A participação das pessoas casadas no processo.
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- Rafael Terra Fartaria
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1 A participação das pessoas casadas no processo. Fredie Didier Jr. Advogado. Mestre (UFBA) e Doutor (PUC/SP). Professor-adjunto de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (graduação, mestrado e doutorado). 1 Consideração introdutória. O casamento é fato jurídico que repercute de modo bastante significativo no processo civil, mais especificamente em relação à capacidade processual das pessoas casadas. Essa capacidade processual possui regramento próprio: artigos 10 e 11 do CPC, que serão objeto de estudo mais delongado 1. Há relação, no particular, entre o Código Civil e o Código de Processo. Os arts. 10 e 11 do CPC-73 apenas repercutem o regramento já contido na legislação material nos arts a 1.648, adiante examinados. 2 Distinção entre capacidade e legitimidade. A correta interpretação do tema impõe que se rememore a distinção entre capacidade e legitimidade. A capacidade é a aptidão genérica para a prática dos atos da vida civil. A legitimidade é a aptidão específica para a prática de determinado ato. Os cônjuges são civilmente capazes. São, portanto, também processualmente capazes. Essa é a regra. A lei, no entanto, retira a aptidão para a prática de determinados atos processuais. Nesses casos, embora capazes, faltar-lhes-ia legitimidade processual (ad processum). 3 Capacidade processual dos cônjuges nas ações reais imobiliárias. 3.1 O art do CC O artigo do CC cuida dessas hipóteses de ilegitimidade: não tem o cônjuge legitimidade para, sem autorização do outro, praticar os atos ali arrolados. Interessa, neste momento, o inciso II desse artigo, que restringe a capacidade processual das pessoas casadas nas demandas reais imobiliárias: a participação de ambos os cônjuges, nessas hipóteses, é exigida. Essa restrição da capacidade visa proteger o patrimônio imobiliário familiar. 3.2 A restrição da capacidade processual e a ressalva prevista no Código Civil de O inciso II do art do CC-2002 tem cunho eminentemente processual. Cuida da capacidade processual das pessoas casadas, no pólo ativo, e da exigência de 1 O art. 350, par. ún, CPC, cuida da capacidade do cônjuge para confessar, nas causas em que se discutam imóveis: a confissão de um só é eficaz com o consentimento do outro. Também aqui incide o art do CC-2002, adiante examinado, que dispensa essa autorização nos casos de casamento sob regime da separação absoluta. 2 Art Ressalvado o disposto no art , nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta: I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis; II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos; (...) 1
2 litisconsórcio passivo, nas causas relacionadas a direitos reais imobiliários 3. O inciso aplica-se também às causas que versem sobre direitos reais imobiliários sobre a coisa alheia, por força do inciso I deste mesmo artigo, que a eles faz referência ( gravar de ônus real ) 4. Conforme ressalvado no caput do artigo do CC-2002, não se aplica a exigência de participação do consorte quando o casamento se der em regime de separação absoluta de bens (arts do CC-2002). As vedações são aplicáveis aos regimes de bens de comunhão parcial, de comunhão universal e de participação final de aqüestos 5, no último caso se não houver acordo pré-nupcial neste sentido. Trata-se de uma mudança promovida pelo CC-2002: é que, de acordo com o CC-1916, havia exigência de consentimento prévio do cônjuge para a prática dos atos enumerados no art. 235 do código revogado, qualquer que fosse o regime de bens. Em razão de a restrição de capacidade (exigência de consentimento prévio do outro cônjuge), de que cuida este artigo, não mais subsistir para as hipóteses de matrimônio sob o regime da separação absoluta, algumas regras processuais devem ser interpretadas à luz deste novo regramento. As exigências previstas no caput e no 1 o do art. 10 do CPC deixam de incidir quando se estiver diante de partes casadas entre si sob o regime da separação absoluta 6. Há dúvida se essa ressalva aplica-se a qualquer regime de separação de bens, legal ou convencional. Correto Humberto Theodoro Jr., que afirma não haver razão para a distinção: se o regime for o da separação de bens, pouco importa se por força de lei ou manifestação