.S. Dramatic and Alfred P. Sloan Feature Film Prize at the Sundance Film Festival (2015). [29]

36 in the original prison study, Zimbardo (played by Billy Crudup) is caught up in his game. His girlfriend opens his eyes and makes him see how perilous the situation has become. The film has been unanimously praised for its subtle treatment of the psychology of imprisonment: the subjects remain complex, ambivalent and unpredictable throughout. In one of the early scenes, the freshly appointed guards act awkwardly. Something in their voice and demeanor betrays their uneasiness ( OK. Um. ) But grammar provides them with simple, powerful instruments of social control: elliptical imperatives ( Feet apart, Wider ), standard imperatives ( Put your head down, Take off your shoes ), angry imperatives ( Shut up! ), focused imperatives ( Just keep your hands on the wall ). Interestingly, when used with intransitive verbs, imperative constructions have a stronger manipulative force and sound more face threatening ( Strip! ). Emphatic repetition ( I said ) and the use of I want you to V ( I want you to strip ) also empower the guard by highlighting his position as a source of authority ( I ). Figure 5 Exercising control and authority with simple grammar Now I want you to strip (The Stanford Prison Experiment 2015) (Guard 1) Which one of us should start? (Guard 2) Well, I ll do it. (Addressing the blindfolded prisoner) Um. Oh. OK. Feet apart. Wider. I said wider. (Prisoner 8612) You guys, this doesn t have to be (Guard 2) Just keep your hands on the wall. (Smiles) Ok, just keep your hands on the wall. Um, put your head down. (Prisoner chuckles) Uh, take off your shoes. (Guard 3 picks them up and puts them into a box). Ok. Um Put your hands at your sides. Now I want you to strip. (Prisoner scoffs) [30]

37 (Prisoner 8612) Uh, really? Maybe I could have some privacy first (Guard 2) Shut up! And strip. (Prisoner chuckles) (Guard smiles and seems to be amused too) And put your clothes on the floor. (Prisoner complies) (Prisoner 8612 takes his clothes off) Oh man (Guard 2) Put your clothes to the right. The Stanford Prison Experiment (2015) As shown in this example, everyday grammar is a powerful tool when authority needs to be established and behavior controlled. Simple jussive constructions empower guards and make prisoners fall in line. The strategic manipulation of verbal and dress codes is also used for depersonalization or the stripping of individuality. Prisoners lose their first and last names and are systematically addressed by prison number (e.g. 8612) 12 ; guards are respectfully addressed as Sir or Mr. Correctional Officer. (Guard, admonishing prisoner 8612) You will at all times refer to us as Mr. Correctional Officer. You got it? (Prisoner 8612) Uh, yeah, I got it. (Guard) What was that? (Prisoner 8612, half serious, half defiant) I mean, yes sir, Mr. Correctional Officer, sir. (Guard) Yeah. Good. The Stanford Prison Experiment (2015) Uniforms are worn. In the original experiment (as in the 2015 film adaptation), prisoners not only lost their sense of identity but were also made to feel emasculated and humiliated by wearing a loose-fitting dress, nylon stockings on their heads, and no underpants. In his first typed narration Zimbardo (1971) explains: Each prisoner is searched and then systematically stripped naked. He is then deloused, a procedure designed in part to humiliate him and in part to be sure he isn't bringing in any germs to contaminate our jail. The prisoner is then issued his uniform. It consists of five parts. The main part is a dress which each prisoner wears at all times with no underclothes. On the dress, in front and in back, is his prison number. On 12 One scene shows the prisoners lined up against the wall, being forced to shout out then sing their 4 digit prison numbers louder, faster, forwards, backwards in a cruel attempt to crush their will and demean them. (Guard) I want it fast, I want it loud and I want it clear. [31]

38 the prisoner s right ankle is a heavy chain, bolted on and worn at all times. Loosely fitting rubber sandals are on their feet and on their heads, to cover their long hair, stocking caps, a woman's nylon stocking made into a cap which also had to be kept on day and night. It should be clear that what we were trying to do was to create a functional simulation of a prison environment, not a literal one. This is an important distinction for you to appreciate and keep in mind. Real male prisoners don't wear dresses; but real male prisoners, we have learned, do feel humiliated, do feel emasculated, and we thought we could produce the same effects very quickly by putting men in a dress without any underclothes. Indeed, as soon as some of our prisoners were put in these uniforms they began to walk and to sit differently, and to hold themselves differently, more like a woman than like a man. (Zimbardo 1971) [Underline is mine] Dress codes were not alone in feminizing prisoners (and masculinizing guards 13 ). Verbal codes were consciously and purposefully distorted too. Guards delighted in using Girls, Ladies, She to address the prisoners, thus challenging their masculinity: (Guard dragging the prisoner to his cell) OK boys, let s take her down there and show her just how pretty she looks. ( ) Let s take her down to cell n 2. ( ) (Guard handing pen and paper for inmates to write a letter to invite a visitor) Let s get to writing those letters, ladies. ( ) (Guard ordering prisoners to sing their prison number in a girl s voice, doing jumping jacks) Like a pretty little girl. The Stanford Prison Experiment (2015) Conversely, the manliness of the guards was reasserted: man, boys, guys were playfully used to mark in-group proximity and solidarity. 13 The uniform worn by the guards were designed to enhance their virility and authority. For the guards, the uniforms consisted of: plain khaki shirts and trousers, a whistle, a police night stick (wooden baton), and reflecting sunglasses that made eye contact impossible. (Haney, Banks & Zimbardo 1973). [32]

39 THE PRISON FRAME Technically, the word prison refers to public buildings used to house convicted criminals and accused persons awaiting trial (Collins English Dictionary). But prison does more than just that: it activates a rich knowledge structure stored in long-term memory known as a frame (Fillmore 1976, 1977, Tannen 1997). Frames relate participants, roles and events typically associated with a particular culturally embedded scene or situation (Evans 2007). In both the original Stanford prison experiment and the film adaptations reviewed in 2.1-3, the prison frame was set up and maintained through spatial arrangement (prison cells, including a hole, the guards room, latrines), role distribution (superintendent-guards-prisoners), routines (lineups, lockups, meals, recreation), and finally rules that prescribed what was acceptable or unacceptable prison behavior. The male volunteers identified with guard or prisoner roles through the prison frame, which they had culturally internalized before the experiment, and via the new interactional frame that spontaneously developed during the six harassing days of the experiment. Remarkably, language rules 14 were prominent in organizing prison life: it is through the combination of verbal and physical actions that temporary identities were forged, new social roles performed, strict prison rules enforced or challenged. The forms of address (personal or impersonal, respectful or demeaning), the verbal expressions of deference, impertinence, defacement, interpersonal manipulation and control, all played a decisive part in running the prison. This is why a pragmatic analysis of the real interaction order (Goffman 1983) that emerged during the simulation appears as a useful complement to Zimbardo s socio-psychological approach. 14 In discussing language rules it is important to draw a clear distinction between the grammaticality and the acceptability of forms (Gumperz 1964). An utterance will be deemed grammatical if it conforms with the constraining rules and constructional patterns observed in a given language variety (e.g. Standard British English, Southern vernacular US English, etc.). It will be considered acceptable only if it conforms to the social restraints, i.e. the agreedon conventions which serve to categorize speech forms as informal, technical, vulgar, literary, humorous, etc. (Gumperz 1964). [33]

40 GRAMMAR AS WEAPON OR BATON IN THE PRISON WORLD: A PRAGMATIC PERSPECTIVE Pragmatics is the branch of linguistics that studies language in use (Levinson 1983, Vershueren 1999, Huang 2007, Mey 2013) with reference to the immediate speech situation and the broader sociocultural context: What do we say? (meaning, content), How do we say it? (form), and above all Why do we say it? (function, relevance). Pragmaticians relate verbal behavior to social behavior, sentence patterns to social patterns, discourse meanings to social meanings. It is to be regretted that Zimbardo and his team did not integrate Goffman s dramaturgical model of the actor to their analysis (1959), which was available when their experimental framework was set up. They would have probably paid more attention to the linguistic performance of the interactants, and looked for lines and scripts (Goffman 1967) in the verbal output that they analyzed. But most of all, they would have related the socio-psychological processes of derogation, aggression and emasculation (Haney, Banks & Zimbardo 1973) to facework (Goffman 1967): how individuals claim for themselves a positive social value in everyday life; how ordinary human beings tacitly preserve each other s face; how public defacement can wound, weaken or even kill socially. In Brown & Levinson s theory of linguistic politeness (1987), face is defined as something that is emotionally invested, and that can be lost, maintained, or enhanced, and must be constantly attended to in interaction. Face can be positive or negative. Negative face is the want of every competent adult member that his actions be unimpeded by others. During the Stanford prison experiment, prisoners were completely stripped of their freedom to act unimpeded by being locked and ordered about. Guards used the grammar of interpersonal manipulation (Shibatani 2002) roughly and efficiently to bend the will and control the behavior of inmates. Occasionally, prisoners did try to fight back or regain control with similar language tools. The film adaptations are strikingly similar in their treatment of negative face. The main grammatical constructions at work in The Experiment (Scheuring 2010) and The Stanford Prison Experiment (Alavarez 2015) are the following: [34]

41 Table 1 Empowered by grammar: Strategic use of syntax to control addressee behavior Standard imperatives (transitive or intransitive, positive or negative) Persuasive imperatives Nominal imperatives Emphatic or crude imperatives Run along Turn around Eat this sausage! Look at me! Say it! Put that back on! Do the push-ups! Don't talk during meal time! You listen to me 416 Come on, then! Move those sheets! Start over! Come on! Get humping! Do them now! Get to it! Keep going! Put your fucking cap back on! Just get back in line, here! No. Let go of me. No! No talking on the line, you two! Do it again, I said! You need to shut up! You fucking shit out of here! Get the fuck out of bed! Get your ass back in line, boy Don t fucking touch me man! Elliptical imperatives Quiet, 8612! Hands up against the wall! 30 sit-ups. 30 jumping jacks. 30 push-ups! Push-ups. Ten! Five push-ups. There you go! Ten jumping jacks! And down! Twenty! Everyone on the line! Alright, everyone 10 pushups! [You clean the] Toilet! Jussive need-constructions Jussive I wantconstructions Nothing (or nowhere) butconstructions Simple declaratives (positive or negative) used to spell out rules or make authoritative statements. I need you to say it for me. Say I am a prisoner. I need you to clean my toilet! You need to get up. I want you to address me as Mr. Correctional officer. I want to hear you say it, goddamn it! I want you to do pushups. I don't want any more talking. I want out and I want out now! You ain t going nowhere but this fucking hole until you eat those fucking sausages! You are a prisoner, you don't give orders. We give orders! You re not done yet! It is up to the guard s discretion whether a prisoner shall do more. Be + -ing constructions (Prisoner accusing guards) You re messing with my head, man. (Guard admonishing prisoners) Like I was saying, prisoners must remain silent during rest periods. Nobody is [35]

42 Conditional if- and unlessconstructions Interrogatives (used as threats, injunctions, or desideratives), tag questions Modal auxiliary constructions Other modal constructions (have got to, be allowed to, be supposed to, etc.) Adverbial phrases expressing condescending ascent Only-constructions Repetition trying to be difficult. Nobody s leaving here until their plates are cleaned. If you follow the rules, if you repent for your misdeeds, well, we ll get along just fine. If you won t say it, if you won t say that you re a bastard, you want to know something, 2093? You ve just proved my point. You a bastard! You a bastard either way, ugh. You do not address me unless I have spoken to you first. Do I need to escalate matters right now? Do you fucking hear me, boy? Why don t you give me twenty pushups? Why don t you smile? What's going on here? Why don t you make up your bunk 8612? What is so goddam wrong with all of you, ugh? What did you expect? Did you expect this to be a fucking nursery school? Is that what you thought it was gonna be? Can you shut up? Is that clear? Got me? Is that understood? Are you fucking kidding me? You (are) a bastard. Isn t that right? Boys, I m sure you want to get a good night s sleep tonight. Am I right? We can do all kinds of things to you. You will not leave this closet until those sausages are in your belly. There will be no more incidents like there was today There will be zero tolerance for breaking the rules This behavior will not be tolerated I will ruin you You ll stay in the hole until further notice Your blankets will be returned to you all All prisoners must participate in rec. Each prisoner must complete the following 30 jump- I need not remind you of rule number 1. Prisoners are not allowed to roam. You've got to clean your plate. You are not supposed to touch us. Good boy! Prisoners are allowed only in prisonerdesignated areas. Is that understood? I said, is that understood? Get down on your knees, get down on your fucking knees. You will remain here, and you [36]

43 Elliptical constructions Tautological constructions Enumeration (of rules) and (prison) counts will remain silent (Group of prisoners is forced to repeat) Warden s orders Rules are rules. Rule number one two three four One, two, three, four, five Positive face is the want of every member to be desirable to at least some others. Prisoners lost their self-esteem by being viciously belittled and publicly humiliated. The verbal abuse was constant and destructive. They were put down. They were depersonalized. Within two or three days, most had been infantilized. Challenges were repeatedly made to their heteromasculinity (Anderson 2009, Anderson, Eric and McCormack 2015). The grammar of linguistic impoliteness (Culpeper 2011) was ruthlessly applied to break the spirit of the prisoners and make them feel worthless (Zimbardo 1972). Impoliteness formulae were indeed recruited to silence, subdue and stigmatize, to issue threats and hurl insults, to launch identity attacks, and more generally to publicly shame individuals. It is important to note that linguistic impoliteness served two strategies: one of defacement, typically directed against prisoners, but sometimes also against guards (during outbreaks of rebellion); one of bonding among the guards. Table 2 Verbal strategies of defacement (Laera 2016) Profanity and verbal bullying Personal insults and false namings Depersonalizing forms of address Feminization Verbal emasculation Fuck you! Tell 416 that you re gonna kick his ass. You can fuck off, man! Go to hell! I m tired of this shit! Dogshit Dirt Dog Shit man You motherfuckers! You are a shit ass nut you know that? Why are you such an ass-licker 2093? So you are a bastard too, 2093? And you, look at yourself, And you, look at yourself, you re naked You got no name. You got that, 8612? You like it in there, 416? Goodnight ladies Let s get to writing these letters, ladies Alright girls You afraid we gonna see you [37]

44 Male homosexuality Public defacement Punning or joking Sarcasm (feigned surprise, mock politeness, etc.) fuck-related taboo words and constructions (Culpeper 2011) aint got no dick can play the bride of Frankenstein. Move along fuck butt! Fuck you! 7258 walk over and say that you love Get close. Quit crying you little bitch! Now, Mr here says he ain t know how to fuck. We gonna show you. Now I want my female camels to line up in the middle. And I want my male camels to get behind the female camels. Bend down, bend down. That s right. And y all gonna do like the male camels to the female camels, and y all gonna hump them. Get inside her. She s waiting for you. There. Keep humping. Come on. That s it. Nice and gentle with that camel. She bucking back on your dick. That s good! Bend down. Don t cum yet. All right, faggots. Stop! (Prisoners lined up against wall, forced to shout and repeat 3 times) Prisoner 819 did a bad thing! (Victim yells back in despair) No, I didn t (Guard to subservient prisoner) It s a fucking embarrassment how obedient this guy is! You little brownnose, kiss-ass, homeless boy! (Prisoner to guard) You need help (Guard to Prisoner) You need to clean the toilet (Guard to prisoner who has been forced to strip) Why in God s name are you stark naked, boy? (Guard to prisoners who have been denied access to the toilet) Should you feel the need to defecate or urinate, please feel free to do so in the fine buckets provided by your correctional staff. That d be us. Thank you. (Guard to sobbing prisoner) Big, tough guy, hugh? This is not a fucking negotiation! What the fuck did you expect? What the fuck was that guy thinking? [38]

45 Did you expect this was gonna be a fucking nursery school? (Prisoner rebelling against guards) You motherfuckers. You fascist motherfuckers! You have no right to fuck with my head! Did Zimbardo and his team pay sufficient attention to formal aspects of verbal behavior? Probably not, but they nonetheless considered some relevant aspects of language use and reported their findings (Haney, Banks & Zimbardo 1973). 12 hours of videotaping were made, with a focus on daily, recurring events, such as counts and meals. 25 remarkable incidents or scenes were singled out for special scrutiny. The following 9 categories were defined to analyze speaker interaction: question (i.e. any request for information or assistance ); command (i.e. orders to commence or abstain from a specific behavior ); information (related to any contingency of the simulation ); positive or negative reference to others (i.e. use of a person s real name, nickname ( ) prison number, title, generalized you or allusion to special physical characteristics ); threats (e.g. no meal, pushups, lock-up in hole, no visitors ); insult; resistance (mainly physical, usually prisoners to guards, such as holding on to beds, blocking doors, taking off stocking caps, refusing to carry out orders ); help (typically guard helping another to open door, prisoner helping another prisoner in cleanup duties ); physical instruments (like fire extinguishers, batons, whistles (when used) to either intimidate, threaten, or achieve specific end ). Most of these categories were pragmatic in essence, even if they were never referred to as such. The experimenters did observe and analyze some salient interpersonal processes in their video analysis: the giving of commands by guards and the frequent question-asking by prisoners. They also made a number of insightful comments on wardens using forms of reference that were deindividuating like Hey, you there to avoid using a person s actual name. They also noted the bouts of deprecation-insult that typically occurred during evening shifts. But, as already pointed out, their general assessment of verbal behavior contained few remarks on grammar. What they saw on the tapes or read in the transcriptions of the recordings were intentions, attitudes or affects : language use was treated as the mere linguistic expression of the prisoners rage or acute depression ; the guards creative cruelty and pathology of power ; the hostile, confrontational or dehumanizing aspects of face-to-face encounters, not it s rule-governed enactment. The linguistic forms were not [39]

46 analyzed grammatically as constructions, socially as discourse practice, pragmatically as discourse strategy. An audio analysis was also performed by the team. 30 hours of audio recording were made of interactions between guards and prisoners on the prison yard and interviews between subjects and research associates. Verbal expressions were assigned to 11 categories, which also have a strong pragmatic component: questions; informative statements; demands; requests; commands; outlook (e.g. I don t think I can make it ); criticism; reference; desire to continue (or curtail participation in the experiment) ; self-evaluation (e.g. I hate myself for being so oppressive ); and finally, action intentions (e.g. I ll break the door down ). Once again, the experimenters were concerned with psychological effects, not language functioning. What struck them most was the negativity that prevailed in all expressions of outlook, affect, and self-regard. They were also surprised to discover that 90 % of conversations among prisoners were related to prison topics, while only 10 % to non-prison topics such as their college life, their vocation, girl-friends, what they would do for the remainder of the summer once the experiment was over. CONCLUDING REMARKS Speech is the best show man puts on. (Whorf 1956) It has often pointed out that participants in the Stanford prison experiment (1971) were taken up by the guard or prisoner roles that were assigned to them. But role-playing is the very substance of social life and the very medium in which real communicative interaction takes place. All human beings are taken up by their social roles: the rushed mother role, the angry father role, the worried customer role, the responsible manager role, the committed teacher role, the engaged or disengaged student role, the caring friend or confident roles. The list is open-ended, and the spontaneous, largely unconscious role-playing of speakers keeps adjusting to new settings, every moment of the day. The roles have their typical lines and interactional style. Prison guards and schoolteachers all give instructions but use the grammar of interpersonal manipulation (Shibatani 2002) differently. As speakers engage in the social performance of speech, they live and speak through the part they are playing. Each part is built around ritualized forms of speech. This is an inescapable linguistic fact that transcends personality and character: the power of the speech situation is such that the moment strongly [40]

47 determines the behavioral material of speakers: their glances, gestures, positionings and verbal statements (Goffman 1967). The 24 healthy male volunteers in the Stanford prison experiment were no exception to the rule, and quite logically developed aggressive or submissive communicative styles. They did little more than enact the routines and parts typically associated with the simulated penitentiary system. The brutality and coarseness of the communicative interaction, the constant, systematic defacement of prisoners by guards, were shocking but unsurprising. The volunteers were ordinary speakers, who were assigned extraordinary roles in an unfamiliar setting. They instinctively adjusted their interactional style and behaved as normal social actors with regular face needs (Goffman 1967, 1983). As in any piece of unrehearsed drama, they engaged in an endless succession of improvisation games, using existing patterns to weave their own text. Consciously or not, they applied a number of dramaturgical techniques for interpersonal manipulation that were all consistent with their new social orientation, i.e. their intelligent ability to adapt to (a new) social environment (Langlotz 2015). They drew the old weapons of everyday communication (Gumperz 1964) to fight new verbal battles, applied common verbal strategies to handle uncommon situations. They reassigned power and status through the physicality and performativity of their speech (Schechner 2003). Eventually, all the participants found themselves empowered or disempowered, strengthened or weakened, protected or wounded by language. The winners of the language war (Tolmach Lakoff 2000) were clearly the guards who experienced a marked gain in social power, status and group identification. The prisoners, in contrast, experienced a loss of personal identity ( ) which resulted in a syndrome of passivity, dependency, depression and helplessness (Haney, Banks & Zimbardo 1973). Since physical violence was banned from the original experiment, the instruments used to maintain the interaction order (Goffman 1983) were predominantly lexical and grammatical, and the strategies applied were selected from the common repertoire of pragmatic functions: addressing, informing, requesting, accepting, praising, complaining, rejecting, insulting, etc. Authentic language mechanisms were thus the central, structuring force of the mock prison experiment. Because the guards hurled real verbal weapons, the prisoners got genuinely hurt in the simulation. Until Zimbardo exclaimed: "Enough, we have to end this" (Zimbardo 1971). [41]

48 REFERENCES ALVAREZ, Kyle Patrick. The Stanford Prison Experiment. Screenplay by Tim Talbott. Psychological thriller film. Distributed by IFC Films. Running time 122 minutes, ANDERSON, Eric. Inclusive Masculinity: The Changing Nature of Masculinities. London, UK: Routledge, ANDERSON, Eric and McCormack. Cuddling and Spooning. Heteromasculinity and Homosocial Tactility among Student-athletes. Men and Masculinities. Vol 18, Issue 2, 2015 BROWN, Penelope and Levinson, Stephen. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: Cambridge University Press, COMREY, Andrew. The Comrey Personality Scales. San Diego, CA: EdITS, CROCKETT, Molly. Models of Morality. Trends in Cognitive Sciences. Volume 17, Issue 8, , DOI: CULPEPER, Jonathan. Impoliteness: Using Language to Cause Offence. Cambridge: Cambridge University Press, EVANS, Vyvyan. A Glossary of Cognitive Linguistics. Salt Lake City: The University of Utah Press, FAUCONNIER, Gilles and Turner, Mark. The Way We Think. New York: Basic Books, FILLMORE, Charles. Frame semantics and the nature of language. Annals of the New York Academy of Sciences. Volume 280, Issue 1, 20-32, FILLMORE, Charles. Scenes and frames Semantics. In Linguistic Structure Processing, ed. A. Zambolli, Amsterdam: North Holland Publishing Company, GIORDANO, Mario. Das Experiment. Black Box. Reinbeck bei Hamburg: Rowohlt Taschenbuch, GOFFMAN, Erving. The Presentation of Self in Everyday Life. New York: Doubleday Anchor Books, GOFFMAN, Erving. Interaction Ritual. Essays on Face-to-Face Behavior. New York: Pantheon Books, [42]

49 GOFFMAN, Erving. The Interaction Order: American Sociological Association, 1982 Presidential Address. American Sociological Review, Vol. 48, No. 1, Feb. 1983, pp GUMPERZ, John. Linguistic and Social Interaction in Two Communities. American Anthropologist, New Series, Vol. 66, No. 6, Part 2: The Ethnography of Communication, dec., 1964, pp HANEY, Craig, Banks, Curtis and Zimbardo, Philip. Interpersonal dynamics in a simulated prison. International Journal of Criminology and Penology, 1973, 1, pp HIRSCHBIEGEL, Oliver. Das Experiment. Psychological thriller film. Screenplay by Mario Giordano. Distributed by Senator Film and the Samuel Goldwyn Company. Running time 119 minutes, HUANG, Yan. Pragmatics. Oxford: Oxford University Press, HYMES, Dell. Models of the interaction of language and social setting. Journal of Social Issues, 23(2), 1967, pp LAERA, Jérémie. The grammar of prison violence: a kinetic and pragmatic deconstruction of control, submission and rebellion in The Experiment (Paul Scheuring 2010). Master s thesis. Université Bordeaux-Montaigne, LANGLOTZ, Andreas. Creating Social Orientation Through Language. Amsterdam / Philadelphia: John Benjamins, LEVINSON, Stephen. Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, MEY, Jacob. A Brief Sketch of the Historic Development of Pragmatics. In Allan, Keith (ed.), The Oxford Handbook of the History of Linguistics. Oxford: Oxford University Press, MURRAY, Bridget. A German movie claiming ties to the Stanford Prison Experiment spurs controversy over when reality ends and fiction begins. Film critique. American Psychological Association. Monitor on Psychology, March 2002, Vol 33, No. 3, p.20. PIGNOTTI, Monica. The Lucifer Effect. Understanding How Good People Turn Evil. Book review. Cultic Studies Review, Vol. 8, No. 1, 2009, p. 77 SCHECHNER, Richard. Performance Theory. London / New York: Routledge, [43]

50 SCHEURING, Paul. The Experiment. Psychological thriller film. Screenplay by Paul Scheuring. Distributed by Stage 6 Film. Running time 96 minutes, SHIBATANI, Masayoshi. The Grammar of Causation and Interpersonal Manipulation. Amsterdam: John Benjamins Publishing Company, TANNEN, Deborah. Framing in Discourse. New York / Oxford: Oxford University Press, LAKOFF, Robin Tolmach. The Language War. Berkeley: University of California Press, VERSCHUREN, Jef. Understanding Pragmatics. London: Arnold, WHORF, Benjamin. Language, Thought and Reality. Cambridge, Mass.: The MIT Press, ZIMBARDO, Philip. The Stanford Prison Experiment. A Simulation Study of the Psychology of Imprisonment, conducted August 1971 at Stanford University. Typed narration. ZIMBARDO, Philip. Pathology of imprisonment. Society, 6, pp.4, 6, 8, ZIMBARDO, Philip. On the ethics of intervention in human psychological research: with special reference to the Stanford Prison Experiment. Cognition, 2, 1973, pp ZIMBARDO, Philip. Quiet Rage: the documentary. Directed by Ken Musen, DVD, ZIMBARDO, Philip. The Lucifer Effect: Understanding How Good People Turn Evil. New York: Random House Paper Back Edition, ZIMBARDO, Philip. The Psychology of Evil. TED talk, ZIMBARDO, Philip. Official Stanford Prison Experiment website, Social Psychology Network, [44]

51 02 OBSERVANDO A FILA: DISCRIMINAÇÃO RACIAL, VIOLÊNCIA E MORTE NAS INTERAÇÕES COTIDIANAS ENTRE CEARENSES E AFRICANOS Ercílio N.B. Langa 1 INTRODUÇÃO O presente artigo circunscreve as interações cotidianas entre cearenses e estudantes africanos na cidade de Fortaleza-CE, em distintos espaços, lugares públicos e privados ruas, praças, avenidas, transportes, escolas, hospitais, postos de saúde, bancos, lotéricas, ônibus, metrô, delegacias, supermercados, shoppings centers, aeroportos particularmente, nas filas que se formam no acesso a tais instituições e serviços. A presença de africanos no Estado do Ceará é fruto dos processos de mobilidade estudantil internacional de alunos da África que se deslocam ao Brasil, para desenvolver formação universitária em instituições de ensino superior (IES) públicas e particulares, iniciada na década de 1990 e, que se prolongam até os dias de hoje. Ao longo dos anos, o número de estudantes africanos no Ceará foi crescendo, constituindo um contingente de imigrantes a tornar-se complexo em sua diversidade, formando uma diáspora (LANGA, 2014). 2 Atualmente, a diáspora africana é constituída por cerca de (três mil) estudantes oriundos de distintas nações subsaharianas, residentes, majoritariamente, na capital Fortaleza, bem como nos municípios interioranos de Redenção, Acarape e na cidade de Sobral, na condição de estudantes. 3 Tal diáspora é representada por jovens entre dezoito e trinta e cinco anos de idade, grande parte do sexo masculino, predominantemente, bissau-guineenses e caboverdianos mas, com um contingente crescente de mulheres e de outros países lusófonos, francófonos e anglófonos sendo formada, 1 Doutor em Sociologia, Universidade Federal do Ceará (UFC). ercilio.langa@gmail.com 2 Designo de Diáspora Africana no Ceará à migração, presença e permanência de estudantes oriundos de diferentes países de África Angola, Benin, Cabo-Verde, Camarões, Congo- Kinshasa, Congo-Brazzaville, Gabão, Guiné-Bissau, Moçambique, Níger, Nigéria, São-Tomé e Príncipe, Senegal, Serra-Leoa, Togo, etc neste Estado brasileiro. 3 Este dado numérico sobre os estudantes africanos no Ceará representa uma estimativa, a partir de dados obtidos da Polícia Federal (PF) do Estado, bem como de notícias, reportagens e matérias publicadas nos principais jornais fortalezenses entre os anos 2010 e 2016, quais sejam: O Povo, Diário do Nordeste e Tribuna do Ceará. [45]

52 eminentemente, por imigrantes negros e pobres, oriundos de um continente e de países que ocupam lugares periféricos na divisão internacional do trabalho capitalista (LANGA, 2015). Nessas mobilidades, cabe destacar outra conjuntura, igualmente, importante para a formação de diásporas ao redor do mundo, caracterizada pelas profundas transformações mundiais na modernidade, que aceleradas pelos processos de globalização, capitalismo informacional, mudanças nas conexões entre tempo e espaço, trocas transnacionais, estimuladas pelos deslocamentos mundiais, fluxos de estudantes e de imigrantes vêm mudando as paisagens urbanas das grandes metrópoles. Arjun Appadurai (2004) aponta que os meios de comunicação eletrônicos e as migrações constituem a marca do mundo presente, no qual as imagens, os textos, os modelos e as narrativas que chegam pelos meios de comunicação de massas marcam a diferença entre as migrações do passado e as atuais. É nesse cenário transnacional que estudantes africanos emergem nas ruas e avenidas, nas universidades públicas e faculdades particulares na cidade de Fortaleza, com seus estilos próprios, colorindo com suas roupas e enegrecendo com seus cabelos e tons de pele a etnopaisagem 4 desta metrópole. Influenciados por telenovelas, filmes, shows, sites, programas variados, reportagens, bem como por imagens, textos e notícias produzidos no Brasil e veiculados pelos meios de comunicação de massas, particularmente, pela televisão e por redes sociais virtuais ligadas à Internet nas sociedades africanas. Em suma, este trabalho focaliza as interações cotidianas de estudantes e imigrantes africanos com a sociedade cearense, residentes em uma capital do Nordeste brasileiro que apresenta altos índices e diferentes formas de violência urbana, estigmas entre bairros ricos e pobres, segregações de várias ordens e hierarquizada conforme distinções de classe, raça, sexo, gênero e religião, num cenário marcado por dificuldades de acesso a formação profissional e emprego. Tais violências não atingem os cidadãos da mesma maneira, afetando sobremodo determinados grupos sociais: jovens, negros, pobres, mulheres e moradores das periferias. Nesse contexto, a presença de africanos na cidade de Fortaleza gera distintas percepções e representações entre a população local, cujas interações são, muitas vezes, perpassadas de preconceito e discriminação racial, por sua condição de negros, da origem africana e por serem imigrantes pobres. 4 Expressão utilizada por Appadurai (2004) para designar paisagens de pessoas que constituem o mundo em deslocamento que habitamos: turistas, imigrantes, refugiados, exilados, trabalhadores convidados e outros grupos e indivíduos em movimento, que constituem um aspecto essencial do mundo e parecem afetar a política das nações e entre as nações sem precedentes. [46]

53 APORTES TEÓRICOS: O INTERACIONISMO SIMBÓLICO À LUZ DAS ANÁLISES DE GOFFMAN E DE BECKER Adentrando no universo das interações e situações cotidianas vivenciadas pelos africanos em Fortaleza, percebo a fecundidade analítica de teóricos do Interacionismo simbólico, 5 nomeadamente, Erving Goffman e Howard Becker, principais interlocutores deste artigo. Partindo de categorias da sociologia interacionista de Goffman (2011, 2010, 2002, 1988), quais sejam interação, interação face-a-face, informação social, identidade social, ritual de interação, ritual de evitação, definição de situação, linhas, estigma problematizo a dinâmica dos encontros face a face entre os dois grupos: africanos e cearenses. Na Sociologia, Goffman é o autor que melhor analisa a complexidade e a dinâmica dos encontros face a face, inesperados entre os indivíduos, fazendo o exame sistemático de pequenos detalhes, descrevendo as unidades da interação aí construídas. Goffman (2010) designa interação à classe de encontros em copresença física, cujos materiais comportamentais são as olhadelas, gestos, posicionamentos e enunciados verbais que as pessoas continuamente inserem na situação, intencionalmente ou não (p. 9). Desse modo, este teórico interacionista tenta descobrir a ordem normativa comportamental existente nos encontros sociais organizados, ocorridos em lugares públicos, semipúblicos e privados, ou mesmo, as interações que acontecem sob as coerções de um ambiente social rotinizado, desenvolvendo uma sociologia das ocasiões. Neste esforço analítico de compreensão das interações cotidianas entre cearenses e estudantes africanos, recorro a Goffman (1988), destacando a questão da classificação das pessoas com base em certos atributos como estigma e identidade deteriorada, mediante os quais indivíduos pertencentes a determinados grupos são bem recebidos, enquanto que indivíduos 5 O Interacionismo simbólico é uma abordagem sociológica qualitativa norteamericana acerca das relações humanas que, considera de suma importância a influência dos indivíduos na interação social. Originada na Escola de Chicago, tem como autores pioneiros, George Herbert Mead e John Dewey. Conforme Mirian Goldenberg (2004), o Interacionismo Simbólico propõe uma compreensão das ações dos indivíduos através de suas interações cotidianas, de seus comportamentos, gestos, intenções e significados, enfatizando a natureza simbólica da vida social. Seus seguidores partem do princípio de que são as atividades interativas dos indivíduos que produzem significações sociais, que se tornam simbólicos, isto é, passíveis de serem interpretados, os quais, o pesquisador só pode ter acesso a esses fenômenos particulares se participar do mundo que pretende estudar. Para os interacionistas, o indivíduo é o intérprete do mundo que o rodeia, daí que os pesquisadores priorizam o ponto de vista dos indivíduos. Essa abordagem é especialmente relevante na microssociologia e psicologia social. Além de George Mead e John Dewey, tem como expoentes William Thomas, Erving Goffman e Howard Becker. [47]

54 integrantes de outros grupos não o são. Via de regra, por causa do tratamento que lhes é reservado nas instituições e serviços públicos nas filas, caixas, cabines, balcões, guichês de atendimento e salas de espera os africanos enfrentam dificuldades de acesso, comunicação, obtenção de informações, documentos e direitos sociais. Muitas dessas situações e dificuldades revelam a existência de racismo institucional que, ocorre, quando instituições públicas ou privadas atuam de forma diferenciada em relação a determinados grupos, em função de suas caraterísticas físicas ou culturais. Como exemplo, cabe destacar, a existência de um cartaz com um dístico ou máxima, bem visível, na parede frontal do balcão de atendimento do Setor de Estrangeiros da Delegacia de Migração da Polícia Federal do Ceará, com os seguintes dizeres: não cabe ao estrangeiro questionar a lei do país que visita, mas cumpri-la e arcar com as consequências, quando as transgride. Este lema bem explicita o padrão de atendimento reservado aos africanos que, constituem maioria entre os usuários deste serviço público. Vejamos: Figura 1. Cartaz colado no guichê de atendimento aos estrangeiros do Departamento de Estrangeiro da Polícia Federal do Ceará entre os anos 2012 e Fonte: Fotografia da autoria de José Caldas, capturada do Facebook, no dia 07/09/2016. [48]

55 Este cartaz, colocado no guichê de atendimento aos estrangeiros deste setor público parece servir para intimidar e inibir reclamações dos utentes e usuários desse serviço. Nesses momentos, distintos funcionários, servidores públicos ou mesmo utentes desses organismos lembram-lhes, sempre, de que são estrangeiros, africanos, negros e pobres morando na terra dos outros. De fato, ao explicar as interações sociais, nas quais, os indivíduos são classificados e tratados de forma diferente, como indesejáveis, Goffman (1988) utiliza a categoria estigma, definido como sinal corporal que evidencia algo mau sobre o status moral de quem os apresenta (p. 12). O estigma é na verdade, uma linguagem de relações, um atributo que rejeita determinado sujeito, ao mesmo tempo que, confirma a normalidade de outro. Conforme a demonstração feita pelo autor, quando nos deparamos com um estranho à nossa frente, fazemos algumas exigências em relação ao seu caráter, o que constitui a identidade social virtual desse indivíduo. Já a categoria e atributos que o indivíduo, na realidade, prova possuir, Goffman (1988) designa de identidade social real. Via de regra, em sociedades póscoloniais e com passado escravocrata como a brasileira, historicamente, os corpos de homens negros e mulheres negras, sejam eles afrodescendentes ou mesmo africanos, carregam e transmitem aquilo que Goffman (1988) designa de informação social negativa. 6 Assim, no cotidiano, os estudantes africanos e os indivíduos considerados negros no Ceará são desacreditados socialmente nos mais diversos espaços e circunstâncias, seja nas ruas, instituições públicas, particulares, lojas, supermercados, shopping centers e por determinados grupos sociais, especialmente, pessoas de pele clara, policiais e seguranças privados. Ainda nessa linha de estudos, a partir das ideias de Becker, circunscrevo as categorias: outsiders, 7 desvio, identidade desviante, status principal, status auxiliar, rótulos e rotulagem. Em seus estudos acerca do desvio, Becker 6 Goffman (1988) designa de informação social, aquela informação que o indivíduo transmite diretamente sobre si, por meio de sinalizações que ele dá por meio de gestos, através de expressões, do corpo, cabelo, de signos e símbolos, assim como por meio da roupa e outros adereços. Segundo o autor: é uma informação sobre um indivíduo, sobre suas características mais ou menos permanentes, em oposição ao estado de espírito, sentimentos ou intenções que ele poderia ter num certo momento (p. 52). Goffman (1988) mostra também que certos indivíduos são desacreditados, antes mesmo de serem apresentados ou conhecidos pelas outras pessoas, por conta de determinadas características consideradas estigmatizantes. Sua presença se torna tensa, incerta e ambígua para todos os participantes, sobretudo para a pessoa estigmatizada. 7 Foi Becker quem popularizou o uso do termo outsider na Sociologia, nos anos de 1960, ao usar tal noção para nomear os indivíduos e grupos que violam normas comumente aceitas e não levam uma vida considerada normal pela sociedade. Para Becker (2008), outsider é aquele que se desvia das regras do grupo da sociedade vigente. [49]

56 (2008) afirma que determinados grupos sociais possuem uma identidade desviante nas sociedades, que igualmente os atribui status principal e vários status auxiliares. Assim, Becker (2008) destaca o lugar social enquanto outsiders ou desviantes que, determinados grupos sociais ocupam na estrutura hierárquica das sociedades, ainda que, seus integrantes não se sintam pertencentes a tais grupos. Ao movimentar a teoria de rotulagem deste autor, neste esforço de problematização das interações cotidianas entre cearenses e africanos, percebo que os estudantes-imigrantes residentes no Ceará vivenciam distintas configurações identitárias e distintos rótulos negativos. A rigor, no Ceará, primeiro, os africanos são considerados: negões ou morenos; somente depois lhes é atribuído o status principal, qual seja, estrangeiros e; finalmente, são-lhes atribuídos outros status auxiliares, conforme suas inserções em diferentes atividades: estudantes, professores, peões de obra, músicos, atendentes, vendedores, enfermeiros, etc. No Brasil, as pessoas de raça negra e mestiças não escapam a esses processos de racialização. A rigor, as formas de interação dos estudantes africanos com a população cearense, no cotidiano, tende a expressar mecanismos de discriminação, colocando-os na posição de outsiders (BECKER, 2008), (ELIAS e SCOTSON, 2000). 8 Muitas vezes, os africanos percebem-se outsiders em lugares que não são reconhecidos como espaços onde os negros possam transitar. Enquanto negros e africanos, percebem, somente mais tarde que, determinados espaços e lugares lhes são vedados devido à cor da pele. METODOLOGIA: OBSERVAÇÃO NAS FILAS DE ACESSO A SERVIÇOS No tocante aos aportes metodológicos, cabe destacar minha condição de integrante da diáspora africana em Fortaleza, enquanto pesquisador moçambicano, posição a partir da qual, venho observando de forma sistemática, as interações entre cearenses e africanos em diferentes espaços públicos e privados, particularmente, o comportamento dos indivíduos nas filas que se formam no acesso a esses serviços. A observação das interações entre os indivíduos nas filas de serviços públicos é uma técnica muito importante na Sociologia que se faz em Moçambique, meu país de origem. Fruto do regime socialista e de seu sistema burocrático que vigorou durante quinze anos, a bicha como se chama a fila em Moçambique revela ser um ótimo laboratório para a observação de comportamentos dos 8 Elias e Scotson (2000) analisam relações de poder em uma pequena comunidade inglesa, adotando o termo outsider em oposição de establishment e established - palavras usadas comumente em inglês - para designar grupos e indivíduos que ocupam posições de poder. De acordo com os autores, outsider designa os não-membros da boa sociedade, ou que estão fora dela. [50]

57 indivíduos em espaços públicos. Observando as filas que se formam no acesso a serviços públicos na cidade de Fortaleza, é possível compreender a complexidade dos encontros face a face inesperados sejam olhares, falas, gestos, constrangimentos, movimentos hesitantes e esquivos, intencionais ou não entre cearenses e africanos, que se assemelham aquilo que Goffman (2011) designa ritual de evitação. O exame detalhado desses pequenos comportamentos é uma particularidade metodológica do Interacionismo Simbólico que, ajuda a compreender a ordem normativa da sociedade onde os indivíduos se encontram inseridos. Nesse sentido, ao adentrar na compreensão desses rituais de interação (Goffman, 2011), adotei como via metodológica a observação sistemática das filas pois, revelaram ser profícuas para a compreensão de comportamentos, atitudes e práticas dos indivíduos na sociedade. Dessa forma, realizei entrevistas abertas, em distintos espaços e lugares, com estudantes e imigrantes africanos de diferentes nacionalidades, grupos etnolinguísticos e de ambos os sexos. Em alguns casos explorei a alternativa de conversas informais, com registros sistemáticos no diário de campo. INTERAÇÕES COTIDIANAS ENTRE AFRICANOS E CEARENSES As formas de interação dos estudantes e imigrantes africanos com a sociedade cearense, marcadas por uma forte presença de racismo e discriminações etnicorraciais, a manifestar-se em posturas, atitudes e comportamentos. Essas interações obedecem a diferentes linhas 9 que, vão da cortesia típica do brasileiro, passando pela aspereza, às situações de preconceito e discriminação, até racismo cordial e velado. As situações de preconceito, discriminação racial e do próprio racismo acontecem em diferentes lugares e espaços, sejam eles públicos ou privados. Senão, vejamos o depoimento de um aluno cabo-verdiano acerca do atendimento na Delegacia de Migração da Polícia Federal, serviço público ao qual os estudantes têm que se apresentar, anualmente, para prorrogar o visto de estada no Brasil: Polícia Federal é o momento que a gente fica mais tenso, do ano, né. É o dia que a gente vai assim, tenta que se preparar psicologicamente, porque a gente vai muito tenso. Às vezes depende muito da pessoa 9 Goffman (2010) designa de linha um padrão de atos verbais e não verbais com o qual ela expressa sua opinião sobre a situação, e através disto sua avaliação sobre os participantes, especialmente ela própria. Não importa que a pessoa pretenda assumir uma linha ou não, ela sempre o fará na prática (p. 13). [51]

58 que te atende, né. Mas é assim, a gente passa por momentos constrangedores, brincadeiras com um fundo de verdade, brincadeiras de mau gosto, pressão psicológica, assim, você sai de lá, realmente, exausto, exausto. Exausto assim. E... mas, eu nunca tive um momento crítico assim. Teve um episódio assim, que não foi..., ficou uma coisa sem resolver, mas é como eu te disse. Como essa coisa do preconceito, ela permeia em todas as estruturas, então sempre vai estar embutido, sempre vai ter alguma coisa. (Entrevista gravada em 24/03/2014). De fato, é no contexto da diáspora no Ceará que, muitos estudantes africanos são alvo dos preconceitos de marca e de origem (Nogueira, 2006), ou seja, percebem que a cor da pele, fisionomia e traços físicos sãos os principais atributos da sua existência, característica social e física da experiência de seu grupo étnico no Brasil. Além de interações em clima de tensão, de receio e de medo entre africanos e cearenses, no cotidiano, ocorrem outros tipos de situações, como são os rituais de interação e de evitação (Goffman, 2011) que, acontecem de diversas maneiras, muitas vezes sutis. Os rituais de evitação vão desde olhares desconfiados e incomodados, por parte de brasileiros, nas filas e salas de espera no acesso a serviços hospitais, bancos, casas lotéricas, ônibus, lojas, supermercados, teatros e cinemas passando pela marcação de distância física e social, à troca de lado e de bolsos onde portam carteiras, bolsas, celulares, dinheiro, sempre que um indivíduo negro, afrodescendente ou africano se aproxima. Outras vezes, nas ruas e avenidas, cearenses mudam de calçada e de passeio ao avistarem um indivíduo de raça negra ou de origem africana. Trocam de assento ou preferem ficar em pé dentro dos ônibus, metrô e outros espaços, recusandose compartilhar o mesmo assento ou poltrona, mesmo quando existem cadeiras para se sentarem. Analisemos, agora, o depoimento deste estudante de Guiné-Bissau, relatando suas experiências e dificuldades na utilização de transporte público coletivo na cidade de Fortaleza. Ah o ônibus eu não quero nem falar porque na verdade quando saio daqui, às vezes de manhã e por vezes à tarde..., é muito complicado. Não consegues pegar ônibus, um porque eu acho que alguns motoristas, eu não costumo..., dizer que são racistas. Que o povo brasileiro né, aqui no Brasil eu costumo dizer que tudo tem duplo sentido. Aqui, as informações são deturpadas, entendeu. O pessoal leva tudo no sentido... Prontos, eu já tentei parar, hoje mesmo, hoje, eu já tentei parar três ônibus cara, o motorista fazia assim como se fosse parar e passava. Eu acho que é porque eu tava com boné atrás, num estilo meio direto. Então, os motoristas acharam que eu era sei lá, um bandidinho. Então, eu já passei também por isso. (Estudante [52]

59 bissau-guineense cursando universidade estadual. Entrevista gravada em 23/09/2013). Desse modo, os estudantes africanos sentem-se discriminados no cotidiano, principalmente, quando se deparam sozinhos diante de cearenses em ruas desertas, paradas de ônibus, elevadores, corredores que dão acesso a banheiros, cinemas, dentre outros espaços. Nesse cenário, distintos estudantes africanos apontam o preconceito e discriminação raciais como responsáveis pelas dificuldades encontradas para acessar e utilizar serviços públicos no Ceará, enquanto que outros, inconscientemente, atribuem como causas, suas características etnicorraciais, físicas e sociais: cor de pele, boné e estilo de vestimenta. VIOLÊNCIA E MORTE NA DIÁSPORA Os africanos não escapam ao contexto de insegurança e sensação de medo nas ruas por causa de assaltos, roubos e furtos, opressão racial, violência do mundo das drogas, violência policial e assassinatos, característicos da sociedade brasileira. O processo investigativo revelou dimensões do racismo nas relações pessoais e institucionais no contexto cearense, particularmente, de Fortaleza, mostrando tensões raciais e distintas formas de violência e opressão, vivenciadas pelos estudantes-imigrantes. Expressões-limites dessas violências são as mortes de seis estudantes africanos em Fortaleza ocorridas no período de 2011 a 2016, ocasionadas por diferentes razões. 10 Assim, neste tópico, delineio as formas de violência que atingem estes sujeitos imigrantes, envolvendo diferentes situações. As mortes de estudantes africanos têm assombrado esta diáspora, passando a fazer parte de seu universo de vida, particularmente, após os assassinatos de três estudantes cabo-verdianos, entre os anos 2011 e 2016, vítimas de: linchamento por dívida no mundo das drogas; homicídio doloso no trânsito por meio de atropelamento com veículo, premeditado, após discussão banal em uma praça e; feminicídio por motivo passional, em relacionamento marcado por violência doméstica. Tais mortes violentas abalaram o imaginário social existente acerca do Brasil entre os africanos residentes nesta Diáspora e aqueles residentes nos países de origem na África antes, 10 Nos últimos seis anos, faleceram, no total, oito estudantes africanos na cidade de Fortaleza. Dentre tais mortes, três estudantes cabo-verdianos dois homens e uma mulher foram vítimas de assassinatos. Enquanto que, outros quatro estudantes um moçambicano e quatro bissau-guineenses, sendo dois do sexo masculino e dois do sexo feminino morreram vítimas de doenças. Por último, um estudante bissau-guineense morreu vítima de acidente de veículo. [53]

60 tido como paraíso terrestre. Nas linhas seguintes, passo a descrever estes casos emblemáticos. Na manhã do dia dez de novembro de 2011 falecia, no Hospital Instituto Dr. José Frota (IJF) em Fortaleza, Jason Teixeira Hopfer, estudante cabo-verdiano, de vinte e dois anos de idade, após três dias de internamento na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). Jason Teixeira estava no quinto semestre do curso de Direito em uma faculdade particular de Fortaleza e morava a alguns quilômetros do local onde foi encontrado ferido. Três dias antes, num domingo à noite, Jason Hopfer havia sido linchado por um grupo de jovens ligados ao mundo das drogas na Favela do Oitão Preto, na periferia da cidade de Fortaleza. Após o linchamento com recursos a paus e pedras durante a noite, o estudante cabo-verdiano foi encontrado por populares nas primeiras horas da manhã agonizando com lesões internas, traumatismo craniano e ferimentos no rosto na Avenida Leste-Oeste. Três dias após o internamento, o estudante não resistiu e perdeu a vida. Durante esse período, os profissionais deste Hospital não comunicavam, nem prestavam nenhuma informação à diáspora africana ou aos representantes de suas distintas agremiações estudantis acerca do estado de saúde do estudante cabo-verdiano, alegando que só falariam com um familiar direto do estudante. Os serviços sociais deste Hospital, somente, contataram a comunidade africana para informar que havia sido decretada a morte encefálica do estudante e assim, fazer o pedido de doação dos órgãos internos do falecido. Os representantes da Comunidade africana recusaramse a assinar os documentos de doação dos órgãos, alegando que caberia à mãe do estudante decidir. Nesse interim, o assassinato do estudante caboverdiano foi, amplamente, noticiado pelos meios de comunicação e imprensa cearenses, bem como nas semanas seguintes, houve um aumento significativo de reportagens sobre a situação dos estudantes africanos no Estado. Também se verificou um assédio dos meios de comunicação a esses sujeitos, com o objetivo de conseguir informações sobre o caso, particularmente, as circunstâncias da morte pois, suspeitava-se que o falecido estivesse envolvido com o consumo de drogas. Até ao momento, não se sabe ao certo os motivos do linchamento, suspeitando-se de dívidas inerentes ao mundo das drogas. Neste crime, a condição de estrangeiro, negro e africano parece peça fundamental para a sua efetivação, bem como para o desfecho da investigação. Quatro anos depois, no dia quinze de julho de 2015, a diáspora africana no Ceará foi surpreendida com a morte de mais um estudante, vítima de assassinato. Paulo Jorge Romão Santos Delgado, de vinte e quatro anos de idade, estudante cabo-verdiano que, morava há cerca de três anos [54]

61 na cidade de Fortaleza, cursava uma faculdade particular à noite e trabalhava como garçom em um restaurante de dia. Na manhã desse dia, Paulo Jorge foi atropelado por um veículo na Avenida Santos Dumont, cujo o motorista fugiu do local sem prestar socorro. O estudante ainda foi socorrido para o IJF, mas, não resistiu aos ferimentos e faleceu na mesma manhã. Algumas semanas depois, veio à luz, as reais circunstâncias da morte, quando um jovem brasileiro de vinte anos de idade na companhia de seu advogado entregou-se à Polícia e confessou ter praticado o crime, explicando que, na realidade, tratou-se de um homicídio doloso e premeditado. Horas antes do atropelamento, o estudante africano teria se envolvido em discussão com o assassino, numa Praça do Bairro Cidade Após o desentendimento, o estudante cabo-verdiano teria se desculpado, entretanto, quando voltava para casa trafegando em sua moto, cerca das cinco horas da manhã, foi seguido por um veículo que, avançou contra o estudante africano, passando por cima deste. O assassino, saiu algumas horas depois de entregar-se à Polícia, não tendo sido preso pois, não houve flagrante, e aguarda o desenrolar do processo em casa. A comunidade africana não tem notícias dos desenvolvimentos do inquérito policial, nem do processo judicial. Mais uma vez, a raça, origem étnica e nacional, parecem contribuir para a prática do crime e do seu andamento na Justiça. Por último, no ano 2016, no dia vinte e nove de julho, a diáspora africana foi surpreendida com a circulação de notícias nas redes sociais virtuais particularmente no Facebook informando que a estudante caboverdiana, Vânia Fernandes, de vinte e um anos de idade, fora morta com um tiro na cabeça, na tarde anterior, no município do Eusébio, localizado na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), onde residia na companhia de seu namorado. A estudante que morava há cerca de dois anos em Fortaleza, estudava durante o dia e à noite trabalhava num posto de combustíveis. A imprensa cabo-verdiana noticiava que o possível autor do homicídio seria seu namorado, um policial brasileiro, de cerca de trinta e dois anos. Amigos e fontes próximas dos familiares da vítima afirmavam que, a jovem teria sido assassinada pelo namorado, pois, a vítima tinha, constantemente, brigas com o namorado por causa das crises de ciúmes deste. Tais desentendimentos teriam atingido o ápice na tarde do dia em que a jovem foi baleada. Semanas antes, Vânia Fernandes andava ausente, tendo removido todas as suas publicações no Facebook, assim como, a amizade que tinha com a maioria dos cabo-verdianos, escrevia o Jornal. A morte de Vânia Fernandes insere-se num cenário mais amplo, vivenciado em Fortaleza, Ceará e no Brasil de forma geral, caracterizado pela perseguição, cerceamento, humilhações, violência doméstica e de gênero contra as mulheres, bem como feminicídios, [55]

62 perpetrados por seus companheiros, familiares e até mesmo desconhecidos. A morte desta mulher, jovem, negra, africana, estudante, imigrante e estrangeira veio acrescentar mais um caso às estatísticas, índices de violência doméstica, de gênero e dos feminicídios em Fortaleza, Ceará, Brasil. Nessas estatísticas, a maioria das vítimas são homens e mulheres jovens, negros e negras, em casos cuja maioria das vezes, o agressor é o próprio companheiro (WAISELFISZ, 2016, 2015, 2014, 2012). Em todos esses casos de mortes aqui narrados, houve dificuldades dos africanos em obter informações junto às autoridades policiais e aos profissionais de saúde acerca das circunstâncias dos falecimentos, situações essas que demonstram existência de racismo institucional. 11 Até hoje, a Diáspora africana não tem certeza das reais causas ou circunstâncias das mortes de seus compatriotas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo analisou as interações cotidianas, face-a-face entre estudantes africanos e a sociedade cearense, nos mais variados espaços e lugares públicos e privados, bem como descreveu as distintas formas de violência que afetam a vida dos imigrantes africanos na Diáspora no Ceará. No dia-a-dia, as interações cotidianas entre africanos e cearenses mostramse difíceis, com diferentes formas de violência e de opressão, nomeadamente: rispidez, preconceito, discriminação racial, violência verbal e, em alguns extremos, terminam com violência física e mesmo morte de africanos. Minhas observações incidiram, particularmente, nas interações que acontecem nas filas de acesso a serviços, sejam eles públicos ou privados. Tais interações revelam muito acerca da segregação espacial de renda, classe, raça, etnia, sexo e gênero, bem como das distinções de várias ordens entre os diferentes segmentos sociais, existentes no Brasil. Cabe destacar, também, a violência doméstica e de gênero, nas relações afetivas entre homens e mulheres africanas e nas relações destes com brasileiros(a)s. A violência e mortes que atingem os estudantes africanos na Diáspora no Ceará interseccionam diferentes marcadores sociais raça, etnia, classe, sexo, gênero e prestígio nos quais se juntam dois, três ou mais elementos discriminatórios que não são, mutuamente, excludentes, criando conexões complexas, em uma sociedade que se pensa branca e europeia. A esse cenário, acrescenta-se o clima de desconfiança e de acusações entre a 11 Designa-se por racismo institucional ao fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas em razão de sua cor, cultura ou origem étnica. Ou mesmo, quando estruturas públicas e/ou privadas de um país, estado, governo ou serviço atuam de forma diferenciada em relação a determinados grupos em função de características físicas ou culturais. [56]

