A vida passa e nem mesmo percebemos. Inferno Astral

Transcrição

1 I Inferno Astral A vida passa e nem mesmo percebemos as mais variadas facetas que ela pode nos apresentar. Somos surpreendidos a cada novo amanhecer, sem saber como agir diante das atrocidades que nos aparecem; dos desvios criados pelo destino, sem ao menos imaginar o que pode ocorrer quando vestígio de um passado obscuro nos remete a realidade atual. A pequena cidade de Campos Flores estava muito movimentada no começo do verão. Lugar conhecido como verdadeiro paraíso para se passar temporadas desfrutando de suas pousadas que, mesclada às cachoeiras ao redor da cidade, criam um cenário espetacular, e isso atrai muitos turistas.

2 PRISCILA XAVIER Tudo que buscamos para ter um pouco de tranquilidade encontra-se lá - ar fresco, natureza, sem o caos da cidade grande e também muita gente bonita. Todos que visitam Campos Flores admiram o Pico do Bicudo, o lugar mais frio e alto que eu conhecia. Meu trabalho era bastante exaustivo, pois nem sempre os turistas são amáveis e eu tinha que me adaptar e compreender, na tentativa de buscar atender da melhor forma possível todos os tipos de pessoas. Bem... estávamos a todo vapor para inicio da temporada de verão. As reservas estavam quase em seu limite máximo, era tudo o que eu precisava. Tinha investido muito para ter meu espaço entre as pousadas mais luxuosas da cidade e isso já havia conseguido, mas meu segredo eu não conto para qualquer pessoa. Enfim, seria o dia mais glorioso da minha vida. A pousada estava cheia e sentia a satisfação de um trabalho bem feito, não só meu, mas de todo pessoal que lutou com unhas e dentes para que fosse possível a inauguração de uma forma tão perfeita. Eu sabia que teria que agradecer a todos pelo empenho e dedicação por tudo sair como havíamos programado. Aquele dia foi muito longo e exaustivo, lembro-me de ter cochilado por várias vezes em cima do computador, mas todo esforço valeu a pena. Finalmente pensei comigo mesma a Pousada Recanto dos Anjos estava pronta para receber os turistas que vinham de todas as parte do Brasil, em especial, Rio de janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Com o sentimento de dever cumprido, eu fechei minha sala e fui ver se estava tudo bem no restante das instalações. Estava passando pelos corredores, quando ouvi um barulho estranho atrás da pousada, na parte que saia para uma das cachoeiras. Durante a noite, não se pode ver muito bem lá, pois a vegetação local, cobre todo o território da mata 10

3 HERANÇA DE SANGUE preservada, sendo este, um dos motivos de eu ter escolhido aquela casa para fazer minha pousada. Ao me aproximar da janela, não ouvi, sequer, algum barulho. Tudo estava calmo, fiquei apenas com a sensação de ter visto algo ou alguém passar, mas isso é normal, poderia até ser um animal. Naquele momento, eu não queria surpresas e fiquei com aquela imagem na cabeça, mesmo sem ter certeza de ter visto algo. Voltei rapidamente para minha sala, procurando o telefone de meu amigo Daniel, que trabalha na guarda florestal, pois se fosse algum animal, ele poderia cuidar disso. Ao ligar para ele, jurei ter visto um vulto, o que me assustou. Poderia ser um ladrão, coisa que não eu não poderia nem sonhar, pois naquela noite, minha pousada estava lotada de hóspedes, e sua segurança não poderia estar correndo risco. Fui até o alojamento dos funcionários, e pedi ao Jacques que me acompanhasse a uma pequena vistoria ao redor de toda pousada. Nada encontramos e tive a certeza de que estava tudo perfeitamente seguro. Como você viu, não há nada por aqui. Deve ser o cansaço, depois de tanto trabalho. Disse Jacques, na tentativa de me acalmar. Então, me despedi do pessoal; peguei minha pasta e entrei no meu carro, ficando ali parada por alguns minutos, pensando no quanto minha vida dependia daquele lugar, e assim, foi por quase meia hora até que me dei conta de que estava ficando muito tarde. Girei a chave do carro, e pude ouvir o ronco do motor de meu Honda Civic, um carro que amo muito, ganhei de um amigo, quando trabalhava como promotora de eventos. Ele era advogado, e estava esperando sua convocação em um concurso para Juiz. Aquele presente teve muito significado para mim, me mostrou que ele era realmente um grande amigo. Lembrando-me deste fato, tive a ideia de convidá-lo para passar um final de semana comigo 11

