Psicanálise aplicada à medicina: O avesso do gold standard * [1]
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- Neuza Andrade Morais
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1 1 Psicanálise aplicada à medicina: O avesso do gold standard * [1] Sérgio de Campos Palavras-chave: medicina, instituição, psicanálise aplicada, sintoma. Na medicina, o que se busca é a construção de um saber a partir do real. Pode-se dizer que há um saber no real (Miller, 2001: 28). Como a medicina, a primeira tópica freudiana, Melaine Klein e os pós-freudianos também se orientavam nesse sentido. Em parte, a medicina e a psicanálise coincidiam na proposta de que o real devia ser interpretado por uma semiologia de sinais e sintomas. E essa psicanálise do sentido influenciou a fenomenologia de Karl Jaspers ( ) em sua psicologia compreensiva e explicativa. Assim, a cura emergia na medida em que se cerzia um sentido para o real como trauma. Em contrapartida, com Lacan, especialmente em seu segundo ensino, a psicanálise recebe um outro estatuto, a partir da identificação ao sinthoma. Nessa virada, o que se almeja é alcançar o real fora de sentido. Afinal, o real dispensa todo sentido do drama, do romance e da fantasia que colocava o sujeito, até então, na direção da repetição e do gozo. O que a psicanálise lacaniana busca é um real no saber. A partir de um saber que é suposto, o real fala, Moi, le réel, je parle! Pourquoi pas? (Miller, 2001: 28). Então, conclui-se que a cura se instala quando o saber se esgota, além do saber. Quando o saber se esgota, há o real que é a própria cura. O sentido e o fora do sentido fazem a distinção entre a especialização e a singularidade. A ciência geral determinista tende para a especialização, para um sentido especial e a psicanálise suportada pelo contingente tende para o singular, para o real. Assim, a medicina e a psicoterapia jogam com o sentido da generalização e da especialização. A psicologia hospitalar que busca o status geral de para-medicina especializada é o melhor exemplo. * Trabalho do XIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
2 2 A psicanálise não se especializa, tampouco se generaliza. A psicanálise quando aplicada é sempre desespecializada. Ou melhor, a psicanálise é especializada no sujeito. Seja onde, quando e em quem ela for aplicada, ela se aplica como psicanálise no plano da terapêutica apenas ao sujeito, em especial, independente de qual seja o segmento a que ele pertença. Seja ele: criança, adulto ou idoso, ou portador de uma psicose, de uma obesidade, de uma doença psicossomática, de uma hipertensão, implicado ou não num processo judiciário, a psicanálise se aplica na medida em que ela trata o sujeito. Na medicina, pode-se considerar que há um declínio do clinico geral em prol dos especialistas. Afinal, o que distingue o clínico geral dos especialistas? O clínico geral, pelo menos em tese, seria aquele capaz de tratar o corpo como um todo e que, nesse intuito, essencialmente, escuta o seu paciente. Ele escuta para fazer o diagnóstico, aplicar o tratamento e estabelecer um prognóstico. Na atualidade, a ciência dá a todos a possibilidade de virem pedir ao médico seu ticket de benefício, de sorte que o tempo comprimiu seu trabalho, fazendo com esse se abrigasse nas especialidades (Lacan, 1966/2001: 10). Como o mercado reduziu o custo hora na saúde e exigiu-lhe eficácia, o médico refugiou-se na tecnologia como o método mais rápido e eficaz do que escutar o paciente. Na lógica do time is money a medicina confia na tecnologia para afastar toda equivocidade da linguagem. Com efeito, cada vez mais é raro depararmos com os médicos que escutam seus pacientes e abraçam a causa da clínica. A psicanálise também contribuiu para o aparecimento de certos equívocos, tais como a psicossomática como especialidade médica. Apesar de equívocos, a psicanálise como clínica desespecializada que se apóia no desejo ganha terreno na medida em que a medicina deixa vago o espaço da subjetividade. Mesmo que o médico escute, certamente que a sua escuta é diferente da escuta analítica, assim como o sujeito não diz ao médico o que diz a um analista. A medicina, preferencialmente, opera com o discurso do mestre ou com o discurso