63 população local e a comunidade africana, bem como a sensação de insegurança, medo e receio de assaltos, furtos e roubos, vivenciado na cidade de Fortaleza. As mortes dos africanos aqui narradas, mostram a vulnerabilidade desses sujeitos às distintas formas de violência e de opressão: quando não morrem de forma violenta, os estudantes africanos morrem de doenças, algumas delas evitáveis. O fato de serem estrangeiros, negros, africanos e imigrantes pobres são características interseccionais que, contribuem para efetivação de crimes contra os africanos e para que os casos não sejam investigados a fundo e mesmo solucionados. Por outro lado, verificam-se dificuldades entre as agremiações estudantis africanas em se comunicar, dialogar e obter informações detalhadas e precisas sobre as circunstâncias das mortes de seus conterrâneos nas unidades sanitárias, delegacias de polícia e órgãos de justiça. Tais dificuldades revelam a existência de racismo institucional e criam um ambiente propício à especulações e acusações. REFERÊNCIAS APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem peias. Tradução de Telma Costa. Lisboa: Teorema, BECKER, Howard. Outsiders: estudo de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Tradução de Fábio da Silva. Petrópolis: Vozes, Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização social de ajuntamentos. Tradução de Fábio da Silva. Petrópolis: Vozes, Representação do eu na vida cotidiana. Tradução de Maria Raposo. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, Estigma: notas sobre a manipulação da Identidade deteriorada. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC,1988. GOLDENBERG, Mirian. A Arte de Pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em ciências sociais. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, [57]

64 ELIAS, Norbert; SCOTSON, John. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, LANGA, Ercílio. Diáspora Africana no Ceará: representações sobre as festas e as interações afetivossexuais de estudantes africanos(as) em Fortaleza. In: Revista Lusófona de Estudos Culturais, vol. 2, nº.1, p , Diáspora Africana no Ceará no Século XXI: ressignificações identitárias e as interseccionalidades de raça, gênero, sexualidade e classe no contexto da migração estudantil internacional. In: MALOMALO, Bas Ilele et al (orgs.). Diáspora Africana e migração na era da globalização: experiências de refúgio, estudo, trabalho. Curitiba: Editora CRV, p , O lugar das mulheres e a questão dos direitos humanos: um olhar sobre experiências, dramas e interseccionalidades de mulheres africanas na cidade de Fortaleza-CE. In: ROCHA, Marcos (Org.). Direitos Humanos, Sociedade e Política. (Coleção Outros Olhares). Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2016, p NOGUEIRA, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1, pp , WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2016: homicídios por arma de fogo no Brasil. Versão corrigida 26/08/2015. FLACSO BRASIL.. Mapa da Violência 2015: homicídio de mulheres no Brasil. Brasília: FLACSO, Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil. Brasília: FLACSO, Mapa da Violência 2012: a cor dos homicídios no Brasil. Brasília: FLACSO, Artigos de jornal e em meio eletrônico FELLET, João. Mortes de estudantes abalam comunidade africana no Ceará. 5 mai Disponívelem:< /140505_morte_estudantes_africanos_ceara_jf_an>. Acessado em 11 jun [58]

65 G1-GLOBO. Africano morre atropelado no CE e amigos pedem ajuda para traslado. 18 jul Disponível em: < >. Acessado em 21 jul Estudante morre em Fortaleza após ser espancado. 11 ago Disponível em:< Acessado em 21 jul MOTA, Lucas. Estudante de Cabo-Verde é encontrada morta no Ceará. 27 jul Disponível em: < /estudante-de-cabo-verde-e-encontrada-morta-no-ceara.shtml>. Acessado em 29 jul [59]

66 [60]

67 03 VIOLÊNCIA DE GÊNERO EM INTERAÇÕES SOCIAIS Adriana Martins 1 INTRODUÇÃO As interações sociais por meio de redes sociais fazem parte da realidade da maioria das pessoas. Independentemente da faixa etária, compartilhar a rotina através de blogs 2, facebook e twitter é uma forma de construir e manter relações. As relações em redes sociais, que acontecem pela escrita, se diferenciam das interações face a face, que se estabelecem principalmente pela fala, devido as características próprias de cada modalidade e também pela influência do suporte. Para Marcuschi (2008) o suporte é o lócus físico ou virtual, cujo gênero é materializado como texto e é imprescindível para que o gênero circule na sociedade, e que de alguma forma influencia em sua natureza. Nesse aspecto, Maingueneau (2004, p. 71) afirma que é importante considerar o discurso em relação ao suporte e ao seu modo de difusão; isso significa que um discurso pode cumprir diferente papel comunicativo dependendo do seu suporte e do seu modo de divulgação: Foi, sobretudo com a chegada dos mídiuns audiovisuais e o desenvolvimento da informática que tomamos consciência desse papel crucial do mídium. (MAINGUENEAU, 2004, p. 72). O mídium citado por Maingueneau se refere não apenas ao meio em que um discurso circula, mas também a um veículo que modifica o sentido dos discursos em circulação. Nesse aspecto, a internet é um suporte que alberga e conduz gêneros dos mais diversos formatos (MARCUSCHI, 2008, p. 186). Considerando a importância da internet nas interações sociais e a abrangência dos diversos gêneros ali, neste trabalho, temos o objetivo de discutir a violência de gênero em duas postagens do Blog Testosterona. Para a análise quali-descritiva dos dados utilizamos como suporte teórico metodológico: os atos de fala (AUSTIN, 1975), (BUTLER, 1997); 1 Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Professora do Curso de Letras da Faculdade Grande Fortaleza. adriana.martins2004@gmail.com 2 Por considerar que a palavra blog faz parte do vocabulário dos falantes de língua Portuguesa, não será grafada em itálico. [61]

68 Metapragmática (SILVA, 2010); Aspectos Ideológicos (THOMPSON, 2009). A importância da pesquisa se pauta na questão de que no blog Testosterona, o discurso em circulação ali nem sempre favorece a autoestima da mulher e do seu modo de performatizar, através da linguagem verbal e não verbal, a naturalização da violência linguística contra a mulher, discurso esse que incentiva a construção de um discurso ressignificado de uma imagem colonial e patriarcal. Essa análise se orienta pela visão de linguagem defendida pela Nova Pragmática (RAJAGOPALAN, 2010), apoiada em teóricos como Wittgenstein (2000) e J.L. Austin (1975) que consideram a linguagem como forma de vida e que causam impacto sobre o outro. Para iniciar a discussão vamos fundamentar sobre violência, sobre gênero e sobre o Blog. Posteriormente traçaremos o caminho metodológico para a discussão e análise dos dados. VIOLÊNCIA LINGUÍSTICA Refletir sobre violência não é discutir um tópico da sociedade atual: a violência é parte da sociedade desde os primórdios da humanidade (LEVISKY, 2010). Seguindo um pouco mais adiante, ao longo da história da evolução linguística e social, esse conceito de violência foi sendo ressignificado e ampliado em seu escopo de atuação. A violência não era apenas por sobrevivência ou por liderança, já que outros motivos passaram a fazer parte desse campo. Tais como: cargo político, carreira profissional, interesses financeiros, etc. Chegando à sociedade moderna, a violência é sentida pelas pessoas, como um fenômeno social inquietante, cujo elemento estrutural é intrínseco ao fato social e não apenas aos resíduos de uma diacronia bárbara (PICKERING, 2010, p. 100). Em contextos atuais, pessoas tentam justificar atitudes de violência, como se isso fosse possível, deslocando a culpa para o outro. O notório é que, normalmente, a linguagem perpassa quase todas as situações. Em alguns contextos, dependendo da forma como os atos de fala são orientados, a performatividade desses atos pode ser de guerra ou paz. Isso significa que os atos de fala são fatores que podem decidir a vida ou o futuro de alguém, ou de uma nação. Como em negociações políticas, por exemplo. Porém, considerando a complexidade de contextos, torna-se difícil eleger uma única definição para a violência in loco, pois não há um único conceito capaz de abordar toda a carga semântica que está intrínseca nesse termo. Arblaster (1996, p. 803) afirma que não existe uma definição consensual ou incontroversa de violência. O termo é potente demais para que isso seja [62]

69 possível, porém Levisky (2010, p. 6) afirma que, em Rocha (1996), há uma boa concepção sobre violência, que citamos: A violência, sob todas as formas de suas inúmeras manifestações, pode ser considerada como uma vis, vale dizer, como uma força que transgride os limites dos seres humanos, tanto na sua realidade física e psíquica, quanto no campo de suas realizações sociais, éticas, estéticas, políticas e religiosas. Em outras palavras, a violência, sob todas as suas formas, desrespeita os direitos fundamentais do ser humano, sem os quais o homem deixa de ser considerado como sujeito de direitos e de deveres, e passa a ser olhado como um puro e simples objeto. A questão da objetivação do ser, mediante um ato violento, condiz com o pensamento de Butler (1997), quando diz que a violência coloca a vítima em um não lugar. É um deslocamento brusco, inesperado, que em muitas situações leva a consequências irreparáveis 3. Silva (2010, p. 34) afirma, a esse respeito, que a violência é um aspecto constituinte da relação que estabelecemos com o mundo em que a violência verbal e física são variavelmente constitutivas. Na teoria dos Atos de fala, Austin (1975) concebe que um ato de fala é uma forma de agir no mundo e que, quando falamos, coisas acontecem. Considerando o contingente de utilização e o grau de abrangência das ferramentas tecnológicas, coisas acontecem independentemente se a interação é face a face ou a distância. A visão de ato de fala em uma visão performativa extrapola até mesmo o conceito de uma pragmática linguística e abre espaço para uma pragmática em uma visão mais plural mais cultural, em que indivíduo e cultura estão intrinsecamente ligados. Um bom exemplo da abrangência da performatividade dos atos de fala são as investigações que atualmente são deliberadas nas redes sociais em que os atos de fala funcionam como explicadores ou pistas justificativas para atos violentos. Nesse aspecto, Silva (2010, p. 37) afirma que o espetáculo da violência física adquire nuances performativas, simbólicas e culturais. Geralmente é na linguagem que toda forma violenta se inicia, e, simbolicamente falando, a violência linguística é equivalente à violência física. Das (1999, p. 37) ressalta que as variações diversas que decorrem do padrão de violência são explicitadas através de técnicas performativas que os participantes empregam para tornar público a violência e o conflito. E essa 3 O irreparável está relacionado com as diversas formas que a vítima significa determinado ato violento. [63]

70 habilidade de falar a violência encontra-se nos recessos dessa cultura de encenar e contar histórias no interior dos domínios da família e do parentesco. Nessa perspectiva, é que Thompson (2009) ressalta sobre os modos de operação da ideologia, a estratégia de narrativização em que são nas estórias cotidianas que os seres sociais recontam como o mundo se apresenta e reforçam a ordem aparente das coisas. A forma de renarrar esses eventos, que pode ser através do humor como nas postagens do blog Testosterona ou de fatos trágicos, naturalizam formas diversas de violência. Pode-se assim dizer que se constrói uma narrativa da violência, que é castradora, fomentada pela constante sensação de medo 4. A violência faz parte do campo da subjetividade e é construída linguisticamente nesse campo das subjetivações. Dessa forma, cada indivíduo tem uma experienciação diferente sobre violência e tem sua forma particular de vivê-la e expressá-la, como as mulheres e crianças, por exemplo, no contexto de violência doméstica. Nessa perspectiva, é importante discutir não especificamente sobre os tipos de violência, mas sobre a violência linguística, considerando o gênero feminino. GÊNERO FEMININO As identidades de gênero e suas configurações culturais hegemônicas homem / mulher são performatizadas e, assim, naturalizadas pela linguagem através de repetidos atos de fala. Desse modo, podemos entender que, sendo o sexo um efeito perlocucionário do gênero, o gênero seria também um efeito de atos de fala ritualizados, que podem ser realizados violentamente e dissimulados de forma ideológica, uma vez que são naturalizados nos diversos discursos tradicionais que apresentam as identidades tradicionais de gênero masculinas e femininas como reais, naturais, binárias e hierarquizadas (BUTLER, 1997). 4 O medo, explica Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudo da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV/UFC), não está ligado apenas a uma experiência objetiva dos cidadãos com assaltos, sequestros, assassinatos etc. O medo e sua inserção cultural têm uma dimensão mais sutil e se reproduzem por meio da narração dos fatos, seja no universo científico, nos dados oficiais, na imprensa, no boato. A diferença entre a criminalidade e a sensação de insegurança é o terreno fértil onde se desenvolve o imaginário da violência. Disponível em: < Acesso em: 14 set [64]

71 Heilborn (1990, p. 40) mostra que gênero se trata de uma acepção do emprego de desinências diferenciadas para designar indivíduos de sexos diferentes ou ainda coisas sexuadas. Na afirmação de Heilborn, o gênero é uma forma de qualificação, de diferenciação, que se sustenta por um fator biológico entre macho e fêmea. Em nosso ponto de vista, dizer que o campo semântico da palavra evoluiu e passou a significar a distinção entre atributos culturais inerentes a cada um dos sexos seria, na prática, um contrassenso, pois, desde o início das organizações sociais, o fator biológico era o que determinava uma cultura de diferenças e sempre foi um indicador das posições sociais que poderiam ser ocupadas por cada sexo. Rosaldo e Lamphere (1979) afirmam que a mulher ocupa uma posição secundária na sociedade, mesmo que seja influente, por exemplo, em relação ao homem, com mesma idade e mesmo status social, ela precisa de um poder que seja reconhecido e valorizado culturalmente. Os autores afirmam ainda que, na esfera natureza e cultura, as mulheres têm o status derivado de suas funções biológicas e de seu estágio no ciclo de vida que são de ordem natural, como: dar à luz, alimentar, cozinhar, cuidar dos filhos e da casa. Os homens, por sua vez, pertencem a uma esfera diferenciada, em suas relações institucionalizadas da família, política, entre outros, ocupando um papel social que define a organização pública como se os homens fossem responsáveis pela ordem. As diferenças de gênero resistem ao tempo e às mudanças na sociedade, e, a cada dia, se reafirmam através de narrativas que territorializam o homem como um ser superior à mulher. Macedo (2013) afirma que o gênero é apreendido socialmente e varia de época e de uma sociedade para outra, e que fatores como a moda e as relações desiguais de poder elucidam as singularidades de gênero de cada povo. Nesse processo construtivo, permanente, todos os seres sociais operam reforçando ou desestabilizando certos comportamentos designados para garotos e garotas, em que as instituições ligadas à família, à escola, à mídia têm a função de formar, transmitir valores, modelos e estereótipos ligados ao gênero. Os fatores históricos que fizeram parte da vida de homens e mulheres desde o início da constituição familiar influenciam as relações sociais dos dias de hoje. A grande complexidade que envolve as questões de gênero acabou por gerar, em muitos casos, um sistema de condutas estereotipadas para o masculino e o feminino, desencadeando expectativas mais ou menos rígidas sobre os desempenhos de gênero (ex: o dever de resignação feminina, a autoridade esperada do masculino) a que parecem aderir não só agressores, mas também algumas vítimas e a própria sociedade (MATOS, 2006, p. 105). Aqui, esta tripartição, agressores, vítimas e sociedade, se refere aos atores [65]

72 sociais que estão envolvidos entre as questões de gênero e violência, como discutimos no tópico anterior sobre violência. Esses pontos são aqui levantados, pois, ainda na sociedade atual, globalizada e evoluída, as práticas de violência contra a mulher continuam sendo algo que decidem se uma mulher deve viver ou morrer. Lobo (1991, p.187) ressalta que a cultura de que a mulher pertence ao sexo frágil é um aspecto do gênero como categoria analítica e está relacionada com a teoria do patriarcado. Por outro lado, Saffioti (2002) diz que esse conceito de gênero é mais ideológico do que de patriarcado, pois esse conceito de patriarcado foi utilizado por feministas no final da década de 1960 e 1970 a fim de denunciar a dominação masculina e analisar a hierarquia entre o homem e a mulher. Para a autora, o patriarcado em sentido amplo é visto como um sistema masculino de opressão contra as mulheres, sustentado por uma economia doméstica organizada, na qual as mulheres são objetos de satisfação sexual dos homens, reprodutoras. Diz a autora: O sistema patriarcal para dar conta do sistema de dominaçãoexploração-opressão, nas relações de gênero, argumenta que esta categoria trata: de uma relação civil e não privada; possibilitada de direitos sexuais dos homens sobre as mulheres quase sem restrições; configura um tipo hierárquico de relação que aparece em todos os espaços da sociedade; tem uma base material; corporifica-se; representa uma estrutura de poder alicerçada tanto na ideologia quanto na violência. (SAFFIOTI 2002, p. 24) Seguindo o pensamento de Saffioti (2002) e considerando as postagens do blog, em foco nessa pesquisa, é possível inferir que os atos de fala que circulam ali estilizam um tipo de mulher que não é a mulher nem de hoje e nem de ontem. Em outras palavras, não há o intuito de trazer de volta nem a mulher do período patriarcal, pois, se assim fosse, o homem só teria acesso a ela mediante um acordo nupcial; nem a mulher moderna, que tem um perfil mais independente e menos matriarcal do lar. Porém, o que percebemos é que se inscreve uma tentativa de implementar uma mescla dessas mulheres tão diferentes, ou seja, uma serva linda, sexy e nua a serviço do homem. Aqui não se estabelece uma generalização de que todos os homens agem preconceituosamente, mas é audível o discurso machista que ecoa na sociedade, mesmo por mulheres, principalmente em redes sociais, como no blog, por exemplo. [66]

73 BLOG Pelo prisma da configuração, é possível considerar que o blog, assim como o facebook, é um espaço técnico que proporciona a emergência das redes sociais. Recuero (2012, p. 19) considera a rede social como o grupo de atores que utiliza determinadas ferramentas para publicar suas conexões e interagir. Por entender as interações sociais como algo dinâmico e performático, é complicado definir características estáticas que configurem uma rede social. Recuero (2012) chama a atenção para esse tópico, pois considera que é arriscado elencar características, devido à dinamicidade em que surgem e são reapropriadas pelos atores. É como se a mistura entre criatividade, motivação, contexto e intenção, mobilizasse esses ingredientes necessários para que as reapropriações ganhem vida, por intermédio de atos de fala. No contexto do blog Testosterona, o discurso de humor funciona como desculpa ofensiva e preconceituosa contra a mulher. A visibilidade desse blog e o status social dos patrocinadores conferem um grau de confiabilidade ao blog e consequentemente às postagens. Como já mencionamos anteriormente, sobre a força dos atos de fala proferidos, queremos agora acrescentar que, além de causarem reações adversas, esses atos podem naturalizar comportamentos. Essa naturalização não é algo consciente nem imposto, pelo contrário, é um processo muito sutil. É importante lembrar que, nos meios virtuais, quanto maior a difusão, maior a quantidade de interagentes e maior abrangência social. Esse raio de alcance de uma postagem na internet acontece, pois, a questão espacial do blog não é limitada por fronteiras geográficas, ao contrário, é um espaço de fluxos interativos, conversacionais e sociais, que refletem também em situações reais e concretas: Não se pode supor que a interação em um blog seja totalmente horizontal e democrática, onde inexistem relações de poder. O blogueiro publica seus posts no espaço principal da página e pode deletar ou moderar os comentários, e até mesmo desabilitar tal funcionalidade. Para Nardi, Schiano e Gumbrecht (2004), a relação entre blogueiros e leitores é notadamente assimétrica (PRIMO; SMANIOTTO, 2006, p. 4). [67]

74 Conforme a citação acima é possível inferir que as relações de poder são pautadas em um contexto de jogos de linguagem 5, e considerar que a relação entre blogueiro e interagentes seja assimétrica não significa dizer que seja passiva, pois os atores sociais subvertem o sistema e devolvem em forma de consentimento ou desaprovação. Essa reação é visível nas interações no próprio blog ou nos direcionamentos que levam a outro espaço como o facebook, por exemplo, inclusive os comentários sobre cada postagem no blog Testosterona são feitas com o perfil que cada um tem no facebook, e o layout dos comentários no blog são os do facebook, com as possibilidades de responder, marcar a aprovação através do Like ou Curtir e/ou Seguir aquela publicação. Sobre essa migração através das diversas redes sociais, Recuero (2012, p. 125) ressalta que os diversos grupos ganham acesso à informação, participam da conversação, o que acaba(m) por introduzir indivíduos que não se conheciam e que não estavam diretamente conectados entre si no facebook e que, a partir das trocas na conversação, podem decidir conectar-se, adicionar-se à respectiva lista de amigos. Essa dinâmica vai conectando pessoas e difundindo informações, opiniões e comportamentos. Fabrício (2013), para exemplificar esses processos comunicativos mestiços atuais, avessos à precisão de fronteiras, afirma que: Dessa forma, referências linguísticas, culturais e identitárias usuais, cujo centro normativo se encontra associado a sentidos de estabilidade, homogeneidade, fixidez e territorialidade, vão convivendo com o questionamento, o descentramento, o trânsito e a mestiçagem como ideias, cada vez mais, operatórias operacionalidade derivada da compreensão da situacionalidade histórica e política dos significados organizadores da experiência social, moto contínuo do existir (FABRICIO, 2013, p ). A autora ainda chama a atenção para uma perspectiva pragmática em que os processos de significação e construção de sentidos são formulados em conjunto com uma multidão de outros sócio-históricos. Isso significa dizer que os sentidos são resultado de processos interativos, envolvendo múltiplas vozes, que se atualizam cada vez que são mobilizadas em novos contextos, nunca se repetindo da mesma forma (FABRICIO, 2013, p. 154). Em situações comunicativas, o contexto, que é construído de forma negociada pelos envolvidos e pela audiência (RECUERO, 2012, p. 103), é o fator determinante para o significado, ou seja, a compreensão de um 5 Para Wittgenstein (1953), cada situação comunicativa é como um jogo linguístico que tem suas regras, e cada falante, para interagir nessa situação, precisa conhecer as regras do jogo, porém cada jogada que será feita a partir das regras faz parte do universo social de cada um. [68]

75 determinado ato de fala só é possível a partir do contexto. Esse a partir é fundamental, pois o contexto não se resume à imagem de fundo que compõe uma postagem no blog, uma fotografia, ou uma situação. Está além. Isso quer dizer que está ligado à cultura, à política, à economia, às crenças, valores e intenções de cada falante que está inserido em uma determinada sociedade em um determinado tempo histórico e social. Sobre a intenção, Ottoni (1995, p.82) ressalta que, em qualquer situação de fala, não há um controle do sujeito (falante) sobre sua intenção, já que se realiza juntamente e através do uptake 6 com seu interlocutor. Isso significa que na interação comunicativa a intenção pode ser alterada e direcionada, dependendo do rumo da conversação, rumo esse que está ligado à pragmática social. O PERCURSO METAPRAGMÁTICO NA PESQUISA A metapragmática proporciona dentro dos estudos pragmáticos, uma possibilidade de estudar a complexidade social dos atos de fala na interação, analisando aspectos sobre a linguagem na prática linguística, que aqui se refere ao contexto da violência. Silva (2010, p.137) ressalta que, na visão metapragmática, a violência da linguagem, na perspectiva de Butler (1997), está em palavras injuriosas e que as piadas, os discursos humorísticos, são a reprodução de um ato de fala gerado em algum outro contexto histórico. Um fator que contribui para que determinados atos violentos, preconceituosos, injuriosos, alcancem longas distâncias, diferentes contextos e interagentes, é o meio de difusão. O advento da tecnologia é um dos fatores que contribui para a velocidade e permanencia dos discursos. A performatividade desses discursos ideológicos nem sempre é orientada por questões particulares de cada interlocutor, mas também pelo contexto e pelo grau de aceitação ou não dos outros interagentes. Por considerar a complexidade interativo-social, optamos por uma pesquisa quali-descritiva, a fim de descrever e discutir a violência digital relacionada ao gênero feminino. Para ilustrar a pesquisa, selecionamos 2 postagens do blog Testosterona do ano de 2013, que exemplificam situações que naturalizam o ser mulher e motivam situações de violência. O blog foi escolhido pelo discurso proferido ali e pela quantidade de postagens que defendem a supremacia do masculino sobre o feminino. As discussões dos 6 Na terminologia de Austin, isso é como uma satisfatoriedade. No original: in Austin s terminology, this counts as a satisfactory uptake, the absence of which will again cause a misfire (MEY, 2005, p. 1001). [69]

76 dados versam sobre os elementos verbais e não verbais das postagens na perspectiva dos autores elencados no trabalho. AS POSTAGENS NA PRÁTICA SOCIAL. Butler (1997, p. 4) ressalta que palavras ferem e que a linguagem atua paralelamente entre a dor e a injúria. O ato de fala violento dentro de uma comunidade de falantes pode significar colocar alguém em um não lugar, já que um certo tipo de sobrevivência acontece na linguagem. Essa sobrevivência se refere à ideia de que fazemos coisas com as palavras. Isso significa que o ato de falar é muito mais do que expressar uma opinião ou um pensamento: é também uma forma de construção de um sujeito social. Esse pensamento é congruente com a perspectiva austiana de que o sujeito é quem constitui a linguagem e também é derivado dela. Essa é uma das razões de considerar que o que é postado na internet ou nas redes sociais provocam algum tipo de reação na produção e no consumo de bens culturais. Butler (1997, p. 17) enfatiza que, no ato perlocucionário de Austin, algumas consequências podem ser não intencionais, como quando o participante oferece um insulto não intencional. Dessa maneira, Austin sugere que o ato de injúria não é inerente às convenções que um determinado ato de fala invoca, mas à consequência específica que esse ato de fala produz. Uma imagem pode configurar como um ato linguistico violento; por exemplo, no blog Testosterona, o apelo imagético constitui um estereótipo de mulher que não condiz com a realidade de muitas mulheres, como na Figura 1. Fgura 01: Blog Testosterana [70]

77 < Fonte: que/> A imagem da mulher de forma sensual, reforça um tipo de estereótipo para o feminino e pode incitar no homem o desejo de se relacionar com uma mulher que tenha o busto como o da imagem; e na mulher o de alcançar esse padrão de beleza. Um fato que comprova isso é o número cada vez maior de mulheres que fazem intervenções cirurgicas 7 com o intuito de ter uma melhor aparência. A estatística é crescente e incentivada não apenas por uma interpelação machista, mas também pela indústria da estética, da moda e da publicidade. O texto verbal Pegar mulher é tão fácil que... seguido por uma lista de situações: loira de bônus, veio uma ruiva junto, pensei que era gripe, mas era mulher,...tinha uma na minha cama, mulher como surpresa no McLanche Feliz demonstra que o blogueiro utiliza o conteúdo lexical de forma impolida desvalorizando a mulher, comparando-a a simples objetos. Na sentença, Buzinei na rua e ganhei um boquete de uma pedestre o léxico é utilizado em sentido pornográfico, violento e não menos impolido. O discurso implícito, nesse último trecho apresentado, mostra ainda a mulher como interesseira, pois há um discurso social de que a mulher ao escolher um parceiro leva em consideração o fato de ele possuir um carro; e como alguém que não se valoriza, já que se sujeita a práticas sexuais ao toque de uma buzina. 7 Ver reportagem sobre em: < Acesso em: 17 set [71]

78 Seguindo a linha de pensamento de Austin, podemos considerar que não ter intenção de ofender ou de produzir um ato violento não é suficiente para impedir que o interlocutor se ofenda com um determinado ato, como os que compõem a imagem 1. Butler (1997, p.18) argumenta que a pornografia se configura como um tipo de ato violento, e que sua força performativa é descrita como ilocucionária, pois contribui para a constituição social de quem o ato se refere. Em outras palavras, o ouvinte é situado imóvel e em uma relação hierárquica como o outro. Devido à posição social que o interlocutor ocupa, ele ou ela é ofendido(a) como consequência do ato proferido. De acordo com essa visão, tal ato reinvoca e reinscreve uma relação estrutural de dominação e constitui a ocasião linguística para a reconstituição de uma estrutura de dominação. Silva (2010, p. 129) discute uma questão importante que queremos compartilhar aqui, sobre a performatividade da fala da violência 8, que são sobre os diversos falares sobre violência que organizam, moldam e dão outro sentido às interações sociais. Como reflexo, esses falares mudam a forma de como as pessoas interagem, em casa, na rua, no trabalho com o que é ou não um ato linguístico violento. No contexto profissonal, político, econômico e social a mulher conquistou muitos espaços, mas, por outro lado, acumulou mais funções, pois ainda é a principal responsável pela sua tarefa primitiva, que é ser mãe e administrar as tarefas de casa. Percebemos que essa questão perdura através de postagens como a imagem 2: A brincadeira acontece utilizando os personagens Mulher Maravilha e Super-Homem, que fazem parte do conhecimento de praticamente qualquer ser social ocidental. Esses personagens, no imaginário das pessoas, são construídos como ícones de perfeição e de bom exemplo. O Super-Homem é o mais forte dos super heróis e a Mulher Maravilha é a mais poderosa das heroínas. Nesse contexto da postagem, eles aparecem como casados, em que ambos têm a mesma profissão de combater o crime e salvar o mundo. O foco dessa postagem é a Mulher Maravilha, que é apresentada em seis miniquadrinhos agindo em diferentes situações ajudando pessoas; já no quadro maior ela aparece em casa, fazendo comida e cuidando do filho, enquanto o Super-Homem aparece no fundo da imagem relaxando, lendo um livro e pedindo uma cerveja. O que é possível inferir a partir dessa construção imagética? Primeiro, é um texto ideologicamente 8 Teresa Caldeira (2000, 2003) cunha o termo fala do crime, porém esse termo que fala da violência é ressignificado por Silva (2010). [72]

79 pensado, com a escolha dos personagens, a sequência dialógica; segundo, é a forma como é retratada a Mulher Maravilha: uma mulher socialmente importante, que dentro de casa aparece desempenhando funções primárias designadas à mulher. Figura 2: Blog Testosterona - Mulher Maravilha Fonte: < Costa (2004) ressalta que a superposição estar-a-serviço, na sociedade patriarcal, acontecia em qualquer classe social, e a função feminina não ia além de serviços de casa e filhos, independentemente de ser rica ou pobre. A distinção social do masculino e do feminino cristalizou de certa forma as funções da mulher e do homem. Costa (2004, p. 82) ainda ressalta que a constituição moral da mulher resulta da fraqueza inata de seus orgãos, tudo é subordinado à esse princípio, pois a natureza quis criar a mulher inferior ao homem. É notório que nos dias de hoje algumas construções familiares são diferentes, a mulher trabalha fora e o marido cuida da casa, [73]

80 porém o preconceito nesse sentido é notório e em algumas situações mulheres preferem não conviver com o estereótipo de que sustentam o marido, ou, por outro lado, se a mulher detém o poderio financeiro e as decisões são tomadas por ela, nem sempre o homem é capaz de conviver com isso, devido a algum tipo de pressão social. CONCLUSÃO Considerando que as relações sociais são instâncias dinâmicas e fluídas, no contexto virtual, tais relações são mais complexas, uma vez que se alocam em contextos efêmeros que se desdobram em percursos pluridirecionais. Discutir essas instâncias nos ajudam a compreender como as interações sociais são atravessadas por ideologias. Nas redes sociais, a semiose entre texto verbal e não verbal estão associados no intuíto de construir sentido. Em diferentes graus todas as relações sociais são constitutivas de algum tipo de ideologia, que podem ser expressas em atos de fala violentos ou não. Nesse trabalho buscamos, nos passos da metapragmática mostrar a violência de gênero nas redes sociais que se articulam nas postagens ideológicas do blog analisado e o seu modo de performatizar, através da linguagem, a naturalização da violência linguística contra a mulher através das estilizações de gênero, questionando-lhes seus efeitos hierarquizantes e produtores de relações assimétricas de gênero. O padrão de mulher que é pregado em alguns blogs que se intitulam machistas deixam claro através das postagens que ela precisa ser bonita, submissa e prendada nos afazeres domésticos para satisfazer os desejos dos maridos ou parceiros. Esse tipo de discurso que circula nos dias atuais não deixa de ser um discurso patriarcal, que sutilmente procura naturalizar um padrão de mulher, mesmo que esse discurso em alguns contextos seja intitulado como uma simples brincadeira. O fato de ser irônico não significa que não seja um discurso violento, que toma forma e vida através de atos de fala. REFERÊNCIAS ARBLASTER, Anthony Violência. In: OUTHWAITE, W; BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Ed.Jorge Zahar, AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Oxford: University Press, [74]

81 BUTLER, Judith. Excitable Speech: A Politics of the Performative. New York: Routledge, COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 5. ed. Rio de Janeiro: Graal, DAS, Veena. Fronteiras, violência e o trabalho do tempo. Alguns temas wittgensteinianos. In: Revista Brasileira de Ciências Sociais. v. 14, n. 90, p , Jun FABRÍCIO, Branca Falabella. A outridade lusófona em tempos de globalização: identidade cultural como potencial semiótico. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). O português no século XXI. São Paulo: Parábola, p.144 a 168. HEILBORN, Maria Luiza. Usos e abusos da categoria gênero. Rio de janeiro: s.n., In: SIMPÓSIO GENERO E CLASSES NA AMÉRICA LATINA. São Paulo, LEVISKY, David Léo. Uma gota de esperança (Prefácio). In: ALMEIDA, Maria da Graça Blaya (org). A violência na sociedade contemporânea. Porto alegre: EDIPUCRS, 2010, p LOBO, Elisabeth Souza. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. São Paulo: Brasiliense, MACEDO, Goiacira Nascimento Segurado. A construção da relação de gênero no discurso de homens e mulheres, dentro do contexto organizacional. Dissertação de mestrado. Goiás, Universidade Católica de Goiás. Disponível em: < ucaorelacaogenerohomemmulher.pdf>. Acesso em: 08 out MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos da comunicação. 3. ed. São Paulo: Cortez, Produção textual, análise de gênero e compreensão. São Paulo: Parábola, MATOS, Marlene Alexandre Veloso. Violência nas relações de intimidade: Estudo sobre a mudança psicoterapêutica da mulher. Tese de doutorado em Psicologia. Portugal, Universidade do Minho. OTTONI, Paulo. Visão Performativa da Linguagem. Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, PICKERING, Viviane Leal. Prisão violência. Uma análise do aprisionamento do sujeito contemporâneo. In: ALMEIDA, Maria da Graça [75]

82 (org). A violência na sociedade contemporânea. Porto alegre: EDIPUCRS, 2010, p PINTO, Joana Plaza. Conexões teóricas entre performatividade, corpo e identidades. In: DELTA, v.23, n.1, Disponível em: < Acesso em: 10 out PRIMO, Alex; SMANIOTTO, Ana Maria Reczek. Comunidades de blogs e espaços conversacionais. Prisma.com, v. 3, p. 1-15, RAJAGOPALAN, Kanavillil. Nova Pragmática: fases e feições de um fazer. São Paulo: Parábola Editorial, RECUERO, Raquel. A conversação em rede: Comunicação mediada pelo computador e redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulinas, ROSALDO, Michelle Zimbalist; LAMPHERE, Louise. A mulher a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, SAFFIOTI, Heleieth. Gênero e Patriarcado. [SL e s.n], 2002,p [Mimeo]. SILVA, Daniel do Nascimento. Pragmática da violência o nordeste na mídia brasileira. Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), THOMPSOM, John Brookshire. Ideologia e cultura moderna teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 8ª edição, Petrópolis: Vozes, WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Ed. Nova Cultural (Col. Os Pensadores trad.: José Carlos Bruni), [76]

83 04 CATEGORIZAÇÃO DE VIOLÊNCIA EMOCIONAL PARA UNIVERSITÁRIAS GUINEENSES E BRASILEIRAS NA UNILAB Tatiana Martins Oliveira da Silva 1 Meire Virgínia Cabral Gondim 2 INTRODUÇÃO O conceito de violência é bastante difuso, sendo muitas vezes, conceptualizado por meio de suas causas e consequências. A violência emocional, aquela diretamente ligada aos sentimentos em relação ao ato de violência, está também associada às consequências psicológicas da violência física ou verbal. Entendemos violência como qualquer ato verbal ou físico que fere ou danifica consciente ou inconscientemente uma vítima. Sobretudo, nos interessa investigar a violência verbal e a física contra a mulher - fenômeno recorrente em nossa sociedade. Nesta sociedade, há uma naturalização da violência contra a mulher e poucos estudos relacionam os danos de diversas ordens bem como os sentimentos dessa violência a uma abordagem teórica inerente ao processo de categorização associada aos contextos culturais. Em vista disso, fomos motivadas a compreender o processo de conceptualização do fenômeno da violência, construído por universitárias brasileiras e guineenses nos espaços da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira Unilab, no intuito de compreender como ocorre a categorização do conceito de violência e como as questões linguísticas e culturais interferem no fenômeno da categorização de violência emocional. 1 Graduanda do Curso de Bacharelado em Humanidades na Universidade da Integração da Lusofonia Afro-brasileira Unilab, membro dos grupos de pesquisa Comportamento, Linguagem e Cultura - COMPLIC e do GELP-COLIN. de contato: tatiladypcd@gmail.com. 2 Professora Adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira UNILAB, Doutora em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação UFC e Universidade Michel de Montaigne Bordeaux 3- França, com foco na Linguística Cognitiva. Membro do GELP-COLIN. de contato: meirevirginiac@gmail.com. [77]

84 A investigação foi realizada como parte integrante de uma pesquisa maior que envolveu universitários de outros países do continente africano e do Timor Leste, estudantes da Unilab. No entanto, para este trabalho delimitamos brasileiras e guineenses no que tange às concepções de violência vinculando-se aos sentimentos que elas expressaram ao falar sobre o fenômeno. Na próxima seção, faremos uma breve exposição teórica acerca do processo de categorização, entendendo-a sob os pressupostos teóricos de Rosch (1975) e de Lakoff (1987), na outra seção apresentaremos a metodologia e na seguinte, nossas análises preliminares, finalizando com as considerações finais e referências. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS: CATEGORIZAÇÃO DE VIOLÊNCIA EMOCIONAL Iniciamos essa parte do artigo com a citação de Lakoff (1987) afirmando que a compreensão de como categorizamos é o ponto central para a compreensão de como nós pensamos, funcionamos e, consequentemente, um ponto central para a compreensão daquilo que nos faz humanos. Esse fazer humano permite-nos entender que a prototipicidade é variável podendo um mesmo objeto ser categorizado de formas diferentes de acordo com os contextos sociointeracionais, históricos e culturais que se manifestam para além de suas relações de semelhanças. Em vista dessa consideração, iremos discorrer acerca da categorização sob o viés da Linguística Cognitiva, pois a entendemos como um dos principais processos cognitivos, tal como foi delineada por Rosch (1975) e ampliada pelos estudos de Lakoff (1997) e Lakoff e Johnson (1980, 1999). Os autores em foco advogam que para algo ser conceptualizado como pertencente a uma determinada categoria, um elemento não necessita satisfazer rigorosamente a uma lista de critérios de inclusão a tal categoria, porém faz-se necessário partilhar um número razoável de traços salientes com um membro típico da categoria ou com um conjunto de traços reconhecidos socioculturalmente como típicos. Por exemplo, o pardal é um membro típico da categoria de aves, tornando-se protótipo de tal categoria. No entanto, o pinguim não apresenta o traço da capacidade de voar, mas partilha com o protótipo de aves, vários outros traços salientes como a reprodução ovípara e a presença de um bico. [78]

85 É interessante que esses traços também estão presentes em um ornitorrinco, por sua vez, o animal é categorizado como mamífero. Além disso, o ornitorrinco não tem o corpo coberto por penas como o pardal e o pinguim, o que faz o mamífero partilhar com o pardal bem menos traços do que aqueles partilhados entre o pardal e o pinguim uma das razões que o permite não estar na categoria de aves, embora apresente algumas características delas. Esses exemplos nos permitem compreender que os traços das categorias normalmente não são necessários nem suficientes; antes, são mais ou menos prototípicos (LAKOFF; JOHNSON, 1999). Lima (2013, p. 158) nos ensina que: Categorizar coisas é inerente aos seres humanos desde os primeiros momentos da vida, porque o cérebro dá forma as estruturas que espelham o ambiente externo em uma forma categorial. Nota-se que toda esta classificação vem da nossa interação com nosso ambiente. Se nós não interagimos com o ambiente, nós não teremos o que classificar; o ambiente influencia muito no modo como nós classificamos as informações. Para Cuenca e Hilfert (1999) a categorização é um mecanismo de organização obtida a partir da apreensão da realidade, que é em si mesma, variada e multiforme. A categorização nos permite simplificar a infinitude do real e pode nos fornecer subsídios para a compreensão de como pensamos. Em vista disso, os modos como as guineenses e as brasileiras categorizam a violência refletem as suas concepções de mundo e de como ele é formado, as suas crenças, os seus valores e as suas experiências. Para Rosch (1975) quanto mais prototipicamente um membro de uma categoria é julgado pelo olhar sociocultural, maior será a quantidade de características comuns que ele terá com outros membros desta categoria, e menos atributos comuns com membros de categorias contrastantes, ou seja, existem os níveis mais prototípicos. Para citar um exemplo de nosso objeto de estudo, o medo foi a categoria mais prototípica de violência emocional, a vergonha a categoria intermediária e o ódio uma categoria periférica, isto é, menos prototípica. Para Lakoff (1987) o processo de categorização não pode ser compreendido de forma mais abrangente se não levarmos em conta os Modelos Cognitivos Idealizados MCI. Tais modelos podem ser compreendidos como estruturas cognitivas que constituem domínios dentro dos quais os conceitos adquirem significação, servindo para organizar uma multiplicidade de diferentes domínios de experiências, a sua natureza [79]

86 representacional de significados impõe uma base corpórea, socioculturalmente situada (GONDIM, 2012). Os Modelos Metonímicos mais salientes neste estudo foram os modelos metonímicos. A Metonímia pressupõe três suposições, segundo Kövecses e Radden (1999): (i) Metonímia é um fenômeno conceitual; (ii) Metonímia é um processo cognitivo; (iii) Metonímia opera dentro de um modelo cognitivo idealizado. Porém, a visão tradicional define metonímia como uma relação que envolve a substituição de um termo por outro, ou a parte pelo todo. Esta visão geralmente é refletida na anotação usada por declarar relações de metonímicas, isto é, X ESTÁ PARA Y. No exemplo clássico Ela é apenas um rosto bonito, em que rosto substitui pessoa, não evoca uma simples substituição da parte pelo todo, uma vez que a metonímia não substitui uma entidade simplesmente por outra entidade, mas os relaciona para formar um novo complexo de significado, no exemplo dado padrões sociais de beleza, a ideia de que a pessoa muito bonita supostamente não é inteligente. Entendida assim, o processo metonímico configura um processo que explora o fato de haver uma ligação pragmática entre entidades, sendo mais um exemplo de construção linguística amparada pelo aparato sociocultural e cognitivo humano (KÖVECSES, RADDEN, 1999). PERCURSOS METODOLÓGICOS A pesquisa foi realizada na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira. Esta universidade tem apenas sete anos de existência e visa à integração da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP). A instituição está localizada na região do Maciço de Baturité em Redenção - CE, onde as participantes convivem em contextos interculturais. Para esclarecer esse ambiente, ressaltamos três pontos: i- as universitárias guineenses têm como língua materna o crioulo de Guiné-Bissau que funciona como um segundo idioma na universidade; ii- a língua portuguesa é ensinada em Guiné-Bissau apenas nas escolas, ou seja, nos ambientes familiares, sociais e religiosos a língua utilizada é o crioulo, além disso, a língua portuguesa desses países é a variação linguística de Portugal, iii- a maior parte das universitárias brasileiras são do Maciço de Baturité ou de regiões próximas, convive com realidade do interior em que há uma baixa concentração populacional. Em relação à natureza de nossa pesquisa, ela é de cunho qualitativo, uma vez que considera que: [80]

87 Os aspectos essenciais da pesquisa qualitativa consistem na escolha adequada de métodos e teorias convenientes; no reconhecimento e na análise de diferentes perspectivas; nas reflexões dos pesquisadores a respeito de suas pesquisas como parte do processo de produção de conhecimento; e na variedade de abordagens e métodos (FLICK, 2009, p. 23). Dessa forma, observamos os aspectos de cada um dos termos evocados para conceptualizar violência com base em diferentes ângulos de análise, tendo em vista os contextos interculturais como fenômenos complexos, dinâmicos e transitórios. Para a coleta de dados, contamos com a participação de 30 guineenses e 30 brasileiras, em que cada uma respondeu a um questionário com 5 perguntas abertas. O questionário consistia em três perguntas que visavam compreender os que elas pensavam sobre violência e quais palavras utilizavam para se referir à violência. As duas últimas perguntas do questionário visavam justificar o porquê dessa escolha de palavras. No questionário havia a identificação da nacionalidade, segundo idioma, idade e gênero. O recorte desse trabalho consistiu em analisar as concepções de violência, isto é, quando abordadas sobre a violência, quais são as subcategorias emergentes vinculadas às emoções. ANALISE E DISCUSSÃO DOS DADOS DE VIOLÊNCIA EMOCIONAL O fenômeno da violência explicitado nos questionários pelas participantes, apresentou uma prototipicidade de categorias relacionadas aos sentimentos advindos de ações violentas. O processo de categorização foi construído via metonímia, isto é, um conceito A (VIOLÊNCIA) foi pensado, evocado em termos de B (SENTIMENTOS) tais como sentir-se humilhada (humilhação), triste (tristeza), depressiva (depressão), com desejo de vingança (vingança). Observamos na análise dos dados que os sentimentos, isto é, a consequência pelos atos violentos é mais saliente, mais fácil de lembrar e mais acessível para representar a categoria VIOLÊNCIA pelas participantes. As guineenses, que acreditamos categorizar distintamente devido a fatores associados aos seus contextos culturais e intersociais, categorizaram Nojo como sentimento prototípico para violência emocional, Medo e Ódio foram as categorias intermediária e Sofrimento e Pena, as categorias classificadas como periféricas. A seguir, podemos visualizar em gráfico os [81]

88 sentimentos expressos acerca da violência pelas participantes de Guiné- Bissau: Gráfico 1: Dados da categorização de violência emocional em estudantes guineenses Fonte: Das autoras (2016) Como nos mostra a análise do gráfico, as categorias para violência emocional estão em escala de porcentagem. Inferimos com base nos questionários que essas categorias representariam os modelos metonímicos para violência emocional, em que o nojo foi o modelo metonímico mais predominante, nojo em geral é um sentimento de aversão, repulsa é a natureza desse sentimento será analisado com mais afinco no decorrer de nossa pesquisa em andamento. Já nas categorias de violência emocional para brasileiras, notamos que Medo foi a categoria mais prototípica, Insegurança, Raiva, Humilhação, Vergonha e Depressão seriam categorias intermediárias e as categorias Lágrimas, Abandono, Angústia, Nojo e Ódio seriam as mais periféricas, como é ilustrado no gráfico a seguir: [82]

89 Gráfico 2: Dados da categorização de violência emocional em estudantes brasileiras Fonte: Das autoras (2016) Como podemos observar nos dois gráficos há semelhanças e diferenças para o entendimento da categoria de violência emocional, alguns sentimentos se repetiram como Nojo, entretanto ocupou uma posição prototípica diferente nos dois grupos. Nojo para as brasileiras é menos prototípico, diferente do grupo de guineenses em que Nojo representou um sentimento mais marcado, mais prototípico. Para as universitárias de Guiné, [83]

90 Sofrimento e Pena foram os que ocuparam uma menor representatividade. O sentimento Pena, tampouco, foi evocado entre as brasileiras. Ressaltamos que o sentimento Dor ocupa uma maior prototipicidade em estudantes brasileiras é menor entre as guineenses. Esses dados categoriais mostram que mesmo dois grupos, semelhantes pela idade, gênero, instituição acadêmica, categorizam de forma metonímica variada o fenômeno da violência. Esta pesquisa aponta que contextos socioculturais e interacionais influenciam o fenômeno de categorização, em que as categorias estão intrinsecamente relacionadas à origem, ao contexto sociocultural e à história de vida de cada uma. Podemos inferir que os fenômenos linguísticos como a categorização podem ser bem complexos, pois se empreendermos uma análise mais minuciosa, como recorrer a um questionário de explicitação investigar o porquê da escolha de tais palavras - levantaremos a hipótese de que a categoria VIOLÊNCIA extrapola o senso-comum de dano físico atingindo significações subjetivas ancoradas no contexto sociocultural de cada uma, de forma que isso influencia o modo como categorizam o mundo e refletem isso sociocognitivamente por meio da linguagem simbólica. CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de categorização mostrou-se produtivo para compreender como as brasileiras e as guineenses conceptualizam a violência. Observamos que a categorização é construída via Modelo Cognitivo Idealizado, que apontou o processo metonímico como um modelo saliente e socioculturalmente situado para revelar as crenças e os valores quando brasileiras e guineenses discorrem acerca da violência. No recorte deste trabalho, optamos por analisar a violência emocional, uma vez que ela se mostrou recorrente na leitura dos dados construídos por meio de questionários nos dois grupos. Foi possível compreender as singularidades e diferenças de uma mesma categoria para diferentes grupos nacionais: para guineenses as categorias de violência emocional englobam contextos de repulsa, por exemplo, o Nojo, enquanto para brasileiras observamos o Medo como o mais recorrente, este último ocupou para as guineenses a terceira posição. Esperamos, em pesquisas futuras, empreender uma análise que contemple os Modelos Metafóricos, os proposicionais dentre outros para [84]

91 dar maior visibilidade aos aspectos interculturais e socioculturais inerentes ao processo de categorização da violência em grupos interculturais. REFERÊNCIAS CUENCA, M. J. e HILFERT, J. Introducción a la lingüística cognitiva. Barcelona, FLICK, Uwe. Uma introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Bookman, GONDIM, M. V. C. Modelos Cognitivos: um estudo intercultural das concepções de violência em jovens brasileiros e franceses. Diss. UFC. BR, LIMA, G.A.B. Categorização como um processo cognitivo. Ciências e Cognição v. 11. p Disponível em: 3/444. (Acesso em: 13 jan. 2016) KÖVECSES, Z.; RADDEN, G. Towards a theory of metonymy. In: PANTHER, K.; RADDEN, G. (Eds.) Metonymy in language and thought. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1999, p LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh: The embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, LAKOFF, G. Women fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: The University of Chicago Press, ROSCH, E. Cognitive Reference Points. Cognitive psychology, [S.l], v. 7, p , ROSCH, E.e Mervis, C. (1975). Family Resemblances: Studies in the Internal Structure of Categories. Cognitive psychology. Vol. 7, [85]

92 [86]

93 05 POSICIONAMENTO E ADJETIVOS EM CORPUS FORENSE: UM ESTUDO FUNDAMENTADO NA LINGUÍSTICA DE CORPUS Agnes dos Santos Scaramuzzi-Rodrigues 1 INTRODUÇÃO O presente artigo reflete a exposição oral no CIVIP 2016 ao explanar sobre os resultados parciais, isto é, um recorte da pesquisa em nível de doutorado defendido na PUC-SP/LAEL em Nessa seleção, o uso de posicionamento foi evidenciado a partir da classe gramatical dos adjetivos em um corpus forense. A questão que aqui pretendo responder é: No uso do posicionamento evidenciado pela classe gramatical dos adjetivos há diferenças na construção do perfil da vítima e do réu a partir dos usos evidenciados por função processual: (a) acusar; (b) defender e (c) julgar? Durante a pesquisa mencionada fui motivada pelas possibilidades de contribuição social de um estudo sobre a problemática mundial da violência doméstica investigada a partir da linguagem verbal. Tal questão é muito comum e o impacto dos índices de seu crescimento são sentidos por toda a sociedade atingindo as classes sociais mais variadas globalmente. Os levantamentos de Waiselfisz (2006, 2007, 2008, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016) 2 se configuram em uma fonte importante de informações sobre os homicídios, por exemplo, ao mencionar que no ranking internacional com noventa países o Brasil ocupa a décima primeira posição 1 Mestra (2007) e Doutora (2016) em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela (PUC- SP/LAEL) e membro do Grupo de Estudos de Linguística de Corpus (GELC) supervisionado pelo Prof. Dr. Tony Berber Sardinha e certificado pela (PUC) e pelo (CNPq). Os interesses de pesquisa são: (1) Linguística Aplicada interdisciplinar; multidisciplinar e transdisciplinar; (2) Linguística de Corpus; (3) Linguística Forense - Penal; (4) Educação Para a Não-Violência e (5) Evidências Linguísticas nos campos da Saúde e Nutrição. mestra.agnes@gmail.com. 2 Maiores informações disponível em: < Acesso em: 18 de jun [87]

94 nas taxas de morbidade por arma de fogo (tabela 9.1, 2015, p.87) 3. Por meio do Mapa da Violência publicado em 2016 verificamos que de 1980 até 2014 morreram no Brasil vítimas de disparo de arma de fogo e, ainda, que dessas mortes, isto é, 85,8% do total, foram resultantes de agressão com intenção de matar (WAISELFISZ, 2016, p. 69) 4. Vale ressaltar que os homicídios mencionados consideram apenas o emprego de arma de fogo, assim, não representam outros meios como o uso de arma branca, instrumento adotado no homicídio do processo estudado na pesquisa mencionada e neste recorte, se fossem considerados esses números seriam ainda mais elevados. Tais ocorrências atraem os meios de comunicação, seja pelo ato homicida conter meio cruel, seja pela relação do agressor com a vítima, ou mesmo, pelo fato dos envolvidos, vítima e/ou agressor, serem conhecidos, publicamente 5. Só precisamos de um instante para lembrarmos de várias reportagens de ocorrências com vítimas fatais que envolveram cônjuges, namorados, filhos ou casos de atração sexual frustrados por qualquer motivo como, por exemplo: Eloá Cristina Pimentel 6, Mércia Nakashima 7, Eliza Samúdio 8, Marcos Kitano Matsunaga 9, Bianca Ribeiro Consoli 10, 3 Dados extraídos do Mapa da Violência Mortes Matadas por Arma de Fogo. Disponíveis em < >. Acesso em 2 de ago.de Dados extraídos do Mapa da Violência 2016 Homicídios Por Armas de Fogo no Brasil. Disponíveis em < >. Acesso em 5 de nov.de O agressor do Processo Penal estudado na tese foi jogador de futebol. Os trabalhos jurídicos foram públicos e com forte presença da imprensa em todas as fases processuais, até mesmo nos três dias de julgamento. 6 Documentário da ocorrência que inclui debate sobre a violência contra a mulher disponível em: < >. 7 Notícia oficial do caso disponível em: < >. Acesso em 25 de mai de Notícia oficial do caso disponível em: < >. Acesso em 25 de mai de Notícia oficial do caso disponível em: < >. Acesso em 25 de mai de Notícia oficial do caso disponíveis em: < >. Acesso em 25 de mai. De [88]

95 Isabella Nardoni 11 e tantos outros. Os fatos são tão preocupantes que multiplicam as pesquisas sobre o cenário da violência na academia, institutos de pesquisa, órgãos públicos, Justiça e ONU-Mulheres. O CIVIP 2016 foi uma dessas oportunidades que reuniu estudiosos internacionais ao redor desse tema permitindo a troca de informações e experiências em variados campos de atividade. Nessa oportunidade, não se debateu apenas sobre os índices, mas também sobre as questões sociais, econômicas, culturais, de saúde e jurídicas em torno desse quadro refletindo-se, ainda, sobre sugestões de enfrentamento do problema. No momento, estudo essa problemática, exclusivamente, considerando a violência doméstica e entendo-a como aquela que ocorre no âmbito de uma residência e que pode ter como agente agressor e/ou vítima qualquer membro que ali resida, ou seja, homem, mulher, criança / adolescente e idosos de ambos os sexos. O objeto de estudo específico da tese foi a linguagem verbal extraída de um Processo Penal completo decorrente do discurso direto transcrito contido nas oitivas processuais em dois momentos: Audiência Preliminar e Julgamento. A fundamentação teórica adotada compreendeu: (A) Linguística Aplicada; (B) Linguística de Corpus; (C) Análise do posicionamento à luz de Biber e Finegan (1988); Biber et al., (1999) e Biber (2006a e 2006b) e (D) Linguística Forense. A metodologia incluiu pesquisa de campo, uso da ferramenta eletrônica PALAVRAS e análise qualitativa. Nas próximas partes deste artigo detalharei a fundamentação teórica, a metodologia, análise de dados e seus resultados. Concluirei o artigo respondendo à questão explicitada nesta introdução. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Nesta divisão, sucintamente, exponho as áreas que embasaram a pesquisa da qual recortei a presente reflexão sobre o uso de posicionamento evidenciado em corpus forense a partir da classe gramatical dos adjetivos. LINGUÍSTICA APLICADA: BREVE RETROSPECTIVA As atividades humanas são mediadas pela linguagem e por esse motivo ela tem sido, amplamente, estudada pelo homem. Um importante marco nesse percurso, por consolidar a Linguística como uma ciência, foi a 11 Notícia oficial do caso disponível em: < >. Acesso em 25 de mai. De [89]

