Profecias no Antigo Testamento

Transcrição

1 Igreja Nova Apostólica Internacional Profecias no Antigo Testamento Alguns temas das profecias veterotestamentárias tornaram-se parte integrante da esperança escatológica neotestamentária: o dia do Senhor, a nova Jerusalém, o reino da paz, o início de uma nova era e de um novo mundo messiânico, da regência universal divina. Por esse motivo, vale a pena analisar, com mais atenção, a tradição profética do Antigo Testamento e as suas origens. As origens do ministério profético A história do povo de Israel está inseparavelmente ligada à atuação dos profetas. Na sua obra fundamental sobre o judaísmo, o filósofo de religião Hermann Cohen descreveu a missão profética como sendo «o centro espiritual da criatividade judaica 1». Os profetas elegem reis, segundo a vontade de Deus, concedem-lhes amparo, preveem vitórias ou derrotas, profetizam-lhes liberdade ou prisão, ou, por vezes, até morte e perdição. Eles denunciam a injustiça social e advertem o povo para não praticar idolatria, são «admoestadores para a verdadeira adoração a Deus e para a prestação de serviços ao povo» (Cohen); louvam a grandeza e a omnipotência do Deus uno, que elegeu Israel como Seu povo. Nos relatos bíblicos sobre o episódio em que Saúl procura as jumentas do seu pai e sobre o seu encontro com Samuel, encontra-se uma pequena observação que remete para as origens das profecias. Saúl tinha sido enviado pelo seu pai com um dos criados, a fim de encontrarem os animais que se tinham perdido. A procura foi infrutífera, de forma que Saúl propôs que voltassem para casa, pois o seu pai poderia estar a ficar preocupado. Mas o criado não queria, ainda, desistir e propôs o seguinte: «Eis que há nesta cidade um homem de Deus, e homem honrado é; tudo quanto diz sucede assim, infalivelmente; vamo-nos agora lá; porventura nos mostrará o caminho que devemos seguir» (1Sm 9,6). Esse ¹ H. Cohen, Religion der Vernunft [Religião da Razão]. Aus den Quellen des Judentums [A partir das fontes do judaísmo]. 1.ª edição, Berlim 1928 Doutrina e Conhecimento Página 1 de 5

2 homem de Deus era Samuel, que mais tarde irá ungir Saúl como rei. Aqui, no relato da história, foi inserido um versículo que explica o que significava o termo vidente usado no texto bíblico (cf. 1Sm 9,18.19): «Antigamente em Israel, indo qualquer consultar a Deus, dizia assim: Vinde, e vamos ao vidente: porque, ao profeta de hoje, antigamente se chamava vidente» (1Sm 9,9). O «vidente» e «homem de Deus» é, claramente, uma pessoa carismática e talentosa, que vê o passado e o futuro, que se encontram ocultos e, como transmissor autorizado, manifesta uma mensagem divina. Através da sua vocação, o profeta fica capacitado e encarregado de receber, interpretar e transmitir aquilo que lhe é revelado por inspiração divina. Em Israel, os profetas surgiram na era pré-monárquica, por volta de meados do século XVIII antes de Cristo. Tal como se pode observar na descrição da história de Saúl, os videntes também davam conselhos em assuntos da vida quotidiana, que lhes eram pagos, e praticavam serviços sacerdotais nos cultos sacrificiais. Para além de proeminentes figuras individuais, também havia escolas e associações de profetas, que conviviam em determinadas localidades, semelhantes a ordens religiosas, e que, segundo consta, podiam chegar a ser compostas por centenas de homens (cf. 1Rs 22,6; 2Rs 4,43). Entre os grandes profetas encontrava-se Elias e, de certa forma, também Eliseu, que reuniu um grupo de jovens profetas. A posição de destaque sem igual do «homem de Deus» Elias, que também fez milagres em público e cujo nome, que significa «meu Deus é Javé», tornou-se o lema pelo qual era conhecido, é sublinhada pelo relato do encontro que teve com Deus, no monte Horebe, e pela sua ascensão; ao lado de Moisés, no monte da transfiguração, ele assume a função de representante da Antiga Aliança e testemunho da filiação divina de Jesus Cristo. Eliseu, seu aluno e seguidor, evidencia-se, pelos seus inúmeros atos milagrosos, como profeta equiparável a Elias («morte na panela», 2Rs 4,40; fez «nadar o ferro», 2Rs 6,5-7; fez «reviver» os mortos usando os ossos de Eliseu, 2Rs 13,20.21). A época das profecias é, ao mesmo tempo, época de crises políticas, sociais e religiosas. Para o teólogo do Antigo Testamento, Gerhard von Rad, os profetas encontram-se, literalmente, na mira das grandes alterações histórico-salvíficas: «Todos os profetas tinham consciência de que se encontravam, historicamente, no lugar decisivo de mudança para o povo de Deus. É desse prisma que se deve observar a sua abolição apaixonada de tudo o que era antigo, principalmente de todas as falsas seguranças diante de Deus, mas também a sua palavra sobre o surgimento de atos divinos totalmente novos, assustadores e salvíficos» (Gerhard von Rad, Theologie des Alten Testaments Bd 2 [Teologia do Antigo Testamento, 2.º volume], Gütersloh 1960, pág. 311). O facto de, segundo a Bíblia, os patriarcas da fé dos primórdios de Israel, nomeadamente Abraão, Isaac, Jacob e Moisés, também serem considerados profetas, encontra- Doutrina e Conhecimento Página 2 de 5

