CONSERVAÇÃO DA COLEÇÃO DE MODELAGENS WALTER RODRIGUES: RELATO DE UM PROCESSO. Conservation patterns Collection of Walter Rodrigues - Report of a Case

Transcrição

1 CONSERVAÇÃO DA COLEÇÃO DE MODELAGENS WALTER RODRIGUES: RELATO DE UM PROCESSO Conservation patterns Collection of Walter Rodrigues - Report of a Case Manon Salles (USP) manon@usp.br Resumo: Este artigo é o relato do processo de conservação da coleção de modelagens do estilista Walter Rodrigues doada ao Centro Universitário SENAC, Campus Santo Amaro, em Essa coleção contém as modelagens desenvolvidas por ele para suas coleções da marca Walter Rodrigues desfiladas nos eventos São Paulo Fashion Week e Fashion Rio de 1995 a 2007, totalizando moldes em papel. Após o processo de doação e inventário, cuja descrição é o objeto do presente trabalho, a coleção passou a fazer parte do acervo da biblioteca dessa instituição, para que possa servir como material didático-pedagógico aos alunos e pesquisadores. Em seguida, o acervo passou a ser disponibilizado através do Projeto Revisitando Walter. Palavras-chave: Modelagens. Walter Rodrigues. Conservação. Moda brasileira. Cultura material. Abstract: This article is the result of the conservation process of molds collection of designer Walter Rodrigues, donated to the University Center Senac, Campus Santo Amaro, in This collection contains the patterns developed by the designer to create his collections of the brand Walter Rodrigues, paraded in São Paulo Fashion Week and Fashion Rio 1995 to 2007, totaling 2,538 molds on paper. This collection became part of this unit Library collection, so it can serve as a teaching-learning material and the development of research. Here is reported the donation process and preservation of the collection and how it is used as research material through Revisiting Walter Project. Keywords:.Walter Rodrigues. Patterns. Molds. Conservation. Brazilian fashion. Material culture. Walter Rodrigues, o colecionador Esta comunicação apresenta o processo de doação da coleção de moldes em papel do estilista Walter Rodrigues, criados por ele durante o desenvolvimento das roupas da sua marca desfiladas na São Paulo Fashion Week (SPFW) e Fashion Rio de 1995 a Durante os quase trinta anos nos quais atua na moda brasileira e internacional, Walter Rodrigues tornou-se uma referência entre os criadores brasileiros que construíram, a partir dos anos 90, uma moda autoral. Em 1992, o estilista lançou sua marca, tendo trabalhado anteriormente com Clô Orozco 1. A proprietária da marca Huis Clos, segundo Walter Rodrigues, (entrevista 1 A estilista Clô Orozco (Clotilde Maria Orozco de Garcia / ) foi proprietária das marcas Huis Clos e Maria Garcia. Walter Rodrigues passou a integrar a equipe Huis Clos como assistente de estilo em 1984, onde permaneceu por dois anos.