3 3 universitário. Com esses dois discursos, o inconsciente, temporariamente, se apaga e o sujeito permanece no andar inferior do grafo do desejo. Assim, o antigo clínico que escuta seus pacientes, opera através da demanda como um psicoterapeuta. E a medicina, ao objetivar curar a falta do sujeito, calça o inferno de boas intenções. Se o médico se aprimora com a experiência, a experiência joga contra o analista, pois a experiência aparta a singularidade, vicia a escuta, afastando toda a possibilidade do analista surpreender o analisante e ser surpreendido por ele. A medicina se assegura em um saber de condutas programáticas e pragmáticas baseadas em protocolos e guidelines, sempre tentando alcançar a meta do gold standard. A medicina detesta surpresas - boas ou ruins, elas são sempre incômodas. E são nos pontos obscuros de surpresas e contingências que o analista pode se fazer presente. A medicina é especializada porque ela se assenta sobre a lógica cartesiana dos quatro pontos cardiais da moral provisória (Descartes, 1637/1983: 37). A medicina lança mão do método de Descartes para a compreensão do real. Mas, a medicina também possui sua essência empírica, pois o seu saber se adquire com o acúmulo da experiência. A psicanálise, por outro lado, Freud inspirou-se no empirismo para extrair a regra de ouro de sua técnica, mais precisamente a associação livre de idéias descrita por David Hume (Hume, 1748/1996: 40) em Investigações acerca do entendimento humano [2]. A essência da medicina é empírica e a técnica, cartesiana. A essência da psicanálise é cartesiana e a técnica, empírica. A psicanálise tem no sujeito do inconsciente a sua essência, que é o mesmo sujeito cartesiano da ciência. Lacan vai além ao radicalizar Descartes, mostrando que o sujeito da ciência e o sujeito do inconsciente são o mesmo: Je pense, je jouis (Lacan, 1974/1988:75). Portanto, se por um lado, a medicina é uma ciência do coletivo e, não do universal - pois não suporta o teste de falseabilidade de Popper, sem soluções auxiliares ad hoc -, por outro, a psicanálise é a ciência do singular.
4 4 Existe um paradoxo: a medicina se especializa para atingir o ideal do todo universal pela via do necessário, mas só alcança o coletivo, uma vez que a sua base é empírica e que o saber médico tende a esmaecer as particularidades dos casos somados um a um. Por outro lado, a psicanálise destaca o particular para apreender o singular na casuística pelo viés da contingência que toca o impossível. A psicanálise, ao identificar no sintoma o gozo no que ele tem de mais particular, nocivo, restrito e reservado, propicia ao sujeito, através de um percurso analítico, a condição de assentí-lo como o singular do sinthoma no que ele tem de diferente, próprio, inusitado e ex-cêntrico. Eis o judô de Lacan: usar a força maléfica do gozo a serviço do próprio bem. A medicina cede o lugar para a psicanálise. Lugar de resto, diga-se de passagem. Resto daquilo que ela não dá conta e não quer saber. Não se trata de um lugar cômodo de se ocupar, pois não há comodidade nas relações com o real como impossível de se suportar. O que sobra daquilo que a medicina não conseguiu extrair saber, tendo em vista o paradigma do saber no real, é o objeto do qual a psicanálise se ocupa. Esse objeto é o real que a ciência não conseguiu encobrir pelo saber. Por outro lado, a psicanálise, ao trabalhar com esse real, faz litoral - sempre sujeito às marés - com a medicina. A psicanálise não está ao lado da medicina, mas do outro lado que sempre sobra da pedagógica relação médico-paciente. Enfim, o que a psicanálise quer da medicina é