4 PRISCILA XAVIER e mais uma amiga, mas aquela não seria uma hora apropriada para ligar para a casa de alguém, portanto, ligaria de manhã, quando estivesse na pousada. Dei a partida no carro, estava cansada, olhei meu relógio, já se passava das 23h00min, bem tarde, segui rumo de casa pensando como o tempo voa quando estamos felizes, e naquele momento, estava muito feliz com todas minhas conquistas. Eu e minha amiga Jéssica, vivíamos algo bastante envolvente e fomos a todo o vapor para concretizar todas as possibilidades. Estávamos além de tudo que esperávamos e poderíamos pensar a alguns meses atrás. Eu não morava muito longe, contava, aproximadamente, quinze minutos de carro da pousada até minha casa, que se localizava, bem no alto do Pico do Bicudo. É uma casa com paredes azuis, rústica por fora, e bastante aconchegante por dentro. A decoração colonial na sala causava inveja a qualquer pessoa. O assoalho é todo de madeira, e havia uma lareira para aquecer durante o inverno. As paredes eram de vidro para aproveitar a luz solar. Tenho um belo cachorro Cofap que atende pelo nome de Nero, e sempre me espera com seu rabinho abanando pedindo carinho. Estacionei meu carro na garagem, e fechei a porta. Enfim... estava em casa! Subi as escadas e ouvi o mesmo barulho que ouvi minutos antes na pousada. Tremi da cabeça aos pés. Andei rapidamente até a porta da sala e girei a chave, segundos depois, já estava dentro de casa. O mais estranho era que eu não tinha visto meu Nero. Em um dia normal, ele estaria correndo, vindo ao meu encontro, como sempre fazia quando eu chegava. Onde estaria? Ele não era um cachorro de sair de casa. Era brincalhão e gostava de sair pelo Pico, mas sempre voltava logo. Nero, aonde você esta menino? Venha cá, a mamãe chegou. 12

5 HERANÇA DE SANGUE Gritei, enquanto procurava por ele na cozinha. Nero isso não é hora de brincar garoto! Onde ele poderia estar? Eu comecei a ficar preocupada. Talvez houvesse algum outro animal a solta por ali, e não fiquei tranquila em pensar em meu Nero lá fora. Quem sabe, poderia estar até morto?! Mas o chamei novamente com esperança de que ele só estivesse brincando comigo. E nada... Nenhum sinal. Somente o silêncio e o vazio da noite sombria e cálida, que pairava pela redondeza. Eu estava cansada demais e dominada pelo medo do que me aconteceu durante esta noite, preferi não procurar. Tomei um banho bem demorado. Relaxando bastante para tentar melhorar as dores que sentia na coluna. As horas passadas à frente do computador, deixaram-me com bastante dor pelo corpo. Principalmente na coluna, por não ter uma postura adequada, mas sabia que valia a pena. Este foi um dos banhos mais demorados que tomei em toda minha vida, sentido a fragrância do sabonete que eu escolhera, mas nunca prestei atenção no cheiro doce e delicado de rosas. A espuma era cremosa e deixava a pele aveludada. Era o melhor sabonete que já usei. Eu nunca tinha parado para perceber as pequenas coisas, como muitas outras em minha vida, que passavam sem ao menos eu perceber ou, quem sabe, não dei total importância para a simplicidade da vida, que pode fazer a diferença. São detalhes que eu nunca achava tempo para apreciar, e hoje sinto falta do tempo precioso que perdi. Já estava pronta para ir para cama, depois do banho relaxante que tomei, já pensando na manhã do dia seguinte, cheia de trabalho para se enfrentar. Lembrei-me de que teria que discutir com Helena sobre o cardápio da semana e gostaria de colocar muitas frutas da estação e variedades de saladas para todos os gostos. Teria que cuidar do jardim, porisso contratei Álvaro, o melhor jardineiro da região. 13

6 PRISCILA XAVIER Meu quarto era meu refugio. Eu fazia questão de ter minha privacidade, minha cama macia de madeira com entalhes trabalhados à mão, e a roupa de cama com acabamento artesanal, tudo muito simples, porém, de bom gosto. As almofadas tinham forma de coração. Eu podia sonhar. Eu era jovem. Da janela do meu quarto, podia ver a montanha e a lua cheia com seu brilho estrondoso. Nossa! Não havia percebido como a lua estava majestosa. Sentei-me por alguns instantes perto da janela e fiquei observando. Não me lembro por quanto tempo estive assim. De repente, vi uma mulher de longos cabelos cacheados, usando um vestido branco, ela me observava. Eu me afastei da janela. Estava com medo. Sentia-me verdadeiramente assustada. Não a conhecia, mas temia estar imaginando coisas. Acalmei-me. Fechei as cortinas, mas não conseguia dormir. Sempre que pegava no sono vinha à minha cabeça a imagem da mulher, olhando para mim, espreitando como se esperasse que eu fosse lá fora. Foi assim por quase toda noite. A manhã chegou logo, e eu me sentia completamente exausta. Não consegui descansar. O sol estava forte o bastante para entrar pelas frestas da cortina azul de tom claro, do quarto. Esfreguei o rosto com as mãos, tentando me animar e me levantar. Sem sucesso. Acabei caindo de vez, dormindo até as dez da manhã, e só acordei, porque meu telefone celular tocou. Pensei Quem incomoda a essa hora? Alô? era Jéssica, me lembrado que eu estava atrasada, e realmente estava. Olhei o relógio e pensei Droga! Essa não! Como pude dormir até uma hora dessas? Ana, onde você está? - perguntou preocupada. Jéssica, não se preocupe. Estarei aí em meia hora, no máximo. Mas não se esqueça de ver os uniformes. Desliguei o telefone e corri para banheiro. Tinha pouco tempo e precisava ser rápida. Aquele foi o banho mais 14