de vontade, fica dispensada a vênia conjugal 7. Também se dispensa o consentimento do consorte nos casos de casamento sob regime da participação final dos aqüestos, com cláusula no pacto antenupcial em que se permita a alienação/oneração de bem imóvel sem a autorização do outro cônjuge (art do CC-2002) 8. O cônjuge somente pode demandar em juízo sobre um direito real imobiliário se o outro lhe der autorização neste sentido (art. 10, caput, CPC-73). A locução legal é ampla e abrange, além das ações diretamente relacionadas aos direitos reais catalogados no Código 3 Nelson Nery Jr. e Rosa Nery (Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6 a. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 286) lembram de norma do CPC português (art. 28-A), cujo texto é mais claro: 1. Devem ser propostas por marido e mulher, ou por um deles com consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indirectamente, a casa de morada de família. (...) 3. Devem ser propostas contra o marido e a mulher as acções emergentes de facto praticado por ambos os cônjuges, as acções emergentes de facto praticado por um deles, mas em que pretenda obter-se decisão susceptível de ser executada sobre bens próprios do outro, e ainda as ações compreendidas no número 1. 4 NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6 a. ed. São Paulo: RT, 2002, p LÔBO, Paulo. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p Em sentido contrário, NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6 a ed. São Paulo: RT, 2002, p No mesmo sentido, CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Algumas regras do Novo Código Civil e sua repercussão no Processo prescrição, decadência etc. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, 2003, n. 5, p. 81; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado. Antônio Carlos Marcato (coord.). São Paulo: Atlas, 2004, p THEODORO Jr., Humberto. O Novo Código Civil e as regras heterotópicas de natureza processual. Disponível em: consultado em , às 11h04. Miguel Reale também entende que se não devem tratar distintamente os regimes da separação obrigatória e da separação convencional (Estudos preliminares do Código Civil. São Paulo: RT, 2003, p ). Retifica-se, assim, o entendimento defendido em DIDIER Jr., Fredie. Regras processuais no Novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 117 já na segunda edição desta obra não consta a posição que restringe a ressalva à separação convencional. 8 Art do CC-2002: No pacto antenupcial, que adotar o regime de participação final nos aqüestos, poder-se-á convencionar a livre disposição dos bens imóveis, desde que particulares. 2
3 Civil, quaisquer outras, ainda que indiretamente relacionadas com aqueles direitos, como as ações envolvendo hipoteca, a demolitória, a divisória, a nunciação de obra nova etc Não é caso de litisconsórcio ativo necessário, figura, aliás, que não existe ninguém pode ser obrigado a demandar em juízo somente se outrem também assim o desejar. Trata-se de norma que tem o objetivo de integrar a capacidade processual ativa do cônjuge demandante. Dado o consentimento inequívoco, somente o cônjuge que ingressa com a ação é parte ativa; o que outorgou o consentimento não é parte na causa 11. Nada impede, porém, a formação do litisconsórcio ativo, que é facultativo. Quando a causa versar sobre direito real imobiliário, na coisa própria em ou coisa alheia, ambos os cônjuges devem ser citados (art. 10, 1 o, I e IV, CPC) Aqui, diversamente, trata-se de hipótese de litisconsórcio passivo necessário. O Código Civil não cuidou do problema da participação dos cônjuges nas ações possessórias (que não são demandas reais, pois o direito à proteção possessória não é direito real, embora muitas vezes com os direitos reais se relacione). O CPC trata do assunto no 2 o do art. 10: a participação do cônjuge, nestes casos, restringe-se às situações de composse e às causas que disserem respeito a ato por ambos praticado 14. Há duas observações importantes a fazer em torno desse parágrafo segundo. a) Ele se refere exclusivamente às ações possessórias imobiliárias, embora não haja menção a essa qualidade no texto legal, que foi introduzido pela reforma de 1994 exatamente para esclarecer a extensão do caput e do 1º do art. 10 às ações possessórias e esses dispositivos, como visto, somente se referem às ações imobiliárias 