96 publicação póstuma dos estudos de Saussure (1916). A partir desse trabalho e, ainda, do desenvolvimento tecnológico, inúmeras pesquisas surgiram proporcionando os instrumentos necessários à gênese da Linguística Aplicada, doravante LA, cujo escopo de investigação é a linguagem. Inicialmente, a LA focou seus esforços no ensino / aprendizagem de línguas. Um dos gatilhos dessa preocupação mundial parece ter eclodido de uma demanda social na época da Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, na medida em que os povos de diversas nações, aliados ou não, tiveram dificuldades linguísticas com a variação de idiomas. A expansão internacional da LA ocorreu por meio de diversos eventos científicos com a finalidade de debater as melhores práticas de ensino e, também, por meio da criação de Programas de Estudos Pós-Graduados. Três países tiveram um importante papel nesse cenário: França, Inglaterra e Estados Unidos da América. No Brasil, o primeiro Programa em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas, para o futuro (LAEL), cuja sede ainda é na (PUC-SP), foi implantado em 1970 tendo como foco principal o ensino de línguas, particularmente, o idioma inglês. Nesse período, os estudos revelaram uma intensa dependência com a Linguística na medida em que o conjunto de conhecimentos e os resultados de novas pesquisas visavam apenas ofertar soluções científicas às questões pedagógicas. O desenvolvimento da LA para outras questões como as sociais, históricas e culturais ganhou espaço em revistas acadêmicas. Havia um novo olhar para as pesquisas no que tange a ver o homem como social e estudálo a partir de suas interações humanas. Os trabalhos revelaram problemas de linguagem oriundos de outras realidades dos indivíduos que não apenas as pedagógicas, tais como questões: religiosas, políticas, profissionais e tradução de idiomas, dentre outras. O linguista ampliou seus horizontes de pesquisa independente da Linguística de Saussure (1916) ao buscar respostas sobre as ideologias do homem que podem perpetuar ou mudar certos costumes sociais. Diante disso, o nome do Programa da (PUC-SP) mudou para, Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, mantendo a mesma sigla (LAEL). É nessa mudança de paradigma da LA que ampliou as questões de pesquisa para além das, exclusivamente, pedagógicas que ela é útil ao estudo da linguagem que envolve a problemática da violência doméstica, uma demanda do mundo real. [90]

97 LINGUÍSTICA DE CORPUS Na história da Linguística de Corpus, segundo Berber-Sardinha (2004), há muitos exemplos de estudos da língua por meio de um corpus. Na Idade Média, por exemplo, os monges usavam corpus manual a fim de estudar os textos sagrados da Bíblia. Devido ao volume de dados manuseados e da necessidade de vários pesquisadores para fazê-lo essa área de pesquisa se desenvolveu de modo letárgico até a popularização do computador. A partir dessa tecnologia foi possível coletar, compilar, armazenar e analisar uma grande quantidade de textos, fato esse, que permitiu a expansão dessa área. A Linguística de Corpus explora uma coleção de textos de linguagem natural, ou seja, um corpus composto por um conjunto de textos de falantes nativos coletado sem a intenção de participar de nenhuma pesquisa. A arquitetura de um corpus é muito importante, sua elaboração segue processos minuciosos e bem organizados objetivando a extração de evidências linguísticas de uso em um corpus representativo, isto é, que represente a linguagem que está sendo investigada. Parte desse processo visa colocar etiquetas no corpus que podem incluir uma informação como uma classe gramatical ou ocultá-la, por exemplo, blindar um nome de um determinado ator em sinal de respeito a ele. Na tese mencionada, foram usadas as duas formas: (a) processo manual das etiquetas de proteção que substituíram um nome por uma etiqueta como, por exemplo, < T a1 > e; (b) etiquetador automático chamado PALAVRAS para identificar as classes gramaticais. Segundo Berber Sardinha (2004), há quatro pré-requisitos para se construir corpus computadorizados: (1) linguagem natural; (2) textos autênticos de falantes nativos; (3) criteriosa fidelidade às regras de elaboração e (4) ser representativo. Há dois conceitos principais nessa área: (a) abordagem empirista e (b) sistema probabilístico. No primeiro princípio, o linguista valoriza as evidências de uso por entender que os dados são oriundos da observação. No segundo princípio, a linguagem é vista como um sistema probabilístico que forma padrões que apresentam regularidades em momentos e textos distintos (BERBER SARDINHA, 2004, p. 31). A Linguística de Corpus foi adotada na pesquisa mencionada e, portanto, também neste artigo, desde a coleta do corpus até a análise do posicionamento. [91]

98 POSICIONAMENTO A expressão posicionamento pode ser definida, etimologicamente, como o lugar onde uma pessoa ou coisa está colocada (CUNHA, 1982, p. 625). Linguisticamente, essa expressão representa a tomada de posição explícita na linguagem, uma marca de posicionamento que pode ser evidenciada por meio de um corpus. Nesse caso, conforme Scaramuzzi- Rodrigues (2016), o que fazemos é escolher uma palavra disponível no léxico de um idioma com o objetivo de representar o que desejamos, isto é, selecionamos no eixo paradigmático o significante que carrega o significado pretendido, 12 e o fazemos com escolhas lexicais capazes de provocar a ressonância almejada no receptor de nossa mensagem (p. 93). Ao escolhermos, por exemplo, as palavras [bom] ou [ruim] assumimos nossa avaliação a partir de uma escala de valores em relação a algo ou alguém e, assim, marcamos nossa fala com um posicionamento. Segundo Biber e Finegan (1988), o posicionamento é a expressão declarada de um autor ou orador de atitudes, sentimentos, julgamentos ou compromissos sobre a mensagem 13 (p. 1, tradução nossa). Ao marcarmos nossas mensagens com essas escolhas deixamos evidências materializadas pela linguagem, um registro de posicionamento, que explicita diferentes tipos de: atitudes, avaliações, saberes ou dúvidas e sentimentos. Conforme Biber et al. (1999); Biber (2006a e 2006b), há dois dispositivos de posicionamento: (a) dispositivos lexicais e (b) dispositivos gramaticais. Os dispositivos lexicais se configuram quando uma palavra avaliativa envolve apenas uma única proposta em relação à proposição, o marcador de posicionamento é uma palavra carregada de valor em um dos três campos semânticos: epistêmico, avaliativo e atitude. O dispositivo gramatical de posicionamento envolve as classes gramaticais descritas na Norma Culta da Língua que atuam como marcadores de posicionamento que se enquadram em um alvo, a proposição da mensagem. Os campos semânticos são: epistêmico, atitude e avaliativo e, ainda, os mencionados por Biber et al., (1999) em relação aos adjetivos que controlam a oração subordinada, são: graus de certeza (por exemplo, certos, confiante, evidente); estado psicológico afetivo (por exemplo, irritado, feliz, tristes); e avaliação de situação, eventos, etc. (por exemplo, adequado, estranho, bom, 12 Entendido a partir de Saussure (1916). 13 By stance we mean the overt expression of an author s or speaker s attitudes, feelings, judgments, or commitment concerning the message. (BIBER and FINEGAN, 1988, p. 1). [92]

99 importante, aconselhável). 14 (p. 671, tradução nossa). Além desses casos, Biber (2006b, p. 93), mencionou em formato de tabelas que há mais três tipos: (1) os adjetivos de atitude / emoção, tais como; com vergonha, desapontado, arrependido e outros; (2) os adjetivos de capacidade ou disposição como; hesitante, ávido, inclinado, obrigado, etc; e (3) adjetivos de facilidade ou dificuldade como, por exemplo, mais fácil, difícil, (im)possível, etc. Acredito que descobrir usos de posicionamento em corpus forense pode ser útil para revelar qual é a posição, por exemplo, de uma testemunha frente a uma ocorrência de homicídio. Ao explanar sobre um acontecimento dessa magnitude esse depoente impregna em sua fala seus sentimentos, atitudes ou o seu grau de conhecimento e, ainda, o impacto que ele causou em sua vida assumindo, assim, uma posição diante desse fato. LINGUÍSTICA FORENSE A Linguística Forense surgiu como um novo campo de investigações que atua na linguagem do Direito. Trata-se de uma disciplina com, aproximadamente, quarenta e oito anos que se dedica ao estudo da linguagem real, no caso, aquela que é usada no Direito. Para Coulthard e Johnson (2009) e Olsson (2009), seu início se deu com a publicação do Prof. Svartvik em 1968 sobre o estudo de caso de Timothy Evans, acusado, julgado, condenado e enforcado em 1950 no Reino Unido pela morte de sua esposa e filha, mas que recebeu o perdão póstumo após três anos. As análises linguísticas do pesquisador evidenciaram partes das oitivas com um estilo gramatical diferente ao do condenado. A partir do trabalho do Prof. Svartvik muitos outros foram publicados em especial nos países de língua inglesa. No Brasil, essa disciplina está se desenvolvendo bastante nos últimos anos e conta com a Associação de Linguagem e Direito (ALIDI) para promover, por exemplo, eventos internacionais com a finalidade de intercâmbio de informações. A Linguística Forense é um campo de investigações que prioriza as evidências linguísticas assim como a Linguística de Corpus considerando 14 The adjectives that control a that complement clause all convey stance, falling into three major semantic domains: degrees of certainty (e.g. certain, confident, evident); affective psychological states (e.g. annoyed, glad, sad); and evaluation of situations, events, etc. (e.g, appropriate, odd, good, important, advisable). (BIBER et al., 1999, p. 671). [93]

100 seus dois princípios: (1) abordagem empirista, valoriza as evidências linguísticas tanto quanto uma digital, amostra de sangue, ou mesmo, o DNA e (2) a linguagem como sistema probabilístico no que tange à probabilidade de repetição de certas porções de linguagem em diferentes textos. O linguista forense deve ter em mente as possíveis implicações sociais de seu trabalho, isto é, o impacto que suas análises terão na vida dos envolvidos na medida em que as provas que apresentar podem inocentar ou condenar alguém. METODOLOGIA Nesta seção, apresentarei a metodologia empregada na coleta descrevendo o corpus estudado na pesquisa da qual faço o presente recorte expondo a lógica de análise dos dados. Antes, porém, é importante ressaltar que o Projeto de Pesquisa obteve a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da (PUC-SP) Sede Campus Monte Alegre e o apoio da CAPES. A pesquisa teve dois momentos distintos: O primeiro deles foi uma sondagem in loco em duas fases: a primeira fase, compreendeu uma revisão bibliográfica sobre Direito e Direito Penal e, simultaneamente, a coleta do corpus; na segunda fase, acompanhamos, aproximadamente, trinta horas de julgamento do réu por três dias seguidos. O segundo momento foi a compilação e análise do corpus. Os critérios de coleta do corpus seguiram dois quesitos de triagem: (A) o tipo de Processo Penal, basicamente, violência doméstica cujo agressor tivesse se relacionado, amorosamente, com a vítima, que não tramitasse em segredo de justiça e fosse possível assistir o julgamento e (B) a qualidade dos documentos, visando a nitidez dos dados sem nenhuma dúvida. O corpus de estudo refletiu o extremo da manifestação de violência que é sua materialidade por meio do homicídio. Oriundo de um Processo Penal completo composto por seis volumes que continham desde o Boletim de Ocorrência até a sentença proferida pelo Juiz após o Julgamento, em seu conjunto total perfez folhas com um total de palavras e/ou registros, um corpus de tamanho médico, conforme Berber Sardinha (2004, p. 26), foi denominado Corpus de Estudos para Linguística Forense (CELF). Em virtude de almejar a ampliação desse corpus inclui a identificação 01, (CELF_ID_01), para esse Processo Penal. Com o acréscimo da letra (a) identifiquei o recorte das oitivas, (CELF_ID_01_a), objeto de investigação [94]

101 na pesquisa e neste recorte que contém palavras / registros, tamanho pequeno-médio, conforme Berber Sardinha (2004, p. 26). A relação estatística entre o (CELF_ID_01), com 58% do total de registros não analisados, e o (CELF_ID_01_a), com 42% do total de registros analisados com registros, pode sugerir que o corpus não seja representativo. Entretanto, sua representatividade é de 100%, já que a arquitetura e o objetivo do corpus era estudar a totalidade das oitivas processuais de um Processo Penal completo. O (CELF_ID_01_a) representa o total de possibilidades que os atores linguísticos tiveram de fazer uso da palavra em todas as oitivas investigadas e, portanto, também representa suas oportunidades para usar o posicionamento. Neste recorte expomos os resultados obtidos a partir da classe gramatical dos adjetivos (ADJ) que correspondem a registros. Durante o tratamento do (CELF_ID_01) os procedimentos foram: digitalização e conferência; correções de cada uma das folhas; controle de qualidade comparando cada palavra e corrigindo pequenas divergência e mantendo a exatidão dos dados originais; introdução de etiquetas de proteção das identidades dos envolvidos, mesmo ciente de não ser obrigatório, já que o Processo Penal foi público e noticiado com detalhes pela imprensa falada e escrita. Ao final, o corpus foi salvo em t.x.t. permitindo submetê-lo às ferramentas de análise. A exemplo de Biber e equipe, o (CELF_ID_01_a) foi classificado por semelhanças a partir das classes gramaticais. Para tanto, foi adotada a ferramenta PALAVRAS que etiquetou o corpus, palavra por palavra, de acordo com seu uso gramatical. Na sequência, nova classificação por semelhança foi processada no corpus considerando as três funções processuais que os atores linguísticos desempenham em um processo: (a) acusar, com registros correspondendo a 30, 18%; (b) defender, com registros equivalendo a 59,93% e (c) julgar, com registros, ou seja, 9,89%. Tais porcentagens representam o total das oportunidades, isto é, a probabilidade de usos de posicionamento de cada função em relação aos 100% do total de registros possíveis. ANÁLISE DE DADOS A análise qualitativa foi tripartida por função: (a) acusar; (b) defender e (c) julgar e evidenciou usos de posicionamento conforme estudos de Biber e colaboradores (1988, 1999, 2006a e 2006b). O total de registros revelou usos de posicionamento o que correspondeu a 38,80% do total de registros de (ADJ) sendo que desse total registros, 61,20% dos [95]

102 registros, não fizeram uso de posicionamento. A porção dos usos de posicionamento distribuída por função revelou que: (a) acusar usou 331 posicionamentos; (b) defender o fez por 667 vezes e (c) julgar usou o posicionamento por 25 vezes. As categorias de posicionamento nos 331 usos descobertas pela função acusar foram: um uso na categoria atitude; 227 usos na categoria avaliativa; oitenta usos na categoria epistêmica e vinte e três usos na categoria facilidade / dificuldade. Na categoria atitude / emoção, segundo Biber (2006b), os (ADJ) de posicionamento se relacionam à atitude do ator linguístico para com o conteúdo, a proposição / alvo da oração expressa o estado psicológico afetivo, por exemplo, irritado, feliz e triste. Segue exemplo extraído da categoria atitude / emoção: 1- DA.: Foi trabalhar, [...], ela estava reconstruindo a vida dela, nós felizes com o que era a questão dela estar madurecendo, [...]. No exemplo (1), o marcador de posicionamento, felizes, está ligado à proposição /alvo da oração [com o que era a questão dela estar madurecendo], expressando a atitude / emoção de ficarem felizes. A categoria avaliativa, para Biber (2006b), expressa uma avaliação (boa ou agradável) ou um atributo (ruim ou agradável). Conforme uso extraído do corpus: 2- DA.: A < V > 15, como ingênua, passou algumas informações que não deveria ter passado [...]. No exemplo (2), o marcador de posicionamento, na oração subordinada, ingênua, está ligado à proposição / alvo da oração principal [A < V >] e, assim, está expressando uma avaliação do perfil da vítima como uma pessoa ingênua. A categoria epistêmica, conforme Biber (2006b), expressa o valor de verdade da proposição, tais como: conhecimento, dúvida ou a fonte do conhecimento. Descobrimos no corpus os três usos escolhendo como exemplo a categoria epistêmica de conhecimento. 3- DA.: Eu o conheço há mais, de dezoito anos, é pessoa de caráter idôneo [...]. 15 Trata-se de uma etiqueta de proteção da identidade do ator linguístico mencionado. [96]

103 No exemplo (3), o marcador de posicionamento, idôneo, se ligou à proposição / alvo da oração [é pessoa de caráter] revelando o uso de posicionamento epistêmico expressando o conhecimento do ator linguístico sobre o caráter da pessoa como idôneo. A categoria facilidade / dificuldade expressa o grau de dificuldade ou facilidade de algo, conforme Biber (2006b), e exemplo de uso extraído do corpus. 4- DA.: Era, claro que era, até porque se não fosse, seria tudo muito mais fácil. No exemplo (4), o marcador de posicionamento, fácil, se ligou à proposição / alvo na oração subordinada anterior [até porque se não fosse] revelando um posicionamento de categoria facilidade / dificuldade expressando facilidade no que tange a como tudo poderia ter sido mais fácil se o filho não fosse do réu. As categorias de posicionamento nos 667 usos descobertos pela função defender foram: cinquenta usos na categoria atitude; 436 usos na categoria avaliativa; 171 usos na categoria epistêmica e dez usos na categoria facilidade / dificuldade. Os exemplos a seguir evidenciam as categorias conforme Biber (2006b). Categoria atitude / emoção: 5- DD.: Eu peguei, fiquei desesperado, [...], pior momento da minha vida ali. No exemplo (5), o marcador de posicionamento, desesperado, se ligou à proposição / alvo da oração subordinada, [fiquei] revelando um posicionamento de categoria atitude / emoção que explicitou o estado psicológico assumido pelo ator linguístico, no caso, desesperado. Categoria avaliativa: 6- DD.: Só que ela era uma pessoa muito agressiva, [...]. No exemplo (6), o marcador de posicionamento, agressiva, está ligado à proposição / alvo da oração [Só que ela era uma pessoa muito], [97]

104 revelando um posicionamento de categoria avaliativa que expressou a avaliação do ator linguístico sobre o perfil da vítima como agressiva. Categoria epistêmica: Descobrimos no corpus os três usos escolhendo como exemplo a categoria epistêmica de dúvida. 7- DD.: Eu não sei ao certo, acredito que Orkut e através de amigos em comum; [...]. No exemplo (7), o marcador de posicionamento na oração subordinada, comum, se ligou à proposição / alvo da oração [Eu não sei ao certo], revelando um posicionamento de categoria epistêmica expressando dúvida que também pode ser percebida pelo uso de [acredito que Orkut]. Categoria facilidade / dificuldade: 8- DD.: [...] o cara é casado, com família instituída, então não era difícil para ela nem para esse tipo de garota destruir qualquer família em prol de seu bem próprio. No exemplo (8), o marcador de posicionamento na oração subordinada, difícil, se ligou à proposição / alvo da oração [então não era]. Há a marca do uso de [não] antes do marcador de posicionamento difícil o que permite seu entendimento como sendo fácil. Assim, esse uso revelou um posicionamento de categoria facilidade / dificuldade expressando a facilidade de agendarem programas com jogadores, embora o registro seja difícil, mas por estar acompanhado da negativa, expressou facilidade. As categorias de posicionamento nos vinte e seis usos descobertos pela função julgar foram: quinze usos na categoria avaliativa e dez usos na categoria epistêmica. Categoria avaliativa: 9- J.: O senhor está com um tom de voz muito alta com a testemunha. No exemplo (9), o marcador de posicionamento, alta, se ligou à proposição / alvo da oração [tom de voz] revelando um posicionamento de categoria avaliativa sobre o tom de voz [alta] usado contra o depoente. [98]

105 Categoria epistêmica Descobrimos no corpus os três usos escolhendo como exemplo a categoria epistêmica de fonte de conhecimento. 10- J.: O senhor falou, lá atrás, que já viu ela sendo agressiva com o < IP >. No exemplo (10), o marcador de posicionamento na oração, agressiva, se ligou à proposição / alvo da oração [O senhor falou] revelando um posicionamento de categoria epistêmica que expressou a fonte do conhecimento sobre o fato de [ela] ter sido agressiva. Concluída a análise de dados início as considerações finais e respondo à questão deste artigo. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta oportunidade me prontifiquei a responder a seguinte questão: No uso do posicionamento evidenciado pela classe gramatical dos adjetivos há diferenças na construção do perfil da vítima e do réu a partir dos usos evidenciados por função processual: (a) acusar; (b) defender e (c) julgar? Considerando a pesquisa mencionada e o aqui exposto prossigo com a resposta. A análise de dados destacou o uso de posicionamento e suas categorias na classe gramatical do (ADJ) classificado por semelhança de função processual: (a) acusar; (b) defender e (c) julgar. As características qualitativas da linguagem foram bastante significativas na construção do perfil da vítima e do réu sendo possível percebermos uma separação por oposição em duas funções: (a) acusar e (b) defender. O perfil da vítima na versão da função acusar foi caracterizado como uma jovem sofrida, trabalhadora, boa aluna, mãe sempre presente e corajosa, uma lutadora para ter a guarda do filho, boa amiga e feliz, mas, que tinha medo do pai do seu filho que já a teria agredido de modo verbal e físico. Em oposição a esse perfil, a versão da função defender a descreveu como uma jovem desequilibrada psicologicamente, muito agressiva, promiscua com jogadores de futebol, que não dava carinho à família, [99]

106 completamente, negligente com o filho, racista, preguiçosa e mentirosa. Teria recebido tudo da família do réu, uma boa vida e educação familiar a fim de que ela se transformasse em uma boa pessoa o que não aconteceu, ela não era uma boa pessoa. O perfil do réu na versão da função acusar era alguém que a vítima temia em função de sua memória das agressões sofridas, uma pessoa que ela desejava manter distante dela e mentiroso até mesmo quanto à própria identidade. Na versão da função defender ele era trabalhador, tranquilo, dedicado à vítima e ao filho, buscou recursos para manter a família unida no Conselho Tutelar, sofredor por conta da ausência do filho, bom pai, bom filho e nunca fora agressivo com ninguém, principalmente, com a vítima. Diante dessas evidências de uso, a resposta à questão é que, sim, a materialidade das categorias de posicionamento permitiu identificar dois diferentes perfis tanto da vítima quanto do réu que são opostos conforme função processual: (a) acusar; (b) defender. Entretanto, na função julgar não foi possível identificar nenhum uso voltado nem ao perfil da vítima nem ao do réu o que foi entendido como coerente à função julgar. O estudo do posicionamento foi útil e permitiu não só descobrir as diferenças de perfil, mas também, verificar como os atores linguísticos expressam suas avaliações, seu conhecimento, suas atitudes / emoções e o que, para eles, é fácil ou difícil em relação ao acontecimento. Por fim, uma reflexão final sobre a violência que está presente em nosso cotidiano, aqueles atos que podem modificar nossa rotina diária fora de casa, que são capazes de mudar nosso itinerário. Como enfrentá-los? O que fazer quando ela se encontra do lado de dentro de nossos lares? Nesse tipo de violência o impacto sentido pelas vítimas consegue ser ainda maior e afetar aspectos de sua saúde que vão muito além dos traumas físicos aos que as vítimas podem estar sujeitas, já que elas se encontram diante da mais severa quebra de confiança pessoal daqueles que deveriam ser seus companheiros ou guardiões. Tal tipo de violência não é exclusiva da vítima feminina, ela afeta homens, filhos e idosos, indiscriminadamente. Como pesquisadores precisamos ampliar os estudos a fim de encontrarmos e entendermos os gatilhos da violência visando atenuar suas consequências e reduzir seus índices de sofrimento, seu impacto à saúde das vítimas e, principalmente, a mortalidade. Seria prudente voltarmos nosso olhar à Educação e qualidade de vida da vítima e do agressor. [100]

107 Gosto de pensar que este artigo seja uma singela contribuição nesse sentido. REFERÊNCIAS ABNT - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 10520: informação e documentação: citação em documentos: apresentação. Rio de Janeiro, BERBER SARDINHA, T. Linguística de Corpus. Barueri, SP: Manole, BIBER, D. and FINEGAN, E. Adverbial Stance Types in English. Discourse Processes 11. University of Southern California. 1988, p et al. Loneman grammar of spoken and writlcn English. University College London. Longman. London Stance in spoken and written university registers. Journal of English for Academic Purposes, 2006a, p Disponível em: < Acesso em 04 de jan. de The expression of stance in university registers. In University Language: A corpus-based study of spoken and written registers. John Benjamins Publishing Co. Amsterdam e Philadelphia. 2006b, chapter 5. BICK, E.. PALAVRAS: A Constraint Grammar-Based Parsing System for Portuguese. In BERBER SARDINHA, T. and FERREIRA, T. S. B. (Orgs) et al. Working with Portuguese Corpora. Bloomsbury Publishing Plc. New York, COULTHARD, M. and Johnson, A. An Introduction to Forensic Linguistics: language in Evidence. 2ª ed. New York; Routledge, CUNHA, A. G. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, OLSSON, J., Wordcrime Solving Crime Through Forensic Linguistics. - New York: Continuum International Publishing Group (2009). SAUSSURE, F Curso de Linguística Geral. (org.) Bally, C; Sechehaye, A. (tradução) Chelini, A; Paes, J; e Blikstein, I.: 21ª ed. Cultrix, São Paulo, [101]

108 SCARAMUZZI-RODRIGUES, A. S. Posicionamento, na proposta de Biber, e a Linguística Forense. the ESPecialist, v. 36, n. 2 ( ), Disponível em: < Acesso em 10 de nov.de SCARAMUZZI-RODRIGUES, Agnes dos Santos. Posicionamento e linguística forense: uma análise mediada pela Linguística de Corpus f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Disponível em: < >. SEVERINO, A. J.. Metodologia do trabalho científico. 21ª. ed. rev. e ampl. - São Paulo: Cortez, WAISELFISZ, J. J. Mapa da Violência 2015 / Mortes Matadas por Armas de Fogo. Brasília, Disponível em: < Acesso em: 18 de jun [102]

109 06 OLHAR PROS LADOS É ENTENDER A VIOLÊNCIA? A METÁFORA PRIMÁRIA COMPREENDER É VER NO DISCURSO SOBRE VIOLÊNCIA URBANA EM FORTALEZA João Paulo Rodrigues de Lima 1 INTRODUÇÃO A Teoria da Metáfora Conceitual (LAKOFF & JOHNSON, 1980) abordou a perspectiva de uma metáfora como uma estrutura conceitual derivada das particularidades das experiências no mundo. Os mapeamentos para a composição desta metáfora, uma vez definidos, parecem estar consolidados de forma a não permitir muitas variações. Esta é a crítica que a metáfora conceitual tem recebido ao longo dos anos. Se sua estrutura parece ser tão convencional, como a Teoria da Metáfora Conceitual pode justificar a criatividade do pensamento e da linguagem, que origina metáforas novas e peculiares ao contexto de produção? Isto é, se as metáforas são convencionais, como explicar o surgimento diário de metáforas não convencionais no discurso? Cameron (2007) sugere que para se compreender a metáfora é necessário estudá-la no seu uso dialógico como parte integrante do uso da língua, por sua vez, entendida como um sistema dinâmico complexo, e não só como uma instanciação de uma competência fixa e pré-existente. Pensamento e fala são processos dinâmicos que requerem interpretação constante por parte dos participantes. O ajuste da compreensão se dá à medida que intenções e emoções evoluem no fluxo do discurso. Na opinião de Gibbs e Cameron (2007, p. 04) 2, [...] as abordagens dinâmicas enfatizam a dimensão temporal dos processos sociais e cognitivos e as maneiras nas quais o comportamento de um indivíduo emerge a partir da interação 1 Mestre em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Professor Assistente em Linguística e Coordenador do Curso de Letras da FAFIDAM/UECE. joao.rodrigues@uece.br 2 Tradução do próprio autor. [103]

110 cérebro-corpo-ambiente, incluindo a interação com outros sujeitos. Os padrões comportamentais simples e complexos, incluindo o desempenho metafórico no discurso, são produtos superordenados e emergentes de processos que se auto organizam. Assim, o comportamento surge da frequente interação não-linear entre os componentes de um sistema, ao invés de mecanismos cognitivamente e neurologicamente especializados. As metáforas emergem no discurso como tentativas de estabilizar a dinâmica e a variabilidade discursiva. Consequentemente, padrões metafóricos são gerados quando os interlocutores assumem um pacto conceitual de como falar sobre determinados tópicos. São as metáforas que são situadamente escolhidas para tópicos, contextos e interações discursivas específicas através do discurso frequente sobre este ou aquele tópico. Com base nisto, as metáforas não possuem significados similares em contextos diversos, mas são dinamicamente recriadas, dependendo das histórias particulares de cada participante na ação discursiva. Gibbs e Cameron (2007) comparam o sistema dinâmico a um jogo de sinuca. No jogo, a bola que é usada para rebater outras modifica o jogo e precisa ser rebatida de acordo com a configuração do jogo atual. Duas tacadas nunca são iguais, pois elas dependem desta configuração, da mutável natureza do jogo. O mesmo ocorre para as metáforas emergidas na dinâmica discursiva, que nunca são idênticas ou simplesmente armazenadas na memória, sendo relativo o seu uso e dependentes da natureza do discurso que se configura no momento de interação. SISTEMAS DINÂMICOS COMPLEXOS ADAPTATIVOS Aplicada em diversos campos do saber, tais como a lógica, a matemática, a biologia, a filosofia, as ciências humanas e cognitivas, a Teoria dos Sistemas Dinâmicos tem recentemente também tocado nas questões relativas à corporificação (os problemas sobre a relação mente-corpo) e a fenomenologia (a intencionalidade) (WALMSLEY, 2008). Quanto à primeira questão, os processos mentais não estão dispersos em uma massa cinzenta, mas eles são como são devido à estrutura biológica que os oferece condição de existência, no caso, o corpo como um todo. O corpo é mais um elemento influenciador dentro de um sistema complexo que conjuga uma série de outros fatores que interagem entre si para emergir padrões de comportamento e de compreensão de mundo. Dentre estes outros fatores, aspectos culturais, sociais e históricos também se configuram como elementos que participam ativamente desta rede interativa, e muitas vezes, [104]

111 estes são os elementos que dão caráter particular para determinadas emergências discursivas e comportamentais. Daí a razão pela qual a Teoria dos Sistemas Dinâmicos Complexos e Adaptativos (doravante TSDCA) tem interesse nos estudos fenomenológicos. Os sistemas dinâmicos abordam a noção ecológica do comportamento humano. Um SDCA é composto de vários tipos diferentes de agentes ou elementos que interagem dinamicamente por meio de diferentes relações e conexões. É dito complexo, não somente devido à multiplicidade de elementos e conexões entre os componentes, mas, pelas mudanças que constantemente ocorrem nas relações entre os elementos, o que resulta em auto-organizações e emergências. Isto mostra que os sistemas complexos não são sistemas fechados, autocontidos, mas estão abertos a novas energias e interagem com elementos externos e internos a eles próprios, estando altamente propensos a mudanças. É desta instabilidade que decorrem adaptações e evoluções no sistema, o que equivale a dizer que o sistema dinamicamente se adéqua ou muda a ponto de fazer emergir uma nova ordem. As mudanças podem acontecer de forma suave e contínua ou podem ser repentinas à medida que o sistema muda de comportamento. De uma forma geral, a interação discursiva pode ser também compreendida de acordo com esta perspectiva. Cameron e Maslen (2010, p. 116) apresentam a noção de discurso que o define como um resultado dos processos cognitivos e linguísticos, nos quais as pessoas se engajam quando falam e escrevem. O que é expresso ou entendido no fluxo do discurso é o melhor resultado disponível no momento, sob algumas restrições e circunstâncias. Estes resultados não são arbitrários; eles refletem as múltiplas influências das experiências passadas, convenção sociocultural e as restrições do processamento. O discurso é visto como um sistema dinâmico, repleto de instabilidades, convergindo uma série de variáveis que visam à estabilidade deste sistema. Assim, as metáforas e metonímias no discurso aparecem como uma temporária estabilidade da negociação de conceitos entre os interlocutores, sugerindo ser mais situada do que se pensava, ou seja, não tendendo a generalizações frequentes, como propunha a teoria da metáfora conceitual (LAKOFF; JOHNSON, 1980). Este trabalho se propõe a descrever a emergência da metáfora sob a ótica da teoria dos sistemas dinâmicos complexos adaptativos no discurso sobre violência urbana, produzido por um grupo focal de seis jovens adultos (faixa etária de 20 a 30 anos) universitários residentes em Fortaleza/CE, [105]

112 sendo estes participantes, vítimas diretas e/ou indiretas de violência urbana. Antes da conversa ser iniciada, o grupo foi orientado quanto aos objetivos e à justificativa da pesquisa, além de serem informados que suas verdadeiras identidades estariam protegidas, portanto, os nomes que aparecem na transcrição são fictícios. O discurso foi gravado em áudio e vídeo, depois transcrito segundo os procedimentos listados por Cameron et al. (2009). As metáforas sistemáticas em análise foram identificadas através da localização de veículos metafóricos (CAMERON; MASLEN, 2010) e, posteriormente, o agrupamento destes com os tópicos discursivos. Estes podem ser definidos como os fragmentos da conversação onde há a participação colaborativa, assentada em um complexo de fatores contextuais, tais como o conhecimento recíproco dos interlocutores, os conhecimentos partilhados, as circunstâncias da conversa, as diferentes vivências e crenças sobre o mundo, os aspectos cognitivos envolvidos etc. (JUBRAN et al., 1992). Entende-se por veículo metafórico um item lexical ou expressão que tem o seu sentido contrastado com o significado contextual do discurso, isto é, quando ocorre uma transferência de sentido, que torna o significado contextual capaz de ser entendido nos termos do significado básico (CAMERON, 2007; CAMERON & MASLEN, 2010). As seções seguintes destacarão as propriedades de um SDCA e como estão associadas à emergência do uso figurado da linguagem no discurso. METÁFORAS PRIMÁRIAS Em sua tese, Grady (1997) questiona a motivação de metáforas conceituais, que não parece estar diretamente vinculada às experiências corpóreas. Por exemplo, com relação à metáfora conceitual TEORIAS SÃO EDIFÍCIOS, o domínio fonte em si não sugere uma experiência corpórea que possa oferecer um caráter universal (ou pelo menos perto disto) para este tipo de conceitualização sobre TEORIAS. No entanto, a proposta de Grady é que esta metáfora é uma junção de outras metáforas mais básicas, ou seja, a metáfora entendida como conceitual é classificada como metáfora conceitual complexa, pois a sua estruturação é composta por metáforas conceituais primárias, diretamente motivadas pelas experiências sensóriomotoras para conceitualizar experiências mais subjetivas. Para a metáfora em análise, segundo Grady (1997) e Kövecses (2005), as metáforas primárias que a compõem são ORGANIZAÇÃO É ESTRUTURA FÍSICA e PERSISTIR É PERMANECER ERETO. [106]

113 Grady chama de fonte primária a experiência sensório-motora que participa do mapeamento de uma metáfora primária. Outra questão em análise na sua tese foi quanto à unidirecionalidade (da fonte para o alvo, e não o inverso) da metáfora conceitual (complexa ou primária). O homem vive cercado de eventos básicos, e desde os primeiros eventos, as habilidades e estruturas cognitivas, assim como neurais, encarregam-se de associar estes eventos a conceitos mais abstratos, originando uma coativação única entre o sensório-motor e a subjetividade. Esta coativação permanece indistinta durante um tempo, e quando ocorre a separação destes domínios, a metáfora primária se estrutura, de modo que a coativação ainda aconteça. A fusão não se dá por analogia, mas por compartilhamento de traços entre os domínios. Considere a metáfora AFEIÇÃO É CALOR, para Grady (2005), os domínios não se correlacionam porque os traços de AFEIÇÃO são similares às características de CALOR; a correlação ocorre porque, ao sentir a emoção, a temperatura corporal se eleva, e quando se está perto de outras pessoas, o corpo também aquece. Assim, Grady (1997) afirma que a base das metáforas primárias são as cenas primárias, isto é, as impressões na memória de longo prazo da ligação entre uma experiência perceptual e a resposta cognitiva (o conceito). Nas palavras do autor, as cenas primárias são episódios mínimos (delimitados temporalmente) de experiências subjetivas, caracterizados pelas estreitas correlações entre uma circunstância física e uma reposta cognitiva (GRADY, 1997, p. 24). Por exemplo, quando alguém se aproxima de algum desconhecido, geralmente se mantém uma espécie de distância de segurança, respeitando o espaço do outro indivíduo. Mas, quando alguém chega muito próximo de outra pessoa, isto sugere que há um nível de intimidade entre os dois indivíduos, mudando até o comportamento desta pessoa e permitindo o contato físico. Portanto, a proximidade (que é um evento básico) sugere intimidade (a resposta cognitiva). Estas dimensões discretas e individuais da experiência humana proximidade e intimidade são denominadas de subcenas (GRADY, 1997), uma conceitualização básica a partir da correlação entre o evento básico e a resposta cognitiva. METODOLOGIA Foi utilizada a técnica de investigação de grupo focal, formado por jovens adultos universitários, que discorreram sobre violência urbana. O discurso foi gravado em áudio e vídeo, depois transcrito segundo os procedimentos listados por Cameron et al. (2009). A pesquisa é de natureza [107]

114 qualitativa, portanto os dados são interpretados utilizando os seguintes referenciais teóricos. Após a transcrição dos dados, a análise iniciou-se com a identificação dos tópicos discursivos, isto é, os temas abordados pelos participantes dentro do tema principal: violência urbana. Nomes fictícios foram atribuídos aos participantes na transcrição a fim de proteger suas identidades. Alguns tópicos se repetiram ao longo do discurso, sugerindo que alguns foram de mais interesse para os participantes do que outros, funcionando como atratores do discurso. A identificação dos tópicos discursivos contribui para a emergência da metáfora sistemática, pois é o conceito abstrato que está sendo atraído por estes tópicos. Em seguida, houve a identificação dos possíveis veículos metafóricos no discurso, de acordo com os parâmetros de identificação apontados por Cameron (2007): (1) a presença de um item lexical (o veículo) que tem um significado que pode ser contrastado com o seu significado no contexto discursivo, e (2) o potencial para um significado extra a ser produzido como resultado da combinação destes. Cameron (2007) justifica os parâmetros de identificação ao afirmar que a metaforicidade dos itens lexicais ocorre quando o respectivo significado literal se coloca em contraste com o significado abstrato assumido no contexto do discurso, isto é, há uma disjunção de significados. Entretanto, este significado literal pode ser recuperado para contraste através do novo sentido que o item assume dentro do contexto, portanto, é uma ruptura de significados que, em algum ponto do discurso, culminam-se para contraste. Ao afirmar um significado potencial, entende-se não como ter acesso direto e objetivo aos processos cognitivos dos participantes, mas o que se tem são evidências desses processos através do que realmente pode ser observável: a linguagem humana. A frequência do uso de veículos de um mesmo grupo foi um dos critérios para que a metáfora sistemática emergisse. Se somente um termo veículo apareceu poucas vezes ao longo do diálogo, isto mostra que não houve sistematicidade no seu uso, portanto não foi do interesse desta pesquisa analisá-lo. [108]

115 AS EMERGÊNCIAS DA METÁFORA PRIMÁRIA COMPREENDER É VER NO DISCURSO SOBRE VIOLÊNCIA URBANA COMPREENDER DIFERENTES GRUPOS SOCIAIS É VER ELES Nesta metáfora, existe um aspecto ideológico muito expressivo no que compete a estrutura social. Os participantes do grupo focal se distanciam das classes menos favorecidas definindo dois grupos: a gente e eles. O contexto em que estes dois veículos emergem sugerem uma carga de empatia com os próprios grupos. É muito frequente a oposição destes dois veículos, indicando dois grupos sociais bem distintos, e a maneira de entender a situação do outro é vê-lo. Embora não seja da competência deste trabalho avaliar noções de empatia, vale a pena ressaltar que a metáfora sistemática, de forma geral, algumas vezes aponta para isso, já que foi elaborada coletivamente, na intenção de comunicar ao outro os seus conceitos e percepções da realidade que sejam pertinentes à interação discursiva. Os exemplos retirados da interação discursiva do grupo focal mostram a relação contrastante entre os veículos a gente e eles, e os veículos do mesmo domínio de ver como um meio para estabelecer a empatia entre os grupos: Quadro 1: Excerto 1 Linha Participante Discurso 0229 Vânia Mas é como o Mateus falou, ele disse 0231 Que isso é muito pela mídia 0233 e a realidade às vezes é ao contrário, mas se a gente pegasse esses programas de televisão, é justamente ele é no horário do almoço, 0237 essas pessoas que assistem, 0238 as pessoas que banalizam de certa forma 0240 o fato e a informação é mais porque 0242 é a realidade delas. [109]

116 A gente diz que não tem muita informação sobre a violência, 0244 sobre a mídia 0245 que ela enche demais 0246 algo quando não há tanta necessidade, 0247 mas se a gente for 0248 pros bairros mais pobres 0249 onde realmente há miséria 0251 a gente vê que não é exatamente isso, 0252 a gente tá numa avenida Treze de Maio, 0253 numa Washington Soares, 0254 a gente pode não ver, 0255 mas vai pro Tancredo 0256 ou então p rum Jardim União da vida, 0257 entra mesmo, 0258 conversa com as pessoas sobre aquele dia, você acaba tendo uma visão não só de violência, 0261 mas também de discriminação com eles mesmos e a televisão só faz mostrar isso 0263 e eles veem aquilo 0264 como uma forma de eles se verem 0265 e a realidade deles, 0266 não é aquela coisa perfeita 0268 que a gente vê nas novelas 0269 que apesar de haver agressões 0270 apesar de haver violência 0271 não é aquela coisa 0272 mas elitizada, 0273 só pessoas ricas ou de classe média alta, Fonte: Corpus Grupo Focal 1_GELP (2010) Entendemos os veículos a gente e eles, em análise, como metonímicos por serem partes que expressam um todo a sociedade, ou seja, a metonímia se estrutura da seguinte maneira: A GENTE E ELES PELA SOCIEDADE. Os termos a gente e eles pertencem ao mesmo domínio (sociedade), o qual está sendo salientado por estes veículos (KÖVECSES, 2010). Este é um caso que justifica a participação da metonímia na elaboração de metáforas, como previsto por Croft e Cruse [110]

117 (2004, p. 218): a metonímia pode exercer um papel fundamental na gênese das expressões metafóricas. No excerto 1, Vânia utiliza mais uma metonímia para caracterizar o grupo a gente como mais favorecido financeiramente que o grupo eles. Na cidade de Fortaleza/CE, as avenidas Treze de Maio e Washington Soares possuem universidades, clínicas médicas, centros educacionais, prédios residenciais e comerciais, além de um movimento intenso de pessoas e um extenso número de lugares para lazer. O poder aquisitivo e cultural nestes lugares é representativo para a cidade de Fortaleza. Este traço foi metonimicamente mapeado ao grupo quando Vânia identifica a gente em relação a estas avenidas (l. 251 a 254). Percebe-se que esta relação está para além do físico, pois são exatamente os lugares que o grupo a gente pertence e estas avenidas os impedem, portanto, de conhecer a realidade do grupo eles, pois estão identificados com localidades distintas (l. 255 e 256). A mídia se torna a imagem distorcida da realidade na fala de Vânia. Através dos meios midiáticos, o grupo eles sofre discriminação, pois as novelas tentam representar a realidade, mas com distorções sérias. Segundo Vânia, as classes com poucos recursos financeiros são representadas por pessoas que, na vida real, seriam elites, pelo padrão de vida que levam na ficção; em outras palavras, a realidade é bem pior (l. 261 a 273). Chegando ao final do discurso, Mateus discorda sutilmente de Vânia, usando os mesmos veículos. Ele acredita que a mídia reflete a realidade do grupo eles, e por isso ela consegue congregar tanta audiência, pois fica implícito que eles são mais do que a gente : Quadro 2: Excerto 2 Linha Participante Discurso 2536 Vânia e de certa forma, 2537 até assistir aqueles programas sensacionalistas, 2538 porque, 2539 pra sociedade que assiste, 2540 a grande massa que assiste esses programas 2541 não faz muita diferença, 2542 mas a diferença fica entre aspas, 2543 porque tem o entretenimento, 2544 mas pra eles não É uma forma, 2546 é uma janela [111]

118 que eles enxergam, 2548 tudo bem que 2549 não de certa forma, 2550 de forma correta, 2551 ideal, 2552 mas de uma certa forma, 2553 eles enxergam 2554 de fato, 2555 o que tá acontecendo. Fonte: Corpus Grupo Focal 1_GELP (2010) GOVERNO COMPREENDE A VIOLÊNCIA QUANDO ABRE OS VIDROS E OLHA PROS LADOS Ao responderem a última pergunta feita pelo moderador, se eles teriam uma mensagem a ser deixada para as autoridades sobre os seus sentimentos de insegurança, os interlocutores construíram esta metáfora como a própria mensagem para o governo. Caracteriza-se como uma metáfora sistemática, antes de tudo, pela participação do grupo na produção e na compreensão dela. Nos excertos a seguir, é possível observar que houve um acordo imediato entre os participantes em prol desta metáfora, isto é, eles entenderam como favorável que a compreensão do governo sobre a violência depende do próprio governo no que tange a sair da sua zona de conforto e ver de perto o que está acontecendo: Quadro 3: Excerto 3 Linha Participante Discurso 2451 Moderador Se vocês quiserem, vocês podem mandar alguma mensagem agora para as autoridades tanto sobre os efeitos que a situação de violência tem nas pessoas, como também a questão do que elas devem fazer a respeito, se vocês quiserem podem falar, mandar uma mensagem Elisa Bom, 2453 eu não hoje Renato Eu acho que a mensagem [112]

119 2455 a gente não precisa 2456 tá aqui falando, 2457 falando que a sociedade 2458 tá violenta A mensagem tá aí, 2460 ela tá posta no dia a dia, 2461 você vê a mensagem, 2463 é quase palpável a violência, acho que tá absurda, 2466 então a gente 2467 não precisa mandar uma mensagem, 2468 só basta eles abrirem os olhos Vânia Ela só precisa 2470 olhar pros lados [Risos] 2472 Mateus A mensagem seria: 2473 Uma volta no quarteirão [risos] 2475 Elisa Abre o vidro né? 2476 Vânia Abre o vidro 2477 e olha. Fonte: Corpus Grupo Focal 1_GELP (2010) Quadro 4: Excerto 4 Linha Participante Discurso 2532 Mateus a real mensagem que 2533 a gente tem que passar 2534 é essa de baixar o vidro do carro, 2535 observar o que tá acontecendo, 2536 e de certa forma, 2537 até assistir aqueles programas sensacionalistas, Fonte: Corpus Grupo Focal 1_GELP (2010) Este último trecho é a conclusão do pensamento de Mateus, retomando a metáfora acordada entre os outros participantes anteriormente. [113]

120 Esta é mais uma metáfora que emerge a partir de uma metonímia; neste caso, o vidro do carro simboliza uma barreira ou proteção contra o mundo exterior. O vidro é a parte do carro que se destaca para uma representação maior, apesar de as portas do carro e toda a carenagem contribuírem também para a proteção de quem está dentro. Baixar o vidro e abrir o vidro significam ir para além da barreira e entrar em contato com a realidade do outro. Portanto, pode-se afirmar que esta metáfora trata da relação empática que se espera do governo com a população em geral, e desta vez, não só com as classes menos favorecidas, mas com todos os cidadãos. Os veículos do domínio de ver sugerem o modo pelo qual o governo conseguirá entender esta realidade. Baixar o vidro não será suficiente, mas é necessário olhar pros lados, isto é, o que está acontecendo ao redor. De todos os sentidos, a visão é o mais saliente para aquisição de informações sobre o ambiente, daí associar a percepção visual ao intelecto. Outro veículo destacado foi uma volta no quarteirão, que não está no domínio de ver e nem de baixar ou abrir o vidro, mas reforça a metáfora através da sua participação neste contexto. Quando Mateus diz uma volta no quarteirão, ele espera que o governo baixe o vidro, olhe pros lados e preste atenção de perto na realidade em volta. O quarteirão aqui também se coloca como uma metonímia para a cidade de Fortaleza e/ou outros centros urbanos, e esta volta no quarteirão seria a presença constante das autoridades junto à população. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como já explorado durante este estudo, as estabilidades empáticas e conceituais durante a interação discursiva são chamadas de metáforas sistemáticas, por Cameron (2003, 2007, 2008). A metáfora sistemática simboliza um pacto discursivo-conceitual implícito entre os falantes em determinado momento do discurso. A fim de descrever a emergência metafórica durante a interação discursiva, algumas perguntas de pesquisa foram relacionadas. A indagação principal questionava se a emergência metafórica de COMPREENDER É VER ocorre em duas direções (discurso-cognição e vice-versa), isto é, não só a partir de fatores discursivos e socioculturais, mas também de fatores cognitivos. [114]

121 Apesar de Gibbs e Cameron (2007) já oferecerem indícios desta dupla direcionalidade da emergência de metáforas sistemáticas, eles não se aprofundam nesta questão. Além disso, Cameron (2007, 2008) não se compromete em especificar que agentes no sistema cognitivo estão envolvidos no desenrolar do discurso. A autora menciona uma autoorganização do sistema que promove as emergências de novos padrões (softassembling). Porém não fica claro que recursos especificamente cognitivos são usados pelos interlocutores na co-construção de metáforas. Portanto, a pergunta da pesquisa foi pensada, supondo que as metáforas primárias poderiam ser estes recursos. Esta ideia foi confirmada usando a metodologia da autora citada, o que revela que sua proposta não descarta a teoria conceitual, mas que esta pode servir de complemento para a abordagem discursiva da metáfora. Entendendo que a metáfora sistemática é uma construção colaborativa, isto sugere que os interlocutores que participaram de sua elaboração possuem a mesma metáfora primária na cognição, validando a suposição de variáveis universais cognitivas para as metáforas sistemáticas. A metáfora primária COMPREENDER É VER está associada a mais de uma metáfora sistemática: COMPREENDER DIFERENTES GRUPOS SOCIAIS É VER ELES, COMPREENDER A SI MESMO É ENXERGAR-SE NA MÍDIA e GOVERNO COMPREENDE A VIOLÊNCIA QUANDO ABRE O VIDRO E OLHA PROS LADOS. Isto corrobora na prática o que Gibbs e Cameron (2007, p. 03) teorizam sobre o papel da metáfora conceitual na produção de metáforas situadas como as sistemáticas: (...) (a) metáforas conceituais ajudam pessoas a, tacitamente, entenderem porque palavras e expressões metafóricas significam o que significam, e (b) que as pessoas frequentemente acessam metáforas conceituais durante a produção online e imediata e a compreensão de metáforas novas e convencionais. Sendo assim, concluímos que metáforas sistemáticas são estabilizações no discurso, resultantes de variáveis cognitivas universais (metáforas primárias, dentre outras) que se acoplam e interagem com variáveis culturais e específicas do contexto discursivo, como por exemplo, o tópico. A metáfora primária se baseia em um mapeamento bidimensional [de domínio fonte (experiência sensório-motora) para domínio-alvo (experiência subjetiva)]. Isto sugere a seguinte pergunta: o que faz crer, [115]

122 então, que a metáfora sistemática também não seja resultado de um mapeamento bidimensional, se sua base é feita de metáforas primárias? Para esta observação, argumentamos aqui que a metáfora primária é básica e correlacional, resultado de conflação e separação neural e conceitual de domínios sensório-motores e subjetivos. Feita esta correlação, ela está pronta para interagir com outros fatores, dentre eles culturais, sociais, históricos e discursivos. Portanto, a metáfora sistemática não consiste de um mapeamento, mas sim de uma auto-organização de variáveis relevantes no discurso, pois não se pauta em um modelo bidimensional definido como o das metáforas primárias, mas em uma interação entre vários agentes participantes neste sistema, sendo a metáfora primária somente um dentre eles. Portanto, a metáfora sistemática é a interação entre metáforas primárias de um lado e de fatores sociais, históricos, individuais e culturais do outro lado. A metáfora sistemática é situada no discurso (nível microgenérico), portanto não tem a obrigação de ser geral ao ponto de todos os falantes, ou pelo menos, grande parte deles emergirem as mesmas metáforas. Ela é temporária, isto é, pode servir somente para aquele momento específico do discurso, e nunca mais emergir. Além disso, é sistemática, ou seja, não está localizada em somente um ponto do discurso, mas percorre várias falas diferentes, e de locutores distintos, pois se trata de um acordo discursivoconceitual específico. Portanto, esta pesquisa visou à colaboração de demonstrar que a metáfora não pertence somente a um âmbito específico da capacidade ou atividade humana (cognição ou discurso), mas mostrar que a sua emergência significa a participação efetiva dos agentes que integram os sistemas cognitivo e discursivo, promovendo, implicitamente, os acordos conceituais socioculturalmente situados. REFERÊNCIAS CAMERON, L. Metaphor in educational discourse. London: Continuum, CAMERON, L. Confrontation or complementarity: Metaphor in language use and cognitive metaphor theory. Annual review of cognitive linguistics, 5, , CAMERON, L. Metaphor shifting in the dynamics of talk, chapter 2, In: ZANOTTO, M. S., CAMERON, L.; CAVALCANTI, M. C. (orgs). [116]

123 Confronting metaphor in use: an applied linguistic approach. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, CAMERON, L.; DEIGNAN, A. A emergência da metáfora no discurso. (traduzido FARACO, S. & VEREZA, S.) In: SIQUEIRA, Maity. Cadernos de tradução. Porto Alegre. nº 25, jul-dez, 2009, p CAMERON, L., MASLEN, R., TODD, Z., MAULE, J., STRATTON, P. e STANLEY, N. The Discourse Dynamics Approach to Metaphor and Metaphor-led Discourse Analysis. Metaphor and symbol, 24, 2, p , CAMERON, L.; MASLEN, R. Metaphor analysis: research practice in applied linguistics, social sciences and the humanities. UK: Equinox Publishing Ltd, CROFT, W.; CRUSE, D. Alan. Cognitive linguistics. University Press, Cambridge, FAUCONNIER, G.; TURNER, M. Conceptual projection and middle spaces Department of cognitive science technical report University of California, San Diego, FAUCONNIER, G.; TURNER, M. Blending as a central process of grammar. In: GOLDBERG, A. (org). Conceptual structure, discourse, and language. Stanford: CSLI/Cambridge, FAUCONNIER, G.; TURNER, M. Principles of conceptual integration. In: KOENIG, J.P. (org). Discourse and cognition: bridging the gap. Stanford: CSLI/Cambridge, FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think. New York: Basic Books, GIBBS, R.; CAMERON, L. The social-cognitive dynamics of metaphor performance. Cognitve systems research: p.p. 1-12, GRADY, J. Foundations of meaning: primary metaphors and primary scenes PhD Dissertation Graduate Division, University of California, Berkeley, GRADY, J. Primary metaphors as inputs to conceptual integration. Journal of Pragmatics, 37, , JUBRAN, C. C. A. S. et al. Organização tópica da conversação. In: ILARI, R. (org.). Gramática do português falado, vol. II. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, [117]

124 KÖVECSES, Z. Metaphor: a practical introduction. Oxford: Oxford University Press, 2 nd ed, LAKOFF, G. Women, Fire and Dangerous Things. The University of Chicago Press, LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: Chicago University Press, (1980) LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to Western thought. NY: Basic Books, NARAYANAN, S. Embodiment in language understanding: sensorymotor representations for metaphoric reasoning about event descriptions PhD dissertation - Department of Computer Science Division, University of California, Berkeley, WALMSLEY, J. Explanation in dynamical cognitive science. Minds and machines. p , [118]

125 07 A PRIMAZIA DA METONÍMIA EM RELAÇÃO À METÁFORA SOB O PRISMA DOS SISTEMAS ADAPTATIVOS COMPLEXOS E DA TEORIA FRACTAL UMA ANÁLISE DO DISCURSO DE VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA URBANA Pedro Jorge da Silva Marques 1 Maria Elias Soares 2 INTRODUÇÃO Metáfora e metonímia são tratadas como duas figuras diferentes no discurso desde a retórica tradicional. Hodiernamente, a Linguística Cognitiva enfoca a onipresença da metáfora e da metonímia na linguagem, contudo, em algumas teorias, à metonímia, frequentemente, é relegado um papel inferioridade em relação à metáfora, não recebendo, portanto, a devida importância. Barcelona (2000) afirma que, apesar de a metáfora e a metonímia serem discutidas em conjunto, esta última tem recebido menos espaço do que a anterior, apesar de a metonímia parecer ser ainda mais fundamental para a linguagem e para a cognição. Como isso acontece, ou como exatamente o ouvinte de um enunciado é capaz de reconhecer uma relação integrada entre a metonímia e a metáfora é o que será discutido em partes posteriores deste trabalho. De acordo com a Linguística Cognitiva, no sistema conceptual humano, há vários modelos metonímicos relacionados a efeitos prototípicos, pois o ser humano percebe e classifica a realidade, tendo como referência as semelhanças e as diferenças. Nessa perspectiva, são considerados semelhantes os elementos que possuem entre si algum aspecto comum e, por isso, são relacionados na mesma categoria; no entanto, elementos distintos, isto é, aqueles que perderam qualquer grau de interseção entre si, são dispostos em categorias diferentes. Elementos com alguma familiaridade, semelhança pertencem ao mesmo domínio do conhecimento e os que não possuem nenhuma familiaridade, a domínios de conhecimento diferentes. Acerca desse assunto, afirma Lakoff: 1 Professor da Faculdade e colégio Lourenço Filho e do Colégio Ateneu. 2 Professora titular da Universidade Federal do Ceará. [119]