se inserir na fenda por onde aparece o sujeito da não relação médico-paciente. Quando a psicanálise consegue pescar o sujeito da relação, dual e imaginária, médico-paciente, algo pode, eventualmente, acontecer. Sobre a semeadura da psicanálise, pode-se dizer que há os que semeiam sem sair e há aqueles que saem para semear. Se por um lado, há analistas que semeiam a psicanálise didática dentro da própria pátria, dentro da Escola, por outro, há aqueles que semeiam a psicanálise fora de seu território, aplicada à terapêutica nas instituições não-psicanalíticas: hospitais, universidades, escolas, departamentos jurídicos, entre outras. É nesse ir e vir entre a
5 5 psicanálise em intenção e a psicanálise em extensão que constitui a verdadeira missão daquele que se coloca como o avesso do gold standard: semear a psicanálise au petit bonheur traduzida para Ao acaso a sorte (Miller, 2001: 16). Semear a psicanálise diz respeito à transmissão da semente analítica através da fuga do sentido, pelo que escoa, pelo que corre para longe dos paradigmas aristotélicos da episteme. Os seminários de Lacan nos levam a sua semeadura. A idéia de semear a psicanálise nos lembra a máxima Ecce exiit qui seminat, seminare[3]. O analista deve sair de seu território, de sua Escola e semear a semente analítica, sua essência. Lacan isola Ça fout le camp traduzida para isso vai-se embora. Mas, a psicanálise transmite somente o que é da ordem da certeza, através da própria experiência analítica de cada um (Miller, 2001: 17). A psicanálise quando aplicada à medicina, não opera no campo médico, tampouco no campo para-médico. A psicanálise se aplica ao próprio campo. O inconsciente ex-siste ao campo médico. Assim, Não se deve esticar a psicanálise sobre a cama, ou divã de Procuste, obrigá-la a alinhar-se sobre outras práticas. A via de Lacan é ao contrário, a de positivar traços que, na psicanálise, parecem negativos na ciência, para construir o aparelho adequado ao real (Miller, 2001: 17). O campo da psicanálise e o campo médico são indissociáveis e inconciliáveis, devendo, portanto, serem delimitados. Se no seu primeiro ensino Lacan estava às voltas da junção entre o simbólico e o real, no último, ele nos convida a pensar o simbólico a medicina - e o real a psicanálise -, a partir de sua disjunção. Lacan propõe o nó borromeano que permite que os dois elementos permaneçam disjuntos e ao mesmo tempo inseparáveis. Portanto, o nó ultrapassa a antinomia da junção e da disjunção, na medida em que eles se situam numa nãorelação, mas ao mesmo tempo são tomados em uma relação (Miller, 2001: 31). Senão vejamos a disjunção entre a medicina e a psicanálise: enquanto a medicina visa a obesidade, a psicanálise visa a bulimia como estratégia de alienação ao Outro; enquanto a
6 6 medicina visa a desnutrição, a psicanálise visa a anorexia como estratégia de separação do Outro; enquanto a medicina visa o parto, a psicanálise visa a angústia de separação e o real que transborda o corpo; enquanto a medicina visa a amputação de um membro gangrenado, a psicanálise visa a angústia de castração; enquanto a medicina visa o tratamento do infarto, a psicanálise visa o imponderável da vida; enquanto a medicina visa o tratamento de um câncer de mama, a psicanálise visa escutar as demandas e os desejos de uma feminilidade e de uma subjetividade que se revela abalada; enquanto a medicina visa a precocidade de um diagnóstico de câncer, a psicanálise visa o sujeito que pergunta: por que eu?. Lacan coloca a medicina em lugar de destaque, sobretudo a clínica médica, na Ata de Fundação: seção de psicanálise aplicada. Ele propõe que se constitua um grupo de médicos analisados ou não, e os convida, como parceiros, a examinar e a debater a partir de suas experiências os resultados da práxis freudiana. Apostando numa casuística, Lacan propõe um exame minucioso dos casos particulares em que se apresentam dilemas nascidos da