15. b) Fala o dispositivo em participação do cônjuge, locução que deve ser interpretada à luz dos outros enunciados do art. 10: no pólo ativo, a participação do cônjuge dar-se-á pelo consentimento 16 ; no pólo passivo, será exigido o litisconsórcio necessário. Nos casos mencionados, poderá o cônjuge que não foi ouvido: a) ingressar no processo e pedir a anulação dos atos até então praticados; b) ajuizar ação rescisória (art. 485, V, do CPC-73), se a demanda tiver sido ajuizada pelo outro cônjuge sem o seu consentimento e já houver trânsito em julgado; c) ajuizar ação de nulidade transrecisória (p. ex.: art. 741, I, 9 ASSIS, Araken de. Suprimento da incapacidade processual e da incapacidade postulatória. Doutrina e prática do processo civil contemporâneo. São Paulo: RT, 2001, p Há pelo menos uma situação em que a autorização do marido é desnecessária à propositura de ação real imobiliária pela mulher: reivindicação de imóvel comum transferido por ele à concubina (CC, art , V, que estende a possibilidade a ambos). Nesse caso, há manifesto conflito de interesses entre os cônjuges, sendo prescindível até o suprimento do consentimento. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 71.) 11 NERY Jr., Nelson e NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 6 a ed. São Paulo: RT, 2002, p Também assim, Thereza Alvim. O direito processual de estar em juízo. São Paulo: RT, 1996, p. 41; BUENO, Cassio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 39; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: RT, 1979, p. 118; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 70. Na doutrina lusitana, Abílio Neto. Código de processo civil anotado. 16 a ed. Lisboa: Ediforum, 2001, p Incisos I e IV do 1º do art. 10 do CPC: Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para as ações: I - que versem sobre direitos reais imobiliários; (...) IV - que tenham por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóveis de um ou de ambos os cônjuges. 13 A previsão abrange também as hipóteses de vínculos e restrições impostos pelo testador ou pelo doador, como inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade... Aqui não se trata de ação fundada em direito real, pois a causa de pedir está restrita aos fatos que, no entender do autor, revelem a existência ou o direito à constituição ou extinção de um desses ônus. A pretensão não tem fundamento em direito real. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit. p. 72.) 14 2º do art. 10 do CPC: Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticados. 15 Assim, PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, 9ª ed., cit., p Em sentido diverso, para quem o dispositivo contempla um dos poucos casos de litisconsórcio necessário ativo, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit. p
4 CPC-73) ou ação rescisória, se não tiver sido citado em ação real ou possessória imobiliária proposta contra o seu cônjuge 17. Mas não é só. O parágrafo único do art. 669 do CPC 18 impõe a intimação do cônjuge do devedor, quando houver penhora de bem imóvel. Esta exigência impõe a formação de um litisconsórcio ulterior necessário no processo de execução e a sua falta é vício que pode ser argüido a qualquer tempo e grau de jurisdição (art. 47 do CPC). A intimação, nesses casos, justificava-se na regra de direito material que condicionava a alienação de imóvel ao consentimento do outro cônjuge 19. Como esta exigência não mais se aplica aos casos de casamento sob o regime da separação absoluta, ou de participação final nos aqüestos, havendo pacto antenupcial neste sentido (art do CC), quando houver penhora de devedor casado sob um desses regimes, é desnecessária a intimação a que alude o parágrafo único já mencionado 20. As restrições aplicam-se a ambos os cônjuges, sem qualquer distinção entre marido e mulher. Deve o artigo ser interpretado restritivamente, porque se trata de norma que limita o exercício de direitos Forma e prova do consentimento. A lei não prevê forma para o consentimento diversamente do que fez com a aprovação (art , par. ún., CC-2002), que é um consentimento concedido posteriormente à prática do ato. O consentimento prévio é, a princípio, ato de forma livre (art. 107 do CC- 2002). Nada impede, por exemplo, que a autorização para a propositura de ação real imobiliária (art , II) seja dada na própria petição inicial, eis que, em relação à prova do consentimento, se aplica a regra do art. 220 do CC-2002, segundo a qual a anuência ou a autorização de outrem, necessária à validade de um ato, provar-se-á do mesmo modo que este, e constará, sempre que se possa, do próprio instrumento. Há, porém, outros meios de prova, por exemplo: a) assinatura da procuração para o advogado que atuará na causa; b) documento criado com essa exclusiva finalidade, que será anexado à petição inicial. 