126 Categorização não é uma questão a ser tratada superficialmente. Não há nada mais básico do que a categorização de nosso pensamento, percepção, ação e discurso. Toda vez que vemos algo como um tipo de coisa, por exemplo, uma árvore, estamos categorizando. Sempre que raciocinamos sobre os tipos de coisas - as cadeiras, as nações, as doenças, as emoções, qualquer tipo de coisa - estamos empregando categorias. (LAKOFF, 1987, p. 5) 3 Com base nas palavras do autor, pode-se perceber que a metonímia tem um status cognitivo superior, por fazer parte do raciocínio para os mais variados propósitos, já que um membro ou subcategoria pode representar metonimicamente uma categoria inteira, para fazer inferências, aproximações, comparações e julgamentos, práticas recorrentes do cotidiano. Logo, é perceptível que a metonímia permeia vários processos de conceptualizações, sobretudo na abordagem cognitiva, como a categorização, a metáfora, os esquemas imagéticos, etc., entretanto sua importância não é reconhecida nem em estudos atuais, nem nos mais antigos, conforme será visto na seção seguinte. A SUPERIORIDADE DA METÁFORA NA RETÓRICA ARISTOTÉLICA No tocante aos postulados relativos à linguagem figurada, a retórica tem como representante maior, Aristóteles, para quem a linguagem figurada ocupa papel de destaque, tanto na poesia quanto no discurso, defendendo que esse tipo de linguagem exerce dupla função, sendo tanto uma estratégia de embelezamento, quanto de persuasão. Desde a Antiguidade clássica, a metáfora sempre exerceu uma grande atração em diversos estudiosos, tal afirmação, contudo, não pode ser feita em relação à metonímia, a qual geralmente aparecia como pano de fundo de expressões relacionadas à metáfora, como se observa em Ullmann (1970) que trata a metonímia como um recurso estilístico, dando-lhe um interesse limitado para os estudiosos do estilo, posto que ela surge apenas entre as palavras, não revelando, de acordo com o autor, relações novas entre os termos. 3 Categorization is not a matter to be taken lightly. There is nothing more basic than categorization to our thought, perception, action, and speech. Every time we see something as a kind of thing, for example, a tree, we are categorizing. Whenever we reason about kinds of things chairs, nations, illnesses, emotions, any kind of thing at all we are employing categories [120]

127 Filipak (1983) assevera que a metáfora é facilmente percebida como um desvio linguístico pelo emissor e pelo receptor, diferentemente da metonímia, que, conforme o autor, é mais sorrateira, dissimulada e passa despercebida, podendo ser detectada apenas por meio da análise linguística ou estilística. Talvez seja esse caráter sub-reptício a justificativa para a metonímia, muitas vezes, ser vista como sombra da metáfora, ou quem sabe, também, ao fato da metonímia sempre ter sido menos estudada. Assim como ocorreu na Antiguidade, hodiernamente há também uma escassez de pesquisas e de estudos que destaquem a importância da metonímia para o processo de conceptualização. Estudiosos, como Jakobson, também defenderam a importância da metonímia e da metáfora na constituição da linguagem. Para esse linguista, a relação entre metáfora e metonímia dá-se por meio de um processo de seleção e de combinação, pois ambas condensam as expressões por meio de duas maneiras básicas de relação: a interna, de similaridade, a qual serve de base à metáfora, enquanto na metonímia, há uma relação externa de contiguidade. Ullmann (1970, p. 445) assegurou que não se pode conceber a língua sem metáfora e metonímia, pois essas duas forças são inerentes à estrutura básica da fala humana. Dessa forma, por mais que a metáfora seja apresentada numa posição de destaque em relação à metonímia, ambas apresentam mais afinidades que discordância, todavia, a grande maioria dos estudos e das pesquisas debruçam-se sobre a metáfora, porém, numa análise mais minuciosa, pode-se perceber que, muitas vezes, o processo metafórico decorre de um processo metonímico. OS SISTEMAS ADAPTATIVOS COMPLEXOS. Embora existam outros estudos menores, o trabalho pioneiro e mais ambicioso, em mostrar a relevância de uma abordagem dos sistemas complexos para a Linguística, é encontrado na exposição recente de Larsen- Freeman e Cameron (2008). Essas autoras esclarecem que o pensamento sistêmico complexo encontra suas raízes na Biologia. Não podemos estranhar, pois, que tal teoria gire em torno de conceitos-chave como adaptabilidade e potencialidade dos sistemas, especialmente a capacidade de se auto-organizar, e "a natureza orgânica da mudança" no âmbito desses sistemas (LARSEN-FREEMAN e CAMERON, 2008, p. 1). Na Biologia, a adaptação é o processo que possibilita o ajuste dos seres vivos a um meio variável, assegurando a sobrevivência das espécies, permitindo a sua extensão geográfica e diversificação. As respostas adaptativas incluem: mudanças fisiológicas e/ou morfológicas e/ou etológicas, que garantam a sobrevivência, reprodução e o desenvolvimento. [121]

128 Ademais, em uma abordagem dinâmica dos sistemas complexos, a ênfase recai sobre a dinâmica, o que exige um olhar para a mudança e para os processos que conduzam a essa mudança, ao invés de considerar o objeto de estudo como entidades estáticas, imutáveis" (LARSEN-FREEMAN e CAMERON, 2008,p. 16; cf. também 26). Isso nos leva a um segundo princípio importante, relacionado a essa nova abordagem: a não-linearidade dos processos de mudança. Se se define um sistema complexo como aquele cujo comportamento não é previsível em termos de uma única dimensão, ou um conjunto de dimensões, mas emerge das interações entre os seus componentes, entende-se que o comportamento de um sistema não pode ser previsto de forma linear e que as explicações causais não são mais suficientes, uma vez que todos os vários componentes de um sistema complexo - incluindo o que antes era muitas vezes inadequadamente marginalizado como o "contexto"- estão em contínua interação, há "causalidade recíproca" (LARSEN-FREEMAN e CAMERON, 2008, p. 7). Em síntese, segundo autores, como LARSEN-FREEMAN, 1997; PAIVA, 2002; LARSEN-FREEMAN e CAMERON, 2008, os Sistemas Dinâmicos Complexos apresentam as seguintes características: 1. são não lineares, isto é, os efeitos não correspondem diretamente às causas; 2. são emergentes da interação de vários componentes, como o cognitivo, o social, o cultural, o biológico, etc. O comportamento emergente surge da interação desses elementos no sistema e é, também, não linear, ou seja, não necessariamente possuem a mesma proporcionalidade ao comportamento inicial; 3. são dinâmicos, portanto, estão em constante mutação; 4. são abertos, pois há um constante fluxo de informações pelas fronteiras dos sistemas, gerando certa dificuldade em entrar em equilíbrio, mas, apesar de sua constante mudança, há também uma estabilidade aparente; 5. são adaptativos. Após um período de caos, de desequilíbrio, os agentes se harmonizam novamente, podendo-se considerar que a ordem foi, então, reestabelecida. Entretanto, esta é uma nova ordem diferente da que a precedia. Analogamente, nesse trabalho, pode-se dizer que a linguagem, sobretudo a metafórica e a metonímica, é o organismo vivo que será moldado pelo ambiente, no caso, o contexto discursivo, acarretando, quem sabe, em uma mudança morfológica e semântica dentro do sistema linguístico para que essas possam se adaptar ao contexto. [122]

129 A METONÍMIA SOB OS VIESES DA LINGUÍSTICA COGNITIVA E DA TEORIA FRACTAL A metonímia, para ser compreendida como um processo cognitivo, precisa ser entendida como uma entidade inter-relacionada à outra, não como uma entidade no lugar de outra, pois elas são responsáveis pela constituição de sentidos por meio de processos complexos que explicitam o surgimento de uma nova ideia, oriunda de um processo de pensamento, não de um simples resultado da relação de suas partes. No dia a dia, a percepção que se tem na escolha das partes mais representativas para significar o todo é um hábito que perpassa através dos conceitos que organizam o pensamento e as ações, o que permite a conceptualização de uma coisa, por sua relação com outra. Logo, a metonímia apresenta efeitos prototípicos que se caracterizam pelos estereótipos sociais, como muçulmano é terrorista ou político brasileiro é corrupto, pois nem todo muçulmano é terrorista, nem todo político brasileiro é corrupto, essa estereotipagem, que é um processo conceptual, ocorre via processo metonímico, visto que o terrorismo e a corrupção são comportamentos de um grupo específico que é generalizado para os demais, ou seja, é uma parte que abrange o todo. Além disso, existem os ideais, os padrões, os exemplos salientes, etc. Como se pode observar, a metonímia possibilita pôr em evidência certas características da entidade a qual é feita a referência. Sendo assim, a metonímia tem, pelo menos em parte, o mesmo uso que a metáfora, porém ela permite-nos focalizar mais especificamente certos aspectos da entidade a que estamos fazendo referência. É similar também à metáfora no sentido de que não é somente um recurso poético ou retórico, nem é somente uma questão de linguagem. Conceitos metonímicos (como PARTE PELO TODO) fazem parte da maneira como agimos, pensamos, e falamos no dia-a-dia (LAKOFF & JOHNSON, 2002, p.93). Nas palavras dos linguistas, a metonímia é um processo básico e espontâneo das línguas naturais, pois, cognitivamente, é um mecanismo pelo qual um domínio da experiência é entendido parcialmente em termos de um mesmo domínio. Nessa mesma perspectiva, Radden e Kovecses (1999, p. 21) definem a metonímia como um processo cognitivo em que uma entidade conceptual, o veículo, fornece acesso mental à outra entidade conceptual, o alvo, no mesmo modelo cognitivo idealizado. Dentro da mesma concepção, Langacker (1987) explica o mapeamento metonímico por meio da noção de [123]

130 Ponto de Referência (PR) e de Zona Ativa (ZA) representados na figura a seguir. Figura 01: Mapeamento Metonímico PONTO FIGURA 01: MAPEAMENTO ZONA ATIVA METONÍMICO DE REFERÊNCIA Barcelona (2003) torna inteligível que, dentro de um mesmo domínio, veículo ou fonte, há vários subdomínios (alvos, zonas ativas), porém, apenas um deles será ativado de acordo com o contexto. Dessa forma, a metáfora a seguir, retirada do corpus que serviu de análise para nosso trabalho, torna clara a maneira como esse mapeamento ocorre em nosso cotidiano. Figura 02: Ativação do Alvo Específico A MÍDIA BANALIZA A VIOLÊNCIA 1. PESSOAS RESPONSÁVEIS PELA PROGRAMAÇÃO; 2. A PROGRAMAÇÃO VEICULADA; 3. A EMISSORA RESPONSÁVEL PELA PROGRAMAÇÃO Conforme a figura acima, dentro do domínio fonte ou veículo mídia existem vários subdomínios ou alvos: pessoas responsáveis pela programação; a programação veiculada; a emissora responsável pela programação. Evidencia-se, com isso, que as inferências são feitas por meio de processos metonímicos e devido a eles é que são ativadas bases de conhecimentos. Portanto, é natural fazer alusão a certos aspectos de um evento por meio de uma parte dele, em relação a sua totalidade. Diante disso, [124]

131 a metonímia é identificada como um fenômeno de ponto de referência no qual uma entidade conceptual (veículo, ponto de referência, fonte) dá acesso mental à outra entidade conceptual (zona ativa, alvo). Esse processamento metonímico é tão vasto que, de acordo com Lakoff e Johnson (2002), abrange áreas como os gestos humanos, a simbologia cultural e a iconicidade de forma geral. Em adição, Radden (2005, p. 26) percebe relações metonímicas nas representações visuais e nos órgãos dos sentidos, como olfato e paladar, ao evocarmos cheiros e sabores. Croft e Cruse 2009, p. 218), por sua vez, acreditam que, embora as abordagens lakoffianas tenham apontado semelhanças e diferenças entre metáfora e metonímia, elas evidenciam que a metonímia pode ter uma função primordial na origem das expressões metafóricas. Os autores demonstram a ocorrência da interação entre os dois processos por meio da análise da metáfora RAIVA É CALOR. A relação metonímica está no centro dessa metáfora, entre o sentimento de raiva e o aumento da temperatura corporal gerada pelo sentimento. Dessa maneira, pode-se referir à raiva por meio do calor, surgindo, assim, o conceito metafórico, elaborando a raiva como um líquido, em um recipiente fechado, sob o efeito do fogo. Ao lado do posicionamento cognitivista, o presente trabalho estabelece interessante diálogo com outras vertentes mais recentes da Linguística, como a Teoria dos Sistemas Adaptativos Complexos e a Teoria Fractal. O termo fractal foi criado por Mandelbrot, que se baseou na palavra originaria do latim fractus, que significa quebrado, fraturado, irregular. A denominação fractal" é um neologismo criado pelo próprio Mandelbrot na tentativa de encontrar uma designação correta para os objetos geométricos que possuem dimensão não inteira, por exemplo, o valor de π ou de um número quebrado, não inteiro como 1,218. Uma das características peculiares dos fractais é a autossimilaridade em que, de acordo com Lorenz (2001), o todo é composto de partes similares ao todo. Ao pensarmos em fractais, pensamos também em operações recursivas como as que encontramos no sistema de linguagem. Segundo Paiva (2011), A língua se organiza em escalas, dos fonemas às palavras, das palavras às orações, das orações às unidades enunciativas, das unidades enunciativas ao discurso que se desdobra em outros discursos em um fluxo infinito. (PAIVA, 2011, p. 4). Dentro dessa perspectiva, Paiva (2010) uma das primeiras autoras a fazer uma integração entre essas teorias, em artigo intitulado A metonímia como processo fractal multimodal, no qual a pesquisadora dá uma nova [125]

132 definição para metonímia: a metonímia não é entendida como mudança de nome, mas como mudança de escala (PAIVA, 2010, p. 17), ou seja, a metonímia não é uma coisa nomeada por outra, como defende a abordagem cognitiva, é a mesma coisa vista em uma dimensão fractalizada sem que se perca a dimensão do todo (PAIVA, 2010, p. 17). Para exemplificar, utilizaremos um trecho de diálogo de um grupo focal que discutia sobre violência na cidade de fortaleza, do qual emergiu a metáfora sistemática: A MÍDIA É UM INSTRUMENTO DE PROPAGAÇÃO DA VIOLÊNCIA EXCERTO MATHEUS: Como eu havia falado um pouco antes, 411. MATEUS: eu, por exemplo, 412. MATEUS: acordo seis horas da manhã, 413. MATEUS: coloco no canal MATEUS: e tá passando a reprise do Barra Pesada do dia anterior, 415. MATEUS:... (2.0) aí eu vou pro computador, 416. MATEUS: vejo uma coisinha lá e tal, 417. MATEUS:... aí chego em casa na hora do almoço, 418. MATEUS: ligo a televisão, 419. MATEUS: aí o pai tá assistindo 420. MATEUS: como é? 421. MATEUS: o Rota MATEUS: Rota MATEUS: [Todos Cidade 190 ] 424. MATEUS: Cidade MATEUS: pronto, 426. MATEUS: aí tudo bem, 427. MATEUS: duas horas eu vou trabalhar, 428. MATEUS: seis horas eu volto morto de feliz 429.MATEUS: e chego em casa 430. MATEUS: e o que que eu vejo passando na hora da merenda? 430. MATEUS: novela, mais violência. 4 Os excertos utilizados neste trabalho como análise fazem parte dos corpora da dissertação de mestrado do autor Pedro Jorge da Silva Marques, extraído do banco de dados do grupo de pesquisa GELP-COLIN, utilizado no projeto de pesquisa interinstitucional Metaphor, empathy and the constant threat of urban violence in Brazil, coordenado pela Profa. Dra. Lynne Cameron, da Open University, em parceria com a Drª Ana Cristina Pelosi da Universidade Federal do Ceará. [126]

133 Nesse trecho, a mídia foi fragmentada pelo participante do grupo focal em várias partes que juntas compõem o todo significativo. O participante atribui à mídia a responsabilidade pela propagação da violência, porém, a exposição das suas ideias em relação a esse tópico é feita por parte, referindo-se a elementos constitutivos da mídia que vão desde os suportes como televisão e computador aos programas exibidos por eles, como novelas e jornalismos policiais, Barra Pesada, Cidade 190 e Rota 22. Cabe lembrar que todas essas partes mantêm uma relação de semelhança com o todo, isto é, uma relação metonímica. Podemos evidenciar nesse excerto as duas características de um fractal, primeiro a autossimilaridade, visto que cada parte fragmentada da mídia é, em escala menor, semelhante à parte inicial, isto é, ao todo. Segundo, a iteração, posto que esse processo é recursivo e repete-se ao longo do discurso desse participante. É importante ressaltar também que o processo metonímico presente no termo mídia é responsável pela emergência da metáfora sistemática, pois, se a metonímia for desfeita, o efeito metafórico presente no termo propagação desaparece. Ou seja, não é a mídia que propaga a violência, mas as pessoas que trabalham nela, logo, se fosse usada pessoa em vez de mídia, não haveria metonímia, consequentemente, não haveria metáfora, pois não ocorreria personificação. O mesmo processo ocorreu novamente em outro trecho do discurso, com outro participante e outro tópico discursivo, de onde emergiu uma nova metáfora sistemática: O SISTEMA EDUCACIONAL É UM AGENTE QUE CONTRIBUI PARA O CRESCIMENTO DA VIOLÊNCIA ESCOLAR: EXCERTO REJANE: Até por causa do próprio contexto social 88. REJANE: em que esses meninos vivem. 89. REJANE:... Vêm de famílias desestruturadas, 90. REJANE: muitas vezes vêm pra escola só pra se alimentar, 91. REJANE: às vezes, pra fugir de casa pra não apanhar. 92. REJANE: Então, tem todo um contexto, 93. REJANE: por trás disso aí. Nesse excerto, notamos a predominância da relação metonímica local pela instituição dominando o contexto situacional. A família é uma instituição que faz parte do processo educacional, mas que, conforme a participante, vem passando por uma crise, está cada vez mais desestruturada, ou seja, ela deveria dar sustentação aos filhos em momentos de dificuldade, [127]

134 pois ela é parte essencial no processo educacional, visto que tudo começa na relação familiar sendo ela, portanto, o arcabouço, o delineamento inicial do processo educacional. Mais adiante, com outra participante discutindo sobre o mesmo tópico, o processo de fragmentação do sistema educacional continua, ou seja, é visto em dimensão fractal, dividida em partes: EXCERTO GABRIELA: A educação, 720. GABRIELA: Infelizmente, 721. GABRIELA: dentro do contexto público 722. GABRIELA: principalmente, 723. GABRIELA: é uma mentira GABRIELA:... Não existe GABRIELA:.. Esses dados de aprovação de aluno 726. GABRIELA: que são cobrados a nível de secretaria, 727. GABRIELA: a própria SEDUC 728. GABRIELA: exige que as escolas apresentem 729. GABRIELA: um alto índice de alunos aprovados GABRIELA: Aí começa GABRIELA: é onde desencadeia todo o processo falho. No excerto acima, a participante Gabriela 5 começa atribuindo predicativos à educação, caracterizando-a como uma mentira, o que pode ser considerado um veículo metafórico por representar a ideia de fraude, logro engano, pois os dados apresentados pelas instituições educacionais não correspondem à realidade, dado o fato de que muitos alunos não conseguem apresentar um bom desempenho nas avaliações ao longo do ano, mas a direção da escola exige a aprovação pelo menos da grande maioria, para isso ela exige um alto índice de bons resultados, embora não sejam resultados condizentes com a real situação do alunado. Mais adiante, no final do excerto, linhas727 e 728, emerge mais um caso de sincronia entre metonímia e metáfora por meio dos atratores 6 a 5 Por uma questão de ética científica, os nomes dos participantes foram trocados por pseudônimos. 6 Conceito importante na teoria da complexidade, o atrator pode ser caracterizado como um entre vários estados estáveis possíveis em que um sistema tende a se estabilizar por certo intervalo temporal indeterminado. Perturbações provenientes do exterior do sistema podem forçá-lo a mover-se de um atrator para outro, ou mesmo desintegrar tal sistema. Em suma, um atrator não se refere a algo que atrai, mas ao comportamento de longo prazo ou à estabilidade temporária. [128]

135 SEDUC exige e as escolas apresentem, pois não é a instituição educacional SEDUC que exige, mas os responsáveis pela instituição. Não é a instituição escola que apresenta, mas os diretores e coordenadores responsáveis pela escola. Essas duas instituições são seguidas de verbos nocionais metafóricos que expressam ações próprias de seres humanos, porém, esses verbos perderão seu sentido figurado caso seja desfeita a relação metonímica, ou seja, se trocarmos SEDUC e escola pelos seus respectivos responsáveis. Essas instituições são conceitualizadas de forma recorrente como um agente sempre praticando ações que favorecem o aumento da violência, ações essas representadas pelos veículos cobrados e exige, verbos que, basicamente, são designados a seres humanos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desta pesquisa, tentamos demonstrar a primazia da metonímia sobre a metáfora, para tanto, foram explorados referenciais teóricos na tentativa de encontrar possíveis respostas aos problemas norteadores deste trabalho, qual seja: há realmente uma primazia da metáfora em relação à metonímia? Nesse ínterim, também procuramos verificar em que medida as hipóteses formuladas sustentam-se, para isso, este trabalho teve como referencial teórico a Teoria dos Sistemas Dinâmicos Complexos, a Teoria Fractal e a abordagem da Linguística Cognitiva, que contribuíram efetivamente para a análise, orientada para verificação da primazia da metonímia sobre a metáfora no discurso real de dos participantes do grupo focal que serviu de base para análise dos dados deste trabalho. Esse estudo, à luz da teoria dos Sistemas Dinâmicos Complexos e da Teoria Fractal, revelou que a metonímia, no processo de conceptualização, é tão essencial quanto a metáfora, quiçá mais importante, visto que as relações que a caracterizam permeiam tanto o contexto quanto o enunciado em si. A Linguística Cognitiva prioriza estudos e pesquisas que dão ênfase à metáfora, deixando a metonímia em segundo plano. Neste trabalho, contudo, verificamos que muitas metáforas podem ser decorrentes de metonímias e esperamos que o trabalho seja no mínimo instigante e possa estimular outros estudiosos a desenvolverem pesquisas que comprovem a importância dessa figura para o processo de conceptualização. Apesar de estarmos conscientes de que estes resultados precisam ser apoiados por uma análise mais ampla e detalhada, pensamos que as questões, aqui apresentadas, são fundamentais e essenciais para compreender e explicar a complexa relação entre metáfora e metonímia, não só sob os pressupostos da Teoria Fractal e dos Sistemas Dinâmicos Complexos, mas qualquer outra concepção teórica ou metodológica. Por isso, gostaríamos de ver o nosso [129]

136 trabalho, não como a resposta final para estas perguntas, mas sim como um trampolim para futuras investigações sobre a natureza da inter-relação entre metáfora e metonímia. REFERÊNCIAS BARCELONA, A. On the plausibility of claiming a metonymic motivation for conceptual metaphor. In: BARCELONA, A. Metaphor and metonymy at the crossroads: a cognitive perspective. Berlim: Mouton de Gruyter, 2003 [2000]. p CROFT, W. & CRUSE, A. D. Cognitive linguistics. Cambridge: University of Cambridge Press, 2009 [2004]. CUENCA, M. J. & HILFERTY, J. Introducción a la lingüística cognitiva. 1 ed. Barcelona: Ariel, FILIPAK, Francisco. Teoria da Metáfora. Curitiba: HDV, JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 4.ed. rev. São Paulo: Cultrix, KÖVECSES, Z. The scope of metaphor. In: BARCELONA, A. Metaphor and metonymy at the crossroads: a cognitive perspective. Berlim: Mouton de Gruyter, 2003 [2000]. p LAKOFF, George. Women, fire and dangerous things: what categories reveal about the mind. London: The University Chicago Press, LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Campinas: Mercado de Letras; São Paulo: Educ, Tradução de: Maria Sofia Zanotto. LANGACKER, Ronald. Foundations cognitive grammar: theoretical prerequisites. California: Standford University Press, 1987, v.1. LARSEN-FREEMAN, D. Chaos/complexity science and second language acquisition. Applied Linguistics, v. 18, n. 2, p , LARSEN-FREEMAN, D.; CAMERON, L. Complex systems and applied linguistic. Oxford: Oxford University Press, LORENZ, E.N. The essence of chaos. Seattle: The University of Washington Press, MARQUES, Pedro Jorge da Silva. A metáfora e a metonímia sob a perspectiva dos sistemas dinâmicos complexos e da teoria fractal no processo de conceitualização da violência urbana na cidade de Fortaleza-CE f. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal [130]

137 do Ceará, Departamento de Letras Vernáculas, Programa de Pós-graduação em Linguística, Fortaleza (CE), PAIVA, V. L. M. O. A metonímia como processo fractal multimodal Veredas. v.14, n.1, p.7-19, PAIVA, V. L. M. O. Caleidoscópio: fractais de uma oficina de ensino aprendizagem. Memorial apresentado para concurso de professor titular na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais PAIVA, V. L. M. O. Modelo fractal de aquisição de línguas In: BRUNO, F. C. (Org.). Reflexão e prática em ensino/aprendizagem de língua estrangeira. São Paulo: Clara Luz, 2005, p RADDEN, Günter; KÖVECSES, Zóltan. Towards a theory of metonymy. In: PANTHER, Klaus-Uwe; RADDEN, Günter. (Ed.). Metonymy in Language and Thought. Amsterdam: Benjamins, p RADDEN, Gunter. The ubiquity of metonymy. In: CAMPO, José Luis Otal; FERRANDO, Ignasi Navarro i; FORTUÑO, Begoña Bellés. Cognitive and discourse approaches to metaphor and metonymy. Casteló de La Plana: Publicacions de la Universitat Jaume I, p ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. 2.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, [131]

138 [132]

139 08 VIOLÊNCIA URBANA, JUVENTUDES E A GESTÃO DAS VIDAS NUAS NAS MARGENS URBANAS Ingrid Lorena da Silva Leite 1 Leila Maria Passos de Souza Bezerra 2 Neyla Priscila de Araújo Castro 3 VIOLÊNCIA URBANA E SOCIABILIDADE VIOLENTA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO Há desafios em problematizar a violência urbana na sociedade brasileira deste século XXI. Primeiro, devido à existência de múltiplas perspectivas que se debruçam sobre o tema; segundo, pela compreensão de que não existe violência, mas violências de múltiplas formas, de plurais concepções, em diferentes graus de visibilidade, de abstração e de definição de suas alteridades (MISSE, 1999). Desta feita, para circunscrever nosso campo de reflexão neste artigo, dialogamos com a perspectiva interpretativa de violência urbana enunciada por Machado da Silva (2004; 2010; 2011), qual seja: como um conjunto de práticas sociais que adquirem sentido para os atores em suas experiências vividas na cidade, cujo núcleo de sentido consensual é o uso da força física no crime. Nas palavras desse autor, a violência urbana como representação indica: (...) um complexo de práticas legal e administrativamente definidas como crime, selecionadas pelo aspecto da força 1 Assistente Social, Pós-Graduanda em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais (UECE) e Mestranda em Sociologia (UECE) e membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas Sobre Afrobrasibilidades, Gênero e Família (NUAFRO/UECE). Artigo produzido com apoio financeiro da Capes (bolsista do Mestrado). 2 Assistente Social, Mestra e Doutora em Sociologia (UFC), docente do Curso de Serviço Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE), coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Afrobrasibilidades, Gênero e Família (NUAFRO)/UECE. Pós-doutoranda em Sociologia (UFC). 3 Assistente Social, Pós-Graduanda em Serviço Social, Políticas Públicas e Direitos Sociais (UECE), membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas Sobre Afrobrasibilidades, Gênero e Família (NUAFRO/UECE). [133]

140 física presente em todas elas, que ameaça duas condições básicas do sentimento de segurança existencial que costumava acompanhar a vida cotidiana rotineira: a integridade física e a garantia patrimonial (SILVA, 2010, p. 36). Os acontecimentos englobados na concepção de violência urbana, na maioria das vezes são fatos de qualidades distintas com causas e efeitos diversos, variando de acordo com o contexto histórico, social e cultural dos envolvidos, seja como agentes ou vítimas de ações violentas. Segundo Machado da Silva (2004), a violência urbana pressupõe uma expressão muito expandida e, consideravelmente, aceita pelas populações urbanas para narrar, organizar e reproduzir o sentido subjetivo das ações que são legalmente definidas como crime comum violento e suas vítimas atuais ou potenciais. O autor assinala que a violência urbana é uma categoria fundamental de uma linguagem elaborada do senso comum. E articularia, assim, uma gramática própria, a compor uma série de enunciados relatos, interpretações, sugestões, concepções que emergem em um extenso conjunto de práticas, passando por diferentes níveis de violência física. Logo: A linguagem da violência urbana integra e confere sentido às práticas a que se refere a partir da concentração do foco nas atividades rotineiras e nas interações interpessoais. Assaltos, roubos sequestros, tráfico de drogas, conflito entre bandos de criminosos etc., constituem uma ampla e variada nebulosa de condutas nenhuma das quais representa, isoladamente, uma novidade que adquirem sentido do enquadramento operado através da linguagem da violência (SILVA, 2010, p. 70). A compreensão deste fenômeno social constitui-se em amplo e heterogêneo terreno que, de um lado enuncia uma forma de circulação, inclusive internacional, das ideias, como as concepções morais, os sentimentos de medo e insegurança, que lhe são associados; e, por outro, imbrica diversas ideias sobre seus repertórios nacionais e locais, em sua construção histórica, nas características dos debates e nas suas implicações reais. Nessa perspectiva, a violência urbana pressupõe uma construção simbólica que apresenta aos atores uma espécie de mapa complexo de relações de fatos e cursos de ação obrigatórios, pois essa expressão simbólica constitui-se em uma ordem social para todos os efeitos práticos (SILVA, 2011). Essa dimensão simbólica da violência urbana tem como princípio organizador o uso da força física para estruturar as relações sociais. [134]

141 Outrossim, estas relações ou práticas possuem outras dinâmicas sociais que, muitas vezes, ocorrem à margem das rotinas consideradas organizadas, normalizadas e/ou sadias, sobretudo, sob a pretendida gestão estatal da vida. É nesse aspecto que se constitui uma compressão exterior deste complexo de práticas, pois seu ponto de vista não é o das rotinas convencionais: configura-se como um problema da vida cotidiana, sendo a força física um dos elementos organizadores das relações sociais marcadas pela violência, com contornos específicos. Todavia, além da dimensão de suposta exterioridade existe, ao mesmo tempo, uma adesão ao modo como elas se organizam. Ressaltamos que a violência urbana não se refere a comportamentos isolados, mas tem ligação com as configurações de ordem social. Nesse enfoque, a noção da sociabilidade violenta, na acepção desenvolvida por Machado da Silva (2004, 2010, 2011), ganha relevância analítica, a delinear uma ordem empírica governada por uma racionalidade estritamente instrumental que não distingue mundo social do natural, se produzindo e reproduzindo através das atividades de atores competentes, conhecedores ativos, críticos e estratégicos dessa forma de vida que se conduz de uma maneira adequada. O autor assinala que violência urbana é uma questão a ser compreendida, sendo assim, um objeto, não um conceito. É representada, então, a partir de práticas e modelos de condutas, que são logicamente autônomos e elaboram um ordenamento social específico. Nesse aspecto, pode ser entendida sem estar subordinada a uma ordem institucional-legal. Ou seja, propõe a coexistência de duas ordens legítimas, pois as práticas sociais que representam a violência urbana não são percebidas somente como desviantes e ilegítimas, compreendendo sua dimensão simbólica. Entre os anos de 1970 a 1990, afirmou Machado da Silva (2004), as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais no Brasil afetaram a própria emergência e desdobramentos da representação da violência urbana. Dessa forma, ao retomar a concepção desse autor sobre duas ordens sociais coexistentes na vida brasileira, há a constituição de outra forma de sociabilidade que não destrói as já existentes, mas ao contrário, coexistem. Denota-se, portanto, uma comensurabilidade e disputas entre ordens sociais aparentemente cindidas e distintas nas margens das margens urbanas. Desta feita, a noção de sociabilidade violenta (SILVA, 2004) aponta para fortes indícios de que os padrões convencionais de sociabilidade, regulados pelo Estado e suas instituições, fazendo as devidas ressalvas aos contextos e condições [135]

142 existentes, perdem a validade e são substituídos por outros repertórios e formas de sociabilidades neste Brasil do século XXI. O supracitado autor aponta que o crescimento de fatos configurados como de violência urbana e seus múltiplos desdobramentos no contexto brasileiro acumulam-se a partir do final da década de 1970, sendo pautado na agenda pública. O debate sobre a violência urbana elabora-se a partir de um enquadramento construído que tem estabelecido as políticas de segurança pública como prioritária na solução face a este fenômeno, a desconsiderar a necessidade de discutir três aspectos centrais: o hiperindividualismo 4, a segregação socioespacial emblemática de uma ecologia da desigualdade social; e a construção de sociabilidades distintas e em disputa nas margens urbanas, com destaque à sociabilidade violenta. A focalização e o imediatismo na busca de soluções para a violência urbana têm acarretado, na sociedade contemporânea brasileira, um enquadramento perverso, principalmente na criminalização das populações residentes nos ditos territórios de pobreza. Sobre essa noção, Machado da Silva destaca dois elementos. Primeiro, uma imagem negativada desses territórios como espaço do narcotráfico que, supostamente, desencadeou uma expansão da violência urbana e, ao mesmo tempo, afetou a concepção coletiva do lugar na organização social. O segundo aspecto diz respeito às formas de intervenção do Estado nesses territórios, afetados pela intensa e constante ação policial, que se materializa também pelo uso da força, repressão, intimidação e violência física. É importante ressaltar, conforme assinalam Bezerra e Carvalho (2015), que no Brasil deste século XXI, as incertezas e inseguranças, sobretudo, mas não exclusivamente, socioeconômicas e civis (KOWARICK, 2010), marcam e alteram as vidas cotidianas dos atores sociais moradores das margens das cidades. Nesse sentido, os residentes em territórios 4 Segundo Lipovetsky & Serroy (2011), o individualismo traduz-se em um sistema de valores que coloca o indivíduo livre e igual como valor central da cultura ocidental, fundamento da ordem social e política, referencial último da vida democrática. Afirmou-se a partir do XVIII e ascendeu, a princípio, primeiro da ordem pluralista e liberal na Modernidade, consagrando os princípios da liberdade individual e da igualdade de todos perante a lei. Com a desregulamentação econômica-política no capitalismo flexível, vivenciamos uma segunda revolução individualista demarcatória de um hiperindividualismo. Traduz um neoindividualismo de tipo opcional, desregulado, descompartimentado, centrado na primazia da realização de si. Vivemos, nessa perspectiva, a época da vida à la carte de fabricação do homo individualis desenquadrado, supostamente liberto das imposições coletivas e comunitárias. Ser interpelado enquanto ser ativo, de cujas ações poderão resultar o seu sucesso (um vencedor ) ou o seu fracasso (um fracassado ) na contemporaneidade. [136]

143 estigmatizados vivenciam intensamente sentimentos de medo e de insegurança social, pois, como assinala Wacquant: Quando esses espaços são, ou ameaçam torna-se, componentes da paisagem urbana, os discursos de descrédito amplificam-se e aglomeram-se à sua volta, tanto vindos de baixo nas interações banais da vida cotidiana, como vindos de cima, nos domínios jornalísticos, políticos e burocrático (ou até, científico). Uma mácula localizada sobrepõe-se então aos estigmas já operantes, tradicionalmente ligados à pobreza e à pertença étnica ou ao estatuto de imigrante pós-colonial, aos quais ela não se reduz embora lhe estejam extremamente ligados (2006, p.28). Ao estigma da pobreza entremeiam-se processos de estigmatizações associados às figurações públicas negativadas do lugar de moradia dos pobres nas periferias urbanas, configuradas como locus do narcotráfico, do vício, do perigo e dos perigosos, dos bandidos, vagabundos, nas versões do senso comum, a expressar, supostamente, uma ameaça iminente e direta à ordem social estabelecida. Aqui, são as periferias das cidades brasileiras que passaram a encarnar a imagem socialmente construída de lugar indesejado e de evitação social, com efeitos perversos de estigmatização e segregação sócio territorial direcionados a pessoas e lugares. É sobre os moradores das margens urbanas, em situação de pobreza e, em especial, sobre os jovens afrodescendentes, que o estigma toma corpo e alma, sendo estes os principais alvos do Estado brasileiro em sua face penalpunitiva, especificamente, em termos da intervenção policial. Para garantir, supostamente, a ordem pública percebida como ameaçada pelos ditos inimigos e perigosos à população, que estariam concentrados nestas margens com foco nas favelas as instituições policiais e os discursos sobre a inalienável segurança pública ora restrita à segurança civil ganharam relevância no contexto brasileiro. Percebemos que nos anos Neste mister, estão em evidência o Estado e/ou parte significativa de segmentos da sociedade civil, com destaque à mídia escrita e/ou televisiva, que incorporam, acionam essas instituições, ou reproduzem tais discursos. Importa salientar que os aparelhos policiais foram originalmente constituídos no capitalismo com a função de controle social leia-se manutenção da ordem estabelecida entendida na dimensão coercitiva não só de repressão ao crime violento. Em verdade, temos uma espécie de supravalorização da ação policial no tempo presente. Primeiro, pela possibilidade dessas instituições serem fabricadas, simbolicamente, como a incorporação da salvação do caos urbano ; segundo, por [137]

144 conceberem que ação policial tem essa função de garantir ou reestabelecer a ordem pública e, portanto, define seus alvos prioritários de intervenção. Desta feita, problematizamos tanto o resguardo seletivo do direito civil à segurança focada na defesa da integridade física e da propriedade privada dos considerados cidadãos, como a formulação de alvos seletivos aos quais as ações policiais são direcionadas, ou seja, os territórios estigmatizados (WACQUANT, 2006) inscritos em nossas margens urbanas e seus moradores. Importa indagar quem define o limite entre o que deve viver e o que deve morrer? Quais vidas merecem viver e quais seriam deixadas morrer? Quem define quem merece ser protegido pelo Estado brasileiro e os alvos de sua governamentalidade? Tais indagações parecem relevantes em meio à tendência de encrudescimento das ações estatais ditas de segurança, sob a chancela de um Estado de insegurança social e de exceção em curso no Brasil. Questionamos aqui, a face penal-punitiva e historicamente autoritária do Estado neste país, lançado ao desafio de gestão territorial da vida nas margens urbanas, que tende a assumir a figuração de um racismo de Estado 5 à brasileira, neste século XXI. Estado que direciona, com prioridade seus dispositivos de biopoder e da tecnologia de biopolítica (FOUCAULT, 1999) aos residentes das periferias, em especial de territórios estigmatizados, fabricados socialmente como lugar privilegiado dos ditos suspeitos, perigosos, bandidos, vagabundos, ameaçadores em potencial da ordem social. A estes que estão fora ou considerados fora, na condição suposta de inimigos e perigosos, aplicam-se punições, regulamentações, controles. Nesta lógica, a tendência parece ser a de autorização tácita à punição, à exclusão ou, mesmo, ao extermínio de certos tipos sociais ou segmentos populacionais considerados fora da ordem política, desvalorizados socialmente, figurados como incuravelmente perdidos, a reiterar o mito das classes perigosas. E, em sentido mais contundente, postos como vidas que 5 Em nossa breve incursão no pensamento foucaultiano, indicamos uma reflexão sobre o paradoxo do biopoder e da biopolítica identificados pelo autor ao reportar-se ao racismo de Estado (FOUCAULT, 1999). O racismo moderno funciona por dentro da tecnologia do biopoder e da biopolítica. Fazer recurso ao racismo apresentava-se à lógica do biopoder como condição para autorizar a morte do outro em sociedade nas quais a vida passou a ser medida de valor supremo e, por conseguinte, de desvalor. Eis o paradoxo do biopoder! Por meio do racismo de Estado era possível estabelecer o limite entre o que deve viver e o que deve morrer; quais vidas merecem viver e quais merecem ser deixadas para morrer. Institui a máxima de que para viver e/ou defender a população era preciso exterminar os inimigos, neste caso, considerados de raça ruim, inferior, degenerado ou anormal, perigoso. O ápice do racismo de Estado configurou-se nas experiências do colonialismo e do totalitarismo reportado ao nazismo e fascismo (BEZERRA, 2015). [138]

145 não merecem ser vividas, descartáveis e matáveis, para enfocar, aqui, a versão contemporânea do homo sacer e de suas vidas nuas (zoé) enuciadas na interpretação de Agamben (2004) encarnada nas dinâmicas relacionais de nossas margens urbanas. Nessa abordagem, encontramos uma problemática que perpassa diversas cidades brasileiras: a aproximação prático-discursiva com o tráfico, o lugar das favelas na organização socioterritorial da cidade (SILVA, 2010). Não obstante, compreender esses territórios de pobreza pressupõe uma análise do funcionamento dos sistemas institucionais que articulam controle e proteção social de forma frágil e segmentada nesses espaços, do que nas demais áreas ditas nobres da cidade. O autor não considera plausível o referente: ausência do Estado, posto que a ação policial, nesses territórios, é contundente. É o Estado democrático, protetivo e garantidor de direitos que se fragiliza diante da sua versão penal-punitiva e autoritária que se fortalece, a configurar a exceção que se tornou regra nas periferias brasileiras. A violência urbana e a sociabilidade violenta estão, portanto, interligadas nesse contexto contemporâneo, sendo o uso da força física o princípio de coordenação das práticas violentas e da tendência de resolução dos conflitos pessoais e/ou sociais. Em sua análise crítica, Machado da Silva problematiza as relações estabelecidas com os residentes desses territórios, colocados como o outro da cidade, visto como estranho, desconhecido e potencialmente perigoso e ameaçador. Sobre estes recaem sentimentos de desconfiança, medo e insegurança, a balizar as tendências de isolamento e evitação sociais, sobretudo, diante de pessoas e lugares fabricados como responsáveis pela violência urbana, pelo perigo e pela insegurança modulares em nossas dinâmicas relacionais. De fato, esse outro está, simbólica e concretamente, territorializado nas margens das cidades brasileiras onde residem as populações em situação de pobreza. Sobre essa perspectiva, Misse (1999) ressalta que se reitera uma histórica articulação entre pobreza urbana, violência e as potencialidades desnormalizadoras. Essa associação perversa abre caminho para a construção social simbólica das figuras do bandido/vagabundo em oposição relacional à do cidadão/trabalhador. Dessa forma, com o objetivo de assegurar a ordem social dita sadia e controlar os suspeitos de ameaçar essa ordem, é necessário garantir que esses sujeitos vivam e permaneçam isolados e que seus territórios não se ampliem (MISSE, 1999, p. 48). Para esse autor: [139]

146 Toda demarcação resulta principalmente de uma representação de que esse agente individualizou-se excessivamente, seja por perda involuntária do auto-controle, seja por desfiliação aos grupos sociais que reproduzem os valores dominantes, seja por decisão instrumental própria ou por necessidade e que ultrapassou os limites das normas, deslizando regularmente para práticas desviantes que no limite são incrimináveis. Sempre que possível, esses agentes trarão signos corporais que comunicam uma suspeita de sua sujeição sinais de perigo social signos que contextualizam idade, gênero e cor com sinais de sua classe social, educação, descontrole moral, uso de convenções sociais, além de símbolos negativamente interpretados, como certos tipos de tatuagens, de cicatrizes, cortes de cabelo, de gestos de andar, de olhar, de conversar, de se vestir. Tipos sociais e incriminação individual se intercambiam ou se complementam em várias áreas, produzindo, com o tempo, tipos sociais de sujeição criminal historicamente fixados (1999, p. 50). Complexifica-se, assim, a perspectiva conservadora de retorno do mito das classes perigosas inscritas em territórios urbanos estigmatizados, a enfatizar a figura negativada das juventudes pobres, negras e das periferias como suspeitos em potencial e criminalizáveis a priori, passíveis de serem submetidos aos processos de sujeição criminal 6, responsabilizados pela violência urbana e traduzidos como símbolos da periculosidade contemporânea. Mas, afinal, de que juventude(s) se trata(m)? JUVENTUDE NAS E DAS MARGENS URBANAS: VÍTIMAS OU ALGOZES? Para Machado Pais (1990), o termo juventude tem assumido diferentes manifestações de sentido encontradas nos comportamentos 6 Para Misse, a sujeição criminal consiste em: (...) processos de criminalização dos sujeitos, e não de cursos de ação. (...). No limite da sujeição criminal, o sujeito é aquele que pode ser morto. (...) o conceito de sujeição criminal engloba processos de rotulação, estigmatização e tipificação numa única identidade social, especificamente ligada ao processo de incriminação (...) é o resultado, numa categoria social de indivíduos, de um processo social de constituição de subjetividades, identidades e subculturas do qual participam como fatores: 1) designações sociais que produzem uma específica exclusão criminal de agentes que recaiam na classificação social do que seja delito (...); 2) atribuições aos agentes de uma tendência a praticar crimes, isto é, de seguir um curso de ação incriminável (...); 3) autorrepresentações, no agente, ou representações nos seus familiares, ou mesmo em seus grupos de referência ou na comunidade em que vive, que ora demandam ou tentam justificar ou explicar suas práticas e escolhas individuais, ora as atribuem à sua singularidade ou concluem pela sua justificação (2010, p ). [140]

147 cotidianos dos jovens, nos modos de pensar e agir, em suas perspectivas sobre o futuro, nas suas representações e identidades sociais, compondo paradoxos analíticos importantes para a reflexão das culturas juvenis na contemporaneidade. O desafio, como indica esse autor, é perceber a juventude não apenas como um conjunto social, cujo principal atributo é o de ser constituído por indivíduos pertencentes a uma mesma fase do ciclo de vida, mas, sim, compreender as culturas juvenis que os diferenciam. Segundo enuncia Pais (2003): Na verdade, nas representações correntes da juventude, os jovens são tomados como fazendo parte de uma cultura juvenil unitária. No entanto, a questão que se coloca à sociologia da juventude é a de explorar não apenas as possíveis ou relativas similaridades entre os jovens ou grupo de jovens (em termos de situações, expectativas, aspirações, consumos culturais, por exemplo), mas também e principalmente as diferenças sociais existentes (2003, p. 29). A juventude vem sendo considerada histórica e socialmente como uma fase da vida, perpassada pela instabilidade ligada às múltiplas dimensões da vida social e que encarna uma diversidade de formas de ser jovem na civilização do capital. Pais (2003) enuncia que a concepção da juventude como problema social tem se configurado à proporção que os jovens não conseguem inserção no mundo do trabalho, quando emergem dificuldades de participação social, a questão das drogas, por vezes articulada exclusivamente a essa fase do ciclo da vida, as próprias relações geracionais e os conflitos ora estabelecidos, bem como face às dinâmicas de rebeldia vivenciadas pelos (as) jovens. Dessa forma, acrescenta: [...] a cultura juvenil requer um espaço social próprio. As carências e dificuldades em domínios como os da habitação, do emprego e da vida afetiva-sexual podem converter-se numa fonte aguda de conflitos e problemas. A emancipação dos jovens que tradicionalmente tem culminado com a constituição de um lar próprio, habitualmente precedido pela obtenção de emprego, encontra-se, nesta perspectiva, cada vez mais bloqueada. (PAIS, 2006, p.31). Na interpretação de Pais (2003), a forma como a cultura é socialmente definida afeta a própria cultura juvenil, sob o risco de fragmentar sua concepção e alerta que [...] a própria sociologia participa, por vezes, nessa construção heterônoma ao enfatizar as representações de senso comum que predominam sobre a juventude. Destaca assim, que é possível encontrar uma imagem das culturais juvenis socialmente encaradas como ameaçadoras para a sociedade e sua normatividade. Nessa perspectiva, [141]

148 compreende-se que as juventudes residentes nas margens urbanas têm construído, historicamente, culturas juvenis consideradas por vezes como, ameaçadoras. Os jovens, conforme assinala Abramo (1994), muitas vezes percebidos no senso comum como produtores de grandes crises sociais da modernidade são, muitas vezes, reconhecidos como corpos ameaçadores de normas e etiquetas sociais. Em circunstâncias de pobreza e desigualdades sociais, as associações entre juventudes e periculosidade têm sido comuns e intensificadas. Por vezes, o jovem da periferia é percebido como problema social, ou seja, aquele que precisa ser moldado, corrigido, como objeto de falha, disfunção ou anomia no processo de integração social (ABRAMO, 1994, p.29). Essa concepção toma forma na ideia moralizante de pautar a juventude como um risco à sociedade em termos de sua funcionalidade ou coesão. Não é à toa que a juventude é seguida do desencadeamento de uma espécie de pânico moral que condensa os medos e angústias relativos ao questionamento da ordem social (ABRAMO, 1994, p.29), a pôr em xeque esse conjunto articulado de normas e regras sociais a ser seguidas por todos. Os anos 1990 são importantes para compreender os processos sociais que afetaram as culturas juvenis no Brasil. Com as múltiplas fragilidades que abalaram as instituições de socialização, com a densa diferenciação entre integrados e excluídos, além de um intenso hiperindividualismo, entre outros fatores, como a perspectiva neoliberal que se constitui na vida brasileira, os jovens negros, pobres e das margens urbanas têm se constituído em principais vítimas e protagonistas dos processos de incertezas e inseguranças em curso. Conforme enuncia Abramo: Nos anos 90 as figuras juvenis mais em evidência são os jovens pobres que aparecem nas ruas, divididos entre o hedonismo e a violência: meninos de rua, jovens infratores, gangues, galeras, tribos; e, principalmente, jovens em situação de risco (risco para si próprios e para a ordem social), dos quais aqueles envolvidos no tráfico, matando e morrendo muito cedo, é uma das imagens mais dramáticas e ameaçadoras dos nossos tempos (1997, p. 33). A autora assinala ser indispensável ter uma visão crítica sobre a acentuação das dimensões de vitimização e heteronomia, diante dos processos sociais que são (des) construídos na sociedade capitalista, que advoga por manter invisível, e impensável, qualquer tipo de positividade das [142]

149 figuras juvenis das e nas margens urbanas, reforçando a concepção da juventude como um problema social. O discurso dos jovens como principais responsáveis pelo contexto de violência urbana na sociedade brasileira contemporânea emergiu, sobretudo, na construção das primeiras políticas públicas 7 destinadas ao segmento infanto-juvenil. A partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) houve a ascensão jurídico-política da perspectiva da proteção integral, e o reconhecimento de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento e sujeitos de direitos. Todavia, o estigma do menor infrator presente nas normativas anteriores, ainda perambula no imaginário social brasileiro, tendo o jovem pobre, da periferia e negro como um suspeito em potencial e criminalizável a priori, em sua versão extrema, um indesejado passível de eliminação em nome da segurança e defesa da sociedade. É nesse contexto de desigualdades sociais, raciais e de violação de direitos de jovens das e nas nossas periferias que se problematiza, em última instância, a intervenção estatal na versão penal-punitiva em curso nas margens urbanas nestes anos A GUISA DE CONCLUSÃO: APROXIMAÇÕES AO DIREITO ESTATAL DE FAZER VIVER E DEIXAR MORRER NAS MARGENS URBANAS Há um contexto de desigualdades sociais e violência urbana que afeta jovens em diversas formas, colocando-os como sujeitos de vidas em risco. Parte significativa dos jovens que são mortos diariamente na sociedade brasileira possuem algum envolvimento com o mundo do crime 8 e atravessem as fronteiras porosas do lícito-ilícito/legal-ilegal (TELLES, 2010). Importa salientar, no entanto, que a maioria desses jovens, via de regra em situação de pobreza e afrodescendentes, têm sido privados do acesso aos direitos (à educação, à saúde, à cultura, ao lazer e ao esporte), à infraestrutura urbana básica, à garantia ao trabalho protegido, ao tempo de preparação à vida adulta a moratória social e às oportunidades igualitárias à construção do futuro. Muitos sequer ousam sonhar um outro futuro possível capaz de 7 Os Códigos de Menores (1927; 1979) evidenciaram a associação entre pobreza, criminalidade e juventude, pois essas políticas demarcavam um perfil de classe social, racial e de gênero de seu público-alvo. 8 Ao usar o termo mundo do crime, segue-se a perspectiva adotada por Gabriel Feltran conforme a apreendeu em seu uso nas periferias da cidade de São Paulo: (...) o conjunto de códigos sociais, sociabilidades, relações objetivas e discursivas que se estabelecem, prioritariamente, no âmbito local, em torno dos negócios ilícitos do narcotráfico, dos roubos, assaltos e furtos (FELTRAN, 2011, p. 19). [143]

150 romper com os processos de reprodução da pobreza pluridimensional organicamente vinculados à civilização do capital. Nas margens urbanas, é o próprio direito à vida qualificada que tem sido posta em xeque para uma parcela considerável desses jovens pobres, fabricada como vida nua (zoé) desse símbolo contemporâneo do homo sacer enunciado por Agamben (2004). De fato, ao enfocarmos estudos e pesquisas sobre as juventudes brasileiras neste século XXI, nos deparamos com um contexto de violência urbana pungente. O Relatório Violência Letal Contra as Crianças e Adolescentes do Brasil (WAISELFISZ, 2015) expõe que o Brasil tem conseguido reduzir as mortes de crianças e jovens por causas naturais, mas enfrenta dificuldades para diminuir a violência urbana que atinge esse grupo. No período em que os dados foram compilados (entre 1980 e 2013), o Brasil perdeu 689,6 mil crianças e jovens para a violência urbana. Indica ainda que o homicídio é maior entre jovens de 16 e 17 anos. Em 2013, eles foram vítimas de 1 em cada 3 assassinatos de menores de idade 9. Corroboramos com a análise de Misse (1999; 2010) ao afirmar que a sociedade brasileira vivencia processos de sujeição criminal, a fabricar indivíduos sociais como suspeitos / criminalizáveis e matáveis em nome da garantia da ordem social em disputa. Eis a condição emblemática que parecem assumir esses jovens inscritos em territórios urbanos estigmatizados: alvos principais das violências advindas tanto das facções criminosas vinculadas ao narcotráfico e demais mercados ilícitos/ilegais atuantes nas periferias, como do próprio Estado brasileiro e de seus representantes legais com destaque às polícias que radicalizam a feição penal-punitiva estatal, em detrimento de sua frágil perspectiva protetiva. André Duarte (2008) recorre ao pensamento instigante de Michel Foucault para retomar os conceitos de biopoder e biopolítica 10, que 9 A violência incide, com mais intensidade, sobre os jovens do sexo masculino, vítimas de 9 em cada 10 homicídios. Consideradas as proporções populacionais, os jovens negros de 16 a 17 anos morreram três vezes mais que os brancos da mesma idade. Esses dados alarmantes sinalizam, de fato, para um extermínio seletivo das juventudes, com foco nos jovens pobres, afrodescendentes, residentes nas nossas margens urbanas e, via de regra, do sexo masculino. 10 Os conceitos foucaultianos de biopolítica e biopoder surgiram como o ponto terminal de sua genealogia dos micros-poderes disciplinares iniciada nos anos Foucault chegaria aos conceitos de biopoder e biopolítica ao vislumbrar o aparecimento, ao longo do século XVII e, sobretudo na virada do século XIX, de um poder disciplinador e normalizador que já não se exercia sobre os corpos, mas se concretava na figura do Estado e se exercia a título de política estatal que pretendia administrar a vida e o corpo da população. Foucault delineia o momento [144]