3 se fundamentado numa afirmação posterior e remete para a relação imediata com Deus e para a função mediadora entre Deus e o Seu povo exercida por Abraão e Moisés. O desenvolvimento do ministério profético Entre os profetas das escrituras, cuja sucessão começa com Amós, distinguem-se os «videntes» dos primeiros tempos. Estes profetas também propagaram a sua mensagem de boca em boca. No entanto, devido à recolha posterior das suas palavras e dos seus provérbios, são chamados de profetas das escrituras. Portanto, são profetas cujo nome foi dado a escrituras bíblicas. Eles não se dirigem em primeiro lugar a determinados governantes e reis, como os seus antecessores o faziam, mas antes, e cada vez mais, ao povo e, como Jeremias, por volta de finais do século VII a.c., com uma missão universal dirigido aos «povos»: «Antes que te formasse no ventre, te conheci, e, antes que saísses da madre, te santifiquei; às nações te dei por profeta» (Jr 1,5). O cerne da profecia dos profetas das escrituras que atuavam antes do exílio babilónico é a mensagem da perdição e da justiça que está para vir e que cairá sobre Israel. Já Amós, o mais antigo dos profetas das Escrituras, entra em conflito com o rei e o sacerdócio do templo, por querer denunciar a injustiça, a opressão dos pobres, a corrupção e a desregrada vida epicurista dos ricos e anunciar a decadência do rei e do império, numa época de crescimento económico. Amós, criador de gado, demarca-se claramente dos profetas de profissão, que estão ao serviço do rei e que só lhe dizem o que ele quer ouvir. Ele remete, assim, para a sua independência enquanto enviado de Deus e homem por Ele incumbido, sem quaisquer vínculos de vassalagem perante reis ou governantes: «E respondeu Amós, e disse a Amazia: Eu não era profeta, nem filho de profeta, mas boieiro, e cultivador de sicómoros. Mas o Senhor me tirou de após o gado, e o Senhor me disse: Vai, e profetiza ao meu povo Israel» (Am 7,14.15). Verdadeiros e falsos profetas Aqui faz-se referência à diferença entre a missão profética institucional, que, por inerência de funções, se encontra ligada ao templo e ao palácio, ou seja, tem uma relação de prestação de serviços e de dependência em relação a quem tem poder para dar ordens, que é o respetivo rei, e os profetas independentes e não organizados, que, a seu ver, apenas dependem de Deus e, por isso, normalmente se encontram em oposição à missão profética institucional. Muitas vezes, o seu caráter marginal pode sentir-se de forma direta e existencial, como no caso de Elias, que é o único que se opõe à perda de fé do povo no Deus uno, ou, como no caso de Jeremias, que equipara simbolicamente a sua condição de homem não casado e sem filhos ao juízo que Deus faz do Seu povo. Os anúncios de perdição, as palavras de juízo e os clamores proferidos pelos profetas designados por Deus fazem também a ponte entre os apelos ao arrependimento, a Doutrina e Conhecimento Página 3 de 5

