GESTÃO FRAUDULENTA, CONFIANÇA NOS INTERMEDIÁRIOS FINANCEIROS E CRISES SISTÊMICAS: Dignidade penal e método de tutela

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1 III Mostra de Pesquisa da Pós-Graduação PUCRS GESTÃO FRAUDULENTA, CONFIANÇA NOS INTERMEDIÁRIOS FINANCEIROS E CRISES SISTÊMICAS: Dignidade penal e método de tutela Thiago Zucchetti Carrion, Luciano Feldens (orientador) Programa de Mestrado em Ciências Criminais, Faculdade de Direito, PUCRS, Resumo 1 CONFIANÇA E INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA Nos termos do ministrado por LOPES e ROSSETTI, as economias desenvolveram mecanismos para fazer com que o capital dos agentes superavitários migrasse aos que necessitam de tais valores, de maneira indireta, esses mecanismos que se alocam entre os agentes possuidores de poupança e os que dela necessitam são chamados de intermediadores financeiros (LOPES e ROSSETTI, 1988: p ). Essas entidades desempenham, em síntese, duas funções distintas, podendo realizá-las isoladamente ou cumulativamente (SAUNDERS, 2000: p. 81.). A primeira consiste na corretagem, na qual o intermediário financeiro supre o agente poupador da informação necessária e reduz o custo das transações (CARVALHO, Fernando J. Cardim de et al., 2000: p. 243). A segunda forma de intermediação seria a desempenhada, por exemplo, pelos bancos, que captam capital dos depositantes, assegurando liquidez para estes, ao passo que possibilita ao intermediador financeiro efetuar empréstimos com esses valores, inexistindo relação direta entre o depositante e o destinatário final daqueles recursos (CARVALHO, Fernando J. Cardim de et al., 2000: p ). Tais atividades, contudo, não apresentam vantagens, tão

2 somente, quando consideradas sobre o plano individual. Segundo LOPES e ROSSETTI, a intermediação financeira tem a capacidade de aumentar a quantidade de formação de capital, por meio do incentivo à poupança, possibilitando com que grandes somas excedentes sejam redistribuídas e que pequenos poupadores possam ter relevância pela sua consideração conjunta. Isso torna possíveis maiores investimentos, ante a elevação dos níveis de capital disponíveis, bem como é capaz de propiciar um alargamento no consumo (LOPES e ROSSETTI, 198: p. 294). 1 O que possibilita aos bancos e demais intermediários financeiros promover essas atividades é o fato que, em situações normais, a quantidade de saques e depósitos tende a ser equivalentes, mantendo-se o saldo estável (SINGER, 2003: p. 52). Assim, toda essa estrutura depende, em síntese, que os depositantes, em número excessivamente elevado, não desejem reaver os valores confiados a determinado intermediário financeiro de maneira simultânea. Um dos fatores que propicia, de maneira mais destrutiva, esse cenário, é a perda da confiança do público nos intermediários financeiros, a qual, segundo CARVALHO, SOUZA, SICSÚ, PAULA e STUDART, proporciona um contágio de choque que se alastra de instituição em instituição, ocasionando o que se chamou, no início do século passado, de corridas bancárias (CARVALHO, Fernando J. Cardim de et al., 2000: p. 321) 2. Esse efeito dominó, assim denominado por SINGER, desemboca, caso não exista uma intervenção salvadora da autoridade monetária, no ponto crítico da crise financeira, quando se instaura o pânico e o sistema financeiro encaminha-se ao colapso (SINGER, 2003: p. 129) 3. 2 DA DIGNIDADE PENAL À TÉCNICA DE TUTELA Diferentemente do que defendia KELSEN, FELDENS afirma que na vigência do Estado constitucional de Direito, a Carta Magna deve ser protegida dos ataques advindos da legislação infra-constitucional mediante um duplo filtro, consistente tanto na observância do rito previsto para a concepção do diploma legislativo (vigência) quanto na sua adequação ao conteúdo prescrito no estatuto político (validade) (FELDENS, 2005: p. 33). Nesse tom, é 1 No mesmo sentido: SAUNDERS, 2000: p Nos mesmos termos: SINGER, Paul. op. cit., p. 58; SAUNDERS, Antony. op. cit., p. 87 e TOBIN, James. Financial intermediaries. In: EATWELL (Ed.), MILGATE (Ed,) e NEWMAN, c1998., v. 2: p Ainda, conforme CARVALHO, SOUZA, SICSÚ, PAULA e STUDART, não é necessária uma verdadeira corrida bancária para abalar a liquidez da instituição financeira, porque mesmo a coincidência de saques de menor vulto tem o condão de desempenhar tal papel (CARVALHO et al., 2000: p. 269).