151 consideramos significativos para essa problematização sobre o direito do poder soberano de fazer viver e deixar morrer nas margens urbanas. Foucault demonstrou o deslocamento do poder soberano na virada do século XIX, passando de um poder de matar a vida de fazer morrer e deixar viver para um poder que gere a vida de fazer viver e deixar morrer assumindo a forma do biopoder e sua correspondente tecnologia de poder, a biopolítica. É interessante perceber que, a partir do momento em que a vida passou a constituir-se em elemento político por excelência, administrada, gerida, calculada, normalizada e regrada por políticas estatais, não se percebeu a diminuição da violência. Ela foi redirecionada àqueles identificados como inimigos e perigosos (internos e externos) para a vida da população 11. Diante das condições impostas pelo exercício do biopoder e da biopolítica, o incremento da vida da população não se separa da produção contínua da morte. Aqueles que, supostamente, oferecerem algum perigo ou risco biológico para a população, poderão ser, legitimamente, eliminados, sob o ponto de vista estatal. Assim, a biopolítica pode transformar-se em tanatopolítica sempre que o Estado identificar seja uma situação real ou potencial de perigo ou de riscos produzidos, seja a figura fabricada dos inimigos e perigosos à população e à ordem instituída, esses alvos preferenciais do direito soberano de deixar morrer ou de fazer morrer. Nessa perspectiva, recorremos a Agamben (2004) para pensar as imbricações entre o poder soberano e a figura correlata do homo sacer, posto que, conforme enuncia, enquanto existir o poder soberano existirá vida nua exposta ao abandono e à morte. Para esse autor, o estado de natureza existe no Estado Moderno, a permitir o estado de exceção, pois a violência soberana não é, na verdade, fundada sobre um pacto, mas sobre a inclusão exclusiva da vida nua no Estado (AGAMBEN, 2004, p. 106). O poder de produção do biopoder no qual a vida passou a sujeito-objeto do Estado de governo e da sua técnica de polícia, apontando a transformação da política em biopolítica. (DUARTE, 2010). Trata-se de um exercício do poder (biopoder) voltado à gestão da vida ou poder sobre a vida em duas formas: a anátomo-política do corpo (mecânica do poder sobre o homem-corpo_ e a biopolítica da espécie humana (mecânica do poder sobre o home-espécie ou população), para usar aqui os termos foucaultianos. Sua tecnologia de poder correspondente é a biopolítica centrada na vida da população, entrecruzando-se as normas de disciplina e da regulamentação (BEZERRA, 2011). 11 Como assinala Duarte, tal cuidado da vida de uns traz consigo de maneira necessária, a exigência contínua e crescente da morte em massa de outros, pois é apenas no contraponto da violência depuradora que se podem garantir mais e melhores meios de sobrevivência a uma dada população. (...) assim, a partir do momento em que a tarefa do soberano foi a de fazer viver, isto é, a de estimular calculadamente crescimento da vida, as guerras se tornaram mais sangrentas e os genocídios se multiplicaram (2008, p. 4). [145]

152 soberano é aquele que guarda o direito de agir soberanamente e impor a morte aos cidadãos a cada momento, definindo-os como vida nua. Para esse autor, o estado de exceção 12, no qual a vida nua (zoé), é, concomitantemente excluída da ordem jurídica e aprisionada nela, constrói a regra e o próprio fundamento escondido da organização soberana dos corpos políticos no Ocidente. Dessa forma, o soberano possui um caráter ambíguo, ele está dentro e fora do ordenamento legal. O conceito de homo sacer 13 também possui o mesmo caráter. Assume relevância pensar esse estado de exceção que se tornou regra na contemporaneidade, pois cada vez mais as linhas demarcatórias de fronteiras (físicas e/ou simbólicas) entre vida qualificada que merece ser vivida e protegida e a vida nua desqualificada, abandonada e exposta à morte tem se tornado tênue e instável, sobretudo, em nossas margens urbanas (DUARTE, 2008). Em especial, diante do extermínio de nossos jovens pobres, afrodescendentes e das periferias brasileiras, bem como das vidas precarizadas e vulneráveis de tantos outros expostos à violência urbana, às desigualdades raciais e sociais, à negação de direitos, dentre os quais, o direito à vida qualificada nessa civilização do capital em sua fase financeirizada e neoliberal. Importa problematizar mesmo, esse exercício ambíguo do poder soberano de fazer morrer que reaparece no poder de deixar morrer, fortalecido com um racismo de Estado à brasileira experienciados também neste século XXI. Esse poder consiste em provocar a morte simbólica ou real dos ditos inimigos e perigosos à população, ou seja: diz respeito não só ao 12 Segundo Agamben (2004), o estado de exceção é a medida que se apresenta como uma suspensão do direito. Essa medida tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos ditos democráticos e tende a se apresentar cada vez mais como o paradigma de governo dominante na política contemporânea, seja nas democracias ou nos regimes totalitários, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo (AGAMBEN, 2004, p. 13). Em sua gênese, o estado de exceção (ou de emergência, de sítio) foi pensado como um dispositivo legal capaz de suprimir alguns procedimentos democráticos em vista de uma ameaça externa à soberania estatal. Porém, a história do século XX mostra como o mecanismo do estado de exceção tende a tornar-se regra. 13 De acordo com Duarte, homo sacer era aquele indivíduo que poderia ser morto por qualquer um sem que tal morte constituísse um delito, bastando apenas que tal morte não fosse o resultado de um sacrifício ou de processo jurídico (...) não se pode pensar a figura do soberano sem pensar a figura correlata do homo sacer, de modo que enquanto houver poder soberano, haverá vida nua e exposta ao abandono e à morte. Soberano é aquele com respeito ao qual, todos os homens são sagrados, isto é, podem ser mortos sem que cometa homicídio ou sacrifício, ao passo em que o homo sacer, por sua vez, é aquele em relação a qualquer homem que pode se comportar como se fosse soberano, pois qualquer um pode matá-lo. (2008, p. 10). [146]

153 extermínio direto de suas vidas, mas às formas de extermínio indireto capazes de expor ou potencializar os riscos de morte real ou política, a exemplo das frágeis, focalizadas, seletivas e compensatórias políticas públicas entremeados aos direitos sociais e trabalhistas postos em xeque neste Brasil pós-impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e face à ascensão de um fascismo social (SANTOS, 2008). Implica ressaltar, em última instância, que tais processos não têm se constituído sem resistências, lutas simbólicas, com efeitos reais e estratégias distintas de enfrentamentos político-culturais desse estado de exceção no qual todo o ordenamento jurídico-político pode ser suspenso e a máxima do tudo se torna possível parece materializar-se cotidianamente. É possível apreender os processos de ressignificação e deslocamento das margens urbanas para o centro do debate público, na perspectiva do uso/(re)apropriação cotidiana e heterogênea que seus residentes fazem dos espaços urbanos, transformando-os em seus territórios vividos e pautando suas demandas legítimas (BEZERRA e CARVALHO, 2015). Torna-se basilar a máxima do onde há poder, há resistência e, desta feita, todo lugar, território, cidade pode constituir-se em espaço de resistências e lutas, com estratégias distintas de reinvenção da política e da existência. Diante desse complexo contexto, pode-se criar e materializar possibilidades de potencializar a vida para além da resistência, quiçá da luta pela ruptura com o modo de vida capitalista. Eis o desafio a enfrentar e construir neste Brasil contemporâneo. REFERÊNCIAS ABRAMO, Helena Wendel. Considerações sobre a tematização da juventude no Brasil. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, v.5, n.5, p.25-36, ago Cena juvenis. São Paulo. Scritta, AGAMBEN, G. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, BEZERRA, Leila M. P. de S; CARVALHO, Alba Maria Pinho de. Medo e insegurança nas margens urbanas: uma interpretação do viver acuado em territórios estigmatizados do grande Bom Jardim. Revista O público e o privado, Fortaleza nº 26 jul/dez BEZERRA, Leila M. P. de S. Problematizando o paradoxo do biopoder e da biopolítica: um olhar foucaultiano sobre a gestão estatal da pobreza [147]

154 urbana contemporânea. Anais da Semana de Humanidades, Universidade Federal do Ceará UFC, Fortaleza, DUARTE, André Macedo. Sobre a biopolítica: de Foucault ao século XXI. In. Revista Cinética, v.1, p. 1-16, FELTRAN, G. de F. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo: editora UNESP: CEM: CEBRAP, FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder: organização, introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, Em defesa da sociedade: curso do Collège de France ( ). São Paulo: Martins Fontes, (Coleção Tópicos). LIPOVETSKY, G; SERROY, J. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das letras, MISSE, Michel. Malandros, marginais e vagabundos & A Acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Tese de doutorado em Sociologia, IUPERJ. Rio de Janeiro, Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria bandido. Revista Lua Nova. São Paulo, n. 79, PAIS, José Machado. Culturas Juvenis. 2 ed. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da moeda, SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008 (Coleção Para um novo senso comum, v. 4). SILVA, Luiz Antônio Machado da. Polícia e violência urbana em uma cidade brasileira. Etnográfica: Revista Centro de Rede de Investigação em Antropologia, França, v. 15, n. 15, p.67-82, fev SILVA, Luiz Antônio Machado da. Violência urbana, segurança pública e favelas o caso do Rio de Janeiro atual. Caderno CDH, Salvador, v. 23, n. 59, p , mai/ago, Sociabilidade violenta: por uma interpretação da criminalidade contemporânea no Brasil urbano. Revisa Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p , jan/jun, TELLES, Vera. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte, MG: Argvmentvm, [148]

155 WACQUANT, Loïc. A estigmatização territorial na idade da marginalidade avançada. Parais Urbains, Paris: La Découverte, WAISELFSZ, Julio Jacobo. Violência letal contra as crianças e adolescentes do Brasil : IL. Relatório de pesquisa Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), Brasil, [149]

156 [150]

157 09 IMPACTOS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INFANTOJUVENIL: O QUE ESPERAR PARA O FUTURO? Maria Isabel Rocha Bezerra Sousa 1 Vanessa de Lima Marques Santiago 2 Raquel Coelho de Freitas 3 INTRODUÇÃO Conforme estabelecido na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), e na Constituição Federal de , a saúde é a resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse de terra e acesso a serviços de saúde. Sendo assim, está estritamente ligada ao que se compreende como qualidade de vida, garantindo ao ser humano desenvolvimento de forma integral e o exercício de seus direitos fundamentais (LIMA, 2006). A violência e suas consequências para a saúde são primordialmente uma violação aos direitos humanos (SANCHÉZ, 2003). Além disso, não se pode duvidar que é lugar comum no âmbito familiar, bem como nas relações interpessoais nas ruas e nas instituições. Embora seja fenômeno que atinge 1 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada. Membro do Fórum DCA. Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça (NUDIJus). Pósgraduada em Direito Administrativo. Facilitadora das práticas restaurativas. Atua, desde 2009, em atividades de promoção e investigação relacionadas com o sistema socioeducativo, a justiça e o panorama legal. negabelsousa@gmail.com. 2 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará (Ordem Jurídica Constitucional). Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça (NUDIJus). vanessasantiago.ufc@gmail.com. 3 Advogada. Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde defendeu a primeira tese sobre as ações afirmativas na educação superior. Mestre em Direito Internacional dos Direito Humanos pela Faculdade de Direito de Harvard. Coordenadora do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça (NUDIJus). rclcesar@gmail.com. 4 Art. 196, da CRFB/88. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. [151]

158 a todos, as crianças e adolescentes, por sua condição peculiar de desenvolvimento, acabam estando mais vulneráveis e, consequentemente, têm sua saúde mais afetada (LIMA, 2006). A violência praticada contra as crianças e os adolescentes não desponta como algo novo, mas acompanha a trajetória da humanidade, mesmo que variando em expressões e explicações (LIMA, 2006). O não reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos faz parte dos registros históricos. Nesse sentido, os relatos sobre a vida de crianças e adolescentes das civilizações greco-romana e hebreia já ilustram a presença desta violência. Para a criança hebreia, por exemplo, a disciplina era primordial. No império greco-romano, severidade e disciplina eram também consideradas indispensáveis no trato à criança. Em Esparta, por exemplo, fazia parte dos costumes lançar uma criança num precipício em sacrifício aos deuses caso ela nascesse franzina ou aleijada. A mitologia também contém relatos sobre a eliminação infantil: Crono, pai de Zeus, pertencia a uma geração primitiva dos deuses e dominava a todos. Sabendo que um dos filhos lhe tiraria o poder, engoliu os cinco primeiros logo após o nascimento. No nascimento do sexto, sua mulher deu-lhe uma pedra para comer em lugar do filho, tornando possível a sobrevivência de Zeus, que o destronou e se tornou o maior dos deuses gregos. Durante a Idade Média, as crianças eram privadas de direitos e trabalhavam nas glebas junto com seus pais. Com o advento da Revolução Industrial, principalmente na Inglaterra, os novos patrões preferiam empregar mulheres e crianças, devido às baixas remunerações. No Brasil, os primeiros relatos sobre os maus-tratos contra crianças datam do século XVI, com a chegada dos jesuítas. Eles introduziram os castigos e as ameaças no Brasil Colonial, sendo atribuída ao padre Luis da Grã, em 1553, a frase: sem castigo não se fará vida. Na época da escravidão, as crianças negras quando não eram obrigadas a trabalhar, serviam de brinquedo para os filhos dos senhores. Neste período, o número de filhos ilegítimos, frutos da relação entre senhores e escravas, era grande. As crianças eram deixadas nas portas das casas e, muitas vezes, comidas por ratos e porcos. Essa situação chegou a preocupar as autoridades, levando o vice-rei a propor, em 1726, duas medidas: coleta de [152]

159 esmolas na comunidade e internação de crianças. Para atender à internação de crianças ilegítimas, foi implantada a Roda 5. A superação da situação de violência se constrói a partir da superação da cultura adultocêntrica, dominadora e patriarcal da sociedade brasileira (GUERRA, 1996). Em meados dos anos 90, foi ganhando corpo um movimento de reconhecimento de cidadania das crianças e adolescentes, precipuamente na defesa da necessidade de sua proteção integral 6 e do fato de ser sujeito de direito 7. Referido movimento ganhou corpo a partir das determinações da Convenção sobre os Direitos das Crianças e dos Adolescentes de Dentre as disposições do documento estão: Artigo Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou 5 A Roda dos Expostos, mantida pelas Santas Casas de Misericórdia, foi implantada, no Brasil, no século XVIII, em virtude do aumento da prática de abandono de crianças (ilegítimas e filhas de escravos, principalmente) nas portas das igrejas, conventos, residências e, até, nas ruas (AMIN, 2017). A roda consistia em um mecanismo construído de forma que aquele que expunha a criança não fosse visto por aquele que a recebia. 6 Em um breve conceito, a doutrina da Proteção Integral oferece direitos e garantias a todas as crianças e jovens brasileiros independentemente de sua condição social ou situação familiar. Já a proteção de forma integral pode ser entendida como [...] dar atenção diferenciada à criança, rompendo com a igualdade puramente formal para estabelecer um sistema normativo que se incline na busca pela igualdade material, por meio de um tratamento desigual, privilegiado, à criança, assegurando-lhes a satisfação de suas necessidades básicas, tendo em vista sua especial condição de pessoa em desenvolvimento (SOUZA, 2001). Assim, conclui-se que a doutrina protecionista não ofereceu à família, à sociedade e ao Estado apenas o dever de zelar pela infância e juventude de maneira integrada, ela inseriu na Lei Maior e no Estatuto três inovações que encerram com o pensamento social / familiar tradicional (MACHADO, 2003): a) o surgimento da criança e do adolescente como sujeitos de direito e não propriedade de seus pais; b) a aceitação de que são pessoas em desenvolvimento e c) o surgimento de uma política de atendimento participativa. 7 O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, junto à Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e à Convenção Sobre os Direitos da Criança, 1989, compõe um valioso instrumental jurídico para a proteção da criança e do jovem, possibilitando que venha a existir a diminuição das mazelas que afligem essa vulnerável parcela da população. Dentre as principais mudanças promovidas por essa legislação está a de que as crianças e adolescentes passam a ser reconhecidos como sujeitos de direito, em especial condição de desenvolvimento, aos quais as políticas públicas devem ser destinadas com prioridade absoluta. 8 No Brasil, a Convenção foi promulgada sob a forma do Decreto nº , de 21 de novembro de Disponível em: Acesso em: 23 out [153]

160 exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela. 2. Essas medidas de proteção deveriam incluir, conforme apropriado, procedimentos eficazes para a elaboração de programas sociais capazes de proporcionar uma assistência adequada à criança e às pessoas encarregadas de seu cuidado, bem como para outras formas de prevenção, para a identificação, notificação, transferência a uma instituição, investigação, tratamento e acompanhamento posterior dos casos acima mencionados de maus tratos à criança e, conforme o caso, para a intervenção judiciária. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, trouxe dispositivo que assegura a necessidade de que seja dada à criança e ao adolescente prioridade absoluta, sendo dever da família, da sociedade e do Estado mantê-lo salvo de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão 9. 9 Art É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: I - aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde na assistência materno-infantil; II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação. 2º - A lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no art. 7º, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola; IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins. 4º - A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do [154]

161 E como forma de efetivação do disposto na Carta Constitucional, a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente, que dentre outras disposições, determina: Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Desse modo, a legislação nacional e internacional tem determinado que seja dada a devida proteção à criança e ao adolescente para que os mesmos sejam mantidos a salvo de qualquer tipo de violência. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INFANTO JUVENIL: O QUE ESPERAR PARA O FUTURO? No Brasil, a violência contra crianças e adolescentes tem facetas diversas. Dentre as suas principais manifestações estão: estrutural e intrafamiliar (LIMA, 2006). A violência estrutural é: Aquela que incide sobre a condição de vida das crianças e adolescentes, a partir de decisões histórico-econômicas e sociais, tornando vulneráveis suas condições de crescimento e desenvolvimento. Por ter um caráter de perenidade e se apresentar sem a intervenção imediata dos indivíduos, essa forma de violência aparece naturalizada, como se não houvesse nela a intervenção dos que detêm o poder e a riqueza (LIMA, 2006). A violência intrafamiliar, por sua vez, é a que ocorre no interior do lar, considerando-a, os especialistas, como forma de comunicação e de relação interpessoal. Quando numa casa se observam maus-tratos e abusos contra algum de seus moradores, é quase certo de que todos acabam sofrendo agressões, embora com diferenciações hierárquicas. Estudos têm adolescente. 5º - A adoção será assistida pelo Poder Público, na forma da lei, que estabelecerá casos e condições de sua efetivação por parte de estrangeiros. 6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 7º - No atendimento dos direitos da criança e do adolescente levar-se- á em consideração o disposto no art º A lei estabelecerá: I - o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens; II - o plano nacional de juventude, de duração decenal, visando à articulação das várias esferas do poder público para a execução de políticas públicas. [155]

162 mostrado que as crianças são as maiores vítimas, pois a raiva, os ressentimentos, as impaciências e as emoções negativas dos outros membros as atingem como se elas fossem uma válvula de escape. Por isso, alguns autores falam que a violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes costuma ser funcional, provocando uma espécie de homeostase. Sua fragilidade física e de personalidade as tornam alvos fáceis do poder dos adultos (LIMA, 2006). Os estudos apontam que as principais causas de morte de crianças e adolescentes brasileiros entre 5 e 19 anos de idade são acidentes e violência. Assim: Nas principais cidades do País, de cada dez crianças ou adolescentes que morrem, cerca de sete perdem a vida por alguma causa violenta ou por acidente. Entre crianças brasileiras com menos de 1 ano, a violência fatal não apresenta grandes diferenciações por sexo, embora morram mais meninas que meninos nesse período de vida. Entretanto, já nos primeiros anos, são as crianças e jovens do sexo masculino as maiores vítimas da violência. No Brasil, em 2000, foram 84,1% de óbitos masculinos versus 15,9% de mortes femininas na faixa de 0 a 19 anos de idade. A sobremortalidade masculina por causas externas nessa população foi de 3,6:1. Em algumas das capitais, como Rio Branco, Palmas e Macapá, essa relação foi de cerca de 4:1 mortes de homens para cada óbito feminino, respectivamente (LIMA, 2006). No Brasil, as reduções na taxa de mortalidade infantil entre 1998 e 2008 significam que foi possível preservar a vida de mais de 26 mil crianças. No entanto, no mesmo período, 81 mil adolescentes brasileiros, entre 15 e 19 anos de idade, foram assassinados e mais de 70 milhões de adolescentes em idade de frequentar os anos finais do ensino fundamental estão fora da escola (UNICEF, 2011). [156]

163 Essa iniciativa está relacionada às alterações trazidas pelas taxas de homicídio: até 1999 eram mais elevadas nas capitais e grandes metrópoles, a partir dessa data houve intenso crescimento no interior do Brasil (WAISELFISZ, 2010). Em uma tentativa de iniciar o combate à referida realidade, muitos municípios passaram a desenvolver políticas voltadas para a diminuição da violência urbana. No âmbito interno, duas iniciativas merecem destaque na prevenção de homicídios: o Programa de Redução de Homicídios de Diadema 1, e o Programa de Controle de Homicídios Fica Vivo, em Minas Gerais 2. O que se percebe é que o papel dos municípios no 1 Houve queda significativa no índice de homicídios da cidade do ABC paulista a partir do mapeamento da criminalidade, que começou a ser detalhada no município em A ação se deu depois de uma articulação da prefeitura local com o governo do Estado, empresas, associações comunitárias e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O ano mais crítico da violência em Diadema se deu em 1999, quando 374 pessoas foram mortas, superando o índice de 100 mortes por 100 mil habitantes, o maior do País na ocasião. À época, o município tinha pouco mais de 363 mil moradores. Para se ter uma idéia da redução no número de mortes, em 2008 foram 83 homicídios e no ano anterior, 80. Os números mostram uma redução de cerca de 78% desse tipo de crime em menos de uma década. O primeiro trimestre deste ano registrou o menor número de homicídios da década: 13. Em 2001, no mesmo período, foram registradas 71 mortes. A base da ação contou com atuação em política de segurança pública ligada a subpolíticas sociais. No mapeamento, por exemplo, percebeu-se que grande parte dos homicídios acontecia próximo à residência na vítima, depois que esta havia passado por um bar das proximidades. A partir daí, uma das medidas de maior impacto foi a criação da lei municipal que obrigou os bares a fechar entre as 23h e 6h da manhã do dia seguinte, em julho de Já no mês seguinte foi registrada uma queda de 90% nos casos de agressões às mulheres. E o número de homicídios prosseguiu caindo. O mapeamento também apontou alto índice envolvimento de adolescentes na criminalidade. Programas de combate à evasão escolar e atividades culturais e esportivas no contraturno dos estudantes ajudaram a minimizar o problema. Como incentivo, cada aluno entre 13 e 17 anos recebe uma bolsa equivalente a R$ 100. No fim do período, os alunos são encaminhados para estágios em empresas. A capacitação de 80 pessoas para a mediação de pequenos conflitos, ocorridos normalmente entre vizinhos, também tem contribuído para diminuir as desavenças na cidade. A ideia foi importada de Bogotá, na Colômbia, que também passa por um processo de redução nos números de violência. O conceito introduz nas comunidades a figura do mediador. Os mediadores são acionados quando é constatado algum tipo de problema, registrado na delegacia do bairro ou mesmo denunciado por algum vizinho. O videomonitoramento das ruas com maior índice de violência também foi implantado. Disponível em: Acesso em: 18 out O Programa Fica Vivo tem por objetivo controlar e prevenir a ocorrência de homicídios dolosos em áreas com altos índices de criminalidade violenta em Minas Gerais, melhorando a qualidade de vida da população. Criado em 2003, é executado pela Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade (Cpec) por meio dos Centros de Prevenção à Criminalidade (CPCs), sedes de referência para as comunidades atendidas. O programa faz acompanhamento especializado e oferece cerca de 600 oficinas voltadas para o esporte, a arte e a cultura para jovens de 12 a 24 anos em situação de risco social. Desde sua criação, o Fica Vivo realizou, em [157]

164 combate à violência letal é primordial, precipuamente, por ter esse tipo de violência origens distintas, que exigem, em contrapartida, soluções bem específicas (PRLV, 2012). Segundo estimativa do Índice de Homicídios na Adolescência (IHA 2008, 2011), cerca de adolescentes poderão ser vítimas de homicídio no período de 2009 a 2015, no Brasil. Este dado é consequência da perspectiva da estatística a época em nosso país. Entre as idades de 12 a 18 anos, 45% das mortes são provocadas por homicídios. Porém, para a população em geral, o homicídio representa somente 5,1%. Os adolescentes têm um risco 5,6 vezes maior de serem mortos por meio de arma de fogo do que por qualquer outro (WAISELFISZ, 2012). E mais: De acordo com o Índice de Homicídios na Adolescência de , as armas de fogo constituem o principal instrumento usado na morte de adolescentes, uma vez que a probabilidade de que o homicídio seja cometido por meio deste instrumento é seis vezes superior à de todos os outros meios juntos (IHA, ). Os dados se explicam, em parte, pela permissividade com as armas de fogo, já que há enorme circulação e interesse comercial (WAISELFISZ, 2012). Além disso, predomina nos países da América Latina, uma cultura de violência representada pela não valorização da vida e pelo consequente pequeno valor a ela atribuído (WAISELFISZ, 2012). Ainda em números, as mortes por arma de fogo representam, no Brasil, 70% do total (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2013). O país tem, aproximadamente, por ano, homicídios ocasionados por arma de fogo. E, ainda, conforme a mesma pesquisa seriam armas ilegais, somando esse contingente ao quantitativo de armas legais seriam em circulação no território nacional. Dados reveladores das cautelas que devem ser tomadas para que se evite um uso inadequado do poder de fogo em circulação. Diante deste cenário questiona-se acerca da efetividade da atuação policial no controle do uso ilegal de armas (VIVA COMUNIDADE, 2010). A Convenção Interamericana Contra a Fabricação e o Tráfico Ilícitos de Armas de Fogo, Munições, Explosivos e Outros Materiais Correlatos 3 média, 13 mil atendimentos por ano, reduzindo em 50% os índices de homicídio nas regiões que abrange. Disponível em: Acesso em: 18 out O Decreto nº 3.229, de 29 de outubro de 1999, promulga a Convenção Interamericana contra a fabricação e o tráfico ilícitos de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais [158]

165 aponta a necessidade de uma articulação continental para a evitar o acesso ilegal às armas. No contexto brasileiro, com a promulgação da Lei nº em , que instituiu o SINARM, o papel dos órgãos da segurança pública foi melhor delineado acerca do tema. Todavia, como demonstram os dados, os níveis de violência letal continuam a ser exorbitantes. A ideia de Segurança Pública como devendo ser implementada de forma exclusiva pela polícia, expressão de uma compreensão reativorepressiva, vai aos poucos sendo alterada, ganhando espaço noções que unem a ideia de segurança à de cidadania ou de gestão integrada da ordem pública, como exemplo (PRLV, 2012). E nesse ínterim, os municípios ganham importância no combate à insegurança, seja porque é o local onde a mesma é vivenciada, seja porque possui previsão de recursos para combatêla: Esta nova visão remete à necessidade de intervenção sobre o ambiente econômico, social, cultural e territorial gerador ou alimentador da criminalidade, assim como à convergência de objetivos entre políticas de segurança e políticas de promoção da cidadania. Os novos conceitos ressaltam o caráter local das experiências, percepções e demandas referentes à Segurança Pública, direcionando o foco das políticas não apenas para os problemas gerais dos municípios, como também para o conjunto de questões específicas de cada comunidade. No plano internacional, algumas iniciativas ganham destaque, a exemplo das políticas municipais de prevenção da violência que ocorrem na Colômbia 5. Todavia, há um número reduzido de políticas que tenham foco na redução da violência letal e na redução de homicídio de adolescentes. correlatos, concluída em Washington, em 14 de novembro de Disponível em: Acesso em: 22 out A Lei nº , de 22 de dezembro de 2003, dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas SINARM, define crimes e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 22 out Embora a taxa de homicídios siga sendo alta na maioria dos países, nos últimos três ou quatro anos esta se estabilizou e, inclusive, diminuiu em alguns países da região. Entre 2005 e 2011, dentre os países que apresentavam taxas de homicídio maior do que 10 para cada habitantes, temos que as reduções mais notáveis em suas taxas de homicídios encontram-se naqueles que passaram por conflitos armados ou crises severas de segurança. A Colômbia reduziu sua taxa de homicídios quase à metade em 10 anos. Recentemente, as taxas de homicídio da Guatemala (desde 2009) e de El Salvador (desde março de 2012) registram reduções substanciais. A Costa Rica, um país com baixa taxa de homicídios, alcançou uma diminuição de cerca de 15% entre 2011 e Ainda é cedo para concluir se tal tendência se manterá. No [159]

166 Conforme dados do Relatório Regional de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2013), os índices de homicídio na região da América Latina e do Caribe aumentaram cerca de 11% entre os anos de 2000 e Cerca de um milhão de pessoas morreram vítimas da violência criminal. E a realidade apresenta ainda grande déficit no que diz respeito à justiça e à segurança, o que reflete, sobremaneira, na defesa de políticas que indicam como única solução a intensificação da atuação policial. Cinco em cada dez latino-americanos indicam que houve aumento da insegurança: 65% deixaram de sair à noite devido à insegurança, e 13% relataram ter sentido a necessidade de mudar de residência por temer ser vítima de um crime (LAPOP-PNUD, 2012). Tomando como base a população total da América Latina, esses 13% representam aproximadamente 74.8 milhões de pessoas, o equivalente a todos os habitantes da Argentina, do Peru e do Uruguai juntos (PNUD, 2013). Ainda, em 11 dos 18 países analisados no Relatório Regional de Desenvolvimento Humano , registrou-se uma taxa de homicídio superior a 10 para cada habitantes, número que é considerado epidêmico pela Organização Mundial de Saúde (OMS) (PNUD, 2013). Entre os jovens a situação se agrava: a taxa de homicídios é de cerca de 70 para cada habitantes, preponderantemente do sexo masculino (PNUD, 2013). Quanto ao uso de armas de fogo, o Relatório sobre Segurança Cidadão de 2012 da OEA aponta que 78% dos homicídios na América Latina e 83% na América do Sul são cometidos por arma de fogo (OEA, 2012). CONCLUSÃO A partir do exposto, podemos concluir que apesar dos números negativos relativos à violência letal contra crianças e adolescentes, é possível que referida realidade seja alterada. Para tanto, faz-se necessário uma ação política conjunta que busque, em um primeiro momento, conhecer o contexto em que ocorre a violência letal, quais os principais atingidos e porque são mortos, para que se desenvolva uma eficiente política de prevenção. Esse diagnóstico é imprescindível tendo em consideração, entanto, esses dados demonstram que o aumento dos homicídios pode ser revertido (PNUD, 2013). [160]

167 sobretudo, que a violência letal se relaciona a uma série de processos e dinâmicas distintos. Nesse processo de combate à violência letal, é de fundamental importância a intensificação do controle de uso de armas, tendo em vista que é o principal instrumento usado na morte de adolescentes. Nesse sentido, salutar a iniciativa legislativa internacional e nacional com intuito de coibir o uso ilegal de armas de fogo. Ainda, temos que é fundamental a compreensão de que a violência letal é fenômeno que ultrapassa o limite da individualidade dos casos, devendo ser concebida como um fenômeno complexo que desafia todos os atores institucionais, sobremaneira o sistema de justiça. Do ponto de vista socioeconômico, os pobres estão mais vulneráveis à violência letal. Tal fato desperta para a necessidade de implementação de políticas de combate à violência que incluam acesso à habitação de qualidade, ensino público e gratuito, cursos profissionalizantes, saúde, bem como estratégias para geração de renda que tenham relação com a economia solidária. REFERÊNCIAS AMIN, Andréa Rodrigues. Evolução histórica do Direito da Criança e do Adolescente. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente: aspectos teóricos e práticos. 10 ed. São Paulo: Saraiva, p ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Coordenação Geral: Renato Sérgio de Lima; Samira Bueno. São Paulo, BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, atualizada até a Emenda Constitucional nº 83, de 05 de agosto de Disponível em: Acesso em: 24 ago BRASIL. Decreto nº 3.229, de 29 de outubro de Promulga a Convenção Interamericana contra a fabricação e o tráfico ilícitos de armas de fogo, munições, explosivos e outros materiais correlatos, concluída em Washington, em 14 de novembro de Disponível em: Acesso em: 22 out [161]

168 BRASIL. Decreto nº , de 21 de novembro de Promulga a Convenção sobre os direitos das crianças. Disponível em: Acesso em: 23 out BRASIL. Homicídios na adolescência no Brasil: IHA 2008 / organizadores: Doriam Luis Borges de Melo, Ignácio Cano. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 24 ago BRASIL. Lei nº , de 22 de dezembro de Dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas SINARM, define crimes e dá outras providências. Disponível em: Acesso em: 22 out GUERRA, V. N. A. Violência física doméstica contra crianças e adolescentes e a imprensa: do silêncio à comunicação. Tese (Doutorado em Serviço Social) Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, LIMA, Cláudia Araújo (coord.). Violência faz mal à saúde. Brasília: Ministério da Saúde, p.: il. color. (Série B. Textos Básicos de Saúde). Disponível em: Acesso em: 22 out MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos. São Paulo: Manole, MAGALHÃES, Vagner. Diadema exporta modelo para redução de violência Disponível em: Acesso em: 18 out OEA (Organização dos Estados Americanos). Relatório sobre Segurança Cidadã [162]

169 PNUD. Relatório Regional de Desenvolvimento Humano Segurança Cidadã com rosto humano: diagnósticos e propostas para a América Latina. 1 UM Plaza, New York, NY 10017, USA, PPCAAM. Guia de Procedimento PPCAAM Disponível em: Acesso em: 02 nov PRLV (Programa de Redução da Violência Letal). Guia municipal de prevenção da violência letal contra adolescentes e jovens. Rio de Janeiro: Observatório das Favelas, PROGRAMA DE CONTROLE DE HOMICÍDIOS FICA VIVO. Disponível em: &id=283&itemid=117. Acesso em: 18 out PROGRAMA DE REDUÇÃO DA VIOLÊNCIA LETAL. Homicídios na Adolescência no Brasil: IHA 2005/2007. Brasília: UNICEF/ Secretaria de Direitos Humanos/ Observatório de Favelas/ Laboratório de Análise da Violência, SANCHEZ, R. N. O enfrentamento da violência no campo dos direitos de crianças e adolescentes. In: Pacto pela paz: uma construção possível. São Paulo: Fundação Petrópolis, SOUZA, Sérgio Augusto Guedes Pereira de. Os direitos da criança e os direitos humanos. Porto Alegre: Fabris, UNICEF. Situação Mundial da Infância Adolescência: uma fase de oportunidades. Disponível em: Acesso em: 18 out VIVA COMUNIDADE. Relatório sobre os rastreamentos de amas de fogo apreendidas nos estados brasileiros, Rio de Janeiro: 2010 WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da Violência 2010: Anatomia dos homicídios no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, Mapa da Violência 2012: A cor dos Homicídios no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, [163]

170 [164]

171 10 A IMPOLIDEZ COMO PRINCÍPIO CONSTITUTIVO DOS JOGOS DE LINGUAGEM: O SENTIDO PARCIAL E VIOLENTAMENTE COMPARTILHADO Marcos Roberto dos Santos Amaral1 INTRODUÇÃO Notadamente, os estudos críticos da linguagem constituem-se atravessados por no mínimo, três grandes viradas, a saber: a virada linguística na filosofia (WITTGENSTEIN, 1989; AUSTIN, 1990), a virada política na pragmática (RAJGOPALAN, 2010) e a virada prática nos estudos sociais (LEEZEMBERG, 2014). Todas estas viradas fundam-se enquanto perspectiva de análise da linguagem que reflete sobre práticas discursivas compreendidas sempre contextualizadas político-ideologicamente. Em outras palavras, as viradas nos estudos da linguagem reconheceram o caráter constitutivo do contexto situado das relações de sentido. Esta perspectiva redefiniu os fundamentos ontológicos e epistemológicos da linguística aplicada e os estudos críticos da linguagem. É certo, pois, que a virada linguística na filosofia rompe com o paradigma de que a linguagem é representação do mundo, tratando-a como forma de atuação sobre o real, e portanto de constituição do real (MARCONDES, 2010, p. 10); já a virada política na pragmática, busca, na transição de um componente da linguística para uma perspectiva de/sobre linguística (...), repensar o papel da sociedade ao moldar e manter a linguagem (RAJAGOPALN, 2010, p. 40-1); por fim, a virada prática, em inserir os estudos da linguagem, na chamada teoria da prática (LEEZENBERG, 2014, p. 45) expõe as limitações da suposição acrítica da agência autônoma e racional (...) e questiona a validade universal da frequentemente assumida visão de linguagem como contrato social (idem, p 64). Assim, alguns princípios 1 Professor licenciado para estudo da rede estadual do Ceará de ensino básico SEDUC-CE. Mestrando do Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará PosLA/UECE. Bolsista da fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e tecnológico. [165]

172 tradicionais tomados como inquestionáveis vão sendo postos à prova, o que ocorre, por exemplo, com o princípio da cooperação da linguagem de Grice. Neste artigo, justamente, defenderemos que o princípio da cooperação não é o único constitutivo, nas práticas discursivas dos diversos jogos de linguagem (WITTGENSTEIN, 1989), dos sentidos socialmente relevantes e talvez mesmo nem seja o mais produtivo. Para tal, tomaremos como objeto analítico um post do blog NÃO ME KHALO que responde a uma provocação de um comentador, que polemiza o silêncio do blog diante de uma dita ofensa contra as mulheres, feita por Lula, adjetivando as mulheres de seu partido com o determinante grelo duro. Fundamentamonos em Leezenberg (2014), com sua sugestão de impolidez constitutiva do discurso e não anômala deste; em Rajagopalan (2010, 2014), por propor o caráter político dos estudos da linguagem; em Silva, Alencar e Martins Ferreira (2014), pensando em sua síntese do princípio da cooperação do pensador Grice; além de Bloomaert (2014) e Rajagopalan (2014), a respeito da questão do poder e ideologia na linguagem. Embasar-nos-emos, ainda, em Bakhtin/Voloshinov (2014), quando trata das lutas ideológicas no discurso e Alencar (2014) e Gonçalves (2014) com seus desdobramentos da institucionalidade da autoridade dos atos de fala. Iniciaremos nossa análise comentando o princípio da cooperação segundo as máximas conversacionais postuladas pelo filosofo da linguagem Grice. Então, elucidaremos o problema da ideologia dos conceitos linguísticos, ao passo que explanaremos sobre as considerações de Leezenberg (2014) sobre a impolidez na linguagem. Em seguida, faremos uma crítica da ideologia e modelo de sociedade subjacente no princípio referido. Logo, passaremos a refletir sobre nosso objeto, a partir de cuja leitura, concluiremos sobre a impolidez como também constitutiva do discurso na determinação do sentido, por estar, intrinsecamente, inserido em cadeias ideológicas tensas e violentas. Por fim, enfatizaremos a importância política desta perspectiva. O PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO E A IMPOLIDEZ E SUAS CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS Silva, Alencar e Ferreira (2014, p. 21) apresentam assim as máximas conversacionais de Grice: 1. seja tão informativo quanto for requerido (máxima da quantidade); 2. seja verdadeiro (máxima da qualidade); 3. seja relevante (máxima da relação); 4. seja claro, breve, ordenado, não ambíguo e não obscuro (máxima do modo). [166]

173 A guisa de arremate dessas máximas, Grice observa que se deve fazer uma contribuição conversacional tal como é requerida, no momento em que ocorre, pelo propósito aceito ou direção da troca conversacional em que você está envolvido (GRICE, 1989, p. 26, apud SILVA, ALENCAR e MARTINS FERREIRA, 2014, p. 21-2). Nestes termos, o filósofo postula o princípio da cooperação. Segundo Leezenberg (2014, p. 48), pode-se apontar que o problema deste princípio e das máximas conversacionais está no fato de se desconsiderar que as práticas públicas estão atravessadas por cooperação e conflito, negociação e contestação, bem como relações de poder que podem (ou não) ser percebidas como legítimas. Isto é: as relações de sentido neste modelo são tomadas como um produto racional e polido, sendo assim, todas as particularidades de antagonismo e tensão específicas das práticas sociais são postas para fora dos interesses e métodos de análise. A linguagem é significada como neutra e ingênua. Consequentemente, tal entendimento implica uma visão de mundo, senão também neutra e ingênua, entendida como se o mundo o fosse. Porquanto, nessas explicações linguísticas e nas suas construções metalinguísticas são negligenciadas as tortuosidades da vida, como se as atividades humanas não fossem regidas pelo capricho, pela temeridade, pelo oportunismo (RAJAGOPALAN, 2014, p. 12), o que pode esvaziar o comprometimento ético-político do linguista. A fim de demonstrar que o conflito e a impolidez são constitutivos da prática discursiva, Leezenberg (2014) elucida a respeito da possibilidade da interação linguística dar-se não na aceitação para a conversação, mas na sua negação. No caso, faz uma análise de diversas passagens de tragédias clássicas sofocleanas cuja encenação ocorre quando a conversação é negada ou decorre de tratos impolidos, em outras palavras: é não cooperada. O autor exemplifica-o apontando que protagonistas clássicos repetidamente recusam-se a participar da conversação e, quando o fazem, frequentemente, disputam a sinceridade, o respeito e, até mesmo, o bom senso do parceiro da conversação (LEEZENBERG, 2014, p. 56). Indica que em enunciados trágicos há formas de falar específicas, socialmente constituídas e diferenciadas pelas relações de poder, que sempre podem ser negociadas e desafiadas (idem, p. 57). Além de que, na perspectiva trágica, a linguagem é vista não como um contrato que regula o mundo, mas sim como uma arma para transformá-lo (ibidem, p. 61). Todos os exemplos ratificam a eficácia social e o caráter possivelmente conflitivo da linguagem (ibidem, p. 63). [167]

174 Com efeito, conforme Leezenberg (ibidem, p. 50), o princípio da cooperação necessariamente não corrobora que todos os falantes em seu discurso são sempre cooperativos, mas sim que eles interpretam os enunciados uns dos outros como sendo cooperativos, o que dá no mesmo. Politicamente, as consequências são desastrosas, pois esse princípio meramente captura um modo alegadamente neutro ou normal de fala (ibidem). Defender uma visão de mundo neutra sobre o discurso compromete eticamente o posicionamento político dos estudiosos da linguagem em meio às demandas transformadoras das relações sociais, que atuam no sentido de impedir, ou pelo menos atenuar, que se reproduzam estruturas assimétricas de poder. É certo que o princípio da cooperação de Grice, nos termos de Silva, Alencar e Martins Ferreira (2014, p. 23), é produto da ideologia linguística liberal, segundo a qual o foco da ação é a intenção individual de atores discretos, não as relações sociais das quais essas ações emergem e nas quais, retroativamente, ingressam (keane, 2009, p. 55) e a implicação disso é que: Uma vez que alguém adere impensadamente a esse suposto modelo universal de comunicação pragmática, está comprando, acriticamente, todo um conjunto de suposições não apenas sobre os papéis da ação social e dos falantes na determinação do significado, mas também e, principalmente, sobre sua vocação social e humana. (SILVA, ALENCAR e MARTINS FERREIRA, idem). A vocação social e humana, acreditamos poder ser assim postulada: devemos dentro do possível posicionarmo-nos contra as relações de poder assimétricas e as formas de reprodução de hierarquias marginalizadoras e formas de violência social, ou seja, é para a transformação social. No caso dos estudos críticos da linguagem, em especial da nova pragmática (RAJAGOPALAN, 2010), devemos fazer frente contra as visões de mundo naturalizadoras de conflitos sociais, engendradas na e pela linguagem através de sua metalinguagem específica, e contra discursos e metadiscursos neutralizadores das formas antagônicas constituintes das práticas sociais. Esta postura é uma forma de afirmação de posições contra hegemônicas, através da crítica de encenações discursivas conservadoras, já que, nelas, a disputa pelo poder é constitutiva dos sentidos estabelecidos discursivamente. Note-se que: O poder, no entanto, em comunicação e em outras dimensões da vida social, não precisa ser legitimado, mas deve ser contestado e disputado. O poder não é necessariamente uma força puramente negativa, que distorce a comunicação genuína (i.e., cooperativa e [168]

175 igualitária). O poder, de fato, pode ser produtor de significados (cf.leezenberg, 2002) (LEEZENBERG, 2014, p.49). Conforme Bloomaert (2014), o poder exclui e inclui, produz prestígio e estigma, constrói e destrói (2014, p. 67). Destarte, os estudos linguísticos, sejam em suas formas aplicadas e pragmáticas ou em outras podem reconhecer que cada conclusão, formulação, apreciação linguística e asseveramento metadiscursivo encerram uma ideologia linguística particular, em cujas crenças, de acordo com Bloomaert (idem, p. 68), ideias, visões e percepções sobre linguagem e comunicação são erigidas, juntamente com significados que serão desempenhados concretamente e regimentarão retroativamente práticas sociais estabilizadoras e conformadoras, pois: As pessoas produzem semiose (comportamento simbólico significativo) como performance e o fazem dentro de um campo regimentado no qual as ideologias linguísticas produzem estabilidade e capacidade de reconhecimento. (...) Elas [as ideologias linguísticas] são práticas (BLOOMAERT, 2014, p. 69). Assim, a relação entre forma linguística e estrutura social é mediada por ideologias linguísticas (idem, p. 75), de sorte que, por meio de sua análise, pode-se detectar por quais caminhos a linguagem e as práticas sociais estabelecem sua inter constituição. Por isso que toda prática metapragmática molda o contexto no qual ela se contextualiza (idem, p. 76). Consequentemente, antes de se fazer qualquer defesa de uma posição linguística deve-se fazer a crítica sobre qual perspectiva de mundo se está orientando nela e, mais, sob qual mundo se pode constituir tal perspectiva de análise. Portanto, neste artigo, ao propormos a problematização de que o princípio da cooperação não é totalmente fundante dos jogos de linguagem, questionando então se não seja mesmo a impolidez mais produtiva, estamos problematizando do mesmo modo a ideologia linguística liberal que lhe subjaz. Nesta tarefa, buscaremos, portanto, não perder de horizonte as especificidades tensas das relações discursivas em que diversos antagonismos emergem e instituem performances, pois, sem o conhecimento das quais, não nos poderemos voltar contra o abuso, a marginalização e a violência que constituem as práticas discursivas. Leezenberg (2014, p. 50) critica o princípio da cooperação fundamentalmente porque esse princípio não é, de maneira nenhuma, universalmente presente na comunicação como frequentemente é assumido e porque negligencia a prática social, uma vez que: [169]

176 Uma abordagem orientada para a prática, nestes termos, não apenas iria incorporar formas esperadas de comportamento que não são completamente determinadas pela consciência, pela intenção ou pelo cálculo estratégico, mas também possibilitaria mais espaço para analisarmos o conflito tão presente na comunicação. Mais importante ainda, essa abordagem ofereceria uma explicação das relações de poder na ação social, apontando, assim, para uma alternativa metodológica à imagem quase onipresente da comunicação linguística como uma troca totalmente cooperativa entre agentes racionais e autônomos (LEEZENBERG, 2014, p. 54). A sugestão de Leezenberg (2014, p. 52) de uma abordagem orientada pela prática é informada pela noção de hábitus linguístico, que, acordando com Bourdieu, consiste em um conjunto de disposições internalizadas, semiconscientes e semi-intencionais que fazem com que os sujeitos se comportem de certas maneiras e não de outras. O autor evidencia a importância da virada prática dos estudos das ciências sociais para os estudos da linguagem no sentido da sua revisão de grandes problemas como da agência e estrutura das práticas sociais. Sobre os quais, o autor lança mão de dois argumentos: 1. Na teoria linguística, assim como nas ciências sociais, há espaço para uma noção de prática que não é logicamente posterior ou metodologicamente secundária à estrutura ou à agência, mas que, ao contrário, é constitutiva de ambas; 2. Além disso, as práticas linguísticas não precisam ser, pelo menos não completamente, cooperativas. (ibidem, p.45) A dicotomia estrutura e agência, inclusive, é chamada para estabelecer os limites tradicionais entre semântica e pragmática, cabendo, em geral, à primeira as preocupações com aquela e à pragmática com a outra. Tal divisão e conceituação pauta-se em três procedimentos metodológicos segundo Leezenberg (2014, p. 46): 1. Individualismo metodológico; 2. Uma oposição quase estruturalista entre o comportamento individual da linguagem e o sistema da língua; 3. Uma visão consensual da comunicação. Esta metodologia resolve-se por desconsiderar justamente as particularidades complexas da prática social, a qual não pode ser vista redutoramente como neutra e pacífica. Em decorrência disso, os enunciados não cooperativos são tratados como meros desvios de determinada norma (idem, p. 57). Esse tipo de posicionamento endossa visões de mundo ingênuas e, por isso mesmo, conservadoras, nas quais o conflito de poder sequer é tomado como constitutivo das práticas discursivas, quando não é totalmente negligenciado, do que, como corolário, temos uma análise acrítica e descompromissada socialmente, uma vez que o objeto linguístico passa a [170]

177 ser idealizado e abstraído do uso concreto, o que não dá espaço para qualquer consideração ética ou política (RAJAGOPALAN, 2014, p. 108). A língua, portanto, torna-se meramente um artefato (BLOOMAERT, 2014, p. 71; SILVA, ALENCAR e MARTINS FERREIRA, 2014, p. 35). COAÇÃO E NEGAÇÃO DA FALA E INSTITUCIONALIZAÇÃO DA AUTORIDADE/MARGINALIDADE NOS JOGOS DE LINGUAGEM Para nossa análise, tomamos uma polêmica on-line nos seguintes termos: ocorreu que em uma conversa grampeada do ex-presidente Lula com o ex-ministro Paulo Vannucchi, gravada em 5/4/16, pela Polícia Federal, o ex-presidente categorizou integrantes mulheres do PT como mulheres do grelo duro. Como esperado, o ato de fala desencadeou diversas respostas, das mais variadas entonações, da maioria das quais podemos dizer oscila antagonicamente entre horizontes sociais contraditórios, por exemplo, os axiologicamente indiciados como direita e esquerda. Os atores polarizados nessa arena de luta discursiva (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2010, p. 47) disputam a legitimidade de suas posições em detrimento da dos outros de quem discordam, buscando expulsá-los da ágora comunicável (BRIGGS, 2007, apud, SILVA e ALENCAR, 2014, p ). Ordinariamente, em cuja linguagem as cerimônias de polidez pouco podem regular diante de interações verbais tensas, estes contendores políticos recorrem basicamente a significados e ethos institucionais (GONÇALVES, 2014, p. 313) que desautorizam e/ou distorcem a imagem e as palavras do interlocutor, numa clara demonstração de não cooperação conversacional/discursiva. Dessa forma, a impolidez, o dissenso e a emulação, conforme Leezenberg (2014, p. 63) propõe, são marcas constitutivas desta modalidade de prática discursiva. Sobremaneira, neste caso, porque o significado (des) compartilhado, ou (com) partilhado (em vários pedaços indiferentes), foi disputado recorrendo-se à negação da fala a outrem, bem como pela coação dela mesma, o que caracteriza atos de fala violentos como constitutivos das disputas discursivas. Vejamos. A própria origem da contenda já é um ato violento por, embora autorizada legalmente a violação do sigilo telefônico, ter sido seu conteúdo vazado para domínio público indiscriminadamente pela mídia. Por conta disso, todos os sentidos que, por ventura, tivessem sido negociados na ocasião foram ressignificados em outros contextos. Há, aí, uma obliteração do lugar contextual original (SILVA e ALENCAR, 2014, p. 262), ou seja, o [171]

178 contexto habitual. Este, então, foi deslegitimado em função dessa perda de contexto (BUTLER, 1997, p. 4, apud SILVA e ALENCAR, 2014, p. 261), por não se saber em qual contexto se está ancorado para poder reclamar tal ou qual significado compartilhado. Depois, a própria organização metapragmática desta conversa é marcada pela assimetria de poder da fala. Como se vê a seguir: Lula: Alô Vannucchi: Fala, chefe. Lula: Você ficou de me dar um retorno. Vannuchi: Então, eu avisei para ele agora e o que aconteceu é que liguei no contato e soube que ele estava na UTI, situação grave, porque é respiratória, não dá pra falar direito. Não é uma situação grave de risco de vida, é o tal do enfisema. Aí eu falei com o genro, que também é da área, conhece. Primeiro eu perguntei ao genro se ele tinha uma condição de diretamente falar com a pessoa e ele respondeu que não. Não tenho contato, tem que ser com ele mesmo. Amanhã eu vou visitá-lo. Na hora que vi o recado do Moraes pra eu ligar, eu liguei pra ele e ele falou que tá indo daqui a pouco, já leu nos jornais, já sabe do que se trata e vai perguntar para ele. Você acha que ele tem condição de nessas coisas, canudo no nariz, telefonar, eu vou ver lá, vou sentir. Lula: Tira o canudo por 30 segundos, caralho. Vannuchi: Então, eu vou nessa expectativa e te dou uma resposta ainda hoje. Lula: Sabe qual é a nossa ação. Vannuchi: Sei. Lula: Aquele filho da puta daquele procurador antes de dar a notícia da intimação na quinta-feira para o advogado deu pra Globonews. É um filho da p*** mesmo. Vannuchi: Ativista político, coxinha. Lula: O problema é o seguinte, Paulinho. Nós temos que comprar essa briga. Eu sei que é difícil, sabe. Às vezes fico pensando até se o Aragão devia cumprir um papel de homem nessa porra. O Aragão parece nosso amigo, parece, parece, parece, mas tá sempre dizendo olha... sabe. Vanucchi: É. O pessoal tá assustado. Lula: Nós vamos pegar esse de Rondônia agora e vamos botar a Fátima Bezerra e a Maria do Rosário em cima dele. Vannuchi: Isso mesmo. Lula: Sabe, porque... até a Clara Ant (...) porque fica procurando o que fazer. Faz um movimento da mulher contra esse filho da puta. Porque ele batia na mulher, levava ela pro culto, deixava ela se fuder, dava chibatada nela. Cadê as mulheres de grelo duro do nosso partido? Vanucchi: É isso aí. Sua fala foi muito boa (EXTRA DIGITAL, 2016); [172]

179 O sentido de assimetria de poder nesta fala é contextualizado sequencialmente (MEY, 2014) pelo vocativo chefe ; a cobrança de uma resposta a algo previamente acordado/devido Você ficou de me dar um retorno ; a exigência/verificação do conhecimento apropriado da situação/performance Sabe qual é a nossa ação ; o recurso ao palavrão por parte do enunciador Lula; e o elogio servil por parte de seu interlocutor Sua fala foi muito boa. Certamente, todas essas particularidades são encenações de uma performance significada pela cobrança de um chefe para com seu subordinado, e não a conversa amigável entre parceiros, o que por si só já corroboraria o argumento de que há áreas significativas da comunicação linguística que não podem ser simplesmente tomadas como cooperativas, consensuais e polidas (LEEZENBERG, 2014, p. 63). É digna de nota também a declarada intenção de ação de tirar o canudo [possivelmente, tubo respiratório] por 30 segundos de um doente em UTI. Isto numa ênfase (a interjeição/palavrão caralho ) que mostra a impaciência e tensão da fala dos interlocutores, que estão num contexto abertamente de disputa de poder político, território em que tempo e piedade são postos na lata de lixo da cortesia. Nesse contexto, portanto, o sucesso político depende em parte da felicidade (AUSTIN, 1990, p. 29) do ato de fala do contato. Tal característica de avizinhamento de coação de fala é regimentada pelos fundamentos da linguagem que, costumeiramente, são erigidos de um lugar discursivo constituído de violência e impolidez. Para além das particularidades do evento discursivo conversa grampeada de Lula e Vanucchi, espetacularizado pela grande mídia, outros atores sociais inscreveram-se nesta cadeia ideológica de interações verbais (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2010, p. 34), donde os variados significados foram sendo circulados, postulados e contestados mesmo sem o intencionarem (AUSTIN, 1990, p. 93, 96) previamente. Alguns internautas propensos ao lado dos que não simpatizam com alguns movimentos político-populares como o feminismo, a tomarem conhecimento do as mulheres de grelo duro do nosso partido de Lula/Vanucchi (agora de Lula/Vanucchi/comentadores/blogueiros/nós), posicionaram-se carregando o signo ideológico de valores ofensivos às mulheres, a partir do que, orientados em outro contexto de embate discursivo (a legitimidade do feminismo e do blog Não Me Kahlo) intimaram, em posts comentários neste blog, que este mesmo se manifestasse diante do que Lula havia falado. Tal ato provocou uma resposta do blog, de onde tiramos o excerto: [173]