4 ameaça de punição pelo juízo, a exortação à conversão e a promessa da salvação futura. Enquanto a profecia institucional tenta legitimar a política das potestades e da religião dos respetivos governantes, os profetas que não se encontram ao serviço das potestades têm de anunciar a sentença de Deus referente a essa mesma política errada e, por isso, são vítimas de desprezo, perseguição, cativeiro, expulsão e morte. Eles corporizam, assim, na sua própria existência, precisamente aquilo que espera o povo e o reino na sua globalidade. Não são poucas as vezes que os profetas que atuam por encargo de Deus sofrem sob a pressão de terem de anunciar e executar precisamente aquilo que eles próprios não querem. O legado profético No Antigo Oriente e, por conseguinte, também em Israel, a divulgação com base no passa-palavra era a forma usual de fazer propagar as tradições. Só a partir do exílio na Babilónia, no século VI a.c. e no tempo após o exílio, é que se passou a usar, em Israel, o registo escrito como forma comum de transmissão. Assim sendo, presume-se que, inicialmente, também as palavras dos profetas tenham sido passadas de boca em boca e, só mais tarde, tenham sido registadas em manuscritos e compiladas em livros. Durante algum tempo, a divulgação com base no passa-palavra e o registo escrito decorreram em paralelo, influenciando-se reciprocamente. Reconhece-se, pelo estilo linguístico e pelas particularidades literárias, como as formas poéticas ou as subdivisões rítmicas, que, ao longo do processo de transmissão tradicional, foram recolhidas, complementadas, resumidas e divididas em unidades de texto, palavras, que inicialmente eram autónomas e, tanto em forma como em conteúdo, não inter-relacionadas, uma vez que que se tratava de discursos pontuais com contextos situacionais, de forma a poderem ser lidas nos cultos religiosos (cf. Lc 4,17; Actos 13,15). Ou seja, no caso dos livros proféticos, trata-se de coletâneas de textos extremamente complexas e trabalhadas artisticamente. Os registos proféticos podem subdividir-se em três tipos diferentes de texto: histórias, visões e palavras. No que diz respeito às histórias, trata-se da descrição bem compreensível de atos que envolvem sinais com caráter simbólico, que acompanham a mensagem profética e anunciam a ocorrência de um evento iminente. Um exemplo disso é a prédica de Jeremias sobre o jugo de Nabucodonosor, que é realçada pelo facto de Jeremias, a mandado de Deus, ter colocado um jugo em si próprio e o ter entregue aos embaixadores dos povos vizinhos, que iriam passar a ficar sob o domínio do rei da Babilónia (cf. Jr 27, 1-7). Também aqui, a mensagem de Jeremias está em contradição com o sacerdócio e com os profetas de profissão do seu país: «Também falei aos sacerdotes, e a todo este povo, dizendo: Assim diz o Senhor: Não deis ouvidos às palavras dos vossos profetas, que vos profetizam, dizendo: Eis que os vasos da casa do Senhor cedo voltarão da Babilónia; pois eles vos profetizam mentiras» (Jr 27,16). Doutrina e Conhecimento Página 4 de 5

5 Nos textos referentes às visões, trata-se, sobretudo, de mostrar os acontecimentos do futuro ou do fim dos tempos. Este último caso constitui o Apocalipse profético, ou seja, a revelação do fim do mundo e das últimas coisas, das quais também fazem parte as expetativas e as promessas messiânicas. Para Daniel, bem como para outros, as tormentas do presente eram o percursor do fim da história que esperavam num futuro muito próximo. As afirmações de muitos profetas veterotestamentários culminam nas indicações relativas ao Redentor que há de vir. Só poucos ultrapassam este horizonte temporal. Isaías promete um novo céu e uma nova terra (cf. Isaías 65,17); Daniel prevê acontecimentos que irão ter lugar depois da revinda de Cristo e que encontram fundamento no Livro do Apocalipse (cf. Daniel 12,1). A característica da mensagem profética é a sua atualidade, a sua «expectativa do regresso iminente» (parusia): só em casos excecionais, como no caso das revelações de Daniel, é que se remete para um futuro mais longínquo (cf. Dn 12,9). O tipo de texto mais extenso é o das palavras, que, muitas vezes, começa com a fórmula «Assim diz o Senhor». Trata-se de anúncios futuros, repreensões, clamores e palavras de juízo, exortações e apelos ao arrependimento, palavras de cura e promessas, bem como de retrospetivas para a história, das quais são deduzidos os acontecimentos futuros. No período após o exílio babilónico, a missão profética veterotestamentária começa a dissipar-se gradualmente. Com a canonização das escrituras proféticas, o profeta torna-se escriba. No âmbito neotestamentário, a profecia encontrou a sua realização e o seu desígnio no esquema «promessa realização» em Jesus Cristo e na Nova Aliança: «Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que foi dito da parte do Senhor, pelo profeta, que diz» (Mt 1,22). Doutrina e Conhecimento Página 5 de 5