3 manifesto o papel desempenhado pela teoria do bem jurídico, a qual, conforme alerta FELDENS, mesmo após dois séculos de problematização, continua a desempenhar um papel necessário no direito penal do Estado constitucional de Direito. Contudo, a categoria do bem jurídico, anteriormente um elemento estruturado pela dogmática, atualmente, deve ser vista como um elemento estruturante e informador da política criminal do estado, cuja legitimidade passa a estar condicionada a um modelo de crime como ofensa a bens jurídicos (FELDENS, 2005: p. 44). Nesse tom, pensamos que a confiança nos intermediários financeiros atende satisfatoriamente aos pressupostos elencados à necessidade de sua tutela penal. Em primeiro lugar, a sua violação, conforme se buscou demonstrar acima, tem o condão de ocasionar crises sistêmicas, que, na pior das hipóteses, podem levar ao colapso todo o sistema financeiro. Além disso, nos termos do que ministram SCHMIDT e FELDENS, os fundamentos constitucionais e as finalidades sobre os quais a Ordem Econômica e Financeira se alicerça criam um núcleo valorativo digno de tutela, de forma que a necessidade de tutela penal, além de faticamente considerada, encontra respaldo na Carta Magna (SCHMIDT e FELDENS, 2006: p. 7.). Quanto à técnica de tutela, pelo menos em princípio, parece certo que o delito previsto no art. 4º, caput, da Lei n /86 trata-se de um crime tutelado sobre a forma de perigo abstrato, o que, além de ser corriqueiro nas legislações do direito penal secundário 4, desperta uma série de críticas, colocando em xeque a própria categoria jurídica dos crimes de perigo abstrato. Primeiramente, cabe afastar qualquer afirmação que busque negar a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, uma vez que, conforme D AVILA, as tradicionais concepções dos crimes de perigo abstrato como mera violação de dever ou presunção absoluta de perigo. 5 No que tange à necessidade do emprego da técnica de tutela de perigo abstrato, importantíssima a contribuição de D AVILA, o qual, baseando-se nas lições de FARIA 4 Nesse sentido: DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal econômico e social português. In: D AVILA (Coord.) e SOUZA (Coord.), 2006: p. 56; D AVILA, Fabio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D AVILA (Coord.) e SOUZA (Coord.), 2006: p D AVILA, Fabio Roberto. O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. D AVILA (Coord.) e SOUZA (Coord.), 2006: p