3.4 Aplicação dos dispositivos relacionados às pessoas casadas aos companheiros em união estável. Questão das mais tormentosas é a da aplicação desses dispositivos (art do CC-2002; art. 10 do CPC-73) à união estável. Como é possível intuir, há duas possibilidades, antagônicas entre si, de interpretação do texto legal. Embora só se refira aos cônjuges, há quem defenda a extensão das exigências deste artigo à união estável, sob o argumento de que a ela se aplicam as regras da comunhão parcial de bens (art do CC-2002), salvo se houver contrato escrito em que se estabeleça 17 Sobre o cabimento, nestes casos de litisconsorte necessário não-citado, de querela nullitatis e até mesmo ação rescisória, ver FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Réu revel não citado, querela nullitatis e ação rescisória. In: Ensaios de direito processual. Rio de Janeiro: Forense, p Parágrafo único do art. 669 do CPC: Recaindo a penhora em bens imóveis, será intimado também o cônjuge do devedor. 19 A regra se revela simétrica à que exige vênia conjugal nos atos voluntários de alienação ou de oneração dessa espécie de bens. (ASSIS, Araken. Manual do processo de execução. 7 ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 646). 20 Anteviu a questão ASSIS, Araken de. Manual do processo de execução. 7 ª ed. São Paulo: RT, 2001, p LÔBO, Paulo. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p
5 a separação absoluta 22. Se se trata de um bem que pertence à comunhão, a sua alienação não poderia prescindir do consentimento de ambos os companheiros. Cumpre advertir o seguinte: o terceiro, neste caso, ficaria um tanto desprotegido, em razão da ausência de registro da união estável. Convém que o terceiro observe esta circunstância na hora de celebrar o contrato. De todo modo, fica-lhe garantido o direito de regresso contra o companheiro que contratou sem consentimento. Não se nega que, na situação, haverá um conflito de interesses entre duas pessoas de boa-fé: o terceiro e o companheiro enganado. Um dos dois haveria de ser prestigiado. À luz do art. 226, caput, da CF/88, que aponta para a circunstância de que o Estado deve dar especial proteção à família (no caso, a união estável), fica-se com a interpretação que protege o patrimônio familiar 23. Há como pensar em sentido contrário, porém. É que, como não há registro da existência da união estável, e embora a publicidade da relação seja um requisito para a configuração desta entidade familiar, realmente torna-se difícil ao terceiro proteger-se de eventuais prejuízos, não podendo ser aplicado esse regime processual especial aos companheiros 24. O problema aumenta de tamanho quando se percebem as dificuldades de estabelecer, com precisão, os limites temporais da união estável desde quando a relação pode ser considerada como juridicamente tutelada, a exigir a participação do companheiro na prática dos mencionados atos? A segurança jurídica fica sobremodo comprometida. Nesse caso, assegura-se ao companheiro(a) prejudicado(a) o direito de regresso contra a sua companheira(o). A lição de Gustavo Tepedino resume bem essa postura doutrinária: (...) em matéria de direito de família, faz-se necessário extremar as normas que se destinam a regular os efeitos do casamento, como ato jurídico solene, das normas que visam disciplinar o casamento como relação familiar. Aquelas, à evidência, não podem ser aplicadas às uniões estáveis, já que dependem essencialmente do ato solene, pressuposto fático para a sua incidência. Assim, por exemplo, a disciplina do regime de bens e o título sucessório decorrente da qualidade jurídica de pessoa casada, bem como a exigência de outorga do cônjuge para a concessão de fiança. Cuida-se de regras que devem incidir exclusivamente sobre relações constituídas pelo casamento, título indispensável à sua aplicação em razão da segurança jurídica. A publicidade inerente à qualidade de pessoa casada vincula-se à ratio de tais normas, sendo dado a qualquer interessado constatar, junto aos registros públicos, o regime jurídico do cônjuge, com quem se pretende negociar ou cuja consistência patrimonial se quer conhecer LÔBO, Paulo. Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p Por fim, reputo imperioso reservar o mesmo regime do art. 10 do Código de Processo Civil para as situações em que há união estável, sob pena de violar o comando do art. 226, 3 o, da Constituição Federal. Evidentemente que a existência deste regime pode demandar a necessidade de prova a cargo do interessado. O que releva, no entanto, é que, naqueles casos em que se sabe da existência da união estável, deverão os companheiros ser citados como litisconsortes, observando as regras aqui estudadas. (BUENO, Cassio Scarpinella. Partes e terceiros no processo civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 42). Também neste sentido, reconhecendo as consideráveis dificuldades para se apurar a existência deste tipo de relação informal, ASSIS, Araken de. Suprimento da incapacidade processual e da incapacidade postulatória. Doutrina e prática do processo civil contemporâneo. São Paulo: RT, 2001, p BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 71; TEPEDINO, Gustavo, BARBOZA, Heloísa Helena, MORAES, Maria Celina Bodin de (coord.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, v. 1, p TEPEDINO, Gustavo. A proteção constitucional do casamento e das novas formas de entidades familiares: critérios interpretativos. Temas de direito civil. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p
6 A questão merece tratamento expresso do legislador. De cara, convém a imediata reforma do inciso II do art. 282 do CPC, de modo a se tornar obrigatória, na qualificação das partes, a menção à existência de união estável (aliás, como já vêm fazendo os bancos nos contratos de mútuo). A despeito da ausência de regramento expresso, as partes têm o dever de informar, em suas qualificações, a relação de companheirismo, sob pena de litigância de má-fé. Os valores em jogo têm status constitucional e merecem a atenção redobrada do intérprete/aplicador. O princípio da proporcionalidade, como é cediço, deve ser observado, como critério de harmonização de conflitos deste porte. Propõe-se a seguinte interpretação: a) se se trata de união estável notória, a participação do companheiro, ao que parece, deve ser exigida, impondo-se a sua intimação; b) se, embora não sendo notória, for alegada nos autos, convém que também se providencie a integração do ato com a intimação do companheiro faltante; c) se não houver notoriedade nem menção nos autos, após o trânsito em julgado caberá ao companheiro preterido apenas a pretensão regressiva contra o seu companheiro, não sendo possível cogitar de qualquer caso de rescindibilidade da sentença. A solução, porém, não pode ser alcançada em um juízo abstrato (em tese); o magistrado, à luz do caso concreto, diante das suas particularidades, valendo-se da técnica da proporcionalidade, é que encontrará a solução adequada. 3.5 O controle da ilegitimidade processual do cônjuge. Há uma difícil questão que merece análise especial: pode o magistrado controlar ex officio, ou por provocação do réu, a ilegitimidade processual do cônjuge, que demandou sem o consentimento do outro, ou esse controle somente pode ser feito a partir da provocação do cônjuge preterido? Pode o magistrado indeferir a petição inicial por falta de comprovação da outorga? Diante da regra segundo a qual cabe ao magistrado o controle dos pressupostos processuais (art. 267, 3º, CPC), não haveria maiores dúvidas quanto à possibilidade de o juiz controlar também a capacidade processual dos cônjuges. Sucede que, por força do art do CC-2002, somente o cônjuge preterido tem legitimidade para pleitear a invalidação do ato praticado sem o seu consentimento 26. É característica da legitimação (de que é exemplo o art do CC-2002) a tutela de interesses estranhos ao sujeito que sofre a restrição da capacidade: ao impor o consentimento uxório/marital, o legislador visa proteger o cônjuge que não pratica o ato jurídico 27. Não pode, assim, o magistrado invalidar o procedimento sem que o cônjuge preterido o provoque e isso mesmo se o réu apontar a falta de comprovação do consentimento Art do CC-2002: A falta de autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art ), tornará anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. 