180 Olha, vou te falar uma coisa... 99,9% das vezes que algum machista vem me falar pelo twitter, principalmente algo como NÃO VAI FALAR NADA DISSO? HIPÓCRITAS!, eu não faço a mínima ideia do que ele está falando. Acho que ele pressupõe que eu faço parte do grupinho deles onde algum tipo específico de informação rola (do tipo que só tentam deslegitimar o feminismo) e, por isso, eu tenho que estar a par de tudo que está acontecendo no mundo. Daí quando vejo do que realmente se trata tenho uma preguiça enorme de realmente me manifestar. Normalmente é algo de uma idiotice sem tamanho. (...) A intenção deles não é nem nunca foi de um interesse legítimo em não ofender mulheres, muito menos mulheres feministas. Aliás, o que mais fazem é nos ofender. O objetivo, tal como Lula, era mobilizar o movimento feminista com motivação em interesse próprio. Neste caso, o objetivo era manchar a imagem do Lula. Em ambos os casos se tenta o mesmo: usar o movimento feminista como massa de manobra. E isso é de longe muito pior que falar que mulheres tem grelo duro. O movimento feminista sempre se pautou pelo posicionamento político. Ser feminista significa incessantemente fazer política. No entanto, não nos escutam quando falamos nos direitos das mulheres, na configuração sistêmica do machismo, no feminicídio, na morte de mulheres transexuais, entre tantas outras pautas urgentes que lidamos diariamente. O que chama atenção e querem nos ouvir é sobre grelo duro ser ofensivo ou não? Me poupe! (LEÃO, 2016). A tensão entre atores de grupos sociais antagônicos demarca-se, sequencialmente, pelo qualificativo machistas, no ato de fala entoado pejorativamente e em contraste com o do enunciador feminista e pela referência a grupinhos. A impolidez, por sua vez, constitui a fala no sentido de ser uma resposta não espontânea, mas forçada pelo apelo provocativo de um comentador do blog algum machista vem me falar pelo twitter, principalmente algo como NÃO VAI FALAR NADA DISSO? HIPÓCRITAS!. Não havendo mesmo interesse cooperativo em fazer a resposta tenho uma preguiça enorme de realmente me manifestar. Normalmente é algo de uma idiotice sem tamanho. A relação conflituosa entre os interlocutores encena-se pelos epítetos indexicalizados injuriosamente HIPÓCRITAS!, idiotice sem tamanho e a imprecação Me poupe!. Neste caso, o que constitui a impolidez do ato de fala é a coação à fala e a violenta tentativa de deslegitimação da fala do outro, através da quebra do contexto de fala costumeiro, em que os sentidos pretendidos são estabelecidos. Isto é, a autoridade da fala de Não Me Kahlo em nome do feminismo é que foi posta em questão, não a ponderação sobre o [174]

181 sintagma mulheres de grelo duro. De fato, o poder institucional é determinante na construção social dos significados (ALENCAR, 2014, p. 94; GONÇALVES, 2014, p. 313) compartilhados nos jogos de linguagem das diversas cadeias ideológicas, por isso mesmo que a impolidez discursiva se destaca neste evento, posto que se questiona: QUANDO É O LULA VOCÊS VÃO PASSAR PANO, É?! ou SE FOSSE O BOLSONARO VOCÊS TAVAM FALANDO ALGUMA COISA. Quando as pessoas vêm cobrar posicionamento assim (LEÃO, 2016). Esta exigência de tomada de posição é constrangida por uma construção violenta de significados já fechada, que ecoa diversas ações previamente estabelecidas. Estas, por sua vez, são orientadas para a negação dos sentidos assumidos no horizonte social do blog. Por fim, a intimação, apenas o arremate de uma encenação na qual a infelicidade do ato de defesa já estava consumada da parte dos reclamantes. Por conseguinte, posicionar-se diante do mulheres de grelo duro foi mero mote para a contenda de uma outra disputa, a pela legitimidade de dizer sobre o feminismo. Ao se entender que o poder de ação da linguagem se encontra nas condições sociais da instituição do ministério que constitui o mandatário legítimo como sendo capaz de agir através das palavras (BORDIEU, 1998, p. 60, apud ALENCAR, 2014, p. 94), percebe-se o caráter particularmente desagregador deste ato de fala comentador/não Me Kahlo. O caráter desagregador ocorre através da deliberada tentativa de desautorização da própria legitimidade do blog Não Me Kahlo. Sabendo que a eficácia da autoridade do enunciador depende também da sua posição dentro dos quadros institucionais e nos ritos sociais (AMOSSY, 2005b, p ) (GONÇALVES, 2014, p. 313), a situação de impolidez se agrava, porque este blog tem sua gênese dentro da histórica negação e violação da fala de mulheres em nossas relações sociais. Daí a advertência de Leão: não nos escutam quando falamos nos direitos das mulheres, na configuração sistêmica do machismo, no feminicídio, na morte de mulheres transexuais. O que chama atenção e querem nos ouvir é sobre grelo duro ser ofensivo ou não? Me poupe! Logo, os sentidos (com) partilhados nestes atos em nenhum momento foram consensualizados, pelo contrário: antagonismo e violação contextual foram estratégias comuns para sua interconstituição. Podemos concluir que fica evidente o quanto estes atos de fala são pautados pela não contratualidade; e que, certamente, este não é um ato anômalo, ou incomum das práticas discursivas. Diante disso, fica insustentável o argumento do princípio da cooperação de Grice, tal qual ele é pontuado segundo uma visão de mundo liberal, marcado pela implicada naturalização de uma visão de [175]

182 simetria de relações de poder. Explicar os atos impolidos e o contexto de tensão como sendo anomalias de uma suposta cooperação universal, concorre positivamente, como performance científica, para a manutenção das mesmas relações hegemônicas de poder. Por se tratar a impolidez como mero acidente, desvio do princípio da cooperação, as práticas marginalizadoras de diversos grupos sociais, orientadas nela, também são tomadas acriticamente como uma contingência ingênua a ser desconsiderada. O que ocorre histórica e violentamente contra a fala dos grupos político-feministas não são meros desvios; são parte de um projeto social de silenciamento de minorias. Destarte, revisar princípios linguísticos ideológicos tradicionais como o da cooperação é passo fundamental da consolidação do caráter político dos estudos críticos da linguagem. CONCLUSÃO Neste artigo buscamos fazer coro às vozes e aos corpos e suas héxis (GONÇALVES, 2014, p. 314) que pleiteiam ampliar as fronteiras dos horizontes sociais em que a significação concreta, viva, aberta evolui (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2010, p ), aproximando-nos dos diversos posicionamentos políticos contra-hegemônicos e, de certo modo, desconstrutores em estudos críticos da linguagem (AUSTIN, 1990; BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2010; RAJAGOPALAN, 2010; SILVA; MARTINS FERREIRA; ALENCAR, 2014); de modo que pudéssemos reavaliar ideologicamente conceitos conservadores nos estudos da linguagem, críticos e da linguística aplicada, como o princípio da cooperação. Essa trajetória não se basta por si mesma, mas por sua ideologia linguística (BLOMMAERT, 2014) destronizadora, que pode fazer frente a um modelo de organização social monovalente, em cujas raízes estruturais encontra-se a falaciosa crença num mundo pacífico e harmoniosamente feito para o bemestar comum, bem ao contrário do em que antagonicamente atuamos. Percebemos que, antes de ser uma ocorrência acidental, anômala, ou incomum na interação discursiva, o caráter desagregador do ato de fala polêmica comentador/não Me Kahlo exemplifica uma forma constitutiva de estabelecer relação de emulação entre os enunciadores. Dessa forma, propomos a crítica do princípio da cooperação, de maneira que se atente para o valor constitutivo da impolidez no discurso. O que esta perspectiva traria como ganho para os estudos da linguagem é não perder de vista a particularidade tensa das relações sociais e a vigilância na pesquisa sobre a linguagem no que toca aos problemas da marginalização e das assimetrias sociais. A dimensão ética, portanto, estaria presente nos debates sobre a constituição e circulação dos sentidos nas práticas discursivas. [176]

183 REFERÊNCIAS ALENCAR C. N. Pragmática cultural: uma visada antropológica sobre os jogos de linguagem. In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas: BLOMMAERT, J. Ideologias linguísticas e poder. In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p BAKHTIN, M. M.; VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. 12. ed. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: HUCITEC, EXTRA DIGITAL. Acesso em 11/04/2016. LEÃO, B. Lula, grelo duro e a hipocrisia da direita. %E2%80%9Cgrelo-duro%E2%80%9D-e-a-hipocrisia-dadireita/c1a1n/56f18d0f0cf225c3be494a72. Acesso em 11/04/2016. LEEZENBERG, M. Em torno de uma abordagem prática em pragmática: tragédia grega como conversação impolida. In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p MARCONDES, D. A filosofia da linguagem de J. L. Austin. In: AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas: p MEY, J. L. Sequencialidade, contexto e forma linguística. In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p RAJAGOPALAN, K. Da arrogância cartesiana à nova pragmática In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p Nova Pragmática: fases e feições de um fazer. São Paulo: Parábola, [177]

184 SILVA, D. N.; ALENCAR, C. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M. Uma nova pragmática para antigos problemas. In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p SILVA, D. N.; ALENCAR, C. N. Violência e significação: uma perspectiva pragmática. In: SILVA, D. N.; MARTINS FERREIRA, D. M. M.; ALENCAR, C. N. (Orgs.) Nova Pragmática: Modos de fazer. São Paulo: Cortez, p WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, [178]

185 11 UMA PROPOSTA DE MODELO EMPÁTICO ENTRE EMPATIZANTE E EMPATIZADO Kaline Girão Jamison CONSIDERAÇÕES INICIAIS Muitos se perguntam: por que somos capazes de não somente observar, mas também de perceber os estados mentais e emocionais de pessoas que não conhecemos, mesmo quando, muitas vezes, elas tentam esconder? Como somos aptos a perceber que por trás de um sorriso pode haver maus sentimentos e até más intenções? Isso é sentir empatia? Nosso cérebro exerce influência sobre nossa capacidade empática? Qual a relação entre a linguagem e a empatia? Foram esses e muitos outros questionamentos que levaram filósofos, antropólogos, neurocientistas e linguistas a se interessarem pelo estudo desse fenômeno intersubjetivo chamado empatia. No intuito de entender melhor sobre a empatia, esse trabalho busca promover uma discussão sobre seus principais conceitos e, a partir dos estudos de Lewis e Hodges (2012), Stueber (2006), Thompson (2001) e Morse et al.(1992), objetivamos esboçar um modelo empático (JAMISON, 2015) no sentido de elucidar como se processam movimentos de natureza empática entre empatizante e empatizado. O estudo foi organizado em quatro partes: na primeira, com uma apresentação histórica da empatia; na segunda, com considerações sobre as raízes neurais do pensamento empático; na terceira parte, apresentamos as principais definições desse conceito e, por último, mostramos o esboço do processamento de indícios empáticos entre observador e observado, que chamamos de modelo empático. EMPATIA: PRIMEIROS ESTUDOS Filósofos já reconheciam a importância do estudo da intersubjetividade nos homens há muito tempo. Apesar de suas raízes linguísticas em grego antigo, o conceito de empatia é de herança intelectual recente. Stueber (2013) argumenta que, no entanto, sua história tem sido variada, o que também se reflete na multiplicidade de definições associadas [179]

186 ao conceito empatia em um número de diferentes discursos científicos e não científicos. O uso moderno do termo empatia tem suas raízes na Estética alemã, quando Robert Visher, em 1873, criou o termo Einfühlung, que significa um meio de conhecer melhor, aproximar-se da forma. Esse termo, no final do século XIX, fazia parte dos círculos filosóficos alemães e era concebido como uma categoria importante na estética filosófica (STUEBER, 2013). No início do século XX, Theodor Lipps (1907) introduziu a ideia de empatia, a partir do termo em alemão, "Einfühlung, que significa feeling into (sentir-se em) (apud BAAREN et al., 2009). O ponto de partida do conceito empatia inseriu-se na disciplina de estética da psicologia e tratava da interpretação de trabalhos de arte, através da projeção de si próprio no intuito de experienciar a emoção sentida pelo artista. Atualmente, o estudo de empatia tem sido de interesse de diferentes disciplinas e vem sendo explorado pelo campo da Filosofia, Artes, Medicina, Educação, Neurociência etc. Inclusive, a Neurociência tem se ocupado do estudo da empatia no contexto de resolução de conflitos e reconciliação pós-conflito. Desde então, vários conceitos sobre empatia têm sido gerados. Zahavi e Overgaard (2012) acreditam que esse interesse pela noção de empatia dá-se devido a importância que ela tem na teoria da moral, ou seja, de que é a empatia que leva alguém a responder sensivelmente ao sofrimentos de outros, promovendo um comportamento pró-social. Essa habilidade humana, portanto, de compreensão dos sentimentos dos outros, ajuda a promover conexões sociais, estreitar laços e construir pontes para comportamentos cooperativos entre membros do mesmo grupo social. EMPATIA: O CÉREBRO COMO SUA NASCENTE Na última década, o estudo da empatia tem despertado interesse principalmente dos neurocientistas, que fizeram descobertas importantes sobre a natureza desse processo que é um componente crucial dos relacionamentos humanos e até da existência humana (TERMAN, 2012, p. 291). Desde a descoberta dos neurônios por S. Ramón Cajal, há cerca de um século, a neurociência ocupa lugar de destaque entre as ciências, conquistado pelo conhecimento cada vez mais detalhado da máquina cerebral, de suas unidades básicas e das reações químicas que lá ocorrem. Nesse sentido, o desenvolvimento da neurociência reserva lugar privilegiado [180]

187 à busca de soluções empíricas para as questões da filosofia da mente, a partir de um estudo aprofundado acerca do funcionamento do cérebro. Técnicas experimentais vêm sendo desenvolvidas, nas quais se destacam as de neuroimagem, o que abre caminho para sedimentação progressiva da neurociência cognitiva. No começo dos anos noventa, na Universidade de Parma, na Itália, Leonardo Fogassi, Vittorio Gallese e Giacomo Rizzolatti descobriram algumas células cerebrais especiais, às quais deram o nome de neurônios espelho. Segundo Keyers (2011), tal achado mudou dramaticamente o modo como vemos o cérebro e principalmente, nossas interações sociais. Para Keysers (2011), o impacto da descoberta dessas células neuronais foi tão expressivo que o neurocientista Vilayanur Ramachandran declarou que os neurônios espelhos farão para a psicologia o que o DNA fez para a biologia (REYERS, 2011, p. 13). O fato aconteceu quando Gallese percebeu que, no momento em que ele pegou da bandeja de macacos usados em um experimento uma uva, se podia ouvir um disparo referente à atividade neuronal captada pelo eletrodo colocado no cérebro do primata, mais precisamente, no córtex pré-motor, que havia sido acionada pela ação do cientista. Até então, não estava sendo estudada a percepção social, mas uma maior compreensão sobre o sistema motor dos macacos e acreditava-se que os disparos de tais células nervosas só ocorressem quando o próprio macaco executava a ação e não quando ele assistia alguém fazer o mesmo. Essa descoberta fazia cair por terra a dicotomia cognição e ação e a concepção cartesiana de que a mente está totalmente separada do corpo físico, cujas sensações e percepções não são verdades confiáveis, mas ilusões. Surge assim, a noção de um cérebro que trabalha de forma dinâmica e interage ativa e simultaneamente com outras regiões cerebrais. Nesse sentido, Iacobanni (2009) aponta que pesquisas como essa são importantes por nos fornecerem valor inferencial para a compreensão de nosso próprio cérebro que é considerado uma das entidades mais complexas do universo. Essa complexidade pode ser explicada pelo fato do cérebro ser constituído por centenas de bilhões de neurônios que se comunicam uns com os outros por meio de sinapses. Apesar de macacos terem cérebros que são apenas um quarto do tamanho do nosso, neuroanatomistas acreditam que as estruturas no neocortex dos macacos e dos homens têm correspondências estruturais, apesar de suas diferenças. Dessa forma, podemos concluir que o mesmo acontece conosco a todo instante no momento em que observamos outros executando certas ações, [181]

188 ou seja, quando observamos alguém executando uma ação, nosso córtex prémotor também é acionado, pois visão e simulação estão diretamente conectadas em nosso cérebro. Sobre esse aspecto, vinte anos após a primeira descoberta dos neurônios espelho em laboratório, cientistas de toda parte do mundo (cf. DECETY, 2012) desenvolveram estudos experimentais com macacos e depois com humanos (sem eletrodos inseridos no cérebro) que confirmaram esse extraordinária descoberta. O simples fato de que um grupo de células neuronais, chamadas de neurônios espelho, dispara quando um indivíduo chuta uma bola, ou quando ele apenas observa a bola sendo chutada por outra pessoa, ou ainda quando ele escuta a bola sendo chutada tem implicações interessantes para os estudos de aprendizagem e comportamento humano. Diante dessas descobertas, o paradigma prevalecente dos anos oitenta, de que percepção, cognição e ação alojavamse em caixas separadas, cai por terra. Keysers (2011) demonstra ter chegado o momento de nos afastarmos da ideia de que o cérebro processa informações de forma lógica, abstrata e consciente ao evidenciar que, com a descoberta dos neurônios-espelho, é possível declarar que ao observarmos pessoas executando ações, é feita uma conexão direta com nosso próprio sistema pré-motor, o qual habilitaria em nós uma capacidade de previsibilidade do comportamento e da ação dos outros. Ou seja, por meio da observação, somos capazes de prever e desenvolver o que o autor chama de intuição em relação à ação de outras pessoas, em outros termos, nosso próprio sistema motor é o grande responsável pela conexão que sentimos em relação aos outros e pelo surgimento da empatia. EMPATIA: TIPOS E DEFINIÇÕES O despertar para o estudo sobre a empatia surgiu devido à sua importância para a teoria moral: a ideia de que é a empatia que leva alguém a responder com sensibilidade e cuidado ao sofrimento dos outros 1 (ZAHAVI; OVERGAARD, 2012, p. 3). Pesquisas em cognição social enfatizam que a empatia tem a chave para entendermos questões relacionadas à compreensão intersocial (DECETY, 2012). 1 The idea being that it is empathy that leads somebody to respond with sensitivity and care to the suffering of others (ZAHAVI; OVERGAARD, 2012, p. 3). [182]

189 O conceito de empatia, contudo, é complexo e varia não apenas entre disciplinas, mas até mesmo dentro de uma mesma disciplina. De um lado, a teoria da mente argumenta que nossos estados mentais são conferidos a outras pessoas com base na nossa habilidade de atribuir estados mentais aos outros. Segundo essa teoria, a capacidade de nos ligarmos ao que outros sentem e pensam se deve ao desenvolvimento e maturação da mente da criança (GOLPNIK; WELLMAN, 1995 apud ZAHAVI; OVERGAARD, 2012) ou a partir do desenvolvimento de módulos de leitura-metal que são inatos ao homem (BARON; COHEN, 1995 apud ZAHAVI; OVERGAARD, 2012). Por outro lado, a simulação da teoria da mente nega que a compreensão que temos dos outros seja primariamente teórica e afirma que usamos nossa própria mente como um modelo quando entendemos a mente dos outros. Dentro dessa visão, há uma, à qual nos afiliamos, que postula que essa simulação não ocorre de forma explícita e consciente, mas de forma implícita, como uma imitação interna, a qual nos permite entender não só as ações, mas também as sensações e emoções exibidas pelos outros, conforme declara Gallese (2003, p. 176) 2 : O Eu e o outro relacionam-se um ao outro, uma vez que eles representam extensões opostas do mesmo sistema reversível e correlacionado do eu/outro. O observador e o observado são partes de um sistema dinâmico operacionalizado por regras de reversibilidade. Esse fenômeno psicológico complexo chamado empatia, contudo, gera uma multiplicidade de significados e definições, muitas vezes, discrepantes e até inconsistentes entre si. De acordo com Batson (2009), existem oito tipos de estados psicológicos 3 que podemos experienciar no intercâmbio com outras pessoas que correspondem a conceitos distintos de empatia: 1) conhecimento do estado interno de outra pessoa, incluindo seus pensamentos e sentimentos: alguns chamam esse conhecimento de 2 Self and other relate to each other, as they both represent opposite extensions of the same correlative and reversible system self/other. The observer and the observed are part of a dynamic system governed by reversibility rules (GALLESE 2003, p. 176). 3 1) knowing another person s internal state, including his or her thoughts and feelings; 2) adopting the posture or matching the neural responses of an observed other; 3) coming to feel as another person feels; 4) intuiting or projecting oneself into another s situation; 5) imagining how another is thinking and feeling; 6) imagining how one would think and feel in the other s place; 7) feeling distress at witnessing another Person s suffering; 8) feeling for another person who is suffering (BATSON, 2009). [183]

190 empatia cognitiva 4 e outros de acurácia empática 5 e refere-se à capacidade de inferirmos o que a outra pessoa está sentindo quando, por exemplo, perde o emprego. Sabemos, grosso modo, que sentimentos de tristeza, desespero e frustração podem constiuir o estado mental dessa pessoa. 2) adoção de uma postura ou condição de respostas neurais que correspondem à(s) da pessoa observada: proposta como empatia facial 6, como mimetismo motor 7 ou imitação 8. Esse conceito diz respeito à nossa capacidade de perceber o outro em uma dada situação e automaticamente formar um estado de correspondência neural em relação a seu estado; 3) formulação de sentimento semelhante ao do outro: esse conceito também é conhecido como fisiologia compartilhada 9, simpatia 10, contágio emocional 11, empatia afetiva 12 ou empatia automática emocional 13. Essa noção se refere à habilidade que temos de capturar como o outro se sente, devido ao nosso aparato fisiológico compartilhado; 4) intuição e projeção de si mesmo na situação do outro: baseada nas primeiras definições de empatia no contexto de apreciação estética 14, diz respeito à capacidade de nos imaginarmos como se fossemos outra pessoa, ou mesmo um objeto inanimado; 5) ação de imaginar o que o outro está pensando ou sentindo: em vez de nos imaginarmos no lugar da outra pessoa, esse conceito diz respeito à capacidade de imaginarmos a situação na perspectiva do outro, baseado 4 Cognitive empathy, Eslinger, 1998; Zahn-Waxler, Robinson, Emde, 1992 (apud BATSON, 2009). 5 Empathic Accuracy, Ickes, 1993 (BATSON, 2009). 6 Facial empathy, Gordon, 1995 (apud BASTON, 2009). 7 Motor Mimicry, Dimberg, Thurnberg e Elmehed, 2000 e Hoffman, 2000 (apud BASTON, 2009). 8 Imitation, Lipps (1902) e Titchener (1909) (apud BATSON, 2009). 9 Shared Physiology, Levenson and Ruef (1992 (apud BATSON, 2009). 10 Sympathy, Hume, 1740/1896; Smith, 1759/1853 (apud BATSON, 2009). 11 Emotion Contagion, Hatfield, Cacioppo, & Rapson, 1994 (apud BATSON, 2009). 12 Affective empathy, Zahn-Waxler, Robinson, Emde, 1992 (apud BATSON, 2009). 13 Automatic emotional empathy, Hodges; Wegner, 1997(apud BATSON, 2009). 14 Lipps (1903). [184]

191 em seus valores, caráter e no modo de ser. Ou seja, como uma tomada de perspectiva 15, também denominada empatia psicológica 16 ; 6) ação de imaginar como nos sentiríamos ou o que pensaríamos no lugar de outro; também chamado de troca de papeis 17, empatia cognitiva 18 ; 7) ação de nos angustiarmos ao testemunharmos o sofrimento de outra pessoa; esse sentimento recebeu vários outras denominações: desconforto emocional empático 19, angústia pessoal 20, que se refere ao sentimento de aflição não como se fossemos o outro, mas como uma reação ao que o outro está sentindo; 8) ação de sentirmos pelo outro que está em sofrimento; esse sentimento orientado pelo outro e acionado quando percebemos que o outro está em desvantagem nem sempre foi considerado como empatia, mas denominado como pena ou compaixão 21, aflição simpática 22. Como vimos, a empatia é uma forma complexa de inferência psicológica, na qual observação, memória, conhecimento e pensamento se combinam para fornecer insights sobre os pensamento e sentimentos dos outros 23 (JACKSON; MELTZOFF; DECETY, 2005, p. 772). Sobre isso, Stueber (2006) ressalta que essa diversidade de conceitos diz respeito às diversas capacidades e atitudes que uma pessoa tem em relação à percepção do estado mental e situação de outra pessoa. Acreditamos, portanto, que as diferentes visões sobre a empatia já apresentadas podem ser, de um certo modo, associadas entre si a fim de formar um modelo mais abrangente. Logo, apoiamos nossa definição de empatia na perspectiva de alguns pesquisadores (HODGES; LEWIS, 2012; STUEBER, 2006; THOMPSON, 1999; PRESTON; DE WAAL, 2001; STEIN, 1964) lançamos mão de duas formas de empatia (básica e avançada), baseadas em Hodges e Lewis (2012). Consideramos que a primeira delas é 15 Perspective taking : Stotland (1969). 16 Psychological empathy : Wispé(1968). 17 Role taking : Mead (1934). 18 cognitive empathy : Povinelli (1993). 19 empathic distress : Hoffman (1981). 20 Personal distress : Batson (1991). 21 Pitty ou compassion :Hume, 1740/1896; Smith, 1759/ sympathetic distress : Hoffman, 1981, 2000). 23 Empathy is a complex form of psychological inference in which observation, memory, knowledge, and reasoning are combined to yield insights into the thoughts and feelings of others (JACKSON, MELTZOFF e DECETY, 2005, p. 772). [185]

192 constitutiva da segunda e essa, pré-condição para os conceitos 6, 7 e 8, descritos acima: 1) empatia básica, na qual o observador capta e decodifica pistas, como expressões faciais, a fim de entender o outro, mas não significa, necessariamente, sentir o que o outro sente. Baseando-nos em Thompson (2001), consideramos que essa empatia serve de base para outras manifestações empáticas, por ser de base corpórea, ou seja, aquela que reconhecemos no corpo do outro, um corpo vivo como o nosso (THOMPSON, 2001) 2) empatia avançada, que requer habilidades cognitivas mais complexas, como o uso de conhecimento prévio, para entender o comportamento e intenção do outro, o que pode acarretar no observador um sentimento similar ao do outro. Ressaltamos que esse tipo de empatia pode gerar no observador sentimentos de contágio emocional, ou até desconforto e sofrimento, podendo ou não resultar em uma ressonância empática, a ser refletida no outro, um comportamento pró-social, o qual pode ser manifestado também em forma de escuta ativa, reflexão e validação verbal (MORSE et al.., 1992), ; Lewis e Hodges (2012) explicam que esses dois tipos de empatia requerem diferentes habilidades por parte de quem sente a empatia. Enquanto na empatia básica o observador detecta pistas diretas, como lágrimas, demonstração de frustração, na empatia complexa, ou mais avançada, ele precisaria recorrer a suas próprias representações mentais, visto que essas pistas não estariam tão disponíveis. Os observadores usariam, portanto, seu estado mental, suas experiências e seu conhecimento de mundo e principalmente sua capacidade de categorização para simular como o outro estaria se sentindo e o que ele estaria pensando. Nessa perspectiva, Buchholz (2014) declara que a empatia não consiste em um empenho de mão única, individualístico. Apoiando-se em Sacks (1992), Buchholz (2014) acrescenta que a empatia representa uma prática cujos participantes utilizam-se da categorização para organizar elementos observáveis (aspectos corpóreos, expressões faciais, gênero, raça etc.) para depois, inferir aspectos gerais relacionados ao estado mental do outro (alegria, tristeza, vergonha etc.), criando, assim, um ciclo mútuo de observação e interpretação. Para Lewis e Hodges (2012), a ação de criar empatia com estranhos, cujas emoções e pensamentos desconhecemos, requer o uso de esquemas mentais e, mais precisamente, de estereótipos associados a alguma categoria [186]

193 que também serve como fonte de informação para que observadores formem suas impressões sobre o alvo, com quem não se tem qualquer interação ou intimidade. Estudos experimentais (MYERS; HODGES, 2009; STINSON; ICKES, 1992; THOMAS; FLETCHER, 2003 apud LEWIS; HODGES, 2012) demonstram que a acurácia empática é maior na medida em que aumentam a intimidade e o nível de convivência entre as pessoas. A explicação, segundo os pesquisadores, é que o empatizante tem acesso a um schema mais extenso, construído por meio de interações e experiências passadas com o empatizador. Nesse sentido, Echols e Correll (2012) explicam que a empatia que existe entre membros de um mesmo grupo pode ter sido originada para que nos protegêssemos e assegurássemos a reprodução e sobrevivência da nossa espécie. Nós, seres humanos, por sermos uma espécie social, formamos conexões sociais, compartilhamos recursos, trabalhamos juntos para nos proteger de ameaças, vivemos a experiência da dor social quando nos separamos de nosso grupo, o que caracteriza uma certa interdependência obrigatória. Há casos em que pessoas demonstram uma pré-disponibilidade a ouvir e a entender uma a outra, em função da sensação de pertencimento às mesmas categoria de gênero e social entre elas. Como já vimos, a empatia requer que haja uma simulação no observador do sentimento do outro. Keysers (2011) nos mostra, por meio de um exemplo, que o sentimento de empatia, na verdade, não está relacionado a meramente, sentir o que o outro supostamente sente. Ou seja, ao observarmos alguém pegar um copo e levá-lo à boca, não percebemos, simplesmente, a sensação dessa ação realizada pelo outro, de fato, por meio da projeção que é feita em nossos cérebros, de forma inconsciente, é como se nós mesmos executássemos a mesma ação. No entanto, essa capacidade de sintonizar com o outro é reduzida no cérebro de algumas pessoas, [187]

194 como no caso de autistas 24 ou psicopatas 25. Já Além desses dois casos, nos quais a empatia é prejudicada por questões neurobiológicas e psicológicas do indivíduo, há ainda o grupo daqueles que não a tem por uma questão de resistência. Há casos em que o não pertencimento ao mesmo grupo exerce influência na empatia automática. Em caso de situações de conflitos entre grupos, o outro é visto como não merecedor de atenção e tido como uma pessoa má e isso, de alguma forma, bloqueia a sintonia empática. Bandura (2002, apud CAMERON, 2011, p.11) ressalta que forças sociais operam de modo a remover o outro de uma atenção potencialmente empática, ou a empatia é ativada, mas inibida pelos processos cognitivos de aceitação social e/ou ideológica. Ressaltamos que o fenômeno da empatia não representa algo inerentemente positivo, ou negativo, mas de valor neutro. Do mesmo modo que a empatia pode gerar sentimentos pro-sociais e de altruísmo, também é capaz de suscitar sentimentos negativos, como, por exemplo, provocar raiva em alguém que empatiza com quem sente raiva. Por fim, Bandura (apud CAMERON, 2011, p.11) sugere que as pessoas desenvolvem um controle proativo a nível psicosocial a fim de regular sua vida social, usando estratégias que os isolam das mazelas alheias. Certamente, conforme nos mostra Cameron (2011d), se ficássemos continuamente em sintonia com as emoções das outras pessoas, nosso estado de ansiedade e frustração seria constante, o que nos deixaria exaustos. Isso justifica nosso dispositivo inibitório que filtra a empatia emocional trazida pelo cérebro, mesmo sem percebermos. 24 Os portadores de autismo, por exemplo, além de apresentarem comportamentos repetitivos e restritos, também demonstram ter menor sentimento de conectividade em relação a outras pessoas, pois recrutam seu sistema motor menos intensamente do que os não-autistas e sua capacidade de imitar expressões faciais também é menor. Estudos apontam que além de um sistema espelho deficiente, o cérebro de pessoas autistas também carece de algumas proteínas importantes para que haja as sinapses, indicando que várias podem ser as causas da deficiente plasticidade sináptica dos cérebros dos autistas, resultando em um déficit social. 25 As personalidades psicopatas também demonstram uma certa incapacidade em compreender as emoções dos outros por causa de sua própria experiência emocional deficiente (MEALEY & KINNER, 2002 apud CAMERON, 2011). O psicopata, por não ser capaz de sentir emoções, não possui um repertório emocional exigido para a simulação dos sentimentos das outras pessoas. O curioso, porém, é que o componente não-emocional da empatia ainda funciona, o que permite que pessoas com esse transtorno desenvolvam estratégias cognitivas para compreender os outros. O desenvolvimento moral normal deles é prejudicado, porém, pela falta de experiências com emoções e suas consequências. [188]

195 MODELO DO PROCESSO EMPÁTICO Corroboramos o ponto de vista de Stueber (2006) no que concerne ao aspecto multidimensional da empatia: o autor explica que a empatia abrange desde nossa capacidade cognitiva de termos ciência do estado mental de outras pessoas (independentemente do modo como fazemos esse julgamento) à habilidade de mudarmos de perspectiva em relação à outra pessoa e de, possivelmente, respondermos emocionalmente à detecção do estado mental e situação do outro, o que corresponde a um aspecto processual. Acreditamos, portanto, que diferentes concepções de empatia podem ser unificadas, de modo a formarem um modelo básico que leve em consideração o processo empático, conforme mostra a Figura 1. Figura 1: Modelo do Processo Empático Fonte: Elaborado pela autora, baseado nas propostas de Lewis e Hodges (2012), Stueber (2006), Thompson (2001) e Morse et al.. (1992). O simples contato entre o Sujeito e o outro, dotados de consciências que já os situam como indivíduos corporificados, desperta em ambos uma cognição empática, uma associação passiva do meu corpo vivo com o corpo vivo do outro 26 (THOMPSON, 2001). 26 The passive association of my lived body with the lived body of the Other (THOMPSON, 1999, p. 35). [189]

196 Conforme nos apresenta a Figura 1, o contato entre empatizante e empatizado promove a empatia básica segundo a qual, pistas corpóreas são identificadas e decodificadas de forma automática, funcionando com précondição para a empatia avançada, que poderá ou não ocorrer. Esse primeiro estágio, não garante, porém, uma reação por parte do empatizante, apenas significa que houve um acionamento do seu aparato cognitivo-empático, embora possa, muitas vezes, ser ignorado e desviado de nossa consciência. Já o pontilhado na seta em direção à empatia avançada, que surge da empatia básica, significa que há uma possibilidade de tomada de perspectiva em relação ao sujeito observado. Em outras palavras, não existem garantias que haverá uma reposta por parte do empatizante em razão das pistas identificadas no Outro. No entanto, caso isso ocorra, podemos conceber essa fase como empatia avançada, em cuja ocasião se processa uma "transposição de lugares (o empatizante se coloca no lugar do empatizado). Em caso de empatia avançada, o empatizante permite emergir um sentimento de captação e compreensão do estado mental e da condição do Outro. Por exemplo, a empatia avançada acontece quando vemos alguém que demonstra, por meio de expressões faciais ou corporais, que está sentindo dor e permitimos que emerja em nós uma igual sensação de incômodo, da qual podemos escolher fugir, ignorando-a conscientemente, ou aceitar. Logo, caso surja no empatizante essa aceitação, ou seja, uma interpretação/compreensão emocional congruente ao estado percebido do outro, respostas emocionais possivelmente também ocorrerão. Essas respostas do empatizante, (que são representadas na figura 1 pelo quadrado à direita dos dois balões) podem ser, por exemplo, o reconhecimento raciocinado do estado de desequilíbrio em que o outro se encontra, ou sentimentos não sinalizados de simpatia e compaixão em relação ao empatizado. Já a resposta empática (representada pelo retângulo inferior menor, localizado à direita na figura 1) diz respeito à verbalização empática ou ainda a algum tipo de ação pró-social direcionada ao empatizado. Por exemplo, no caso de percebermos em alguém uma demonstração de dor e/ou outro de tipo de desconforto, podemos dizer que uma resposta empática foi estabelecida no momento em que o empatizante se dirige ao empatizado e pergunta, por exemplo: "está tudo bem?"; "você está sentindo alguma coisa? Esse estágio representa, portanto, uma ressonância, ou resposta empática, pois, além da transposição à experiência do outro, houve também [190]

197 uma reposta pró-social direcionada ao empatizado, quem irá recebê-la, decodificá-la e, possivelmente, aceitá-la. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das reflexões esboçadas acima, foi possível desenvolver uma discussão que demonstrasse que a natureza da empatia é dinâmica. Do mesmo modo, procurarmos mostrar que, muitas vezes, apesar de sermos biologicamente habilitados a sentir empatia pelos outros, nem sempre a ação de se colocar no lugar do outro é percebida, ou levada à consciência. Nesse sentido, Krznaric (2014) aponta que nas últimas décadas tem havido uma queda acentuada nos níveis de empatia de jovens americanos, por exemplo. E a esse fato é atribuído à tendência das pessoas de morarem sozinhas, de passarem menos tempo em atividades sociais e de serem capturadas pela fragmentação comunitária causada pela urbanização e pela cultura on-line, responsável por nos deixar, ao mesmo tempo, mais informados e menos susceptíveis a sentir e difundir empatia. No entendimento de Brooks (2011), o problema não consiste em sentir a empatia, mas modificá-la em uma ação moral. Nem sempre teremos a oportunidade de conversar com quem está precisando de ajuda para que sejamos convencidos a agir moralmente. Na verdade, infelizmente, estamos criando mecanismos de blindagem contra os estímulos à empatia. REFERÊNCIAS BROOKS, David The opinion pages. In: The New York Times. Publicada 29 de Setembro de Disponível em < Acesso em 12 de fev, BUCHHOLZ, M.B. Patterns of empathy as embodied practice in clinical conversation: a musical dimension. In: Frontiers in psychology, Vol. 5, p. 1-20, DECETY, Jean (Ed.) Introduction: Why is empathy so important? In: Empathy: from bench to bedside (Social Neuroscience). Cambridge: The Massachussets Institute of Techonology Press: p. vi- ix, CAMERON, Lynne. Metaphor and reconciliation: The discourse dynamics of empathy in Post-Conflict Conversation, Routledge, London, [191]

198 DEKEYSER, M.; ELLIOT, R.; LEIJSSEN, M. Empathy in psychotherapy: dialogue and embodied understanding. In: DECETY, J.; ICKES, W. (Eds.). The social neuroscience of empathy. Cambridge: The Massachussets Institute of Techonology Press, p , ECHOLS Stephanie., CORRELL, Joshua. It s more than skin deep: empathy and helping behavior across social groups. In: DECETY, Jean. (Ed.) Empathy: from bench to bedside. Cambridge: The MIT Press, 2012, p GALLESE, Victorio. The Roots of Empathy: The Shared Manifold Hypothesis and the Neural Basis of Intersubjectivity. Psychopathology, 2003; p GOFFMAN, Ervin. Interaction Ritual: essays on face to face behaviours. Garden City: Anchor Doubleday, IACOBONI, Marco. Mirroring people: the science of empathy and how we connect with others, Picador, JACKSON, Philip; MELTZOFF, Andrew; DECETY, Jean. How do we perceive the pain of others? A window into the neural processes involves in empathy. Neuroimage. Elsevier. Vol. 24 p , JAMISON, Kaline G. Movimentos de empatia no discurso da violência conjugal: uma análise linguístico-cognitiva no enquadre comunicativo dos boletins de ocorrência Tese (doutorado) Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Departamento de Letras Vernáculas, Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza, KEYSERS, C. The Empathic brain: How the discovery of mirror neurons changes our understanding of human nature, Social Brain Press, KRZNARIC, Roman. O poder da empatia: a arte de se colocar no lugar do outro para transformar o mundo. Tradução de Maria L.X.A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, LEWIS, Karyn; HODGES, Sara D. Empathy is not always as personal as you may think: the use of stereotypes in empathic accuracy. In: DECETY, J. (Ed.) Empathy: from bench to bedside. Cambridge: The MIT Press, MORSE, Janice et al. Exploring empathy: a conceptual fit for nursing practice. Image. Vol. 24, p STUEBER, Karsten. Rediscovering empathy: Agency, Folk, Psychology and the human Sciences. Cambridge: The MIT Press, [192]

199 THOMPSON, Eva. Empathy and consciousness. Journal of Consciousness Studies Volume 8, No. 5-7, May-July 2001 Disponível em > Acesso em 20 dez, ZAHAVI, Dan; OVERGAART; Soren. Empathy without isomorphism: a phenomenological account. In: DECETY, J. (Ed.) Empathy: from bench to bedside. Cambridge: The MIT Press, ZAKI, J. Empathy as choice. Scientific American, Disponivel em < Acesso em 29 dez de [193]

200 [194]

201 12 MEDIAÇÃO DE CONFLITOS: PREVENÇÃO À CRIMINALIDADE E DEFESA SOCIAL Vinícius Lopes Drumond 1 Cynara Silde Mesquita Veloso 2 INTRODUÇÃO A mediação de conflito é um processo auto compositivo, cooperativo e não hierárquico. Os princípios norteadores da mediação promovem a reestruturação dos laços afetivos e a redução do sentimento de revanchismo das partes. (NUNES, 2016, p.32) A problemática da pesquisa gira em tono do elevado índice de homicídios tentado e consumado nos territórios violentos em Minas Gerais. Partindo da hipótese de ser possível a pacificação social, por meio da implementação do PMC-MG nos territórios violentos. A presente pesquisa objetiva estudar o fenômeno do conflito, examinar a redução da criminalidade e da violência e estudar o aumento do acesso à justiça nos territórios contemplados pelo PMC-MG. Com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), o Estado reafirma sua postura de garantidor da ordem pública e assume o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização (LEITE, 2007, p.10). O Estado deve assumir posição de garantidor de Direitos, tanto quanto a posição de ius punuiendi, para que ocorra a redução da criminalidade e da violência (COSTA, 2016, p.162). 1 Acadêmico do 8º período de Direito da Universidade Estadual de Montes Claros vinidrumond@outlook.com 2 Orientadora desse artigo. Doutora em Direito Processual Civil pela PUC-MG, Mestre em Ciências Jurídico-políticas pela UFSC, professora da Universidade Estadual de Montes Claros, da UNIMONTES e da FAVAG, coordenadora do Projeto Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania de Montes Claros cynarasilde@yahoo.com.br [195]

202 Durkheim, (RATTON JR, 2005 p ) conclui que o conflito sempre vai existir entre os homens e que negligenciá-lo não o elimina. Por outro lado, pode ser algo benéfico, desde que conduzido corretamente. O Programa Mediação de Conflitos (PMC-MG) se mostrou eficaz no enfrentamento à violência em Minas Gerais: O programa Mediação de conflitos inserido na política Estadual de Prevenção à Criminalidade objetiva empreender métodos e ações efetivas que norteiem a partir dos princípios basilares da filosofia da Mediação, do fomento a constituição de capital social e garantia dos direitos humanos e fundamentais. (GOVERNO DE MINAS, 2009 p.41). Os estudos nesta área se mostram tímidos, sendo relevante a presente pesquisa. Importante ressalta que a via repressiva já não se mostra eficaz como antes, sendo imprescindível estudar meios alternativos para manter a ordem pública. A presente pesquisa analisou o período de atuação do PMC-MG entre 2013 e A técnica de pesquisa utilizada foi a revisão de literatura e a análise de dados oficiais disponibilizados pela Secretaria de Estado de Defesa Social e pela Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade (CPEC). DESENVOLVIMENTO O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E A ORDEM PÚBLICA O Estado Democrático de Direito é o Estado que garante o respeito às liberdades civis, o respeito aos direitos humanos e às garantias fundamentais. É o Estado que está submetido ao ordenamento jurídico vigente. (SANTOS, 2011) A promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), no seu artigo 1º, um Estado Democrático de Direito, fundado na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana nos valores sociais do trabalho e livre iniciativa e no pluralismo político. (BRASIL. CONSTITUIÇÃO, 1988) Para assegurar os fundamentos da república e os direitos fundamentais, o Estado deve presar pela ordem pública inserida na perspectiva do Estado Democrático de Direito. [196]

203 O artigo 144 caput da CRFB/1988 reafirma a segurança pública como dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, a buscar a ordem pública e incolumidade das pessoas e do patrimônio por meio de seus órgãos. Nesta perspectiva, o Estado deve buscar meios de manter a ordem pública e a incolumidade da sociedade como um todo. (BRASIL. CONSTITUIÇÃO, 1988). A ordem pública poderá ser obtida por vários meios. O Direito é um meio de controle social, principalmente o Direito penal, o qual funciona como um dos múltiplos instrumentos de controle social através de suas normas e sanções mais severas. A prevenção geral que se busca pela aplicação da pena, tem caráter psicológico, que confere a ideia de segurança jurídica para o povo. Entretanto, essa teoria é duramente criticada, principalmente por não conseguir provar que a pena mais severa possa impedir a ocorrência de crimes. (ANJOS, 2009, p 29). Os meios alternativos de solução de conflitos podem assegurar a ordem pública, por promoverem a sobreposição dos fatores de proteção sob os fatores de risco. Esses fatores de proteção são obtidos com o acesso pleno aos Direitos fundamentais, sociais, garantias, redução da desigualdade e erradicação da pobreza e marginalização. (LEITE, 2007 p 10). O Estado deve balizar a conduta coercitiva, sem negligenciar os direitos e garantias individuais e coletivos do cidadão, inclusive do apenado. Essa é a premissa máxima do Estado Democrático de Direito. A responsabilização do condenado pelo ato é necessária, assim como o respeito aos direitos e garantias fundamentais do mesmo. Diante dessa situação, o Estado deve buscar meios alternativos e preventivos, para reverter fatores de riscos em fatores de proteção. O CONFLITO, CRIME E PREVENSÂO O conflito é o dissenso entre pessoas, fruto de percepções, ideias e orientações sobre o mesmo fato. Vasconcelos (2008) diz que: [...] conflito adversarial é a hipertrofia do argumento unilateral, quase não importando o que o outro fala ou escreve[...]. Ao identificar que não estão sendo entendidas, escutadas, lidas, as partes se exaltam, dramatizam, polarizando ainda mais as posições. (VASCONCELOS, 2008, p.21). [197]

204 Em decorrência do aprofundamento das relações sociais, o conflito pode evoluir, galgando patamares mais expressivos e, consequentemente, vir a lesar direitos ou até mesmo crimes mais gravosos. A manifestação do conflito em violência varia de momento histórico, social, cultural e econômico (VASCOLCELOS, 2008, p 22). O crime é considerado fato social, a criminalidade é um processo modificado pelo contexto histórico, social, cultural e econômico como aponta Zaffaroni (LEITE, 2007 p.10). Portanto, a mutabilidade do crime e da criminalidade exige que a prevenção seja pluralística, abarcando o maior número de possibilidades de reversão de característica. Devido à mutabilidade, exige que a prevenção seja pluralística, externada por meio de políticas públicas focadas na sobreposição de fatores de proteção sob fatores de risco, diminuindo o processo de criminalidade (LEITE, 2007, p.12). A prevenção à criminalidade deve ser plástica. A prevenção é dividia por três níveis, devido ao fato de a criminalização ser objeto interventivo. A prevenção primária, previsão secundária e prevenção terciária. A prevenção à criminalidade primária foca nos fatores de risco e de proteção na área urbana, identificando os espaços mais vulneráveis. A prevenção à criminalidade secundária foca nas pessoas inseridas nos territórios vulneráveis, levando em consideração aquelas com maiores suscetibilidades ao crime, interrompendo o processo de criminalização e limitação dos danos. A prevenção terciária foca na pessoa já criminalizada, buscando desconstruir os malefícios do cárcere. (LEITE, 2007, p.12). A partir da intervenção em todos os níveis da criminalidade, é possível reduzi-la e minorar seus efeitos. Dessa forma, a prevenção busca fomentar novos caminhos para assegurara defesa social, além do Direito Penal, por meio das intervenções prévias no conflito. MEDIAÇÃO DE CONFLITOS A mediação no Brasil foi impulsionada, a partir da Resolução n. 25/2010 do Conselho Nacional de Justiça. Com a promulgação da Lei n /2015 (Código de Processo Civil) e a Lei n /2015 (Lei de Mediação), tornou o processo mais delineada, conferindo maior visibilidade no meio jurídico. [198]

205 A mediação, forma auto compositiva de resolução de conflito, busca preservar e fortalecer o vínculo o entre as partes por meio da colaboração do mediador e pode ser definida como: [...] um meio geralmente não hierarquizado de solução de disputas que em duas ou mais pessoas, com colaboração de um terceiro, o mediador deve ser apto, imparcial, independente e livremente escolhido ou aceito-expões o problema, são escutadas e questionadas, dialogam construtivamente e procuram identificar os interesses comuns, opções e, eventualmente, firmar um acordo. (VASCONCELOS, 2008, p. 37) A Lei de Mediação, em seu artigo 1º, define mediação como uma atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia (BRASIL. Lei , 26 de junho de 2015). A definição legal traz a figura do mediador, o qual deverá ser capacitado para exercer tal status. O curso consiste em carga horária de 40h/aula, somada a 10 casos práticos. Tanto a Lei de Mediação/2015, quanto o Código de Processo Civil/2015 trazem os princípios norteadores da mediação. Esses princípios estão dispostos nos artigos 2º do inciso I ao VII da Lei de Mediação/2015 e no artigo 166 do Código Processo Civil/2015. No artigo 2, inciso V, o princípio da autonomia da vontade das partes busca a voluntariedade entre as partes de se resolver a demanda por uma via horizontal e cooperativa. O procedimento de mediação não ocorre caso uma das partes não aceite. Essa desistência pelo procedimento pode vir a qualquer momento (NUNES, 2016 p.59). O princípio da oralidade contido no artigo 2º, inciso II libera a mediação do uso de documentos, a buscar uma escuta mais qualificada e compreensiva. Esse princípio defende a simplicidade da mediação. Por sua vez, o princípio da informalidade, artigo 2º, inciso IV, busca um processo mais flexível e livre, sem grandes formalidades (NUNES, 2016 p.59-60). O princípio da isonomia trazido pelo artigo 2º, inciso II, busca a igualdade entre as partes. Dessa forma, se uma das partes estiver acompanhado por um advogado, a outra parte, necessariamente, também terá de ser assistida por outro profissional da área (NUNES, 2016 p.61). O princípio da busca pelo consenso, trazido pelo artigo 2º, VI da Lei de Mediação/2015 preceitua que as partes devem entrar em comum acordo, para solucionar a demanda. Esse princípio é importante para que haja o [199]

206 sentimento de ganha/ganha e não de revanchismo ao final da demanda. Ou seja, a cooperação das partes em resolver a pendência, sem que um abra mão de algo, mas sim que ambos construam a melhor solução para os dois (NUNES, 2016 p.61). O princípio da boa-fé, previsto pelo artigo 2º, inciso VIII da Lei de Mediação/2015 estabelece que a medição seja feita livre de dissimulações, artifício e hipocrisia. Vale lembrar que a mediação não ocorrerá caso seja verificado algum vício de consentimento. (NUNES, 2016) O Princípio da Confidencialidade, artigo 2º, VII, assegura uma mediação sigilosa e segura (NUNES, 2016 p.61-63). O princípio da independência e princípio da imparcialidade são direcionados ao mediador. O mediador deve ser independente das partes, agindo de forma livre e autônoma. Bem como a lei exige que seja imparcial, sem apresentar soluções acabadas, pois busca-se a autonomia das partes em resolver a demanda. Ambos são encontrados no Código de Processo Civil/2015 e na Lei de Mediação/2015 (NUNES, 2016, p.58). O princípio do empoderamento é o meio pelo qual o indivíduo toma posse de seus atos, através da interação com outros indivíduos. Essa interação promove a ampliação da capacidade crítica das partes diante dos próprios conflitos (COMISSÃO TÉCNICA DE CONCEITOS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS, 2011, p. 17). O princípio da emancipação, que tem como objetivo trabalhar na comunidade a sua forma aptidão de deliberar, influenciar e intervir nas decisões do poder público e da própria comunidade (COMISSÃO TÉCNICA DE CONCEITOS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS, 2011, p. 16). O princípio da autonomia fomenta, nos autores da demanda, a certeza de que são Sujeitos de Direito, com vontades próprias. Mas não se restringe a isso, por construir soluções em conjunto, os atores identificaram e respeitaram a autonomia dos seus pares (COMISSÃO TÉCNICA DE CONCEITOS DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS, 2011, p. 17). Esses três princípios juntos buscam fomentar nas partes a capacidade de resolver, de dialogar e de influenciar nos dissensos em conjunto. Reconhecer o próprio controle sobre questões de seu interesse, e também, reconhecer o outro como sujeito de direito (GOVERNO DE MINAS, 2009 p ). [200]

207 Dessa forma, a mediação é um processo informal, democrático e cooperativo. Os acordos feitos na mediação podem ser homologados, tendo força de título executivo extrajudicial, conforme artigo 334, 11º combinado com o artigo 784, inciso V, ambos do Código de Processo Civil. PROGRAMA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS - PMC-MG Com base no artigo 144 da CF/1988, o Estado ratifica o seu dever para com a segurança pública e defesa social. Com base nisso, o Estado de Minas Gerais, através da Lei n. Delegada 56 Resolução n de 12 de dezembro de 2002 insere na SEDS a Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade (CPEC). A finalidade da CPEC é criar programas que reduzem as taxas de criminalidade, por meio da prevenção em níveis primário, secundário e terciário (COMISSÃO TÉCNICA DE CONCEITOS DO PROGRAMA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS, 2011). A Política de Prevenção Social é formada por quatro programas. O Centro de Acompanhamento de Penas e Medidas Alternativas- CEAPA, o Programa de Inclusão Social de Egresso do Sistema Prisional- PrEsp, ambos agrupado na base municipal, que abrange o município e adjacentes. O Programa Fica Vivo! e o Programa Mediação de Conflitos- PMC-MG, ambos agrupados na base territorial, focando em áreas marginalizadas e alto índice de homicídio (SECRETARIA DE ESTADO DE DEFESA SOCIAL. 2016). O Programa Mediação de Conflito (PMC-MG) nasceu com o objetivo de empreender métodos e ações efetivas para garantir acesso à direito e fomentar o desenvolvimento do território. Ou seja, além de atuar na prevenção à direitos, busca fomentar o capital social no território (GOVERNO DE MINAS, 2009 p.41). A orientação sócio jurídica e a mediação de conflitos pretendem evitar a evolução do conflito e possíveis casos de violência, bem como motivar a resolução da própria demanda, de forma construtiva. Isso diz respeito à prevenção e ao acesso à direitos. GOVERNO DE MINAS, 2009 p.43) O desenvolvimento territorial está fundamentado na junção entre a corrente neo-institucionalista e a corrente culturalista, amplamente defendida por Fukuyama (CUNHA 2000 p.7). A corrente neo-institucionalista prega a participação estatal na articulação de políticas públicas, com fins de promover à comunidade, por meio da articulação interinstitucional, organização comunitária e obras [201]

208 públicas. A corrente culturalista preconiza que a sociedade seja capaz de passar o capital social e o desenvolvimento do território por meio da cultura. Ou seja, a evolução cultural sendo passada de geração em geração. (CUNHA 2000 p. 7-8) O PMC-MG busca despertar a autonomia e o empoderamento social do território. As partes, uma vez apta para resolver seus próprios conflitos, ocorre a redução dos fatores de riscos e o incremento dos fatores de proteção, tornando uma comunidade mais coesa e solidária, segundo Durkheim. (QUITANEIRA; BARBOSA; OLIVEIRA, 2002) Por fazer parte da Política de Prevenção à Criminalidade e Defesa Social, o PMC-MG, estuda o território mensalmente, através dos relatos dos atendimentos e de notícias locais como também, por meio de circulação nos bairros. Esse diagnóstico é norteador para futuras ações dentro do território e promover trocas de informações institucionalmente. Dessa forma, o PMC-MG, à luz da política pública, promove um arranjo entre a filosofia da mediação de conflitos a prevenção à criminalidade além de dirimir conflitos, por meio do diálogo horizontal e fomentar o território em que atua. Para além de uma pesquisa, o presente trabalho deseja impulsionar as futuras pesquisas na área de segurança pública e defesa social. METODOLOGIA Este artigo faz parte de um conjunto de estudos que tem por escopo a propagação e a consolidação da Mediação de Conflitos no Brasil. Uma pesquisa de caráter quantitativo, gira em torno da problemática da pacificação de territórios marginalizados, por meio alternativo de enfretamento a violência e a propagação da cultura de paz. A técnica de procedimento utilizada para o desenvolvimento da pesquisa foi a pesquisa bibliográfica e documental através da leitura de artigos e livros sobre a temática. Foi utilizado dados oficiais entre os anos de 2013 e 2014, disponibilizados pelo Governo do Estado. Os dados foram colhidos a partir da tabulação dos números apontados pelo Sistema de Registro de Evento de Defesa Social (REDS) e pela Diretoria do Programa Mediação de Conflitos. A divulgação foi feita pela SEDES e pela Coordenadoria Especial de Prevenção à Criminalidade (CEPC). [202]