2 concedida em 9/07/2014) tinha uma visão muito específica do que entendia como roupa e sua construção, despertando nele o desejo de estudar modelagens de outros criadores, como Yohji Yamamoto, através do exercício da desconstrução e reconstrução das peças. Nessas suas pesquisas, Walter Rodrigues estudou profundamente Madeleine Vionnet, que criou, em muitas de suas coleções, vestidos cortados no viés do tecido. A partir de um olhar refinado em relação à construção das roupas, a modelagem passou a ser um diferencial nas criações de Walter Rodrigues. O desejo de colecionador surgiu quando o estilista percebeu no seu exercício de criação a importância do conhecimento sobre modelagem feito através de roupas antigas. Começou, então, desde sua primeira viagem de pesquisa à Europa, em 1986, a comprar roupas em brechós e também a colecionar roupas de outros estilistas internacionais consagrados, como Issey Miyake e Jean-Paul Gaultier. Mais tarde, ao criar suas coleções para as semanas de moda, Walter Rodrigues passou a conservar, através de cadernos de croquis, amostras de tecidos, imagens de referências e modelagens desenvolvidas em papel, todas as etapas de seu processo criativo. Esse material passou a ser guardado após seus desfiles em seu atelier, junto às roupas apresentadas na passarela durante todos esses anos. Portanto, a coleção de moldes que foi doada ao SENAC fazia parte de seu acervo pessoal, que conta também com as roupas dos desfiles de sua marca (realizados durante esses doze anos), peças de estilistas nacionais e estrangeiros consagrados, além de indumentárias, totalizando cerca de vestimentas. Em 2012, quando decidiu abandonar as semanas de moda e fechar suas lojas para se dedicar à pesquisa e redirecionar seu trabalho, Walter Rodrigues fez a doação de seu acervo de moldes em papel para duas instituições de ensino. As modelagens referentes ao desenvolvimento dos vestidos de noiva foram doadas à Universidade Caxias do Sul, em Porto Alegre, e as modelagens referentes à criação de todas as suas coleções do prêt-à-porter, com moldes, foram doadas ao Centro Universitário SENAC, Campus Santo Amaro, em São Paulo. Como receber uma coleção de modelagens? Nos últimos anos, acompanhamos, no cenário da moda brasileira, a reestruturação ou o desaparecimento de diversas marcas autorais, como Walter Rodrigues, André Lima, Neon entre

3 outras. Em função desse contexto, existe um desejo dos criadores de conservar em um lugar adequado parte de seu trabalho e de suas criações guardadas por eles. Como não existe no país, até o momento, um museu temático dedicado à moda contemporânea que pudesse ter interesse em receber essas coleções, o SENAC São Paulo passou a ser uma das referências, talvez por tratar da questão da conservação dos trajes, tecidos, acessórios e calçados em suas modatecas há mais de duas décadas. Outra iniciativa mais recente da mesma instituição de ensino, com grande repercussão, foi a conservação e exposição da Coleção Ney Matogrosso, que consiste em 220 figurinos do cantor e performer, usados por ele durante seus 40 anos de carreira. No âmbito do Centro Universitário Santo Amaro, a biblioteca, com uma área de m 2, abriga, além do acervo bibliográfico, a modateca no segundo andar e o Espaço Ney Matogrosso e a reserva técnica no terceiro andar. O curso superior de moda foi transferido para essa unidade desde sua fundação. O recebimento de uma coleção de moldes em papel pela instituição está relacionado à proposta pedagógica dos cursos de moda do Senac, que investem na técnica da modelagem e da construção da roupa, fazendo que esse direcionamento na formação de seus alunos seja um diferencial no mercado. Provavelmente foi devido a esse histórico que o estilista recorreu a essa instituição, visando à conservação de suas modelagens. Em relação à doação destas, segundo Walter, houve um exercício tranquilo do desapego: Ou se doava ou se transformava tudo aquilo em sucata. Eu imaginei: por que não doar para uma escola? Pois, nos meus últimos anos de marca, trabalhei com profissionais formados pelo Senac e sei o valor que isso tem. Fora minha relação de carinho e aproximação com as pessoas de lá. Fico imaginando que assim teríamos as bases das peças. (Entrevista concedida em 09/07/2014) Ao receber a coleção foi necessário, em um primeiro momento, definir um espaço para acomodar cerca de oitenta e quatro caixas grandes de papelão, contendo moldes dobrados e enrolados (figura 1), guardados durante muitos anos. Como o material teria que ser separado, inventariado e higienizado para se proceder à catalogação, a coleção foi recebida e armazenada inicialmente em uma sala de aula vazia no prédio central do campus, fora da biblioteca, inclusive por questão de contaminação, caso houvesse algum tipo de inseto, como traças.

