o PROCEDIMENTO CONTRATUAL
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- Júlia Corte-Real Ferreira
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1 CAPÍTULO Vil o PROCEDIMENTO CONTRATUAL 106. Conceito de contrato administrativo Nem sempre se admitiu a possibilidade de a Administração Pública se vincular através de contratos: a ligação entre a actividade administrativa pública e a ideia de autoridade, compreensível numa época em que esta actividade tinha natureza essencialmente ablativa, levou a que se considerasse que a unilateralidade era característica daquela. Naturalmente que num período em que a Administração desenvolve actividades cada vez mais diversificadas, muitas delas de prestação e de conformação, e intensifica o apelo à colaboração dos cidadãos na prossecução dos interesses públicos - tendendo, por isso mesmo, a exibir cada vez menos os «galões» da sua autoridade -, tais reservas deixaram de fazer sentido. É indispensável ter presente que, para se poder falar em contrato, é essencial que a manifestação de vontade de ambas as partes seja condição da respectiva existência. Se a manifestação de vontade do cidadão somente condiciona o início do procedimento tendente à prática 227
2 de um acto (como sucede nos procedimentos de iniciativa particular), ou é apenas condição de eficácia de um acto (como sucede com a investidura num cargo público, relativamente ao acto de nomeação), encontramo -nos perante comportamentos unilaterais da Administração e não em face de verdadeiros contratos. O reconhecimento da capacidade da Administração Pública para se vincular por contrato não implicou que se considerasse que esta se vinculava contratualmente em termos idênticos aos particulares. Nasceu então a ideia de que os contratos em que a Administração Pública outorgava constituíam necessariamente uma espécie de contratos diferente dos outros, contratos típicos da Administração Pública, contratos administrativos, enfim (o princípio da igualdade das partes parecia dificilmente conciliável com a autoridade da Administração) Dos diversos critérios propostos para distinguir os contratos administrativos dos contratos privados 2o, os mais utilizados foram: a) O critério da sujeição, assente na ideia de inferioridade do contraente privado; b) O critério do objecto, com base no qual se considera contrato administrativo aquele que constitui, modifica ou extingue uma relação jurídica de direito administrativo (o 54 da Verwaltungsverfahrensgesetz); c) O critério estatutário, que entronca na concepção do direito administrativo como o direito da Administração Pública. 20 Pode encontrar-se uma exaustiva enumeração destes critérios em MARIA JOÃO ESTORNINHO, Requiem pelo contrato administrativo, cit., pp. 71 alio. 228
3 o CPA definiu contrato administrativo no n.o 1 do artigo 178., disposição que, de resto, reproduz o n.o 1 do artigo 9. do ETAF. Aí se escreve que contrato administrativo é o acordo de vontades pelo qual é constituída, modificada ou extinta uma relação jurídico-administrativa. Em nosso entender, esta noção legal assenta no critério do objecto, apresentando clara influência da lei alemã 2 t Tem o inconveniente de não fomecer qualquer chave para a qualificação da relação jurídica de que depende a qualificação do contrato (embora a enumeração exemplificativa de contratos administrativos constante do n.o 2 reduza tal inconveniente). Por isso, e apesar das críticas que lhe dirigiu FREITAS DO AMARAL 22, se nos afigura preferível a noção dada por SÉRVULO CORREIA, que combina o critério do objecto com o critério estatutário: O contrato administrativo constitui um processo próprio de agir da Administração Pública que cria, mod(fica ou extingue relações jurídicas, disciplinadas em termos especificas do sujeito administrativo, entre pessoas colectivas da Administração ou entre a Administração e os particulares 23 Note-se que o CPA não se limitou à definição de contrato administrativo e à enumeração das suas espé- ~ I A noção legal em causa é passível de várias interpretações, como refere MARtA JOÃO ESTORNlNHO no seu recente e já citado artigo sobre o contencioso dos contratos da Administração Pública - p. 18, nota «Apreciação da di ssertação de doutoramento do Lic. J. M. Sérvulo Correia», <iii» Rel'iS/(I da Faculdade de Direito da Universidade de U.I'ho({, Volume XXIX, 1988, pp. 166 a :1 Le/!.alidade e autonomia contratual nos contratos administrativo.\', ci\.. r. ~9 6, 229