209 Apesar de sua abrangência local, o PMC-MG acolhe atendidos de outras localidades. Como a delineação da população é baseada nas pessoas que acessão o programa, houve a necessidade de apurar melhor os dados, a partir de critérios de inclusão. Um dos critérios de inclusão foi o perfil de maior incidência de casos. Outro critério foi a própria condição de implementação do PMC-MG no território, que é o alto número de crimes de homicídio. (PORTIFÓLIO DA POLÍTICA DE PREVENÇÃO À CRIMINALIDADE, 2015). Por fim, foram analisados a evolução do homicídio tentado e homicídio consumado nas cidades de atuação do PMC-MG. Não deve ser distanciado que, tais dados possam ser influenciados por múltiplos fatores, pois não se tem como precisar os locais de homicídios que ocorreram nas cidades, tampouco sua motivação. RESULTADOS Após análise dos dados analisados fornecidos pela Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais e disponibilizado no Portfólio da Política de Prevenção Social à Criminalidade (2015), em especial, os dados da atuação do Programa Mediação de Conflitos (PMC-MG) chegou se aos resultados que serão apresentados na seguinte seção. O PMC-MG é desenvolvido em 25 regiões de Minas Gerais com altas taxas de crimes violentos. Ele se insere em equipamentos públicos denominados Centros de Prevenção à Criminalidade. (SECRETARIA DE ESTDAO DE DEFESA SOCIAL, 2016). Esses dados divulgados são resultados de relatórios quantitativos e qualitativos, desenvolvidos pela equipe técnica. A partir disso, são encaminhados para a diretoria do programa, a qual faz a tabulação e encaminha para a SDES. Esses dados alimentam um banco de dados do Governo de Minas, permitindo que sejam comparados anualmente. (PORTIFÓLIO DA PREVENSÃO SOCIAL À CRIMINALIDADE, p , 2015). No gráfico 1, a evolução do número de atendimento foi de em 2013, enquanto que em 2014 o número de atendimentos foi de Isso mostra um aumento de atendimentos, o qual contribui para aferir o aumento da confiança dos atendidos no PMC-MG e a consolidação do programa nos territórios. (PORTIFÓLIO DA PREVENSÃO SOCIAL À CRIMINALIDADE, p ). [203]

210 No gráfico 2 no mesmo período pesquisado, a porcentagem de casos em Mediação de Conflitos que chegaram a solução pacífica foi de 69,32% em 2013 e de 90,18% em 2014, registrando um aumento de 21,86%. Esses números colaboram para constatar a propagação da cultura de paz nos locais marcados pela vulnerabilidade e alta taxa de criminalidade. (PORTIFOLIO DA PREVENÇÃO SOCIAL À CRIMINALIDADE, p ). O perfil de usuário predominante no PMC-MG é do sexo feminino, pardo, com ensino fundamental incompleto. Idade entre 30 e 39 anos, trabalhando com carteira de trabalho assinada e renda média de 1 a 2 salários mínimos. (PORTIFÓLIO DA PREVENSÃO SOCIAL À CRIMINALIDADE, p , 2015). No gráfico 3, a análise é voltada para os números de homicídios consumados ocorridos nas cidades em que há o Programa Mediação de Conflitos. O número de homicídio consumado em 2013 foi de 1804 enquanto em 2014 foi de 1796, uma redução de 8 casos. No gráfico 4, foi observado os números de homicídio tentado nas cidades que o PMC-MG é atuante. Em 2013, o número de casos registrado foi de 1986, enquanto em 2014 foi registrado 1941 casos de homicídio tentado, com uma redução de 45 casos (SECRETARIA DE ESTADO DE DEFESA SOCIAL, 2015). A partir dos dados apresentados conclui-se que houve redução de casos registrados tanto em de homicídios consumados, quanto em homicídio tentado. Por outro lado, houve o aumento do acesso ao programa, bem como da porcentagem de mediação com resolução pacífica do conflito. Nessa linha, foi possível verificar os objetivos deste artigo CONCLUSÃO O Estado Democrático de Direito exerce o poder coercitivo, como também garante proteção aos direitos. O Estado deve manter a ordem social por meio da prestação jurisdicional e também por meios alternativos que atinjam o fenômeno da criminalização. O conflito e o crime são inerentes à sociedade e a mediação de conflito é uma forma alternativa de enfrentamento a violência, pois busca a resolução da demanda de forma construtiva. As partes são autoras do próprio destino da demanda, fomentando o empoderamento, a autonomia e a emancipação. O Estado de Minas Gerais tem adotado na sua política pública a filosofia da mediação, para combater a violência e marginalização em território com alto índice de homicídio. [204]

211 A partir da análise dos dados, percebeu uma redução nos índices de homicídio consumado e tentado nas cidades que abrigam o Programa de Mediação de Conflito. Essa leitura de dados confirma a revisão de literatura apresentada por este trabalho. Dessa forma, o artigo recomenda realização de novas pesquisas na área, aperfeiçoando a compreensão sobre o fenômeno da violência e da criminalidade na sociedade contemporânea. Cada vez fica mais evidente que políticas repressivas não contribuem para a pacificação social. Por isso a necessidade de se investir em meios alternativos. REFERÊNCIAS BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, Disponível em: < > BRASIL. LEI , Disponível em: <// acessado em: 3 de setembro de 2016 BRASIL. LEI , Disponível em: acessado em 3 de setembro de 2016 CARLOS, Jorge Adriano O Crime segundo a pespectiva de Drukheim, Disponível em: <ensaiosjuridicos.files.wordpress.com/2013/04/crime_durkhein.pdf> acessado no dia 23/07/2016 COMISSÃO TÉCNICA DE CONCEITO DE MEDIAÇÃO DE CONFLITOS. A Metodologia do Programa Mediação de Conflitos, Disponível em: 78b341c.pd Acessado 12/07/2016 às 17h 00 CUNHA, Luiz Alexandre Gonzalves. Confiança, Capital Social e Desenvolvimento Territorial, Revista RAEGA, ed UFRP, Curitiba, v. 1, n. 4, p , GOVERNO DE MINAS, Programa Mediação de Conflitos. Belo Horizonte MG: Ed. Ius Editora, DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ONU, [205]

212 LEITE, Fabiana de Lima, Prevenção à Criminalidade e Criminalização no Brasil, Entremeios/Universidade Federal de Minas Gerais, Ed. C.R.I.A UFMG COMUNICAÇÃO JR, p 10-13, NUNES, Antônio Carlos Ozório. Manual de Mediação: Guia Prático da Autocomposição. São Paulo: Revista dos Tribunais, MINAS GERAIS, Programa Mediação de Conflitos, 1º ed. Belo Horizonte MG: Ius Editora, QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Ligia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia de. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. 2. ed., rev. e ampl. Belo Horizonte, MG: Ed. UFMG, SÁ, Robison, AUGUSTO COMTE, POSITIVISMO E ESCOLA, 2014 Disponível em: < acessado em 10 de setembro de 2016 SANTOS, Adairson Alves dos. O Estado Democrático de Direito. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 91, ago Disponível em: <ambitojuridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=1 0143&revista_caderno=9>. Acesso em jan. 2017>. SECRETARIA DE DEFESA SOCIAL DE MINAS GERAIS. Portfólio da Política de Prevenção à Criminalidade, Disponível em: <seds.mg.gov.br/images/seds_docs/prevencao/6%20anexo%20v%20po rtifolio%20cpec.pdf> acessado em 21/07/2016. SECRETARIA DE ESTADO DE DEFESA SOCIAL DE MINAS GERAIS. Disponível em: < acessado em 08 de setembro de VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. São Paulo: Método, TOQUEVILLE, Alixis de A. Democracia na América De La Democratie Em Amerique (traduzido por Eduardo Brandão). 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, [206]

213 Gráfico 1 Número de atendimento do Programa Mediação de Conflitos / Série 1 Gráfico 2 Percentual de resolução de demanda por meios pacíficos 100,00% 50,00% 0,00% Série 1 [207]

214 Gráfico 3 Número de homicídio consumado em 2013 e 2014 Gráfico 4 Número de homicídio tentado em 2013 e 2014 [208]

215 13 JUSTIÇA RESTAURATIVA: TRANSFORMAÇÃO DE CONFLITOS, CORRESPONSABILIDADES E MEDIAÇÃO PENAL A PARTIR DE UM NOVO OLHAR SOBRE O CRIME Elaina Cavalcante Forte 1 Flavianne Damasceno Maia Campelo 2 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por fim apresentar um novo enfoque sobre a justiça criminal, cujo modelo tradicional de penas privativas de liberdade não tem respondido a contento os índices endêmicos de violência no Brasil. Para compreendermos a problemática envolvida nessa pesquisa, há que se buscar um conceito mais contemporâneo do que seja o crime e como a sociedade tem lidado com esse fenômeno social, que, segundo Durkheim 3, é necessário e útil. O sociólogo considerava o crime como um fato normal, de modo que não seria uma patologia da sociedade, e embasava sua assertiva no fato de o crime ser um fato social, estando no mesmo presente as suas características, em especial, a generalidade, ou seja onipresente em todas as sociedades. A partir desse raciocínio de Durkheim, podemos tratar o crime numa perspectiva social, onde, quando da sua ocorrência, há uma quebra da solidariedade, da coesão social e que deve ser reestabelecida, o que, nos Estados Democráticos de Direito, é realizada pelo aparato do sistema judicial. A criminologia crítica adota essa premissa durkheimiana e vai além ao defender que pessoas envolvidas em eventos criminosos não fazem parte 1 Advogada. Pós-Graduanda lato sensu em direito e processo constitucional pela ESMEC. 2 Oficiala de Justiça, formada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC), pósgraduada em Direito Penal e Processo Penal. Mestranda em Ciências Sociais na UFC. 3 DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 10. [209]

216 de uma categoria especial 4. Pelo contrário, se analisássemos todas as condutas que têm a potencialidade de serem rotuladas como criminosas, facilmente chegaríamos à conclusão de que todas as pessoas, por diversas vezes, em suas vidas, cometeram fatos que são penalmente tipificados, muito embora destaca-se que apenas uma ínfima parcela dessas condutas, praticadas por uma irrisória parcela da população tenha sido abarcada pelo controle penal formal. Nesse sentido, pode-se afirmar que o sistema penal estigmatiza e exclui pessoas. O atuar seletivo da justiça criminal cria e reforça as desigualdades sociais, o sistema criminal rouba o conflito das partes diretamente envolvidas, estigmatizando-as na dualidade conceitual de "delinquente" e "vítima". A despersonalização dos conflitos reflete o desempenho dos papéis sociais; nas sociedades industrializadas, as pessoas se conhecem em fragmentos, de acordo com os papéis que desempenham em cada cenário da vida, e o sistema penal não foge à regra, onde não se oferece oportunidade para que as partes e os operadores atuem como seres humanos integrais. A passagem para o mundo moderno, a partir dos movimentos precedidos pela Revolução Francesa, aplicou ao direito penal uma racionalização e economia das penas, surgindo uma ideia da penalização além de um efetivo castigo, mas, principalmente, procurando uma ressocialização do infrator. O fato é que, no Brasil, a realidade é de superlotação carcerária, a qual impede qualquer trabalho para reinserir os apenados no contexto social e permanentemente mantém inúmeros desrespeitos aos direitos humanos, senão vejamos, na notícia veiculada pelo site do jornal eletrônico G1.globo.com/ma/maranhão, em março de 2016: Mais de dois anos após a crise de violência no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís (MA), os governos federal e do Maranhão falharam no cumprimento das medidas aplicadas contra o Brasil em 2013 e 2014 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estado Americanos (OEA). Essa é a constatação do relatório Violação continuada: dois anos da crise em Pedrinhas, divulgado nessa terça-feira (1º). 4 HULSMAN, Louk. Critical Criminology and the Concept of Crime. In: Contemporary Crises. Law, Crime and Social Policy. Martinus Nijhoff Publishers, volume 10, p. 65. [210]

217 Assim, é notória, inclusive para os órgãos internacionais, a falência do sistema carcerário no Brasil, o que contribui, além do desrespeito aos direitos humanos, para o aumento da criminalidade, sendo um desafio inovar em técnicas processuais penais que surtam efeito dentro desse caos instalado no sistema de justiça penal brasileiro. No sistema judicial brasileiro, tem-se buscado alternativas à judicialização dos conflitos e, nesse sentido, desde a década de 90 se inseriu na legislação práticas de conciliação, a exemplo da Lei n /95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), a fim de cumprir com os princípios constitucionais de acesso à justiça, que vão além do mero acesso ao judiciário, e para que se tenha uma prestação jurisdicional que promova materialmente a solução dos conflitos. Nesse diapasão, a Justiça Restaurativa (JR) ressurge como uma espécie de justiça consensual, que se opõe ao modelo dominante no Brasil, de justiça conflitiva. A JR reaparece, no cenário mundial, na década de 70, sendo o texto Trocando as Lentes, de Howard Zehr, um marco para mudança de paradigma do sistema penal retributivo, estigmatizador, focado no autor do crime, para uma concepção de valor restaurativo das relações sociais afetadas pelo crime. Para começarmos a compreender o que seria a JR, é necessário trocarmos de lentes em relação à significação do crime, retomando como a Bíblia compreendia e da forma como nós o vivenciamos: como um dano e uma violação de pessoas e relacionamentos (ZEHR, 2008). Portanto, antes de ser uma ofensa ao Estado, o crime ou o ato infracional ofende a pessoa da vítima, e, num espectro macro, suas famílias (da vítima e autor) e a comunidade onde estão inseridos. A falibilidade do modelo de justiça retributiva está, justamente, no fato de não inserir a vítima e os demais atores sociais na construção da solução da desarmonia que causou o fato criminoso. Este é um ponto crucial que é base da JR. Portanto, a JR, nessa visão de promotora de direitos fundamentais, é um tema atual e de importância ímpar como objeto de pesquisa para contribuir com o debate da mudança de paradigmas na justiça criminal. ORIGEM DA JUSTIÇA RESTAURATIVA A Justiça Restaurativa surge em meados da década de 70, como resultado do conhecimento de antigas tradições pautadas em diálogos [211]

218 pacificadores e construtores de consensos originários de culturas africanas e das primeiras nações do Canadá e da Nova Zelândia. Foi Albert Eglash que utilizou a denominação justiça restaurativa, e que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada Restitution in Criminal Justice. Entretanto, só algum tempo depois, a partir por ocasião de uma conferência sobre os processos penais nos países europeus, se percebeu de fato que se tratava de um novo modelo de justiça restaurativa cujo nome foi criado para diferenciá-la dos modos convencionais: a retributiva, baseada na punição; e a distributiva, focada na reeducação. Mas foi em 1989 que esse movimento se reafirmou ainda mais, quando o governo da Nova Zelândia decidiu formalizar processos restaurativos como uma via para tratar infrações de adolescentes, reformulando todo o seu sistema de justiça da infância e da juventude, segundo princípios restaurativos, com impacto favorável já no primeiro ano de implantação. A partir dessa experiência, a Justiça Restaurativa começou a ser reconhecida e financiada, e outros países se sentiram mais estimulados para implementá-la. Nos anos 90, houve uma explosão de muitos projetos ao redor do mundo, tanto na Justiça como em escolas e delegacias de polícia. Alguns trabalhavam crimes graves, outros só crimes leves. Sendo, ainda, realizadas experiências em cortes trabalhistas e também nas comissões de verdade e reconciliação, que também utilizavam procedimentos de Justiça Restaurativa, e foram muito importantes na África, principalmente na África do Sul, no pós-apartheid. Depois de muitas iniciativas restaurativas ao redor do mundo, uma resolução do Conselho Econômico e Social da ONU (2002), tratou de inserir a abordagem restaurativa a todas as práticas judiciárias, tornandoas disponíveis em todas as fases do processo legal, mas utilizadas somente com o consentimento livre e voluntário das partes. Segundo a resolução, na fase preparatória, os programas devem promover pesquisa e avaliação, visando melhorar a extensão dos resultados, se as intervenções representam alternativa concreta e viável no contexto do processo e se propiciam benefícios para todas as partes envolvidas, incluindo para o próprio sistema de justiça. [212]

219 JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL A JR no Brasil tem mais de 10 anos, tendo sido implementados os projetos-pilotos em São Caetano do Sul/SP, Porto Alegre/ RS e Brasília/DF. Entretanto, seu uso não progrediu muito nesse tempo, apesar das experiências positivas implementadas nesses projetos iniciais. O Código Penal Brasileiro (CPB), o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei n /95 são exemplos de legislações que contemplam dispositivos que podem servir de esteio para o desenvolvimento de projetos restaurativos. Entre os dispositivos legais que podem ser utilizados para contemplar a justiça restaurativa, temos os artigos 105 5, o artigo e o artigo 107 7, do Código Penal, cujos dispositivos prescrevem que, nos casos de perdão do ofendido, deve-se considerar extinta a punibilidade do ofensor, em razão do acordo elaborado a partir da prática restaurativa. O art. 74 8, parágrafo único, da Lei n /1995, que dispõe sobre os Juizados Especiais, previu expressamente a hipótese de renúncia ao direito de representação, o que possibilita, em razão da construção de um acordo restaurativo, a desjudicialização do conflito. O Estatuto da Criança e do Adolescente, elaborado partir da doutrina da proteção integral da criança e do adolescente, também prevê mecanismos 5 Art O perdão do ofendido, nos crimes em que somente se procede mediante queixa, obsta ao prosseguimento da ação. 6 Art O perdão, no processo ou fora dele, expresso ou tácito: I - se concedido a qualquer dos querelados, a todos aproveita; II - se concedido por um dos ofendidos, não prejudica o direito dos outros; III - se o querelado a recusa, não produz efeito. 1º - Perdão tácito é o que resulta da prática de ato incompatível com a vontade de prosseguir na ação. 2º - Não é admissível o perdão depois que passa em julgado a sentença condenatória. 7 Art Extingue-se a punibilidade: [...] V - pela renúncia do direito de queixa ou pelo perdão aceito, nos crimes de ação privada. 8 Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo civil competente. Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa ou representação. [213]

220 procedimentais flexíveis, como a remissão, os quais possibilitam a adaptação de projetos restaurativos. Diante desse aparato infraconstitucional, a Justiça Restaurativa mostra-se juridicamente viável no nosso ordenamento, sendo prescindíveis reformulações legislativas que prevejam explicitamente sua aplicação. Basta que os institutos penais já existentes tenham sua interpretação reformulada. Para tanto, é necessário que haja uma vontade política nessa direção. Inspirado nesse turning-point paradigmático da denominada Justiça Penal Negociada que privilegia o elemento consensual, foi dado o marco inicial de implantação da Justiça Restaurativa, a partir da edição da Resolução n. 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cuja ementa dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário, cuja meta prevê que deverá ocorrer até dezembro do ano de Essa resolução estabelece que os Tribunais de Justiça deverão implantar programas de Justiça Restaurativa e, por meio das Escolas Judiciais e Escolas da Magistratura, promover cursos de capacitação de facilitadores em Justiça Restaurativa. Portanto, a partir de 2017, provavelmente, haverá Centros de Justiça Restaurativa distribuídos em todos os estados brasileiros. JUSTIÇA RESTAURATIVA: A JUSTIÇA PARA O SÉCULO XXI Para compreendermos o que é esse novo movimento de Justiça no campo da vitimologia e da criminologia, é necessário conceituar o que é a Justiça Restaurativa. Em entrevista ao CNJ, o juiz Asiel Henrique de Sousa, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), explica: Costumo dizer que Justiça Restaurativa é uma prática que está buscando um conceito. Em linhas gerais, poderíamos dizer que se trata de um processo colaborativo voltado para resolução de um conflito caracterizado como crime, que envolve a participação maior do infrator e da vítima. Portanto, o maior diferencial ao sistema retributivo é o envolvimento da vítima em busca de construir uma solução para o conflito, onde prevaleça a responsabilização do acusado e a reparação do dano, restaurando as relações sociais e promovendo a paz na comunidade. Ademais, o sistema restaurativo é o que mais se coaduna com os direitos fundamentais, visto que há uma tentativa de recomposição das relações e do envolvimento da comunidade, dando eficácia social ao [214]

221 princípio da dignidade humana, tornando esses direitos uma realidade jurídica, e não apenas uma mera positivação constitucional. Nesse sentido, se demonstra a mudança de paradigma que a Justiça Restaurativa propõe, inclusive, quando se tem por objetivo a efetivação dos direitos fundamentais. Em superação ao sistema retributivo, os direitos humanos são apenas instrumento de controle da força estatal na penalização do indivíduo. A Justiça Restaurativa, embora não necessite de uma mudança imediata da legislação para sua implementação, não se coaduna com o sistema criminal que vige atualmente no Brasil e, a partir da sua implantação e resultados, é que poderemos apreender toda a sua potencialidade de transformação do sistema penal formal. Entre os aspectos de sua contemporaneidade, o diferencial está no empoderamento da vítima, que, no processo restaurativo, tem suas necessidades supridas e envolve a comunidade em protagonizar as soluções de seus conflitos. Portanto, a Justiça Restaurativa é um conjunto de práticas que visam alcançar a paz social, empoderar a comunidade na busca de solução para seus conflitos com a consequente desjudicialização dos mesmos. Pressupõe a mudança de uma cultura de justiçamento para uma cultura de paz. JUSTIÇA RESTAURATIVA E DIREITOS FUNDAMENTAIS Com relação aos direitos fundamentais, em consonância com o sistema de justiça criminal presente no ordenamento pátrio, pode-se afirmar que estes funcionam como uma garantia no cumprimento da pena, regulando o possível excesso de punir do Estado. Os direitos fundamentais surgiram da necessidade de se proteger o indivíduo do poder estatal, e são resultados de uma lenta transformação social, política e jurídica. A fim de dar eficácia social e internacionalizar a dignidade da pessoa humana, matriz de todos os demais direitos fundamentais, na qualidade de meta-princípio, a Organização das Nações Unidas, por meio do Conselho Econômico e Social, editou a Resolução n. 12/2002, que trata sobre os princípios básicos dos programas de Justiça Restaurativa e, dentre outros, demonstra a preocupação de que se deve observar a dignidade da pessoa humana na implantação de projetos restaurativos, a fim de se evitar violações a direitos e garantias individuais. [215]

222 A primeira observação a ser feita é a previsão do parágrafo 8º 9 da Resolução, que exige consenso entre as partes em relação aos fatos essenciais relativos ao conflito. O ofensor deve, ainda, aceitar sua responsabilização. Destaca-se, também, a garantia prevista na primeira parte do parágrafo 7º 10, que exige que os procedimentos restaurativos só devem ser implementados quando há evidências suficientes para sustentar uma acusação contra o ofensor. Nesse quesito, entendemos haver duplo aspecto. Inicialmente, significa o respeito ao princípio da legalidade. A voluntariedade das partes na participação dos programas também é uma garantia que está prevista na Resolução n. 2002/12, em seus parágrafos 7º (parte final) e 13 11, alíneas b e c. Elas devem ser adequadamente informadas a respeito da natureza dos procedimentos, de seus direitos e das possíveis consequências de sua participação. Outro aspecto que deve ser observado é o direito à privacidade das partes envolvidas, pois a construção da solução diz respeito à esfera íntima dos participantes, devendo toda a prática ser protegida pelo sigilo. Outra observação, trata da diferença material entre vítima e ofensor que possa comprometer a integridade física ou psicológica dos participantes, se deve prevalecer a segurança diante da prática restaurativa, em defesa da dignidade da pessoa humana A vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos essenciais do caso sendo isso um dos fundamentos do processo restaurativo. A participação do ofensor não deverá ser usada como prova de admissão de culpa em processo judicial ulterior Processos restaurativos devem ser utilizados somente quando houver prova suficiente de autoria para denunciar o ofensor e com o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor. A vítima e o ofensor devem poder revogar esse consentimento a qualquer momento, durante o processo. Os acordos só poderão ser pactuados voluntariamente e devem conter somente obrigações razoáveis e proporcionais As garantias processuais fundamentais que assegurem tratamento justo ao ofensor e à vítima devem ser aplicadas aos programas de justiça restaurativa e particularmente aos processos restaurativos; a) Em conformidade com o Direito nacional, a vítima e o ofensor devem ter o direito à assistência jurídica sobre o processo restaurativo e, quando necessário, tradução e/ou interpretação. Menores deverão, além disso, ter a assistência dos pais ou responsáveis legais. b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes deverão ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as possíveis consequências de sua decisão; c) Nem a vítima nem o ofensor deverão ser coagidos ou induzidos por meios ilícitos a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do processo. [216]

223 Os direitos fundamentais também devem intervir sempre que as relações de hierarquia e poder vierem a prejudicar a busca da construção de uma solução livre, pois mesmo que o facilitador não seja hierarquicamente superior, há relações de poder que envolvem os círculos. Por fim, para que as práticas restaurativas não acarretem em violação a garantias e direito individuais, os acordos também devem observar certos princípios. O primeiro deles se refere ao conteúdo dos acordos, os quais não devem conter obrigações desarrazoadas ou desproporcionais, devendo estar em harmonia aos direitos fundamentais e humanos. Para que a Justiça Restaurativa efetivamente contribua para a construção de uma sociedade que respeite os direitos humanos, há uma gama de princípios que devem ser respeitados, os quais a doutrina tem prestado grande atenção e que tivemos a chance de discorremos sobre apenas alguns deles, sem que tivéssemos a pretensão de exaurir a temática. PROCEDIMENTOS RESTAURATIVOS Segundo Mara Schiff (2013), os procedimentos restaurativos podem ser organizados em quatro categorias primárias, quais sejam: mediação vítima-ofensor; conferência de grupo familiar ou conferência comunitária; círculos de sentença comunitários e painéis comunitários. Abaixo, seguem algumas características: - Mediação Vítima-Ofensor: os programas de mediação vítima-ofensor são as práticas mais comuns em Justiça Restaurativa. Baseiam-se em um encontro face a face entre as partes, num ambiente informal e seguro, onde será estimulado o diálogo. Podendo ser precedidos de encontros em separado entre vítima e ofensor. Após esse procedimento, vítima e ofensor firmam um acordo sobre como serão reparados os danos decorrentes do conflito, com obrigações que poderão ou não ser patrimoniais. - Conferência de Grupo Familiar e Conferência Comunitária: as Conferências de Grupo Familiar, assim como o programa de mediação vítima e ofensor, se baseiam em reuniões com os envolvidos no conflito, acompanhadas, porém, de amigos, familiares ou pessoas que, de alguma forma, sejam importantes para elas, como, por exemplo, professores (membros da micro comunidade). Ao final, é firmado um acordo que segue assinado por todos e, assim, os participantes, coletivamente, contribuem para a solução do problema. [217]

224 - Círculos de Sentença Comunitários: tal qual a Conferência Comunitária, os Círculos de Sentença envolvem a participação dos personagens que vivenciaram o conflito, seus amigos, familiares, membros da comunidade e, de acordo com o programa em questão, personagens do sistema judicial, como juiz, promotor, policiais, advogados, a fim de que esses, coletivamente, troquem experiências e, ao final, firmem um acordo tendente a reparar, simbólica ou materialmente, os danos. - Painéis Comunitários: esses projetos são geralmente utilizados para os casos em que a prática do crime gera sensação de diminuição da qualidade de vida em toda a vizinhança. Nele, não há necessidade da participação da vítima que foi diretamente afetada. Membros da comunidade decidem como o ofensor deve reparar o dano que causou. Depois, é feita uma reunião com o ofensor, oportunidade em que lhe será transmitido como a comunidade analisou a conduta lesiva, suas implicações e a reparação que foi entendida como apropriada. CONCLUSÃO Os princípios que norteiam a Justiça Restaurativa, em sua essência, podem ser resumidos na idealização de uma justiça penal que objetive a construção de uma sociedade harmônica e solidária, que, em respeito à especificidade humana, proporcione que os conflitos sociais obtenham soluções substantivamente justas, igualitárias e apaziguadoras. Este modelo de justiça pressupõe o empoderamento das partes (vítima ofensor comunidade), para construção de uma solução que objetiva à reparação dos danos entendido em seu aspecto mais amplo e que o respeito às normas sociais seja estabelecido por um procedimento dialógico que proporcione verdadeira reflexão e, através disso, a justiça penal seja capaz de promover a coesão social, ao invés do que ocorre atualmente com o sistema retributivo, categoricamente estigmatizador das partes envolvidas nos conflito. Ressalte-se que a informalidade dos procedimentos restaurativos e o distanciamento da jurisdição, não implicam em violação a direitos ou garantias individuais das partes; ao contrário, a promoção dos direitos fundamentais é um de seus alicerces, estando plenamente de acordo com os fundamentos e objetivos do Estado Democrático de Direito brasileiro de [218]

225 garantir a dignidade da pessoa humana e construir uma sociedade livre, justa e solidária, conforme delineado pela nossa Constituição Federal 12. Portanto, os programas restaurativos não devem estar necessariamente inseridos no sistema criminal estatal, podendo serem manejados pela sociedade civil organizada. Constatamos também que a interpretação sistemática dos institutos penais previstos no ordenamento jurídico brasileiro possibilita a intercomunicação entre os programas comunitários de Justiça Restaurativa e o sistema criminal formal. A importância da Justiça Restaurativa no Brasil, nesse momento de amadurecimento das instituições estatais, em especial do Judiciário, tem um significado importante, pois transmite a sensação de que a democracia brasileira poderá enfim adentrar em outro estágio, onde possa se afastar da hegemonia estatal no que diz respeito à solução dos conflitos. Ou seja, a Justiça Restaurativa permite a desjudicialização dos conflitos sociais, o que tem pertinência, principalmente, em um país com dimensões continentais e uma diversidade cultural inigualável, onde um sistema rígido de criminalização não leva em conta as especificidades de cada região. Tal aspecto é totalmente respeitado nas práticas restaurativas, pois permite que própria comunidade procure uma solução para os conflitos que lhes aflige, fortalecendo os laços sociais e a responsabilidade de cada indivíduo com todos da comunidade. REFERÊNCIAS AGUINSKY, Beatriz; CAPITAO, Lúcia. Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da Justiça Restaurativa. Rev. katálysis, Florianópolis, v.11, n.2, p.257/264, dez Disponível em< script=sci_arttext&pid=s &lng=pt&nrm=iso>ac essoem 14 out Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...); III - a dignidade da pessoa humana; (...) Artigo 3º da Constituição Federal de Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...) [219]

226 BAZEMORE, Gordon; SCHIFF, Mara. Juvenile justice reformand restorative justice. Routledge, BRANDÃO, Delano Câncio. Justiça Restaurativa no Brasil: Conceito, críticas e vantagens de um modelo alternativo de resolução de conflitos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 77, jun Disponível em: <http: // index.php?n_ link=revista_artigos_leitura&artigoid=7946>. Acesso em out BRASIL, Constituição Federal de Constituição da República Federativa do Brasil de Diário Oficial da União, Brasília, 5 out Disponível em: < Acesso em 20 abr BRASIL. DECRETO-LEI N o 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE Código Penal. Disponível em: < Acesso em 20 abr BRASIL. LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em:< Acesso em 20 out BRASIL. Lei nº 9.099/95. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 26 set. de Disponível em: < Acesso em 20 abr BRASIL. Resolução n. 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça. Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: < _ _ pdf>. Acesso em 20 out DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 10. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Nascimento da Prisão. Trad. Raquel Ramalhete. 23a Ed. Vozes - RJ, GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. 4ª ed. Editora LTC, [220]

227 HULSMAN, Louk. Critical Criminology and the Concept of Crime. In: Contemporary Crises. Law, Crime and Social Policy. Martinus NijhoffPublishers, volume 10, p. 65. O POVO. Brasil descumpre medidas para complexo de Pedrinhas. Disponível em:< Acesso em 15 set ONU. Resolução 2002/12. Dispõe sobre princípios básicos para utilização de programas de Justiça Restaurativa em matéria criminal. Disponível em:< adepaz/material_de_apoio/resolucao_onu_2002.pdf>. Acesso em 20 abr PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil. O impacto no sistema de Justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.1432, 3 jun SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal. O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, SILVA, José Eduardo Marques da. Justiça Restaurativa: da retribuição à restauração. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2799, 1 mar Disponível em: < Acesso em 15 out SILVA, Maria Coeli Nobre. Justiça de proximidade-restorative justiceinstrumento de proteção e defesa dos direitos humanos para a vítima. Curitiba: Juruá, Zehr, Howard. Trocando as Lentes: Um novo foco sobre o crime e a justiça. Justiça Restaurativa. São Paulo: Palas Athena, [221]

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229 14 NORMA E LINGUAGEM: PARADOXOS DO EXCEDENTE DO DISCURSO JURÍDICO 1 Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos 2 Ana Maria Almeida Marques 3 INTRODUÇÃO A pragmática, uma das principais vertentes da linguística contemporânea, teve início com os fundamentos teórico de Charles Sanders Pierce, de 1878, no artigo How to make our ideas clear, que buscou estudar o significado dos enunciados linguísticos. Consoante Pierce (1995), o significado de um conteúdo consiste em sua contribuição à organização unificadora da vida prática ao controle da conduta. Posteriormente, Pierce cria uma nova forma de analisar essa relação instituindo a Semiótica, ao trabalhar com o significado e o representamen: Um signo, ou representamen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen. (PIERCE, 1995, p.46). Conforme Charles Morris (1938 apud Armengaud, 2006, p.11) pragmática é a parte da semiótica que trata da relação entre os signos e os 1 Artigo de investigação sobre a relação entre a linguagem, como um sistema de signos e uma ação social dinâmica, e o Direito. Estudos realizados nos Laboratórios de Linguagem, Comunicação e Subjetividade-LinCoS do Centro Universitário Estácio do Ceará e LINC - Linguagem e Cognição da Universidade Estadual do Ceará. 2 Doutora e Pós-Doutora em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Professora Titular do Centro Universitário Estácio do Ceará e Professora Adjunta da Universidade Estadual do Ceará e do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada-PosLA-UECE. leticia.santos@uece.br. 3 Advogada, Psicóloga, Professora Assistente do Centro Universitário Estácio do Ceará, Coordenadora da Pós-graduação em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário do Centro Universitário Estácio do Ceará, Mestra em Políticas Públicas e Sociedade. mrqsana@gmail.com [223]

230 usuários dos signos. Ampliando essa conceitualização, Francis Jacques, apud Armengaud (2006), afirma que a pragmática aborda a linguagem como fenômeno simultaneamente discursivo, comunicativo e social. A partir dessa reflexão, apela-se para Bakhtin (1981) quando vincula a perspectiva comunicacional, por meio principalmente das interações verbais a interações sociais de caráter amplo, que relaciona a vivência cotidiana de cada sujeito, reveladora de uma natureza interativa que não diz respeito exclusivamente ao discurso oral. Nessa vivência se enxerga o Direito em sua dimensão constitutiva e social. Nessa esteira é que se evoca igualmente as ideias dos autores acima referenciados, para em articulação com os estudos realizados John Austin (1990), enquanto uma contribuição fundamental à filosofia jurídica e a sua articulação aos estudos linguísticos, por ter apontado a dimensão performativa ("to perform") da fala, expressando-a como ação real e demonstrando a intrínseca ligação entre filosofia da linguagem e filosofia do Direito. Não se pode compreender o Direito apenas do ponto de vista técnico. Pensar o Direito é pensar antes de tudo naquilo que o estrutura e o constitui: a linguagem 4. Afinal, seria insuficiente tomá-lo apenas como um conjunto complexo de regras normativas e estáticas, confundindo-o com a própria norma, pois o Direito não se esgota na lei. As codificações jurídicas podem ser vistas como princípios de racionalidade que, na verdade, não esgotam o Direito, mas o posiciona para além dos Códigos, pois não há como se pensar o Direito, destituído de sua aplicação na vida cotidiana, que requer uma aplicação prática de seus conteúdos e, evidentemente, de seu modo de ler e intervir na realidade. É neste sentido que se pretende, por meio do presente estudo, contribuir para uma análise que torne evidente a interrelação entre Linguagem e Direito, como ação social, ou mais precisamente, uma forma de agir no mundo. 4 Nas palavras de Ivan Corrêa, a língua estaria bem estabelecida na gramática, com regras fixas; e parafraseando Jacques Lacan, com a linguagem, faz-se dela o que quer. (CORRÊA, 1997). [224]

231 A LINGUAGEM NORMATIVA E A REGULAÇÃO DO GOZO SEMÂNTICO Para Marcelo Guerra (2004), norma é definida como uma entidade semântica, prescrevendo que: (...) como quer que seja, um primeiro e importante passo na definição de norma é enquadrá-la no genus (gênero próximo) dos conteúdos intensionais ou entidades semânticas. Tal enquadramento permite compreender, por exemplo, porque normas podem comparecer em diferentes tipos de atos de fala: podemos sugerir uma norma, reportar a existência de uma norma, derrogar uma norma e até, pôr uma norma. Mas apenas um desses atos linguísticos consiste na subscrição da norma, podendo ser caracterizado como ato de fala normativo. Dessa maneira, a definição de norma como entidade semântica nos leva a pensá-la não como proposição 5 absoluta, mas, por ser constituída pelos elementos ensejadores da própria língua, é limitada na sua proposta de regular as condutas. Afinal, a conduta é individual, personalíssima, que por seu caráter subjetivo, carrega as contradições inerentes à própria natureza humana. Tanto é desta maneira que a norma é ferida a cada vez que a conduta com ela colide: a conduta positivada por si não garante o seu cumprimento. Para Saussure "a língua é uma forma e não uma substância" (MILNER, 1987). Isso é, o real da língua, é da ordem do calculável; a língua real atende a requisitos de uma construção lógica, dotada de sentido, identidade, diferença e regras. Entretanto, na ordem cotidiana (e mesmo na real), a língua resguarda a contradição de si pelas brechas que nela a todo instante se revelam. No caso do Direito, é impossível ao legislador, por meio das palavras proferidas, encerrar a vida em um conjunto de regras. A complexidade da vida não permite que isso ocorra: para cada ser falante (falasser parlêtre - assim definido por LACAN, 1998) é possível a recorrência de sentidos diversos para o que é lido, escrito, falado, enfim, transmitido. Os paradoxos e equívocos existem tanto no campo da conduta quanto no campo da linguagem. 5 Diz Karl Lorenz:... a regra do Direito tem a forma linguística de uma proposição, a "proposição jurídica". (...) A proposição jurídica deve distinguir-se, em virtude do sentido normativo que lhe é correspondente, de uma proposição enunciativa, que contém uma afirmação de fatos ou de uma constatação. De igual modo deve-se distingui-la daquelas proposições que contêm enunciados sobre Direito vigente, onde se fala de normas jurídicas..." (LORENZ, 1983, p.298). [225]

232 Nesse sentido, a linguagem é a expressão do social concretizada por meio do discurso de cada um com ênfase na coletividade. Não haveria fala ou seres falantes se não fosse a esfera da convivência, pois, ao contrário, não haveria porque significar algo para outro e a isso ser dada uma continuidade. Talvez seja essa consideração explicada pelo jusnaturalismo em sua origem, assim como no mito Totem e Tabu de Freud, que inaugurou a convivência entre os falasseres pela renúncia ao gozo 6. A castração, o pai morto, o temor (talvez ainda hoje o que põe a Lei como referencial da maioria das condutas em sociedade), o vazio, são equivalentes ao Leviatã de Hobbes, na constituição de um discurso impeditivo do gozo absoluto por parte de todos, mediado pelo "grande monstro", o Estado: [Da]igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas o seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. [...] E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo. E isto não é mais do que sua própria conservação exige, conforme geralmente é admitido. (HOBBES apud RIBEIRO, 2002, p ). Aplicar-se-ia também aqui a ideia da "textura aberta da linguagem", proposta por Waismann e posteriormente trabalhada por Hart (1986), que problematiza a certeza do discurso jurídico. Conforme Quinet (2001): (...) O campo do gozo com seus discursos é a resposta de Lacan ao mal-estar na civilização elaborada depois do movimento estudantil de 1968 na França, que se caracterizou pela contestação geral da autoridade. Assim, retoma Freud que afirmou ser a relação entre as pessoas a maior fonte de sofrimento humano. O mal-estar é representado nos discursos por um elemento heterogêneo, o "objeto a", que expressa a parte excluída da linguagem e aquilo que a civilização exige que o homem renuncie, ou seja, os objetos de suas 6 O gozo seria falar ou acessar o discurso absoluto; a verdade real; a certeza de que a palavra aplicada indica com segurança e de forma conclusa a ação ou ato que se quis aplicar ou transmitir. [226]

233 pulsões. Esse objeto recebe o nome de objeto "mais-de-gozar", extraído do conceito marxista de mais-valia. Os laços sociais e os atos "os quatro discursos" são ditos "do mestre, do universitário, do analista e da histérica" que correspondem às práticas de governar, educar, psicanalisar e fazer desejar. O poder, o saber, o sujeito e o gozo estão presentes em todas essas práticas, porém de modos distintos. São laços sociais estruturados em torno da relação do agente e de seu outro (o parceiro), revelando a "verdade" a partir da qual cada agente se autoriza a agir e inscrevendo o que é esperado que o comandado, o outro, produza. (...) Os quatro discursos determinam quatro distintas formas de ato: o ato governamental, o ato educativo, o ato histérico e o ato analítico. Cada modalidade de ato é caracterizada pro seu agente: a lei, o saber, o sintoma e o objeto a. o que caracteriza um governo não é o que dizem os políticos, mas sim os seus atos." (JORNAL DO BRASIL, 2001). Nessa perspectiva dá conta da compreensão do "matema do discurso que escreve uma lógica coletiva (...). Isso é, um discurso não liga um sujeito a um outro. Um discurso é a maneira como o sujeito se situa em relação ao ser, é uma regulação do gozo". (GOLDENBERG, 1997). Disso se pode inferir que o discurso é uma tentativa de uma construção lógica, como já dito no início deste trabalho, sustentado pela interface da linguagem, que guarda contradições. São os paradoxos da fala que não dão conta do todo, pois trazem em seu bojo sua própria limitação. Parafraseando Milner (1986), o todo não se diz. Dessa feita, as regras, expressões da conduta firmadas pela língua, encontram sua limitação a partir do que textualmente perseguem alcançar pois, como qualquer outro recurso de linguagem, carregam em sua essência a negação de si próprias. Nas palavras do professor Glauco Magalhães, "a interpretação gramatical ou literal é necessária, mas não suficiente". (MAGALHÃES, 2002, p.32). 7 FALA, PENSAMENTO E REALIDADE: MYTHOS E LOGOS Como é possível, então, o processo da comunicação entre os sujeitos assujeitados pelo que não sabem (conscientemente) que não controlam (o 7 É importante que se destaque que neste trabalho não se tem a pretensão de trabalhar com os elementos da hermenêutica clássica. A ideia aqui é a de pensar o "excedente" que entra no conceito de ação humana, perpassada pela linguagem (pela diferenciação dos elementos da fala); a proposta é a de pensar linguagem e determinação do Direito; pensar a norma dotada de um sentido que não é dotado de objetividade. [227]

234 deslizar significante do discurso)? Como falar em intersubjetividades se cada um quando fala, fala de si e a partir de si, e de seus referentes? Em um primeiro plano, para que seja possível a comunicação, é necessário que haja um sistema comum de representação simbólica que referencie os sujeitos uns para os outros. Talvez aqui caiba a concepção de Reboul (2001) sobre a "pressuposição" que, sob a nossa ótica, não se reduz meramente ao implícito da fala e também não seria desse implícito uma variação. A noção de pressuposição parte da ideia de que "uma pressuposição é uma proposição implicada em um senso particular do termo". Um aspecto interessante a ser mencionado é que se pode chegar à conclusão da veracidade de uma sentença a partir de sua negação. Veja-se, por exemplo, que diante de duas portas idênticas fisicamente, sem identificação alguma (identificação sígnica), ao usuário é impossível saber qual delas indica a entrada do banheiro masculino ou feminino, justamente por lhe faltar o elemento de referência simbólica (ao nível do símbolo da linguagem). Numa segunda situação, diante de duas portas nas quais está escrito em uma "masculino" e na outra "feminino", pela contraposição, pela negação de uma diante da outra, pelo uso da pressuposição (referência pressuposta) será possível, ou não, ao usuário saber por qual porta passar. Se o usuário não souber ler, mesmo com essa identificação simbólica, por lhe faltar a apreensão dos elementos linguísticos básicos, não lhe será possível significar. Talvez se tivéssemos uma representação icônica, fosse mais fácil identificar a porta que intencionava abrir. Pode-se, então, a partir do que foi dito acima, encaminharmo-nos pela ideia da "não-literalidade da sentença", preconizada por Bach (2001), da qual se entende que todas as palavras têm significados literais, mas podem ser empregadas em sentidos não-literais. É válido acrescentarmos que a literalidade dos enunciados, das palavras é algo extremamente complexo e fonte de inesgotáveis discussões teóricas na área dos estudos da linguagem. É interessante que se perceba a falaciosa discrepância que há entre conduta e fala; ato e discurso. É nessa discrepância que se encontra marcado o vazio que se perfaz e refaz a cada construção da fala, que indica o próprio ato (o verbo é ação). O vazio que aqui mencionamos é a própria brecha deixada pela letra da norma, tratada por Hart, citado por Struchiner (2002), como "textura aberta da linguagem" e que aqui trataremos como o não-dito. E o não-dito, apesar do silêncio que sugere, é perceptível a cada ato da fala ou a cada ato falho; ou até a cada silêncio ao outro ofertado. [228]

235 O não-dito é aquilo que está nas entrelinhas da norma (discurso positivado) e que justamente permite ao operador do Direito o trabalho da interpretação por passear no ordenamento jurídico, tal como o deslize do signo no que Saussure (1986) 8 define como diferença para as relações entre significantes e para as relações entre significados. Esse deslizar do signo é o que promove os significados diversos. É o operador do Direito no contexto jurídico, como agente do discurso, refém do seu próprio dizer, que nos deslizes da fala, falando mesmo de si, busca atingir a um outro com seu repertório de tal modo a convencê-lo ou demovêlo de algo. No caso, o juiz. Para melhor se compreender esta ideia, recorremos a Luís Cláudio Figueiredo que entende que: (...) o sistema de signos estabelece equivalência entre: uma série de diferenças entre significantes e entre significados e para as relações entre esses significados Saussure reserva o termo diferença, enquanto que as relações entre signos são denominadas oposições. Um signo opõe-se a todos os outros presentes na seqüência verbal que o precedem e o sucedem (dimensão sintagmática) e a todos os ausente a que se poderia chegar por associação e, eventualmente, poderia ocupar seu lugar na seqüência (dimensão paradigmática) (FIGUEIREDO, 1991, p.161). É a partir desses argumentos que se entende que o Direito repousa sobre, na e pela linguagem, pois é efeito e é feito dela (da língua/linguagem/contexto). Peculiar ao ser humano, é impossível separar a fala do ato; o sujeito do objeto; a ação de seu consequente resultado. Para se ter uma ideia do quanto essa concepção está calcada em referenciais históricos, os gregos usavam duas palavras para se referirem à linguagem: mythos (no sentido de que os homens, mediante palavras, conseguem organizar a realidade e interpretá-la) e logos (que significa a síntese de três conceitos: fala (palavra), pensamento (ideia) e realidade (ser)) 9. Portanto, desde os tempos helênicos, palavra e ato, intenção e fala, o que se pensa e o que se diz, o que se quer e busca e o que se faz e encontra, enfim, a busca 8 Pulcinelli Orlandi esclarece que "(...) Uma distinção importante que Saussure faz é a que separa língua e fala. Para ele, a língua é um sistema abstrato, um fato social, geral, virtual; a fala, ao contrário, é a realização concreta da língua pelo sujeito falante, sendo circunstancial e variável". (ORLANDI, 1986). 9 Esta é uma construção de Lincoln Antônio de CASTRO, [229]

236 no real, através do conteúdo representacional do discurso, funciona como um espelho que truncadamente reflete a própria imagem do orador. DIREITO E INDETERMINAÇÃO SEMANTICA No contexto do Direito, cabem alguns questionamentos, tais como: até que ponto o formalismo jurídico garante a justiça e a certeza (proporcionando segurança) do que é proferido nas decisões judiciais? A objetividade da norma garante a extensão daquilo que possa alcançar em termos da conduta geral? A decisão judicial depende do contexto? Depende da face subjetiva de quem tem a decisão textual? E se a formulação normativa (legislativa) depender do contexto, quais fatores desse contexto determinam o sentido do texto normativo? Quais os papeis ou como definiríamos os papeis do legislador (no ato de criar a norma), do advogado (quando trabalha com o texto da norma) e do juiz (no ato de interpretar e aplicar a norma)? O legislador cria norma ou cria signo (as unidades significativas) a serem significadas? Para Orlandi, os sinais que o homem produz quando fala ou escreve são chamados SIGNOS. [...] Os signos são fundamentais, pois dão ao homem sua dimensão simbólica: esta que o liga aos outros homens e à natureza, isto é, a sua realidade social e natural." (1986, p ). Essas são algumas questões que apontam para uma indeterminação semântica e pragmática das normas gerais, pois nem sempre o que se diz é realmente o que se quer dizer. Isso nos remete à construção de Bach (2001) quanto à noção da "não-literalidade" e disso se percebe que nem sempre o que se diz, e aqui retornando ao ponto já indicado neste texto, é o que se quer dizer. Dito de outro modo, a "não-literalidade" de Bach (2001), a "textura aberta da linguagem" de Waismann, o "pragmatismo dos atos da fala" de Austin, para citar alguns exemplos, indicam o que constitui não apenas o discurso, mas a matéria-prima que faz a norma (regra) jurídica, que, por si, é limitada pela questão semântica e que por isso mesmo não ou nunca poderá ser superada. Defendemos aqui, portanto, que ao homem é impossível dar conta da linguagem, do todo, do real; que é impossível que seja o Direito determinado pelo texto normativo ou pelas regras correntemente utilizadas pelos magistrados quando se deparam com as lacunas e/ou antinomias. Uma forma de certificar isso é o reconhecimento, por exemplo, de que os [230]

237 Princípios Constitucionais não precisam estar positivados para terem sua existência reconhecida e aplicabilidade implementada. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das leituras percorridas para o desenvolvimento deste trabalho, entendemos preliminarmente que o exame do Direito sob o foco da linguagem é indissociável da noção lógica do dever-ser, preconizada nos textos jurídicos, no sentido de que a previsão normativa só se constitui e resulta em consequências quando se liga a um evento fático. Evento fático pode ser compreendido como um ato e, na concepção de Austin, ao se investigar a linguagem está se investigando uma ação, uma forma de interação social. Percebemos, portanto que não é possível um evento que rompa as ligações entre linguagem e ação, realidade e fala, cultura e interpretação. Entendemos também a partir do que foi abordado que as normas não necessariamente são imperativas, como parecem demonstrar os textos dos códigos, que indicam ao estudioso menos observador, que esses irão prescrever ou proibir uma determinada conduta. Ou seja, dar conta de providências que devam ou não serem tomadas pelo risco de uma sanção 10. Neste trabalho, procuramos considerar uma análise que relacionasse a interface entre norma e linguagem, no intuito de fomentar questões e despertar o interesse pelo tema, tão importante para se compreender a lógica discursiva nos textos legais e, quiçá, das decisões judiciais. Quando se trata de linguagem, não se trata meramente do uso das palavras, das regras gramaticais, das expressões idiomáticas. Pelo contrário, a linguagem é um jogo, é uma forma de atuar socialmente em que os signos (significante, significado e referente) são formados de paradigmas cognitivos, culturais e sociais heterogêneos, portanto, não há uma verdade universal e um valor absoluto. Tudo é relativo aos contextos em que é produzido. Quando se trata de estudar o Direito, é necessário considerá-lo dinamicamente e não apenas cristalizado em um conjunto de normas. Direito e linguagem, linguagem e norma, tratam na verdade de um estudo da ordem do social 10 (...) nem toda a norma jurídica contém assim necessariamente um comando ou uma proibição, mas contém decerto uma ordenação de vigência. O sentido como proposição normativa é colocar em vigência consequências jurídicas. De acordo com a sua forma lógica, uma proposição hipotética. O que quer dizer é: sempre que uma situação de fato concreta S realizar a previsão P, vigora para esta situação de fato a consequência C; mais concisamente: para cada caso P vigora C." (LARENZ, 1983, p.304). [231]

238 concreto, do ato em si que se faz pela conjugação verbal, pertencente a um mundo fático, na perspectiva da imposição pela força de um acontecimento (ato-fala/linguagem) no sentido da busca de legitimidade do discurso por meio do Direito. REFERÊNCIAS ARMENGAUD, Françoise. A pragmática. Trad. Marcos Macionilo. São Paulo: Parábola Editorial, AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer. Trad. Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, BACH, Kent (2001). Context ex Machina. Disponível em: < Acesso em: 20 jul BACH, Kent. Semantic, pragmatic. Disponível em: < Acesso em: 20 jul BACH, Kent. Sepeaking loosely: sentence nonliterality. Disponível em: < Acesso em: 20 jul BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, CASTRO, Lincoln Antônio (2011). Direito e Linguagem. Disponível em: < Acesso em: 23 jul COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de Lógica Jurídica. 4. ed. São Paulo: Saraiva, CORRÊA, Ivan. A Escrita do sintoma. Recife: Centro de Estudos Freudianos, FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Universidade de Brasília, FIGUEIREDO, L.C. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis, RJ: Vozes, FILHO, Danilo Marcondes de Souza. Filosofia, linguagem e comunicação. São Paulo: Cortez, FREUD, S. A negativa. Obras completas de Sigmund Freud. Vol. XIX (1925). Rio de Janeiro: Imago, GOLDENBERG, R. (org), SOUEIX, A. [et al.]. Goza! Salvador: Ágalma, [232]

239 GUERRA, Marcelo Lima. Elementos da norma. Texto mimeografado em 16/04/2004. GUERRA, Marcelo Lima. Mobiliário do mundo. Texto mimeografado em 16/04/2004. HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: F. Calouste Gulbenkian, LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Galouste Gubenkian, MAGALHÃES F. Glauco Barreira. Hermenêutica Jurídica Clássica. Mandamentos, MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Porto Alegre: Artes médicas, ORLANDI, Eni Pulcinelli. O que é lingüística. São Paulo: Brasiliense, OTTONI, Paulo. John Langshaw Austin e a visão performativa da linguagem. Disponível em: < Acesso em: 16 mai PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, PERELMAN, Chaïm. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, POE, Edgar Allan. Os assassinatos na rua morgue e a carta roubada. Rio de Janeiro: Paz e terra, QUINET, A. Desejo como Poder. In Jornal do Brasil, suplemento Ideias, Rio, 31/03/01 REBOUL, Anne. Pragmatique et Cognition. Disponível em: < Acesso em: 16 jan RIBEIRO, Renato Janine. Hobbes: o medo e a esperança In: Clássicos de Política ed. São Paulo: Ática, STRUCHINER, Noel. Uma análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito. Rio de Janeiro: Renovar, VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo: Atlas, [233]

240 [234]

241 15 ENTRE A CRISE DO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO CEARENSE E AS PRÁTICAS RESTAURATIVAS Vanessa de Lima Marques Santiago 11 Maria Isabel Rocha Bezerra Sousa 12 Raquel Coelho de Freitas 13 INTRODUÇÃO O século XX foi marcado por profundas transformações no que diz respeito à proteção e à responsabilização da criança e do adolescente no Brasil. O Código Mello Mattos, nome pelo qual ficou conhecido o Decreto n A, de 12/10/1927, característico da chamada Legislação Menorista, foi instrumento de proteção e vigilância da infância e da adolescência. Estabelecia que o menor abandonado ou delinquente deveria ser visto como objeto de vigilância da autoridade pública. O novo Código de Menores, Lei nº 6.697/79, instrumento de controle social da infância e da adolescência, considerava o menor em situação irregular como objeto de medidas judiciais. Consagrou, desse modo, a Doutrina da Situação Irregular, que considerava, basicamente, toda e qualquer criança ou adolescente pobre como menor em situação irregular, legitimando-se a intervenção do Estado, através da ação direta do Juiz de Menores e da inclusão do menor no sistema de assistência adotado pela Política Nacional do Bem-Estar do Menor. Internacionalmente, a adoção de recomendações de proteção e 11 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará (Ordem Jurídica Constitucional). Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça (NUDIJus). vanessasantiago.ufc@gmail.com. 12 Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada. Membro do Fórum DCA. Membro do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça (NUDIJus). Pósgraduada em Direito Administrativo. Facilitadora das práticas restaurativas. Atua, desde 2009, em atividades de promoção e investigação relacionadas com o sistema socioeducativo, a justiça e o panorama legal. negabelsousa@gmail.com. 13 Advogada. Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Doutora em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde defendeu a primeira tese sobre as ações afirmativas na educação superior. Mestre em Direito Internacional dos Direito Humanos pela Faculdade de Direito de Harvard. Coordenadora do Núcleo de Estudos Aplicados Direitos, Infância e Justiça (NUDIJus). rclcesar@gmail.com. [235]