4 Figura 1: Abertura das caixas com os moldes em papel enviados pelo estilista. Fonte: a autora (2013). Para dar início ao trabalho, foi contratada uma empresa especializada em projetos museológicos, a Museum que se ocupou, no período de março a junho de 2013, da separação dos moldes por coleção, seguindo as orientações das anotações nas caixas, dos Cadernos de Croquis também enviados e muitas vezes recorrendo ao estilista, quando existia alguma dúvida em relação a que coleção pertencia o molde ou a que roupa ele se referia. A segunda etapa consistiu na criação de uma ficha de cadastro para cada modelo contendo as respectivas partes das modelagens. Assim, para cadastrar a modelagem de um vestido, foram consideradas as informações relativas ao ano e à estação da coleção (por exemplo, verão 2010), a descrição breve da peça com o número de moldes (peças), a gradação (tamanho do molde: P, M ou G), e a data em que foi cadastrada (figura 2). Figura 2: Ficha de cadastro da modelagem de uma roupa e suas respectivas partes. Fonte Empresa Museum (2013).

5 O acondicionamento foi individualizado para cada modelo, isto é, cada conjunto de moldes relativos a uma roupa foi guardado em um saco de plástico (figura 3) com um registro individual. Ao final de todo o processo de catalogação, os moldes, já separados e identificados, foram dispostos horizontalmente em estantes (figura 4), aguardando a terceira etapa do projeto, que consiste na digitalização. Figura 3: Acondicionamento de modelagem. Fonte:Empresa Museum (2013). Figura 4: Moldes já catalogados. Fonte: a autora (2013). A partir da conclusão da primeira etapa, centrada no inventário, catalogação dos moldes e no acondicionamento destes esticados e horizontalizados em prateleiras com as devidas identificações, a equipe envolvida viu a necessidade de começar a disponibilizar esse material para pesquisa de maneira supervisionada, envolvendo inicialmente os alunos do Curso superior em Design de Moda e o próprio estilista.

6 Projeto Revisitando Walter Através dessa iniciativa pioneira para uma instituição de ensino, que foi receber uma coleção de modelagem dessa relevância, criando no País o primeiro acervo com moldes originais e futuramente digitalizados, passou a ser um desafio para os profissionais envolvidos lidar com questões sobre o processo de conservação, as ações que poderiam ser desenvolvidas em relação a novas pesquisas, os critérios de acesso a esse material. Ao se concluir a fase da catalogação, apresentei a equipe do Senac a proposta para a apresentação de todo esse processo inédito ao público e aos alunos através da exposição Revisitando Walter e de um workshop do estilista. A proposta foi aceita e o workshop realizado com os alunos do curso superior de moda, em maio de 2014, no mesmo período da exposição. A coleção Memórias de uma Gueixa (Inverno 2006) esteve norteando o percurso expositivo 2 com a apresentação de 20 looks, além dos Cadernos de Croquis e das modelagens, no formato original e também digitalizadas em escala reduzida, relacionadas a dois vestidos expostos. Dessa maneira, os visitantes e os alunos podiam ver a roupa (em três dimensões) e seus respectivos moldes (em duas dimensões) em grandes painéis (figura 5). Figura 5: No painel à direita, partes do molde original e, à esquerda, moldes digitalizados em escala reduzida, todos referentes ao vestido cinza. Fonte: a autora (2014). 2 Ao definir o conceito para a exposição achei mais relevante trazer todos os trajes criados para uma só coleção e por ser essa coleção Memórias de uma gueixa um marco na carreira do estilista em relação a inovações nas modelagens.