4 cies mais conhecidas: incluiu no artigo 179. uma verdadeira norma de habilitação em matéria de celebração de contratos administrativos: a não ser que a lei o impeça ou que tal resulte da natureza das relações a estabelecer, as competências dos órgãos da Administração Pública podem ser exercidas por via da outorga de contratos administrati VOS 24. o contrato administrativo está hoje colocado no mesmo plano do acto administrativo, enquanto meios normais de prossecução das atribuições das pessoas colectivas públicas Uma vez reconhecida a capacidade da Administração Pública para contratar, a evolução não parou, começando a admitir-se que aquela, para além da outorga de contratos administrativos, também se poderia vincular através de contratos de natureza jurídico-privada, designadamente contratos civis, idênticos àqueles que os particulares celebram entre si, regulados essencialmente pelo direito civil ou pelo direito comercial (por exemplo, tomar de arrendamento um imóvel para nele instalar um serviço público). E, admitida esta possibilidade, surgiu naturalmente a ideia de que seria vantajoso submeter a contratação privada da Administração Pública a regras idênticas às : 1 Os úrgãos adminislralivos lambém podelll cc lebrar conlralos rcgi dos pl'io direilo pri v<ldo. civil ou col11c rci;!i ; csles co lllralos n;io s;io, 1llIll.lra ll llcllll, ildll1illislralivo~. 2JO
5 aplicáveis aos contratos administrativos, nomeadamente no plano da formação do contrato. Foi isso o que fez o Decreto-Lei n.o 55/95, de 29 de Março. Chegados a este ponto - um ponto em que coexistem contratos administrativos e contratos privados da Administração Pública, a uns e outros se aplicando múltiplas regras comuns, de direito público, umas, de direito privado, outras [efr. artigo 185., n.o S 2 e 3, alínea b) do CPA] -, é-se tentado a inquirir se ainda faz sentido autonomizar, como a lei portuguesa continua a fazer, a figura do contrato administrativ0 2s A formação do contrato o princípio constitucional que mais marca a especificidade da contratação pública na fase da formação do contrato é o princípio da igualdade: por força dele, a lei estabelece normas detalhadas quanto à escolha do co -contratante, limitando sensivelmente a liberdade contratual dos órgãos administrati vos. As formas que pode revestir tal escolha são o concurso público, o concurso lúnitado por prévia qual(ficação, o concurso limitado sem apresentação de candidaturas, a negociação, com ou sem publicação prévia de anúncio, e o ajuste directo, cujas noções constam do artigo 182. do CPA. 2-' MARIA JOÃO ESTORNINHO é quem mais te m aprofundado este tema: começou no seu Requiel11 pelo Contrato Administrotil'o, Coimbra, 1990, em especial a «Nota Fina]». a pp , e voltou a ele no escrito /I/gII/l/(/.1 [JUl'Sl rll's de contencioso dos contratos da Administração Públi CII. jú rdcrido. 231
6 A regra geral nesta matéria é a da obrigatoriedade de realização de concurso público (cfr. artigo 183. do CPA). Há, todavia, que tomar em consideração que as normas legais reguladoras da realização de despesas inerentes aos contratos da Administração - em especial, o mencionado Decreto-Lei n.o 55/95 - prevêem formas de escolha do contraente privado diversas do concurso público em múltiplos casos. A liberdade contratual da Administração Pública não é limitada somente pelas regras legais relativas à escolha do contraente privado: também a liberdade de conformação do conteúdo da relação contratual está condicionada pela proibição da exigência de prestações desproporcionadas ou que não tenham uma relação directa com o objecto do contrato (cfr. artigo 179., n.o 2). O acto administrativo que corporiza a escolha do co-contratante tem a designação de adjudicação. Os contratos administrativos estão sujeitos à forma escrita (cfr. artigo 184. do CPA) A execução do contrato A Administração Pública, por força da especial natureza dos interesses prosseguidos, dispõe de alguns poderes durante a execução do contrato administrativo (cfr. artigo 180. do CPA): a) O poder de fiscalização; b) O poder de dirigir o modo de execução das prestações devidas; c) O poder de modificação unilateral - esta faculdade decorre da variabilidade dos interesses públicos pros- 232
7 seguidos com o contrato e tem correspondência no dever de manutenção do equilíbrio financeiro do contrato, dever que dita, em condições normais, o aumento das contrapartidas financeiras do co-contratante privado; d) O poder de aplicar sanções em caso de inexecução, execução defeituosa ou mora; e) O poder de rescisão unilateral Espécies de contratos administrativos O n.o 2 do artigo 178. do epa enumera as principais espécies de contratos administrativos: a) O contrato de empreitada de obras públicas, através do qual um particular se encarrega de executar uma obra pública mediante uma retribuição a pagar pela Administração Pública; b) O contrato de concessão de obras públicas, por via do qual um particular se encarrega de construir e explorar uma obra pública mediante uma retribuição a pagar pelos utentes sob a forma de taxas de utilização; c) O contrato de concessão de serviços públicos, idêntico ao anterior, mas em que o objecto é a exploração de um serviço público; d) O contrato de concessão de uso privativo do domínio público, através do qual a Administração Pública proporciona a um particular a utilização económica exclusiva de bens do domínio público; e) O contrato de concessão de exploração do domínio público, por via do qual a Administração Pública lransfere para um particular a gestão de bens do domínio 23 3