contraposição entre as normas da doutrina médica e as inúmeras circunstâncias e contingências que cercam a sua aplicação prática. Destarte, buscando a clínica médica como interlocutora, ele coloca à prova as estruturas e as categorias que sustentam a práxis lacaniana no que ela possui como doutrina de cura e suas variações (Lacan 1964/2002: 231). Em contrapartida, Miller argumenta que num percurso de análise temos uma construção de saber e num dado momento, esse saber suposto que não é o real se transmuta para o registro do real. Afinal, trata-se de uma construção de saber a partir dos efeitos de verdade, pondera Miller, que também assinala que algo do real entra em jogo ao ser tocado pela suposição de saber. Trata-se de um suposto saber que é metaforizado como real (Miller, 2001: 28). Mas, como colher a semeadura do fora de sentido? Lacan aproxima a estrutura do Witz com o saber que se adquire com a cura. Trata-se de uma invenção de algo novo que se
7 7 transmite e é reconhecido pelo Outro provocando efeitos de riso. No Witz, algo se apreende antes da compreensão, através do equívoco e do sem sentido, de forma que o dizer é apreendido no campo da novidade e da invenção (Stevens, 2002: 62). Assim, um saber constituído como a medicina, estabelecido e preso a mecanismos de compreensão e normas extraídas de um gold standard, se distingue de um outro saber, a psicanálise, que emerge como algo não sabido a priori, da ordem da invenção e de um saber do ato (Stevens, 2002: 62). Para o analista, a cada cura, ele deve reinventar a psicanálise. O standard lacaniano, como avesso ao gold standard da medicina, como não especialista, deve aceitar o não saber como a própria essência do saber analítico, de tal sorte que a aposta na curiosidade e na não compreensão possa surgir como a semente que brota do fora de sentido frutificando um gaio saber na práxis lacaniana. Referências bibliográficas DESCARTES, R. (1637) O discurso do método. Parte II. In: Vitor Civita (ed.), Coleção os Pensadores, São Paulo: Editora Abril, (Versão de 1983), terceira Edição. HUME, D. (1748) Investigações acerca do entendimento humano. Seção III, In: Vitor Civita (ed.), Coleção os Pensadores, São Paulo: Nova cultural, (Versão de 1996), Primeira edição. LACAN, J. (1964) Acte de fondation. Autres écrits. Le champ freudien. Aux Éditions du Seuil, Paris, pp , LACAN, J. (1966) O lugar da psicanálise na medicina. Opção lacaniana, n º 32, São Paulo, pp. 8-14, dezembro de LACAN, J. (1974) La Tercera. Intervenciones y textos. Buenos Aires: Editora Manantial, pp , MILLER, J. ALAIN, (2001) Psychanalyse pure, psychanayse appliqquée & psychothérapie, L Orientation Lacanienne, Revue de La Cause freudienne n. 48, Paris, pp. 7-35, maio de MILLER, J. ALAIN, (2001) Um real para a psicanálise. Opção lacaniana, n º 32, São Paulo, pp , dezembro de STEVENS, A. (2002) La formation du psychanalyste, L École et la formation du psychanalyste, La Cause Freudienne, N. 49, pp
8 8 [1] Gold standard é um jargão corrente no meio médico que significa padrão ouro, denominando um padrão ideal de propedêutica e terapêutica, sempre de acordo com regras e normas. Se o Gold standard denomina o objeto ideal a ser alcançado na medicina, a denominação standard para psicanálise denomina, para as normas da IPA, o analista ideal. Assim, propomos o avesso do Gold standard para o analista lacaniano. [2] David Hume identifica três tipos de associação livre de idéias: semelhança, contigüidade e causa e efeito. Consideramos que, possivelmente, Freud teria se inspirado em Hume. Então, podemos ler semelhança/condensação/metáfora e contigüidade/deslocamento/metonímia. Todavia, Hume não menciona Aristóteles, que já havia distinguido os princípios de semelhança, de contraste e de contigüidade de idéias no texto On Memory and Reminiscense, edição Ross Great Books, 1952, 451, pp [3] Matheus XIII, 3.
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