Eu também fui arrastada...
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- Iasmin di Castro Belém
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1 1 Eu também fui arrastada... Elizabeth M. F. Araújo Lima 1 Eu também fui arrastada para as ruas, mesmo sem ter facebook... O noticiário da TV falava de vandalismo, jovens quebrando tudo por causa de uns poucos centavos... a produção do medo ganhando novos contornos. Depois os amigos, os estudantes, os colegas, os filhos, o namorado. Redes de afeto me conectando aos acontecimentos. Alguns professores da USP iam se encontrar na frente da Estação de Metrô Butantã e caminhar juntos até o Largo da Batata. Fui com uma colega fazendo um trajeto parecido. O que me movia naquele momento era uma indignação, mais uma vez e sempre, com a forma como o Estado tinha respondido a uma manifestação política, expressão crítica de insatisfação e revolta. Forma que tem se repetido insuportavelmente em todos os lugares: truculência e criminalização. Um amigo me lembrou de uma Assembleia de professores na USP, interrompida pela polícia jogando gás lacrimogêneo nos estudantes que faziam uma manifestação no Campus Pinheiros. A mesma polícia que, com aparato desproporcional, retirou os estudantes que haviam ocupado a reitoria da USP em 2011 para protestar contra sua presença no Campus e que, no ano seguinte, em uma ação de reintegração de posse, retirou violentamente milhares de famílias que viviam em uma área de São José dos Campos conhecida como Pinheirinho. Essas respostas truculentas aos movimentos políticos e sociais, que temos assistido a Polícia Militar protagonizar na cidade, no estado e no país, são, em geral, seguidas por coros de aprovação às declarações dos governantes de que a lei é para todos. Mas, como lembrava Raquel Rolnik em 2011, nossa legalidade não é feita apenas de infrações penais, mas também de direitos. Ou seja, são inaceitáveis, as desocupações violentas em favelas, os despejos forçados de milhares de pessoas sem teto e sem terra, as 1 Beth Lima é doutora em Psicologia Clínica pela Pontifíca Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), terapeuta ocupacional e professora do Curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo (USP).
2 2 abordagens humilhantes a moradores de rua, as execuções sumárias, entre tantas outras situações cujos agentes são sempre a mesma PM. 2 Com o Movimento Passe Livre não foi diferente: a resposta foi policialesca e o discurso da mídia, com seu tom de desaprovação, mais uma vez criminalizava as lutas sociais. As primeiras notícias insistiam na gratuidade dos atos e em seu vandalismo. Mas, surpreendendo todas as expectativas, um pequeno grupo de jovens conseguiu alterar o campo de visibilidade. Ao contrário do que a mídia tentava fazer ver, os jovens do MPL colocaram em foco, com sua ação, o intolerável de uma situação que atravessa todos os habitantes de São Paulo: o deslocamento espacial impossível, violento, desumanizante, que enfrentamos todos os dias, cada um a seu modo, nesta megacidade. Este é um comum que nos habita. Este comum foi acionado, e deste comum o desejo se ampliou, levando cada um a encontrar a multidão de corpos que se reunia nas ruas e a sentir com eles algo que não é possível sentir em isolamento. Em outubro de 2011, Vladimir Safatle falou às pessoas que estavam reunidas no Vale do Anhangabaú participando do movimento Ocupa Sampa. Disse que elas eram parte de uma engrenagem montada inesperadamente em várias partes do mundo, em torno de uma noção central: nossa democracia não existe ainda, nossa democracia ainda não chegou, nós ainda esperamos uma democracia por vir. (Safatle, 2012, p. 47). Mas, já não se tratava mais de esperar por esta tal democracia por vir. O desejo era agora de experimentá-la. Um desejo sem foco e sem nome que arrastou a mim também. E fui. Nas tentativas de comunicação pelos celulares, que vez por outra funcionavam, consegui encontrar meu bando. Contaminados pela alegria geral, caminhamos muito, sentindo finalmente que a cidade era nossa. Descobrindo suas belezas, seus espaços, seus habitantes, tão díspares, tão interessantes, tão cheios de energia. 2 Raquel Rolnik. Truculência para todos? Disponível em: <