7 Durante o workshop, foi importante para os alunos terem a possibilidade de acesso às criações do estilista, à roupa original como fonte direta (figura 7), aos seus respectivos moldes, aos cadernos de croquis, ao depoimento e à orientação do estilista sobre o processo de pesquisa e criação que foi desenvolvido, a respeito do qual declarou na ocasião: O fascinante sempre foi a parceria do design com a engenharia da construção da modelagem. O que a gente vai falar é da importância dessas duas forças na construção de uma marca, na construção de um estilo que vai perpetuar o trabalho das duas pessoas. A minha ideia ao fazer essa doação era fazer que essa coleção de moldes fosse uma coisa muito viva e que instigasse os alunos a buscar na referência do meu trabalho algum ponto de partida para o aprendizado, ou mesmo para inspiração. (DVD Revisitando Walter Rodrigues,2014). Figura 6: Apresentação de trabalhos dos alunos durante o workshop. Fonte: (DVD Revisitando Walter Rodrigues, 2014). Para a última etapa do projeto, o objetivo é catalogação no sistema BN-Web e a digitalização de todos os moldes, para que possam ser disponibilizados no sistema Audaces 3. Em relação às pesquisas e ao acesso, existe um critério acordado em contrato entre o estilista e o Senac para evitar o uso de forma indevida das modelagens para reprodução de novas peças, sem uma justificativa acadêmica Ainda na última etapa do projeto, será acrescida na ficha técnica uma fotografia da roupa, além das informações já existentes, como tipo de peça, coleção, ano da criação, etc. Para essa 3 Audaces é uma empresa brasileira que desenvolve diversos softwares para a modelagem de vestuário.

8 etapa, teremos que usar o recurso da história oral, através do depoimento do estilista e dos profissionais que foram seus assistentes, e também revistas, catálogos da marca WR e DVDs dos desfiles. Figura 7: Alunas e seus estudos a partir das roupas expostas. Fonte: a autora (2014). Conclusão A questão da conservação de acervos de moda é muito complexa, sendo que, para cada uma das etapas necessárias, como catalogação, higienização, acondicionamento, restauração e exposição, é preciso um conhecimento específico, para que sejam definidas as ações e as práticas fundamentais sem danificar o acervo. Nesse caso, o acervo doado foi muito singular, pois, mesmo sendo em papel e não têxtil, as questões sobre o que ele significaria dentro da instituição, sua conservação e seu acesso precisaram ser definidas de imediato pela equipe do Centro Universitário Senac. Muitas vezes, não existe uma programação para o recebimento de qualquer tipo de doação nas instituições de ensino e são poucas aqui no país que têm disponibilidade, espaço, verba e profissionais interessados e motivados para lidarem com esse desafio. O interesse pela conservação e criação de acervos de moda e indumentária tem crescido no Brasil e acredito que, se ainda não podemos fazer o ideal, podemos começar pelo possível. Sempre buscando orientação de profissionais especializados em conservação e nos manuais publicados, teremos mais chances de acertarmos. É fundamental seguirmos as normas de

9 conduta do Conselho Internacional dos Museus (ICOM), que diz: Um mau tratamento pode destruir um objeto. Em caso de dúvida, não faça nada. Referências: Livros BORGES, Paulo; BIANCO, Giovanni. O Brasil na Moda. São Paulo: Editora Caras, v. JOORY, Eva. Coleção Moda Brasileira. Walter Rodrigues. São Paulo. Editora Cosac Naify, MONNEYRON, Frederic. A moda e seus desafios. São Paulo: SENAC, PEARCE, Susan (Ed.). Museum studies in material culture. London: Leicester University Press, PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. São Paulo: Martins Fontes, Periódico eletrônico ANDRADE, Rita Moraes de. Historicizar indumentária (e moda) a partir do estudo de artefatos: reflexões acerca da disseminação de práticas de pesquisa e ensino no Brasil. MODAPALAVRA, Florianópolis, UDESC-CEART, 2013.Volume XIV, Ano VII, Jul-Dez 2014, pp Disponível em: < >. Acesso em: 10/03/2015. Entrevista concedida Walter Rodrigues. Entrevista concedida. São Paulo. 9 de Julho de 2014 Documento audiovisual DVD Exposição Revisitando Walter Rodrigues. Workshop com alunos do Bacharelado em Design de Moda do Centro Universitário SENAC. Produção Centro Universitário SENAC. São Paulo, Abril de 2014.