8 público, cujo gozo este, por sua conta e risco, se encarregará de proporcionar aos interessados; f) O contrato de concessão de exploração de jogos de fortuna ou azar, através do qual a Administração Pública encanega um particular da exploração de um casino, sendo retribuído pelo lucro das receitas provenientes do jogo; g) O contrato de fornecimento contínuo, pelo qual um particular se obriga a entregar regularmente à Administração Pública, durante um certo período, bens necessários ao funcionamento de um serviço público; h) O contrato de prestação de serviços para fins de imediata utilidade pública, através do qual um particular se obriga perante a Administração Pública a assegurar a deslocação de pessoas ou coisas entre lugares determinados (contrato de transporte), ou a prestar-lhe a sua actividade profissional como funcionário público (contrato de provimento) A invalidade do contrato Regra geral, o contencioso dos contratos administrativos segue, como já vimos (v. supra) a via da acção - cfr. artigo 186., n.o I, do CPA. Excepcionalmente, alguns comportamentos do contraente público são impugnáveis por via de recurso contencioso, na medida em que consubstanciam verdadeiros actos administrativos: é o que ocorre com o acto de adjudicação, com alguns actos de aplicação de sanções, com a rescisão unilateral do contrato quando prevista em norma legal, etc. O regime da invalidade do contrato administrativo, previsto no artigo I gs.(} do CPA, situa-se numa área de
9 confluência do direito público e do direito privado, tendo sido alterado pela diploma de revisã0 26. As suas linhas gerais parecem ser as seguintes: a) Os contratos administrativos, quando precedidos de actos administrativos inválidos, são «contagiados» pela invalidade destes; o objectivo evidente é tentar obviar a que os órgãos administrativos, em face da generalização da via contratual permitida pela lei, cedam à tentação de procurar obter por esta via efeitos jurídicos que a prática de um acto administrativo válido não possibilitaria; b) As disposições do Código Civil relativas à falta e aos vícios da vontade - artigos 240. a aplicam-se a qualquer contrato administrativo; c) Se a alternativa à outorga de um contrato administrativo for a prática de um acto administrativo (ex.: uma concessão), a invalidade do contrato decorre das causas susceptíveis de gerar a invalidade daquele acto, sendo -lhe aplicáveis as regras dos artigos 133. a 136. do CPA; d) Se a alternativa à outorga de um contrato administrativo for a celebração de um contrato de direito privado (ex.: um fornecimento), a invalidade daquele contrato decorre das causas susceptíveis de gerar a invalidade deste, sendo-lhe aplicáveis as regras dos artigos 285. a 294. do Código Civil. 2(, Merece a nossa total concordância a análise de MARIA JOÃO ESTOR NINI-lO, ao considerar que o regime actual é menos enigmático do que o constante da redacção original do epa, muito embora sejam previsíveis dificuldades de ap li cação prática - cfr. Algumas questões do col1tellcio,1'11... ci!., pp. 29 a 36. Também nós pensamos que o regime legal melho!'ou. Illas que ainda estú lon ge da perfeição. 235
10 ELEMENTOS DE ESTUDO A) Lições: DIOGO FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, III Volume, pp. 417 a 467. B) Leituras aconselhadas: DIOGO FREITAS DO AMARAL, JOÃO CAUPERS, JOÃO MARTINS CLARO, JOÃO RAPOSO, PEDRO SIZA VIEIRA e VASCO PEREIRA DA SILVA, Código do Procedimento Adnúnistrativo Anotado, cit., pp. 261 a 274; FAUSTO DE QUADROS, O concurso público na formação do contrato administrativo, «ln» Revista da Ordem dos Advogados, Ano 47, Dezembro de 1987; SÉRVULO CORREIA, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, cit., pp. 343 a 428; MARCELLO CAETANO, Conceito de contrato administrativo e Subsidios para o estudo da teoria da concessão de serviços públicos, «in» Estudos de direito administrativo, pp. 39 a 53 e 89 a 115; MARCELO REBELO DE SOUSA, O concurso público na formação do contrato administrativo, Lisboa, 1994; MARIA JOÃO ESTORNlNHO, Requiem pelo contrato adl1únistrativo, Coimbra, 1990; IDEM, Algumas questões de contencioso dos contratos da Administração Pública, Lisboa, 1996.
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