3 3 A caminhada tinha um ar de festa. Um amigo me disse que vivia ali uma explosão de energia utópica represada. As palavras de ordem gritavam a coincidência de que sem polícia não há violência, e deslocavam o tradicional e revolucionário povo unido [que] jamais será vencido para a constatação simples e concreta de que o povo unido é gente pra caralho!. Foto: Julia Magalhães
4 4 Para aqueles de minha geração, que viveram as Diretas Já e outros tantos eventos de massa, acostumados com os carros de som a liderarem a turba, o passeio era uma surpresa e uma revelação. Como seria possível que as pessoas começassem a andar sem combinar previamente o trajeto? Quem iria decidir? Quem iria nos guiar? Foto: Julia Magalhães
5 5 Mas essas perguntas mal colocadas não atingiam o acontecimento que estava se dando ali. As decisões se faziam pelos corpos em conexão. E não precisavam de unanimidade. A multidão seguiu em várias direções e se espalhou pela cidade. Uma multidão feita de singularidades compartilhava um comum nos corpos, na sua potência de afetação e de invenção de mundos, no seu desejo de viver diferentemente. A multidão que se espalhava pela cidade, se espalhou também pelo país, problematizando o modo de fazer política que temos construído, lutando por uma vida mais digna e mais potente, enfrentando as injustiças que são tantas, e afirmando o direito à expressão, em suas variadas formas, à diferença, aos serviços públicos de qualidade, a uma existência mais interessante, mais alegre, menos capturada e vampirizada. Talvez pudéssemos pensar que assistimos, nesse inverno de 2013, a eclosão de um tipo de luta que, segundo Foucault, se caracteriza por um certo anarquismo na forma de colocar as questões e não espera solucionar problemas em um futuro preciso. Um tipo de luta que instaura um plano transversal de enunciação, no qual cada um passa a colocar em questão as instâncias de poder que lhe são mais próximas e a combater tudo aquilo que separa os indivíduos uns dos outros, tudo aquilo que rompe com a vida comunitária (Foucault, 2001). Mas, se havia um plano transversal comum de insatisfações e de desejos que atravessava as manifestações em localizações geográficas tão distintas e grupos tão díspares, a diferença de suas formas e de seus participantes não pode ser ignorada. A violência da polícia, o descaso e o mau funcionamento dos serviços públicos, os tempos vividos nos transportes coletivos ou em longas caminhadas em direção ao trabalho, as implicações concretas dos esquemas de corrupção, não são as mesmas para todos e nem são vividas da mesma forma por cada um que compõe a multidão. Para alguns, a política se faz com palavras, discursos, discussões, reivindicações, negociações, representações, eleições... para outros, já não é mais possível esperar respostas por vir, é preciso agir.
6 6 Esta polifonia de vozes, pensamentos e ações começou a assustar. As críticas diziam que o movimento estava acéfalo e não sabia o que queria. A insegurança quanto aos desdobramentos possíveis revelava-se numa proliferação de questionamentos: Do que seria capaz a multidão descontrolada? E os black blocs que vão às manifestações mascarados, o que querem e o que podem fazer? Que uso a direita fará desse descontrole e dessa potência? A impossibilidade de inserir o acontecimento em cálculos e previsões, e a ausência de uma compreensão que pudesse se fazer de imediato, levavam de volta a coordenadas que não conseguem dizer do acontecimento em sua singularidade. Sua falta de cabimento em grades explicativas já conhecidas passou a ser usada como combustível para a produção do medo. Mas é preciso ir além do medo, escapar a sua produção. E para isso é necessário suportar o incompreensível e sustentar as sensações produzidas nesse passeio junto a uma multidão por uma cidade que vai sendo reinventada por cada um. Sensações de um encontro inesperado com o mundo quando se estava acostumada a desertá-lo com facilidade. Sensações que provocam a criação de formas de vida e buscam um pensamento que possa acompanhá-las. Um pensamento