4 COSTA referentes à matriz onto-antropológica da noção de cuidado-de-perigo, desenvolve uma dogmática segundo a qual a ofensividade nos crimes de perigo abstrato está ligada à possibilidade de interferência na esfera de manifestação do bem jurídico, bem como à necessidade dessa possibilidade não ser insignificante (D AVILA, 2005: p , especialmente, p. 168) Introdução O tratamento jurídico-penal de âmbitos historicamente confiados à investigação de outras ciências, muitas vezes, condiciona descompassos e incompreensões que podem gerar efeitos significativos na instrumentalização daquele saber. Ademais, a redação da Lei n /86, devido à utilização exagerada de conceitos econômicos e a problemas de técnica jurídica, vem a agravar esse problema, sendo objeto de duras críticas pela dogmática penal nacional, muitas das quais merecidas. Uma compreensão adequada dessa racionalidade econômica permitiria travar-se uma discussão de maior qualidade no que diz respeito ao atendimento dos pressupostos constitucionais de necessidade penal e ofensividade, bem como influiria diretamente na análise da técnica de tutela empregada na redação do referido tipo penal, o crime de perigo abstrato. O presente trabalho busca por meio de um diálogo com ciências como a economia, analisar a efetiva legitimidade e proporcionalidade do delito mais grave e, possivelmente, um dos mais controversos da Lei do Colarinho Branco, compreendo a maneira como se dá a afetação da confiança dos intermediadores financeiros de maneira real, analisando historicamente períodos e episódios nos quais tal questão surtiu os efeitos cogitados como possíveis. Ainda, estudar as categorias dogmáticas que se encontram ligadas ao crime de gestão fraudulenta. Metodologia

5 O trabalho se encontra em estado preliminar, tendo sido efetuada um levantamento bibliográfico nos periódicos internacionais sobre economia, publicidade bancária e direito penal econômico, bem como em obras completas sobre risco sistêmico e regulamentação financeira. Resultados Parciais Até o momento, as pesquisas demonstram que as premissas assumidas são cientificamente defensáveis, em que pese não se encontrem muitos trabalhos específicos acerca do tema, a aproximação entre economia e direito, constitucional e penal, que se busca efetuar por meio deste projeto, tem a consistência necessária para lançar luz sobre a problemática que circunda o delito de gestão fraudulenta. Referências BODIE, Zvi. Fundamentos de investimentos. 3. ed. Porto Alegre: Bookman, CARVALHO, Fernando J. Cardim de et al. Economia monetária e financeira: teoria e política. Rio de Janeiro: Campus, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral. Tomo I: questões fundamentais; a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Ed., Para uma dogmática do direito penal secundário. Um contributo para a reforma do direito penal econômico e social português. In: D AVILA, Fabio Roberto (Coord.); SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito penal secundário: Estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Ed., 2006, p D AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: (Contributo à compreensão do crime como ofensa ao bem jurídico). Coimbra: Coimbra Ed O modelo de crime como ofensa ao bem jurídico. Elementos para a legitimação do direito penal secundário. In: D AVILA, Fabio Roberto (Coord.); SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de (Coord.). Direito penal secundário: Estudos sobre crimes econômicos, ambientais, informáticos e outras questões. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Ed., 2006, p

6 FELDENS, Luciano. A Constituição penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005 FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: Teoria del garantismo penal. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez et al. 5ª ed. Madrid: Trotta, HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal (Decreto-Lei n , de 7 de dezembro de 1940), vol. VII: Arts. 155 a ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, LOPES, João do Carmo; ROSSETTI, José Paschoal. Economia monetária. 5ª et. rev. e atual. São Paulo: Atlas, MAIA, Rodolfo Tigre. Dos crimes contra o sistema financeiro nacional: Anotações à lei federal n /86. São Paulo: Malheiros, SAUNDERS, Antony. Administração de instituições financeiras. 2ª ed. Trad. Antonio Zoratto Sanvicente. São Paulo: Atlas, SCHMIDT, Andrei Zenkner; FELDENS, Luciano. O crime de evasão de divisas: A tutela penal do sistema financeiro nacional na perspectiva da política cambial brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, SINGER, Paul. Para entender o mundo financeiro. 2ª ed. São Paulo: Contexto, SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de. Bem jurídico-penal e engenharia genética humana: Contributo para a compreensão dos bens jurídicos supra-individuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, TOBIN, James. Financial intermediaries. In: EATWELL, John (Ed.); MILGATE, Murray (Ed,); NEWMAN, Peter. The New Palgrave: a dictionary of economics. London: Macmillan, c1998., v. 2, p