242 garantia sobre os direitos da criança ocorreu paulatinamente: em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconheceu que a infância merecia cuidados e assistência especiais; em 1959, aprovou-se a Declaração dos Direitos da Criança, responsável por enumerar uma série de direitos e liberdades; e, em 1989, temos o advento da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, que consagrou princípios como a participação, considerando as crianças como pessoas e sujeitos de direitos; a sobrevivência e o desenvolvimento; interesse superior da criança; não-discriminação; dentre outros. Mas o aspecto mais significativo da Convenção foi a mudança de paradigma na normativa jurídica internacional. A Convenção inaugura a denominada Doutrina da Proteção Integral, a qual proclama uma valorização da condição de ser pessoa em situação peculiar de desenvolvimento: crianças e adolescentes passam a ser considerados sujeitos de direitos. Em seu artigo 227, a Constituição Federal de 1988, já faz uso da Doutrina da Proteção Integral. E esta mesma doutrina serviu como base para a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069/90, instrumento de desenvolvimento social, voltado para o conjunto da população infanto-juvenil do país, garantindo-lhes proteção especial. Os princípios fundamentais do ECA afirmam que crianças e adolescentes são prioridade absoluta, sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. A prioridade absoluta compreende a primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, a precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública, a preferência na formulação e execução das políticas sociais públicas e a destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude. Os direitos civis, políticos e sociais devem ser garantidos pela família, pela sociedade e pelo Estado. Nesse rol, enquadram-se o direito à sobrevivência (vida, saúde e alimentação); o direito ao desenvolvimento pessoal e social (educação, cultura, lazer e profissionalização); o direito à integridade física, psicológica e moral (dignidade, respeito, liberdade, convivência familiar e comunitária). DE MENOR A CIDADÃO: A CONSTRUÇÃO SÓCIO-JURÍDICA DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS E DOS ADOLESCENTES O Código de Menores Mello Mattos, Decreto n A, de 12 de outubro de 1927, consolidou, pela primeira vez, matérias relativas à infância e adolescência, que, todavia, foram encarnadas no tipo menor exposto, abandonado ou delinquente. O termo menor não qualificava, dentro da construção legislativa do Código, todas as crianças e adolescentes, mas [236]

243 apenas o menor abandonado e delinquente (PINHEIRO, 2006). O artigo 14, por exemplo, estabelecia que deveriam ser considerados expostos os infantes até sete anos de idade, encontrados em estado de abandono. Por sua vez, o artigo 26 estabelecia serem considerados abandonados os menores de 18 anos que, dentre outras coisas, não tivessem habitação certa, nem meios de subsistência por serem os pais falecidos, desconhecidos ou desaparecidos, não havendo ninguém que detenha sua guarda; que se encontre em estado habitual de vadiagem, mendicância ou libertinagem; que devido à crueldade ou negligência dos pais ou de quem quer que detenha sua guarda, sejam vítimas de violência ou excitados habitualmente para a mendicância ou libertinagem. Pinheiro (2006) adverte que a denominação menor passa a ser institucionalizada a partir da formulação do Código de 1927, revelando-se como uma classificação de teor discriminatório, que tinha como referência a infância e adolescência pobres. Em 1979, é introduzida no Brasil, por meio de reforma ao Código de Menores, Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979, a Doutrina da Situação Irregular, que se constituía de um sistema de marginalização e exclusão dos menores. Configurando verdadeira violação aos que se encontravam em situação de risco. O art. 2º, do Código de Menores de 1979 dispunha que o menor privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda, que de modo eventual; vítima de maus tratos, em perigo moral, privado de representação ou assistência legal, com desvio de conduta ou autor de infração penal deveria ser considerado em situação irregular. A partir dos anos 80, o momento de abertura democrática e a percepção da ineficácia da proposta apresentada pelo Código de Menores modificaram a forma de tratamento dispensada à criança e ao adolescente. A partir da iniciativa popular foram inseridos, na Carta Constitucional de 1988, os artigos 227 e 228. O artigo 227 impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, à criança, ao adolescente e ao jovem, bem como a obrigação de mantê-los a salvo de todas as formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, dentre outras disposições. O artigo 228, por sua vez, determina: São penalmente [237]

244 inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial. Esse momento social, marcado pela promulgação da Constituição Federal de 1988, pela Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, e pela aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n 8.069, de 13 de julho de 1990, fomentou o surgimento da representação da criança e do adolescente como sujeitos de direitos e, consequentemente, da Doutrina da Proteção Integral. Considerar as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos permite uma transformação das práticas sociais: invés da institucionalização como solução, as atividades passam a ser desenvolvidas, preferencialmente, no âmbito da própria comunidade, levando em consideração o contexto sócio-histórico original (PINHEIRO, 2006). Assim, passam a estar em situação irregular as políticas voltadas para a infância e adolescência. A Carta de 1988: difere da tradição brasileira de não reservar um lugar social, ou de destinar um não-lugar para a maioria das crianças e dos adolescentes na vida política, na defesa de seus direitos (PINHEIRO, 2006). No ano de 1990, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) rompe definitivamente com a aplicação da Doutrina da Situação Irregular, fomentando o surgimento da Doutrina da Proteção Integral. A Doutrina da Proteção Integral nomina direitos e garantias a todas as crianças e jovens brasileiros independentemente de sua condição social ou situação familiar, podendo ser entendida como a necessidade de se direcionar à criança atenção diferenciada, rompendo com a igualdade formal, em busca do estabelecimento de um sistema normativo voltado para o estabelecimento da igualdade material, por meio do tratamento equânime, com vistas a assegurar as necessidades básicas a partir da sua condição peculiar de desenvolvimento. DAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS À JUSTIÇA RESTAURATIVA: NOVOS RUMOS As circunstâncias que levam os adolescentes a cometerem atos infracionais são, na maioria das vezes, complexas e variadas. Winnicott (1994), por exemplo, relaciona a negligência e a privação familiar como fatores responsáveis pelo cometimento de delitos: embora a maioria dos jovens possua família, esta é ausente, não cria um vínculo para assumir [238]

245 realmente seu papel, não há uma figura que represente autoridade, seja por situações de maus-tratos, abandono, privações materiais, alcoolismo ou drogas. Porém, não só a estrutura familiar pode ser apontada como fator determinante no ingresso de um adolescente no cometimento de ato infracional, mas a estrutura social também, as políticas sociais básicas, a saúde, a escola, o lazer, o estado e a sociedade são fatores que interferem no contexto. É incontestável que o adolescente sendo vitimizador também é vítima da sociedade. De acordo com Volpi (1999), a prática do ato infracional não é incorporada como inerente a sua identidade, mas vista como uma circunstância de vida que pode ser modificada, pois o jovem não nasce infrator, ele se torna infrator. Desse modo, existe possibilidade de modificação dessa realidade que é construída historicamente, levando em consideração que, quando criança seus direitos foram-lhe abstraídos e conforme se tornam adolescentes percebe que sofreu carências materiais e afetivas. Este último tipo de carência é extremamente importante para a formação psicológica e moral de um jovem. Se o ambiente em que vive não for favorável ao seu desenvolvimento, provavelmente se envolverá com a criminalidade produzida pela exclusão. O ECA inaugurou novo modelo de justiça e de garantias para o adolescente em conflito com a lei: o Sistema Socioeducativo. Esse modelo de responsabilização deve ser aplicado aos adolescentes que praticam ato infracional e se efetiva na aplicação das Medidas Socioeducativas: A medida socioeducativa é a manifestação do Estado, em resposta ao ato infracional, praticado por menores de 18 anos, de natureza jurídica impositiva, sancionatória e retributiva, cuja aplicação objetiva inibir a reincidência, desenvolvida com finalidade pedagógica-educativa. Tem caráter impositivo, porque a medida é aplicada independentemente da vontade do infrator com exceção daquelas aplicadas em sede de remissão, que tem finalidade transacional. Além de impositiva, as medidas socioeducativas têm cunho sancionatório, porque, com sua ação ou omissão, o infrator quebrou a regra de convivência dirigida a todos. E, por fim, ela pode ser considerada uma medida de natureza retributiva, na medida em que é uma resposta do Estado à prática do ato infracional praticado (LIBERATI, 2006). O Estatuto prevê que, preferencialmente, ao adolescente em conflito com a lei, sejam aplicadas medidas socioeducativas em meio aberto [239]

246 (advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida), apenas se admitindo que ele perca a liberdade em casos excepcionais. As medidas socioeducativas em meio fechado dividem-se em semiliberdade (situação em que o filho pode visitar a família nos fins de semana) e internação (em que o adolescente é conduzido a um Centro Educacional). A medida socioeducativa de internação, por sua vez, divide-se em dois tipos: internação provisória e internação definitiva. No que diz respeito à internação provisória, o ECA determina a fixação do prazo máximo de 45 dias para o seu cumprimento. São hipóteses para sua decretação: existência de indícios suficientes de autoria e materialidade, sendo clara a imprescindibilidade da medida ou quando, em função da gravidade do ato ou da repercussão social, assim o exigirem a segurança pessoal do adolescente ou a manutenção da ordem pública. A internação definitiva, por seu turno, não comporta prazo determinado, mas não pode ultrapassar três anos e deve ser reavaliada a cada seis meses, dada a excepcionalidade de sua aplicação. Tem como requisitos: o cometimento de ato infracional com grave ameaça ou violência à pessoa ou a reiteração com outras infrações graves. Atingido o tempo limite de internação, o adolescente deve ser posto em liberdade ou inserido na medida de semiliberdade ou liberdade assistida. Para a desinternação, é obrigatória a autorização do juiz, com a oitiva do Ministério Público. A liberação imediata do adolescente é aos 21 anos. Os Centros Educacionais são os lugares onde os adolescentes cumprem a medida socioeducativa de internação. Eles devem oferecer estrutura que respeite a dignidade e os direitos do adolescente. Todavia, as disposições legais do ECA e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), Lei nº /12, que determina que a execução das medidas socioeducativas devem reger-se pelos princípios da legalidade, excepcionalidade da intervenção judicial, prioridade a práticas ou medidas restaurativas, proporcionalidade em relação à ofensa cometida, brevidade da medida, individualização, mínima intervenção, não discriminação e fortalecimento dos vínculos familiares, não são observadas: muitas vezes, predomina a violência contra os adolescentes. O Conselho Nacional de Justiça traçou um panorama da situação de internação a que os adolescentes em conflito com a lei, no Brasil, [240]

247 estão submetidos, buscando conhecer o perfil social destes, os processos de execução de medida em tramitação e as condições de atendimento nas estruturas de internação. A pesquisa foi realizada por uma equipe multidisciplinar que visitou, de julho de 2010 a outubro de 2011, os 320 estabelecimentos de internação existentes no país à época. Os resultados da pesquisa (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012) revelam que quanto à distribuição das instituições pelos estados brasileiros há disparidade em termos quantitativos: enquanto São Paulo (112), Santa Catarina (19) e Paraná (18) são os estados com o maior número de estabelecimentos, os estados com maior concentração de adolescentes por estabelecimento são Distrito Federal (com média de 163 adolescentes por estabelecimento), Bahia (126) e Rio de Janeiro (125). A taxa de ocupação das unidades é de 102%. O Nordeste abriga os estados federativos com maior sobrecarga: o Ceará tem taxa de ocupação de 221%, Pernambuco 178% e Bahia 160%. O Estado do Ceará apresentou, na pesquisa, indicadores preocupantes: Todos os sete estabelecimentos socioeducativos destinados à internação estão localizados na capital, sendo que apenas uma unidade não registrou sobrecarga populacional. Em âmbito regional, o Estado conta com três dos cinco estabelecimentos socioeducativos com maior percentual de sobrecarga, fator que resulta no maior percentual de lotação (121%) entre todos os estados do país. Com considerável população masculina e feminina (quarto maior do país em ambos os gêneros), a demasiada centralização do sistema socioeducativo impede o devido cumprimento de princípios básicos, como a manutenção constante dos laços familiares e reinserção social, a que todos os adolescentes têm direito. A situação ganha contornos de gravidade quando observado que vários municípios do Estado teriam condições demográficas, econômicas, sociais e geográficas de receber unidades socioeducativas e varas com competência exclusiva (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012). Quanto ao aspecto da violência, os números são alarmantes: 34 estabelecimentos registraram casos de abuso sexual; 19 estabelecimentos registraram, pelo menos, uma ocorrência de homicídio; sete estabelecimentos, mortes por doença preexistentes; dois estabelecimentos, mortes por suicídio. [241]

248 Neste ínterim, 28% dos adolescentes em conflito com a lei declararam ter sofrido algum tipo de violência por parte dos funcionários dos Centros Educacionais; 10%, por parte da Polícia Militar. Enquanto, 19% dos adolescentes informaram ter sofrido algum tipo de castigo físico dentro do estabelecimento de internação. Às estatísticas apresentadas, somam-se as relativas às fugas e às evasões: no Nordeste, houve registro de fuga em 62% dos estabelecimentos; no Norte, em 69%; no Sul, em 64%; no Sudeste, em 38%; no Centro-Oeste, em 63%. Em termos nacionais, 52% dos Centros Educacionais apresentam histórico de fuga ou evasão. Quanto ao registro de rebeliões e motins, temos: 32%, Nordeste; 31%, Norte; 16%, Sul; 22%, Sudeste; 38%, Centro-Oeste. Durante o mês de dezembro de 2014 e o mês de janeiro de 2015, no Ceará, visitas realizadas, pela Pastoral Carcerária e pelo Comitê Estadual de prevenção e combate à tortura, ao Centro Educacional Patativa do Assaré e ao Centro Educacional São Miguel, revelaram a realidade de superlotação, convivência de jovens cumprindo regimes de internação distintos (provisório e definitivo), com prazos legais ultrapassados, sinais de tortura e maus tratos, assim como jovens do interior internados em Centros Educacionais da capital (FONTENELLE, 2015). Diante da insustentabilidade da situação, no mês de maio de 2015, foi determinada interdição provisória dos Centros Educacionais São Francisco, São Miguel e Centro Socioeducativo Patativa do Assaré, através da qual foi ordenada a transferência e devido acolhimento dos jovens que excedam a capacidade de internação nos referidos Centros, conforme determinação do SINASE, no prazo de trinta dias. Ainda, a medida determinou a abolição das trancas, instrumentos utilizados como medida disciplinar de isolamento, por reconhecer seu caráter de meio para realização de tortura (MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ, 2015). Conforme o FÓRUM DCA (2016), no ano de 2015, foram registradas mais de 60 (sessenta) rebeliões, motins e episódios conflituosos envolvendo as Unidades de Atendimento Socioeducativo destinadas a adolescentes do sexo masculino na cidade de Fortaleza. Juntam-se às referidas rebeliões, denúncias de tortura, maus tratos e superlotação, que chegou a atingir o percentual de 400% em diversas unidades, falta generalizada de insumos básicos, restrição de acesso à água e ao direito de visita, ausência de escolarização e profissionalização, de atividades culturais, esportivas e de lazer, que constituem a essência da medida socioeducativa, dentre outras violações de direitos humanos, inclusive com registro de morte [242]

249 de um adolescente atingido, por arma de fogo, no cumprimento de medida socioeducativa de internação no Centro Educacional São Francisco. Diante do cenário caótico, o Governo do Estado do Ceará apresentou o Plano de Estabilização do Sistema Socioeducativo, em 09 de novembro de 2015, assim como celebrou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em 17 de novembro de 2015, entre o Estado e o Ministério Público e Defensoria Pública do Estado do Ceará (FÓRUM DCA, 2016). Ainda, a situação crítica do sistema socioeducativo cearense chegou a ser anunciada na Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH), através de petição protocolada em março de 2015, sob iniciativa do Fórum DCA, da Associação Nacional dos Centros de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes (ANCED) e do Centro de Defesa dos Direitos de Crianças e Adolescentes (CEDECA/Ceará), o que resultou na determinação de Medidas Cautelares a serem adotadas no âmbito do Sistema Socioeducativo do Ceará (FÓRUM DCA, 2016). A análise das alegações apresentadas levou a Comissão a considerar a existência de situação de gravidade e urgência, de modo mais específico os adolescentes privados de liberdade em três unidades de atendimento socioeducativo de internação masculina no Estado do Ceará: Centro Educacional São Miguel, Centro Educacional Dom Bosco e Centro Educacional Patativa do Assaré, além dos transferidos ao centro de detenção provisório Presídio Militar de Aquiraz (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015). A CIDH determinou, então, medidas cautelares, que forçaram ao Estado brasileiro: a) a adoção de providências necessárias e urgentes para salvaguardar a vidas desses adolescentes; b) a fornecer condições adequadas em termos de infraestrutura e pessoal, bem como nos aspectos relativos à higiene, à alimentação, à educação e ao tratamento médico; c) a assegurar a implementação de programas e atividades adaptadas aos adolescentes, garantindo seu bem-estar e sua integridade física, psíquica e moral; d) a implementar medidas capazes de garantir as condições de segurança nos centros educacionais; e) a executar ações imediatas para reduzir o número de adolescentes cumprindo medida de internação, evitando as condições de superlotação e o uso de celas de isolamento; dentre outras (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2015). Neste ano, entrou em vigor o Decreto nº , de 12 de julho de 2016, que criou a Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo do Estado do Ceará. Segundo o Governo, a Superintendência, como órgão específico, tem como objetivo o [243]

250 reordenamento do Sistema Socioeducativo do Estado, aplicando um novo modelo nas unidades socioeducativas, que inclui: A criação de novos padrões de atendimento e rotinas operacionais, inclusive com o estabelecimento de um núcleo de atendimento integrado envolvendo o sistema de Justiça e a rede de políticas públicas intersetoriais. Outra novidade é a elaboração do Plano Diretor Decenal do Sistema Socioeducativo, que vai ser construído em conjunto com o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ, 2016). Dentro desse espectro de busca por soluções, a Justiça Restaurativa se apresenta como uma alternativa ou como uma nova ferramenta na aplicação das medidas socioeducativas. De fato, enquanto para a Justiça Retributiva o crime é uma violação contra o estado, definida pela desobediência à lei e pela culpa, a Justiça Restaurativa identifica o crime como uma violação de pessoas e relacionamentos, criando a obrigação de corrigir os erros, a justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança (ZEHR, 2008). Outrossim, as práticas restaurativas, ainda, buscam contribuir com a prevenção e com a resolução pacífica de situações de violência, evitando a judicialização e promovendo uma cultura de paz, além do diálogo, dos relacionamentos saudáveis e as possibilidades de reconciliação vítimaofensor (ZEHR, 2008). JUSTIÇA RESTAURATIVA Diante da complexidade dos fenômenos conflito e violência, devem ser considerados não apenas os aspectos relacionais individuais, como também, os comunitários, institucionais e sociais que contribuem para o seu surgimento, e superação, estabelecendo-se para enfrentá-los, novos caminhos de solução pacífica desses conflitos, com novas metodologias e práticas, incluindo nesse programa, também novos espaços e atores qualificados. Para Zehr (2008), a justiça restaurativa revela novas lentes diante do fenômeno do crime e aponta pontes para sua resolução que compreenda o papel dos sujeitos afetados pelo delito, qual seja, o autor, a vítima, suas famílias, e a comunidade onde vivem ou ocorreu tal fato. Como membro da Organização das Nações Unidas, o Brasil acolheu as recomendações da ONU para a implementação da justiça restaurativa, [244]

251 expressas nas Resoluções 1999/26, 2000/14 e 2002/12, que estabeleceram os princípios básicos para a implementação da justiça restaurativa nos Estados. A ONU, através de agências como Unesco, UNDC, Unicef e o Alto Comissariado dos Direitos Humanos, Comitê dos Direitos Humanos, e dos Direitos da Criança têm incentivado a prática e a difusão de diversas metodologias de justiça restaurativa, compreendendo sua eficácia na promoção da responsabilidade, segurança e coesão social através do engajamento comunitário 14. Em 2009, foi realizado o I Congresso Mundial da Justiça Juvenil Restaurativa, em que houve intercâmbio de experiências em justiça restaurativa no âmbito comunitário e judicial. O direito ao acesso à justiça previsto no artigo 5, XXXV da Constituição brasileira de 1988, abrange as soluções efetivas de conflitos por intermédio de uma ordem jurídica mais justa, incluindo a utilização de mecanismos consensuais, voluntários e mais adequados para se alcançar uma solução pacífica no conflito. Neste sentido, práticas restaurativas foram sendo implementadas em vários centros do país, tanto com fundamento na Lei dos Juizados Especiais, Lei n 9.099/1995, como também no art. 5, II e III da Lei n /2012, que autoriza, para o atendimento aos adolescentes em conflitos com a lei, o uso de práticas ou medidas restaurativas, sempre que possível, em atenção às vítimas, com fundamento no princípio da excepcionalidade, da intervenção judicial e da imposição de medidas. Em 2014, foi assinado um Protocolo de Cooperação Interinstitucional Justiça Restaurativa no Brasil com o objetivo de se expandir e implementar a Justiça Restaurativa no Brasil. Quinze instituições nacionais assinaram o protocolo, entre elas a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e Escola Superior da Magistratura (Ajuris/ESM), Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH) eterre des hommes Brasil. Em 2015, foi expedida a Declaração de Cartagena, Declaração Iberoamericana de Justiça Juvenil Restaurativa, que orienta a adoção de um 14 Sobre isso ler a publicação: Promovendo Justiça Restaurativa para Crianças e Adolescentes. Disponível em: adolescentes. [245]

252 compromisso por parte dos países ibero-americanos sobre uma posição comum para abordar a questão da Justiça Juvenil, no âmbito dos princípios de responsabilização e reparação do dano causado à vítima, com um enfoque restaurativo para os adolescentes infratores. No Brasil a declaração tem apoio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Campanha Justiça Restaurativa do Brasil. Neste ano também, o Congresso Mundial de Justiça Juvenil, ocorrido em Genebra, publicou sua carta final, em que instava os países a investirem em práticas restaurativas na prevenção e responsabilização de atos infracionais. Para uniformizar a implementação da justiça restaurativa no país, o Conselho Nacional de Justiça, órgão de controle de atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, e atendendo a sua Meta 8 para 2016, estabelecida na Portaria n 16/2015, expediu a Resolução de n 225/2016 que implementa a justiça restaurativa para todos os Tribunais do país. O artigo 1 define justiça restaurativa como todo o conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre fatores relacionais, institucionais e sociais, motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, passam a ser solucionados de modo estruturado. Pode-se perceber que esse conjunto ordenado de atividades implica em formas diferenciadas de se tratar as situações de conflito e violência envolvendo adolescentes. Essas atividades incluem práticas, procedimentos, casos, e sessões preparatórias ou de acompanhamento, entre as pessoas diretamente envolvidas no conflito, em especial, vítima agressor, familiares e comunidade. A aplicação do procedimento restaurativo, segundo o 2 do art. 1 da Resolução 225/2016, pode ocorrer de forma alternativa ou concorrente ao processo convencional, devendo suas implicações ser consideradas caso a caso, conforme as regras gerais do processo, e objetivando sempre uma solução melhor e pacífica para todos os envolvidos. Para tanto, é necessário que as partes reconheçam como verdadeiros os fatos essenciais, sem que isso implique em admissão de culpa em eventual retorno do conflito em processo judicial. Por fim, os princípios que regem a justiça restaurativa estão listados no art.2 da Resolução, e são eles: informalidade, voluntariedade, imparcialidade, participação, empoderamento, consensualidade, confidencialidade, celeridade e urbanidade. [246]

253 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo das décadas, os adolescentes em conflito com a lei foram tutelados de forma diferenciada pelo Estado, desde a aplicação da Doutrina da Situação Irregular até a Doutrina da Proteção Integral. O ECA é legislação pioneira na defesa dos direitos dos adolescentes e soluciona a questão da responsabilização dos adolescentes em conflito com a lei a partir da aplicação das medidas socioeducativas, cujo caráter é pedagógico. Contudo, apesar do pioneirismo das disposições do ECA, a cultura menorista ainda encontra adeptos e o Estatuto não tem sido aplicado em sua inteireza. Impõe-se, desse modo, a necessidade de um trabalho democrático que envolva a família, a sociedade e o Poder Público no sentido da assunção de um compromisso pessoal, social, profissional e político com a criança e com o adolescente, buscando a efetivação dos princípios da Convenção da ONU, da Constituição Federal, do próprio ECA e do SINASE. No aspecto da ocorrência de violência, a aplicação conforme as disposições legais do Estatuto e do SINASE permitiriam a redução das estatísticas, uma vez que estabelecem a necessidade de ações preventivas das situações limites (brigas, rebeliões, agressões, por exemplo), bem como a separação dos adolescentes no cumprimento de medida de internação no que diz respeito aos aspectos da idade, compleição física e gravidade da infração. Soma-se a essas disposições, a efetivação do processo de ressocialização que impediria o retorno desses jovens à situação de privação de liberdade. Além disso, constatou-se que há pertinência entre o modelo restaurativo e a justiça especializada na infância e na adolescência: ao reconhecer o adolescente como sujeito do processo de justiça, ao ouvi-lo, ao entender seu contexto, ao reconhecer suas necessidades, ao fazê-lo compreender as consequências de seus atos, ao fazê-lo buscar o diálogo com a vítima, ao utilizar a mediação da comunidade, revelando-se que muito se pode alcançar dos objetivos estabelecidos na aplicação de medidas socioeducativas através dessas práticas. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de Brasília, DF, Disponível em: < constituicao.htm>. Acesso em: 01 mar [247]

254 BRASIL. Decreto nº A, de 12 de outubro de 1927: consolida as leis de assistência e proteção a menores. Rio de Janeiro, Disponível em: < ccivil_03/decreto/ /d17943a.htm>. Acesso em: 21 fev BRASIL. Lei nº , de 18 de janeiro de 2012: Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente); 7.560, de 19 de dezembro de 1986, 7.998, de 11 de janeiro de 1990, 5.537, de 21 de novembro de 1968, 8.315, de 23 de dezembro de 1991, 8.706, de 14 de setembro de 1993, os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942, 8.621, de 10 de janeiro de 1946, e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de Brasília, DF, Disponível em: < Acesso em: 16 jun BRASIL. Lei nº 6.697, de 10 de outubro de 1979: institui o Código de Menores. Brasília, DF, Disponível em: < Acesso em: 21 fev BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990: dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF, 1990b. Disponível em: < Acesso em: 01 mar CEARÁ. Decreto nº , de 12 de julho de 2016: Regulamento da Superintendência do Sistema Estadual de Atendimento Socioeducativo (SEAS). Disponível em: Acesso em: 25 out COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Resolução 71/2015, de 31 de dezembro de 2015: adolescentes privados de liberdade em unidades de atendimento socioeducativo de internação masculina do estado do Ceará, referente ao Brasil. Disponível em: < Resolucion Otorgamiento.pdf>. Acesso em: 26 mar CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Programa Justiça ao Jovem. Panorama Nacional: A Execução das Medidas Socioeducativas de Internação Disponível em: [248]

255 Acesso em: 16 jun CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 225, de 31 de maio de 2016: Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Disponível em: _ _ pdf. Acesso em: 25 out FONTENELE, Cristina. Comitê de combate à tortura denuncia violações graves em centros educacionais. Adital, Disponível em: Acesso em: 17 jun FÓRUM DCA. Relatório de Inspeções. Unidades de internação do sistema socioeducativo do Ceará. Fortaleza: Fórum DCA, Disponível em: < Acesso em: 25 mar GOVERNO DO ESTADO DO CEARÁ. Ceará ganha Superintendência do Sistema Socioeducativo. Disponível em: Acesso em: 25 out LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 9ªedição revista e ampliada. São Paulo. Malheiros, MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ. Justiça interdita Centros Educacionais. Disponível em: /justica-interdita-centros-educacionais-temporariamente.shtml. Acesso em: 17 jun PINHEIRO, Ângela. Criança e adolescente no Brasil: porque o abismo entre a lei e a realidade. Fortaleza: Ed. UFC, VOLPI, Mário. (Org.) O adolescente e o ato infracional. 3. Ed. São Paulo: Cortez, WAISELFISZ, Júlio Jacobo. Mapa da violência Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil. Rio de Janeiro: Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais- FLACSO, Disponível em: < entes.pdf>. Acesso em: 25 mar [249]

256 WINNICOTT, Donald Woods. Privação e delinquência. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, ZEHR, Howard. Trocando as lentes- um foco sobre o crime e a Justiça. Tradução Tônia VanAcker. São Paulo: Palas Athena Editora, Disponível em: Acesso em: 01 mar [250]

257 16 METÁFORAS SISTEMÁTICAS: CONSTRUÇÕES COLABORATIVAS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NA FALA DE SUAS VÍTIMAS Monica Fontenelle Carneiro 1 INTRODUÇÃO Como resultado de uma tendência de maior conscientização da sociedade no tocante aos direitos humanos que se verificou no século XX, a violência vem se tornando, cada vez mais, objeto de estudo dos mais diversos setores da sociedade atual como problema cuja solução demanda urgência e políticas públicas de prevenção e combate. A violência doméstica é marcada pela intimidade da vítima idoso, mulher, criança ou adolescente com seu agressor, já que acontece no lar dos envolvidos. Essa violência quase sempre conta com o silêncio de suas vítimas que, por imaturidade, medo, vergonha, constrangimento, sentimento de empatia, falta de esclarecimento, esperança de que aquela vez seja a última, ou até mesmo por amor, evitam tratar do assunto, minimizam a violência sofrida e escondem as marcas da(s) agressão(ões). Como vítima mais frequente, a mulher se destaca por conta da histórica desigualdade na relação de poder que se estabeleceu entre homens e mulheres e que se reflete tanto na sociedade como um todo quanto na intimidade dos lares. Na grande maioria dos casos de violência doméstica contra a mulher, essa situação de submissão ao agressor é entendida, por ambas as partes, como natural e necessária para que a relação tenha algum futuro. Entretanto, as lutas em defesa dos direitos humanos têm propiciado a criação de leis com o objetivo de diminuir os danos causados pela violência, especialmente no tocante às minorias e àqueles que necessitam de proteção 1 Professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). monicafcarneiro@gmail.com [251]

258 legal, já que a sociedade, de per si, não lhes garante esse amparo. No caso específico da mulher, por exemplo, foi criada a Lei nº , de 07 de agosto de 2006, denominada Lei Maria da Penha, em homenagem a uma mulher que se tornou símbolo de resistência às várias agressões, inclusive tentativas de homicídio, perpetradas por seu ex-esposo. Embora a mídia e o governo tentem passar a ideia de que as coisas melhoraram e de que a criação das leis em defesa dessas pessoas rapidamente modificou as condições existentes, herança de uma história de dominação machista, de práticas discriminatórias e de subjugo de mulheres, a violência doméstica continua, cada vez mais, a fazer vítimas entre as mulheres. Esta investigação busca, assim, descrever como as mulheres vítimas diretas de violência doméstica exprimem o que sentem e o que pensam sobre a violência sofrida, de modo a conhecer um pouco mais sobre essa violência silenciosa, pouco reconhecida, que se faz presente em todas as camadas sociais, sem limites de fronteira, etnia, raça, credo, idade, renda, instrução ou de qualquer outra ordem. Fundamentaremos nossa investigação na Abordagem da Análise do Discurso à Luz da Metáfora, de Cameron (CAMERON, 2003, 2007a, 2007b, 2008; CAMERON; DEIGNAN, 2009; CAMERON et al., 2009; CAMERON; MASLEN, 2010), que discutiremos a seguir. ABORDAGEM DA ANÁLISE DO DISCURSO À LUZ DA METÁFORA Após a mudança paradigmática que aconteceu nas últimas décadas do século XX, a metáfora passou a ser entendida como ferramenta cognitiva que permite que o ser humano vivencie e explique suas experiências, em especial aquelas mais abstratas, por meio de outras, mais concretas. Assim, grande parte das expressões linguísticas de cunho metafórico usadas na linguagem cotidiana são evidências de metáforas conceituais que as licenciam. A Teoria da Metáfora Conceitual (TMC), proposta por Lakoff e Johnson em Metaphors we live by (1980) foi, ao longo dos anos, sendo aperfeiçoada à medida que outros estudiosos desenvolviam mais pesquisas nessa área. Tanto Lakoff (1987) propôs os Modelos Cognitivos Idealizados (TMCI) quanto estudiosos como: Grady (1997), Johnson (1997), Narayanan (1997), e Fauconnier e Turner (1998) contribuíram com trabalhos que vieram a compor a Teoria Integrada da Metáfora, consolidada com a publicação de Philosophy in the flesh, em Mesmo expandida e [252]

259 refinada, para vários autores, há áreas ainda nebulosas em relação às questões teóricas, além de aspectos não abordados satisfatoriamente. A partir dos últimos anos da década de 90, várias investigações resultaram em questionamentos e críticas de pesquisadores que se manifestavam insatisfeitos com os exemplos criados fora de um corpus ou um contexto. Dentre elas, estão aquelas cujo foco era análise das metáforas extraídas da linguagem em uso, ou seja, do discurso. Tais investigações, segundo Vereza (2010, p. 207), [...] visavam à utilização de exemplos retirados de usos autênticos da língua e não apenas da intuição do pesquisador Vereza (2010, p. 208) ressalta, ainda, que Felizmente, o cenário atual dos estudos da metáfora, muito voltado para a linguagem figurada no discurso, de forma alguma descarta os aspectos cognitivos inerentes à metáfora. Ao invés disso, procura-se criar articulações sistemáticas entre a cognição e o discurso, ressaltando a inseparabilidade dessas duas instâncias. A metáfora é de natureza tanto linguística quanto (sócio) cognitiva, e o discurso promove e possibilita essa articulação e, ao mesmo tempo, dela depende. Dessa forma, o lócus da metáfora passa a ser o discurso, se entendermos esse conceito como o espaço em que aspectos sóciocognitivos e linguísticos (se é que se pode fazer essa separação) se encontram para tecer a figuratividade, entre outras formas de criação de sentidos. A Abordagem da Análise do Discurso à Luz da Metáfora proposta por Cameron (CAMERON, 2003, 2007a, 2007b, 2008; CAMERON; DEIGNAN, 2009; CAMERON et al., 2009; CAMERON; MASLEN, 2010), que fundamenta nossa investigação, entende a metáfora como local e emersa no discurso. Discutiremos, portanto, a seguir, os conceitos de discurso, metáfora e metáfora sistemática, as dimensões em que a metáfora pode se analisada, assim como as noções que se revelam essenciais para a análise, tais como: tema, tópico discursivo, veículo metafórico, dentre outras. A concepção de discurso adotada nessa abordagem resulta do entendimento basilar dos [...] fenômenos linguísticos e cognitivos como processos, fluxos ou movimentos, e não objetos 2 (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 82, tradução nossa). Assim, fundada nas teorias da complexidade e dos sistemas dinâmicos, Cameron compreende discurso [...] como um sistema dinâmico que está em fluxo contínuo e trabalhando em várias 2 Do original: [...] linguistic and cognitive phenomena as processes, flows or movement, rather than as objects. (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 82). [253]

260 dimensões e escalas temporais interconectadas 3 (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 82, tradução nossa). Por ser o objeto de estudo na proposta de Cameron, conforme referências já relacionadas, não examinada separadamente, mas [...] no discurso como interação social [...] 4 (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 77, tradução nossa), a metáfora, nessa abordagem, é concebida como [...] um fenômeno multifacetado, ou talvez fosse mais preciso dizer que a ideia da metáfora engloba múltiplos fenômenos 5 (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 7, tradução nossa). Outro conceito relevante é o da metáfora sistemática. Segundo Cameron, Uma metáfora sistemática é um fenômeno discursivo emergente que é produzido quando participantes de um discurso, durante um evento discursivo ou por um período mais longo usam um conjunto específico de veículos metafóricos linguísticos ao conversar sobre determinado tópico, ou tópicos intimamente relacionados. Uma metáfora sistemática não é uma metáfora única, mas um agrupamento de metáforas intimamente conectadas. 6 (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 91, tradução nossa) Ressaltamos que as metáforas sistemáticas resultam do cuidadoso olhar do pesquisador, numa criteriosa análise reflexiva que viabilize inferir a emergência dessas metáforas no discurso. A análise da metáfora discursiva inclui suas várias dimensões: a linguística, a corporificada, a cognitiva, a afetiva, a sociocultural e a dinâmica. Todas essas dimensões são relevantes quando a metáfora é utilizada como ferramenta de pesquisa porque podem oferecer informações sobre como as pessoas pensam, sobre convenções socioculturais por elas adotadas ou rejeitadas, e sobre suas ideias e sentimentos. 3 Do original: [...] as a dynamic system that is in continual flux and working on various interconnected dimensions and timescales. (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 82) 4 Do original: [...] in discourse as social interaction (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 77) 5 Do original: [ ] a multifaceted phenomenon, or perhaps it would be more accurate to say that the idea of metaphor encompasses multiple phenomena. (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 7) 6 Do original: A systematic metaphor is an emergent discourse phenomenon that is produced when discourse participants, over a discourse event or longer period of time, use a particular set of linguistic metaphor vehicles in talking about a particular topic, or closely related topics. A systematic metaphor is not a single metaphor but an emergent grouping of closely connected metaphors. (CAMERON; MASLEN, 2010, p. 91). [254]

261 Além desses conceitos de discurso, metáfora e metáfora sistemática retomados, são importantes algumas noções básicas para maior compreensão dos procedimentos metodológicos adotados na Análise do Discurso à Luz da Metáfora. São elas: dinâmica do discurso, evento discursivo, tema, tópico discursivo, veículo metafórico, mudança metafórica, dentre outras que discutiremos a seguir. Uma vez que, nessa abordagem, o discurso é entendido como um sistema dinâmico complexo, a dinâmica do discurso é o processo de interação dos diversos sistemas que o compõem, tais como o cognitivo, o corpóreo, o linguístico, o social, o cultural, o afetivo para a compreensão e produção. O evento discursivo é o instante do uso da linguagem, com duração indeterminada, entre dois ou mais interlocutores. Como um sistema complexo, o discurso se desenvolve em torno de um ou mais temas, que são os assuntos que caracterizam os tópicos discursivos, ou seja, aqueles trechos do discurso em que se dá a participação colaborativa dos interlocutores, baseada em fatores contextuais: conhecimentos compartilhados, condições circunstanciais e particulares da interação, percepções de mundo, crenças e valores, situações experienciadas individualmente, assim como em aspectos cognitivos, entre outros. O veículo metafórico é o resultado de uma disjunção de significados que, de acordo com Cameron 7 (2007a, p. 118, tradução nossa), decorre de [...] (1) a presença de um item lexical (o veículo) que tem um significado que se pode dizer que contrasta com o seu significado no contexto discursivo, e (2) o potencial para um significado adicional a ser produzido como resultado da combinação destes. Segundo Cameron (CAMERON; MASLEN, 2010), para confirmar a suposição de um termo quanto à sua condição de veículo, dois requisitos devem ser preenchidos: 1) a existência de um contraste ou incongruência entre seu significado básico, e aquele apresentado no contexto discursivo e 2) a ocorrência de uma transferência de sentido, que permita a compreensão do segundo significado (o contextual) por meio do primeiro (o básico). Os veículos metafóricos, ao longo do discurso, durante o período de desequilíbrio, estão sujeitos ao que Cameron (2008) denomina mudança 7 Do original: [ ] (1) the presence of a lexical item (the vehicle) that has a meaning that can be said to contrast with its meaning in the discourse context, and (2) the potential for extra meaning to be produced as a result of bringing these together. (CAMERON, 2007a, p. 118). [255]

262 metafórica, que se explica como um fenômeno da metáfora em uso. Assim, sua literalização (quando um item lexical tem seu simbolismo carregado do seu uso literal); seu reemprego (quando um mesmo item lexical ou outro semanticamente similar é reempregado em outro(s) tópico(s) discursivo(s), ou seja, uma mudança de referência tópica); assim como seu desenvolvimento ou expansão (quando o mesmo termo é repetido, explicado, exemplificado, contrastado e/ou relexicalizado dentro do mesmo tópico discursivo ou em tópicos conexos) são os fenômenos que ocorrem durante uma interação discursiva. Para definir a estrutura do discurso produzido pelos participantes no padrão talking-and-thinking processo dinâmico entre interlocutores que se caracteriza pela inseparabilidade entre linguagem e pensamento segundo Cameron (2003), o pesquisador pode observar três tipos de componentes: as narrativas (relatos de fatos envolvendo participantes/ conhecidos); os cenários (relatos generalizados baseados em fatos); e as estórias circulantes (relatos baseados em fatos reais que emergem durante a interação verbal, como exemplo ou referência, propiciando o compartilhamento de estórias emocionantes, dramáticas, estimulando lembranças e alimentando medos). Durante a interação discursiva, que apresenta dois níveis (o individual e o da comunidade linguística ou grupo sociocultural), pode ocorrer, por parte dos interlocutores, tanto uma tomada de perspectiva (mudança de perspectiva que indica emergência de empatia no discurso) ou apropriação metafórica (quando outro participante faz uso de um mesmo veículo metafórico em outro tópico discursivo). Para sua alimentação no Atlas.ti (2009), software utilizado na organização de dados obtidos em pesquisa qualitativa, o discurso a ser analisado deve ser fragmentado em unidades de entonação (CHAFE, 1994). Cada unidade de entonação é uma realização hipotética da atividade cognitiva que se manifesta linguisticamente, definição reiterada por Cameron (2007a) que foi adotada como padrão nos procedimentos por ela descritos (CAMERON et al., 2009). Dessa forma, cada linha de transcrição equivale a uma unidade de entonação, geralmente marcada pelo fôlego de produção oral, isto é, aquilo que é dito de um só fôlego. Este é o aparato conceitual para a compreensão dos procedimentos metodológicos adotados para a análise do discurso das mulheres em situação de violência doméstica fundada na visão discursiva da Análise do Discurso à Luz da Metáfora. [256]

263 METODOLOGIA Nesta pesquisa qualitativa, de caráter descritivo-exploratório, adotamos procedimentos metodológicos que nos propiciaram não só uma coleta de dados mais próxima do ambiente natural das participantes, mas também uma interpretação da violência doméstica contra a mulher baseada na valorização das ideias e dos sentimentos manifestados por vítimas diretas desse fenômeno em relação a situações vivenciadas em seus lares (DENZIN; LINCOLN, 2000). A coleta de dados foi realizada na Casa Abrigo de São Luís, instituição diretamente vinculada à Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação da Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Maranhão, em funcionamento há mais de treze anos, no acolhimento de mulheres em situações dramáticas de violência, normalmente com risco de morte. Nossa coleta de dados aconteceu entre mulheres, brasileiras, maiores de dezoito anos, sem qualquer especificação quanto à classe social e ao nível de escolaridade, desde que residentes e domiciliadas no Maranhão. Essas mulheres eram vítimas diretas de violência doméstica e autoras de queixas contra seus agressores na Delegacia Especial da Mulher, com o devido registro em boletim de ocorrência. Para proteção das informantes, foi mantido absoluto sigilo quanto a seus dados de identificação e, para garantir esse anonimato durante a interação verbal, foram sugeridos, pelas participantes, flores como codinomes: Acácia, Azaleia, Bromélia, Dália, Gérbera e Glicínia. Para o evento discursivo com o grupo focal, foram selecionadas seis informantes e o local escolhido, por força da sua condição de abrigadas, foi a própria casa em que elas se encontravam, mantida pelo Juizado da Mulher. A grande riqueza da técnica do grupo focal, segundo Morgan (1996), é a utilização da interação verbal dos informantes para a produção de um discurso que servirá como fonte de dados, pois se baseia na tendência humana de formar opinião e adotar uma posição em relação a um fenômeno, experiência, episódio ou ideia, como resultado da interação com outros. Isso é muito relevante para nossa investigação, pois, por meio do discurso produzido por esse grupo de mulheres vítimas diretas de violência doméstica em interação verbal, no qual revelam o que pensam e sentem, será possível conhecer como conceitualizam esse tipo de violência. [257]

264 Na coleta de outros dados para constituição do corpus para o estudo, adotamos as técnicas de documentação direta, abrangendo as da observação direta intensiva (observação e entrevistas) e as da observação direta extensiva (questionários, formulários). Realizamos, também, gravações de áudio digital para registro da interação verbal das informantes no encontro do grupo focal, durante a interação discursiva em observação, para posterior audição e transcrição nos moldes da metodologia adotada. Para a preparação dos dados extraídos do corpus desta pesquisa, composto pelo registro, em áudio digital, da interação verbal das informantes durante o encontro do grupo focal, observando os procedimentos metodológicos, tomamos como modelo o roteiro usado por Cameron (2007a) que abrange as seguintes etapas: (1) transcrição do evento discursivo; (2) leitura de toda a transcrição do evento discursivo; (3) observação de possíveis temas-chave; (4) identificação dos tópicos discursivos; (5) descrição da estrutura do discurso; (6) identificação, organização e codificação dos temas; (7) organização e codificação dos tópicos discursivos identificados; (8) identificação das metáforas por meio dos veículos metafóricos; (9) agrupamento dos veículos metafóricos em famílias; (10) identificação das metáforas sistemáticas por meio do agrupamento dos veículos metafóricos e tópicos discursivos; e, por fim, (11) vinculação das metáforas sistemáticas aos temas e/ou tópicos discursivos ao longo do evento discursivo (trajetórias). Depois cumpridas todas essas etapas, coube-nos fazer a análise dos dados e, em seguida, discutir os resultados, o que faremos a seguir. RESULTADOS E DISCUSSÃO Apresentamos uma das metáforas sistemáticas que emergiram na fala das vítimas de violência doméstica contra a mulher que participaram do grupo focal. Após o quadro que reúne as informações mais relevantes sobre a metáfora TOMAR UMA ATITUDE CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER É ESTABELECER UM FIM PARA ALGO, a análise será realizada excerto a excerto e, ao final, demonstramos sua trajetória ao longo do evento discursivo, registrando seus momentos de estabilização. Figura 1: Metáfora sistemática TOMAR UMA ATITUDE CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER É ESTABELECER UM FIM PARA ALGO [258]

265 EXCERTOS 5 (l.60 a 69) (l.105 a 112) (l.1272 a 1278) (l.1393 a 1399) (l.3000 a 3010) PARTICI PANTES TÓPICOS DISCURSIVOS Acácia 2 (Ações violentas contra a mulher e Comportamento diante da violência doméstica contra a mulher) Dália 1 (Comportamento diante da violência doméstica contra a mulher) VEÍCU LOS METAFÓ RICOS 3 MUDANÇAS METAFÓ RICAS Reemprego e Desenvolvi mento (repetição) TOTAL: R + D (R) Fonte: CARNEIRO (2014, p. 130) TOMAR UMA ATITUDE CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER É ESTABELECER UM FIM PARA ALGO é uma metáfora sistemática que emerge na interação de Acácia e Dália, envolvendo dois tópicos discursivos (Ações violentas contra a mulher e Comportamento diante da violência doméstica contra a mulher) e cinco veículos metafóricos. Excerto ACÁCIA Ele já me furou, 0061 ele já me furou, 0062 já tentou matar meu filho na minha barriga 0063 Ele já fez meu filho de escudo 0065 eu brigando com ele e eu dei um basta nessa violência 0067 porque quatro anos não é quatro dias Eu resolvi colocar ele na Lei Maria da Penha, 2 Como demonstra o Excerto 1 (l ), logo no início do evento, ao falar das ações violentas que sofreu pelas mãos do seu marido, Acácia diz: dei um basta nessa violência (l. 66). Ao usar esse veículo para expressar [259]

266 que a violência atingiu seu nível de saturação e que não se sujeitará mais a ela, Acácia demonstra, de modo figurado, sua presente intolerância a agressões. Dei um basta (l. 66), para ela significa impus um limite, pus um fim. Conforme o Dicionário Houaiss (2012, p. 413), basta, como interjeição, [...] indica expressa ordem de interromper ou cessar imediatamente o que se está fazendo; chega. Como substantivo masculino (HOUAISS, 2012, p. 413), como é o caso, significa [...] ponto final, limite, termo. Assim, ao usar a expressão dar um basta, o verbo dar que, no Houaiss (2012, p. 909), tem como primeira acepção [...] 1 por na possessão (de) 1.1 ceder, entregar, oferecer (algo de que se desfruta ou de que se está na posse), sem pedir contrapartida [...], adquire carga metafórica, já que basta não é algo que se possa entregar a alguém. Excerto ACÁCIA porque não dá mais certo, 0107 se eu chegar a voltar para ele, 0108 vai ser um dos dois, 0109 Deus me defenda, 0110 ou ele vai me matar, 0111 ou então eu vou matar ele Eu tive que dar um basta. Acácia faz uso do veículo metafórico dar um basta (l. 112) no Excerto 2 (l. 105 a 112), quando fala sobre seu comportamento. A ideia é a mesma, embora haja uma redução que deixa subentendido o objeto violência. O que Acácia deixa claro é sua determinação de por um ponto final nos maus tratos, nas brigas e, principalmente, no risco permanente de uma tragédia que ela antevê, ao afirmar: ou ele vai me matar ou então eu vou matar ele (l. 110, 111). Essa determinação está expressa no dar um basta (l. 112). Excerto DÁLIA Aí depois, 1273 Quando tava melhor 1274 Ela foi para casa bem [260]

267 1275 Aí eu disse: 1276 < Q olha, 1277 Você não pode ficar nessa situação Você tem que dar um basta nisso, Dália, no Excerto 3 (l ), ao comentar que a nova companheira de seu ex-marido sofre as mesmas agressões que ela sofria e que a abrigou após um episódio de violência, revela que já a aconselhou a dar um basta (l. 1278) na situação que enfrenta. Dar um basta (l. 1278) é usado com o mesmo significado, no âmbito de um mesmo tópico discursivo, caracterizando uma mudança metafórica de desenvolvimento (repetição) Excerto ACÀCIA Eu falei: 1394 <Q Não, 1395 eu vou dar um basta nisso aí Ninguém vive de bens materiais. Q> 1397 quer dizer que ele me dá de tudo dentro de casa, 1398 aí, no final das contas, 1399 ele vai acabar me matando. No Excerto 4 (l ), Acácia retoma o dar um basta (l. 1395) para falar sobre a sua decisão de impor um fim à violência e ao sofrimento de que é vítima, já que pode viver sem os bens materiais que o marido coloca dentro de casa. Ela reitera que pode pagar com a vida, se não se dispuser a por um fim nas agressões dele. O veículo metafórico dar um basta (l. 1395) é usado, nesse excerto, com o mesmo significado, na manifestação de Acácia sobre sua vontade e disposição para por um fim no seu sofrimento sob o jugo do marido. Excerto DÁLIA Como se ele fosse me amedrontar com isso Eu demorei uns dias, 3002 Aí ele disse: 3003 <Q Se você fizer, 3004 aí que eu vou fazer mesmo, 3005 se você me denunciar. Q> [261]

268 3006 Uma forma de me intimidar né? 3007 [GÉRBERA: Não se sabe a reação né?] 3008 Mas só que 3009 agora chega 3010 Tá na hora de dar um basta. Na análise do Excerto 5 (l ), observamos que Dália retoma o veículo e utiliza-o, mais uma vez, ao falar de sua reação às ameaças e provocações de seu marido. Dália, assim como Acácia, emprega o veículo metafórico na manifestação de sua decisão de não se deixar intimidar, de não se sujeitar a ouvir ameaças e muito menos sofrer outras violências. Ao dizer Tá na hora de dar uma basta (l. 3010), Dália demonstra que seu sofrimento em decorrência dessa vida de violência ultrapassou os limites e, por isso, tem que ter um fim. Por meio da linguagem figurada, Dália expressa sua saturação, deixando patente que essa situação foi além do limite. As mudanças metafóricas observadas ao longo da trajetória da metáfora TOMAR UMA ATITUDE CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER É ESTABELECER UM FIM PARA ALGO são de desenvolvimento (repetição), pelo uso repetitivo do veículo metafórico dar um basta (l. 112, 1278, 1395, 3010) sem qualquer alteração, e reemprego, pelas ocorrências envolvendo tópicos discursivos e participantes diferentes (CAMERON, 2008, 2010). Os cinco excertos analisados (cujas linhas iniciais são 60, 105, 1272, 1393 e 3000, respectivamente), que abrangem dois tópicos discursivos e cinco veículos metafóricos, registram a trajetória da metáfora TOMAR UMA ATITUDE CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER É ESTABELECER UM FIM PARA ALGO, durante a interação de duas participantes (Acácia e Dália). A trajetória desenvolvida revela sistematicidade, o que acreditamos que a classifica como uma metáfora sistemática. O gráfico a seguir registra os diversos momentos de emergência dessa metáfora, apresentando a trajetória por ela desenvolvida. [262]

269 Unidades entonacionais Gráfico Trajetória da metáfora Metáfora: TOMAR UMA ATITUDE CONTRA A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA É ESTABELECER UM FIM PARA ALGO Trajetória Fonte: CARNEIRO (2014, P. 134) CONCLUSÃO A violência doméstica contra a mulher apresenta índices crescentes e preocupantes, já que a realidade é bem pior do que o panorama que os dados descrevem. Os resultados sugerem, após análise, que as mulheres vítimas diretas de violência doméstica realmente exprimem seus sentimentos e ideias sobre esse fenômeno por meio da figuratividade manifesta na emersão de metáforas sistemáticas no discurso construído de modo colaborativo. Quanto à nossa contribuição, acreditamos ter disponibilizado dados relevantes para os estudos no âmbito tanto da violência contra a mulher quanto em termos da metodologia da teoria adotada esta investigação. REFERÊNCIAS ATLAS.TI. Software Disponível em: < Acesso em: 5 jun CAMERON, L. A discourse dynamics framework for metaphor Disponível em: < r=ddfm> Acesso em: 12 fev [263]

270 . Confrontation or complementarity: metaphor in language use and cognitive metaphor theory. Annual review of cognitive linguistics, La Rioja, 5, p , 2007a.. Patterns of metaphor use in reconciliation talk. Discourse and society, vol.18, n.2, p , 2007b. Metaphor shifting in the dynamics of talk, In: ZANOTTO, Mara; CAMERON, Lynne; CAVALCANTI, Marilda. C. (orgs). Confronting metaphor in use: an applied linguistic approach. Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, CAMERON, L.; DEIGNAN, A. A emergência da metáfora no discurso. (trad. FARACO, S.; VEREZA, S.) In: SIQUEIRA, Maity. Cadernos de tradução. Porto Alegre, no. 25, jul-dez, p.1-278, CAMERON, L. et al. The discourse dynamics approach to metaphor and metaphor-led discourse analysis. Metaphor and Symbol, v. 24, n. 2, p.63-89, CAMERON, L.; MASLEN, Robert. Metaphor analysis: research practice in applied linguistics social sciences and humanities. UK: Equinox Publishing Ltd, CARNEIRO, M. F. Emergência de metáforas sistemáticas na fala de mulheres vítimas diretas de violência doméstica: Uma análise cognitivodiscursiva. Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceara - Brasil CHAFE, W. Discourse, consciousness and time: the flow and displacement of conscious experience in speaking and writing. Chicago: The University of Chicago Press, DENZIN, N. K., LINCOLN, Y. S. (Ed.). Handbook of qualitative research. 2.ed. Thousand Oaks, CA: Sage Publications, FAUCONNIER, G.; TURNER, Mark. Principles of conceptual integration. In: KOENIG, J. P. (Ed.). Discourse and cognition: bridging the gap. Stanford: CSLI, p GRADY, J. E. Foundations of meaning: primary metaphors and primary scenes Dissertation (PhD) University of California, Berkeley, HOUAISS, A. Grande dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, Disponível em < Acesso em: 13 jun [264]

271 JOHNSON, C. Metaphor vs. conflation in the acquisition of polysemy: the case of SEE. In: HIRAGA, Masako. K.; SINHA, Chris.; WILCOX, Sherman. (Ed.). Cultural, typological and psychological issues in cognitive linguistics, current issues in linguistic theory. Amsterdam: John Benjamins, LAKOFF, G. Women, fire, and dangerous things: what categories reveal about the mind. Chicago: The University of Chicago Press, LAKOFF, G.; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. London: The University of Chicago Press, Philosophy in the flesh: the embodied mind and its challenge to western thought. New York: Basic Books, MORGAN, D. L. Focus groups. Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 22, n. 1, p NARAYANAN, S. Embodiment in language understanding: sensorymotor representations for metaphoric reasoning about event descriptions Tese (Doutorado) International Computer Science Institute, University of California, Berkeley, VEREZA, S. C. O lócus da metáfora: linguagem, pensamento e discurso. Cadernos de Letras da UFF, Niterói, RJ, n. 41, p , Disponível em: < cadernosdeletrasuff/41/artigo10.pdf>. Acesso em: 12 jun [265]

272 [266]

273 AUTORES Adriana Martins Agnes dos Santos Scaramuzzi-Rodrigues Ana Maria Almeida Marques Cynara Silde Mesquita Veloso Elaina Cavalcante Forte Ercílio N.B. Langa Flavianne Damasceno Maia Campelo Ingrid Lorena da Silva Leite Jean-Rémi Lapaire... 9 João Paulo Rodrigues de Lima Kaline Girão Jamison Leila Maria Passos de Souza Bezerra Letícia Adriana Pires Ferreira dos Santos Marcos Roberto dos Santos Amaral Maria Elias Soares Maria Isabel Rocha Bezerra Sousa , 235 Meire Virgínia Cabral Gondim Monica Fontenelle Carneiro Neyla Priscila de Araújo Castro Pedro Jorge da Silva Marques Raquel Coelho de Freitas , 235 Tatiana Martins Oliveira da Silva Vanessa de Lima Marques Santiago , 235 Vinícius Lopes Drumond [267]

274 [268]

275 [269]

276 [270]

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