que possa estar à altura do acontecimento, que possa problematizá-lo. Pensar sem tomar partido, sem escolher lados. Pensar as esperanças e os riscos de cada invenção. E foi assim que voltei uma vez mais a um texto inspiradíssimo do querido professor Luis Orlandi. Neste ponto, queria trazer para a conversa algumas notas a partir desse texto-presente, extremamente contemporâneo, no qual Orlandi confessava sua ignorância em relação ao que estamos ajudando a fazer de nós mesmos (Orlandi, 2002). De fato, parece muito difícil saber o que estamos ajudando a fazer, na medida mesma em que os fatos ocorrem. Mas, se não podemos saber de antemão o que estamos fazendo, podemos encontrar algumas regras éticas para o nosso agir. No mesmo texto, nosso professor nos dá pistas para formular essas regras, e uma delas aponta para o paradoxo do tempo em que vivemos no qual, no mesmo instante e em cada acontecimento, fica evidente simultaneamente
7 7 uma potência acentuada capaz de articular e de levar a cabo conjunções praticamente ilimitadas entre forças presentes ou atuantes no homem e os mais variados mini conjuntos do seu universo ambiente e um sistemático, cotidiano e envolvente sucateamento da humanidade. (Orlandi, 2002, p. 220). Assim, se não sabemos o que estamos fazendo de nós mesmos, vamo-nos dando conta, de forma irrecusável, de que cada gesto, cada fiapo das práticas cotidianas, está imerso em algo incontrolável, está ajudando a proliferar os fluxos incontroláveis (Orlandi, 2002, p. 228). O problema persiste. O que fazer estando imerso nessa turbulência que toca forças incontroláveis? Que qualidades de invenção e prudência são necessárias? Como agir, sabendo que enfrentamos, em cada situação, a grande serpente que se instalou em nossa maneira de viver e nas nossas relações com os outros? Agir em duas direções ao mesmo tempo, nos diz Orlandi (2002, p. 230): unir-se ao sujeito coletivo capaz de uma práxis revolucionária tal que seus atos mudarão a qualidade de todas as demais práticas ; unir-se, sim, mas mantendo nossa atenção à espreita prudência, arrojo e criatividade no nível de cada tentativa (Deleuze, 2010 apud Orlandi, 2002, p. 235). Parece simples, mas nada é mais complexo, clínico e político a um só tempo: unir-se ao sujeito coletivo, mantendo-se à espreita para avaliar ao nível de cada tentativa sua capacidade de resistência ou, ao contrário, sua submissão a um controle (Deleuze 2010 apud Orlandi, 2002, p. 235). As manifestações nos fizeram vislumbrar, como que por um flash, o intolerável de nossa época; e, ao mesmo tempo, nos deram a chance de esboçar o desenho de novas possibilidades de vida. Elas instauraram um acontecimento inapreensível que, como diz Deleuze, não se explica pelos estados de coisa que o suscita, não traz a solução de problemas e também não se esgota naquilo em que torna a cair. (Deleuze, 2000). Emergimos do nosso cotidiano, por um instante; produzimos novas maneiras de sentir, de se encontrar; experimentamos outras formas de agir. É isto que é preciso agarrar, nos mantendo atentos às composições das forças em jogo no panorama atual.
8 8 Manter-se à espreita, estar atento ao que acontece, ao que nos acontece. Talvez assim possamos nos afastar do medo que é constantemente produzido em nós, para experimentar com prudência as potências e os riscos deste mundo que é o nosso. E tudo isso, sobretudo, para lutar por uma vida não fascista. Referências DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter P. Pelbart. São Paulo: Ed. 34, DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. Capitalismo e esquizofrenia 1. Trad. Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, FOUCAULT, Michel. El sujeto e el poder. El seminario ORLANDI, Luiz B. L. O que estamos ajudando a fazer de nós mesmos. In: RAGO, Margareth; ORLANDI, Luiz B. L.; VEIGA-NETO, Antônio (orgs). Imagens de Foucault e Deleuze: ressonâncias nietzscheanas. Rio de Janeiro: DP&A, SAFATLE, Vladimir. Amar uma ideia. In: HARVEY, David et al. (orgs). Occupy: movimentos de protestos que tomaram as ruas. São Paulo: Boitempo / Carta Maior, 2012.
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