7 HERANÇA DE SANGUE rápido da minha vida. Escolhi a primeira roupa que vi pela frente, um vestido azul claro. Peguei toda a tralha e joguei no carro. Olhei o quintal na esperança de ver Nero, mas nada... Só o silêncio que já estava me incomodando. Mais um dia... Suspirei fundo e pé na estrada. Seguia dirigindo tranquilamente, afinal, queria chegar viva e muito bem na minha pousada. Coloquei um CD que tinha minhas músicas favoritas, e comecei a cantarolar. Mas devo salientar, cantar não era meu ponto forte, aliás, era o que eu fazia de pior, mas cantava só para mim mesma. No caminho, encontrei o Padre Aguiar, que acabou me convidando para a festa que aconteceria durante a semana em sua paróquia. Ele sabia que eu sempre parava na barraca do seu João todos os dias para comprar frutas, já que nunca me via na igreja. Não que eu não gostasse de ir à igreja, na verdade, eu sempre culpava o tempo pelas coisas que eu não fazia. Mas quando se é mortal, tempo é relevante, ele sempre passa. Depois de ouvir o sermão do padre e comprar as frutas, voltei para a estrada, desliguei o som e me concentrei em chegar. Acelerei meu carro e podia sentir o vento fresco em meu rosto. O barulho da água descendo das cachoeiras era muito bom. Era como ouvir os sinos dos anjos; como se minha alma pudesse voar, num plano mais elevado, era divino. Algo me fez parar o carro. Senti que deveria parar, mas eu não sabia o motivo. Parei na beira da estrada e senti o sol passar por entre as árvores e tocar meu rosto com seu calor. Suspirei. Naquele momento eu sentia que estava protegida. Perdi meu senso de responsabilidade. Tranquei o carro e desci pela margem da cachoeira que estava vazia, pois nem todos tinham acesso àquela área privilegiada. A água estava límpida. Podia me ver nela. Sentei-me à beira da ribeirinha e toquei a água com meus pés, estava muito fria, mas 15

8 PRISCILA XAVIER eu não me inibi. Tirei meu vestido e pulei. Era uma sensação estranha de despedida. Foi o que senti enquanto os raios de sol batiam na água que formava um arco íris brilhante, se estendendo até onde meus olhos alcançavam. Sim, o dia estava lindo. Verdadeiramente radiante, e eu não estava nem aí para o atraso. Queria curtir a intensidade daquele dia que me pareceu muito especial. As horas se passaram, e só percebi, quando um vento forte e muito frio vieram de uma caverna que se encontrava ao longo da margem. Quando tocou em meu rosto, parecia cortar a pele. Saí da água, coloquei minha roupa, e caminhei rumo à caverna. Até então, nunca a havia visto, mas sempre esteve lá a minha espera. Talvez eu tivesse tão ocupada para percebê-la, porém, de algum modo, ela sempre quis me mostrar que estava lá. Caminhei devagar, tomando cuidado para não tropeçar nas árvores caídas à margem, nem enroscar meus pés em suas grossas raízes. O vento havia desalinhado meus cabelos cacheados que estavam molhados. Chegando à entrada da caverna, ela parecia assustadora escura e fria, mas no final, havia uma fresta de luz, por onde eu resolvi me orientar. Não era a ideia mais inteligente que já tive na minha vida, mas segui em frente. Parecia que quanto mais adentrava, mas funda ela se parecia. Algo me puxava para seu interior, como se estivesse sendo controlada pelo desconhecido, em um transe profundo. Meu coração batia forte e respirava com dificuldade. Já estava perdendo minha consciência, sentindo minhas forças se esvaecendo, quando ouvi uma voz me chamar: Ana! - esta foi a última coisa que ouvi. 16