27 MANES, Humberto. A legitimação negocial. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1982, p Dizendo tratar-se de caso de nulidade relativa, que necessita argüição do interessado, embora sem fazer referência ao Código Civil, THEODORO Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 41ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p. 76. Reconhecendo apenas ao cônjuge preterido a legitimidade para argüir a ausência de consentimento, PASSOS, José Joaquim Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. 3, p O inciso VIII do art. 301 do CPC permite ao réu apontar a falta de autorização, como defeito processual. Esse texto aplicase às pessoas jurídicas autoras, quando a propositura da demanda por seu presentante exigir a autorização prévia de um órgão societário. 29 Em sentido diverso, reconhecendo a possibilidade de controle ex officio da falta de autorização, embora reconheça que a questão é polêmica, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p
7 Essa situação, contudo, deixaria o processo permanentemente instável, pois a qualquer tempo poderia comparecer o cônjuge preterido, solicitando a invalidação dos atos praticados; ou, caso não comparecesse ao longo do processo, o que é ainda mais grave, poderia ajuizar ação rescisória da sentença por violação aos textos legais mencionados. O réu ficaria submetido a situação bastante desigual, pois a sua vitória ficaria na dependência de o cônjuge preterido ficar em silêncio. Há, pois, um conflito a ser resolvido: de um lado, a regra material que restringe a legitimidade para argüir a invalidade, de outro, a utilidade do exercício da função jurisdicional, que sempre deve ser protegida (existindo, para isso, o poder geral de cautela do art. 798 do CPC). A solução que mais bem compatibiliza os dispositivos é a seguinte: deve o magistrado, de-ofício ou a requerimento, determinar ao autor que traga a comprovação do consentimento; se não a trouxer, deve o magistrado, valendo-se do poder geral de cautela e observando o seu dever de velar pela igualdade processual (art. 125, I, CPC), determinar a intimação do cônjuge preterido, que poderá (a) se calar, quando se presumirá o consentimento, (b) expressamente aprovar os atos já praticados, dando o consentimento para o prosseguimento do processo, (c) negar o consentimento, quando então poderá o magistrado não admitir o procedimento, invalidando a demanda por incapacidade processual. 3.6 Suprimento judicial do consentimento (art. 11 do CPC e art do CC-2002). O magistrado poderá suprir o consentimento de um dos cônjuges, se houver recusa sem justo motivo ou quando for impossível ao cônjuge concedê-la (art do CC e art. 11 do CPC-73). Não há qualquer utilidade na conceituação, em abstrato, do que seja justo motivo. Será no caso concreto, diante das peculiaridades da situação que se lhe for apresentada, que o magistrado averiguará a relevância do motivo da recusa do consentimento 31. A impossibilidade de concessão do consentimento, no entanto, é situação objetiva: toda vez que um dos cônjuges não puder dar o consentimento, em razão de impossibilidade física, permanente ou temporária, poderá o magistrado suprir a outorga. É o que pode ocorrer quando um dos cônjuges estiver gravemente enfermo ou desaparecido, ou quando um deles estiver servindo o país em uma guerra. O art. 11 do CPC traz norma semelhante. O pedido de suprimento judicial da outorga será processado de acordo com as regras da jurisdição voluntária. Adotar-se-á o procedimento regulado nos arts do CPC-73. O outro cônjuge deverá ser citado, sob pena de nulidade, pois é interessado (art do CPC-73). Quando não puder manifestar-se (caso de impossibilidade de concessão da autorização, por exemplo), deverá o magistrado nomear-lhe curador especial, a fim de resguardar os seus interesses (art. 9 o, I, do CPC-73, aplicado por analogia). O Ministério 30 Art do CC-2002: Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la. 31 Também neste sentido, SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, p Eis os exemplos de Paulo Lôbo: a) quando se prova que o ato é vantajoso ou necessário para ambos os cônjuges ou para a família; b) quando o ato de liberalidade (fiança, aval e doação) não leva a riscos desarrazoados ao patrimônio familiar (Código Civil Comentado, p. 258). 7
8 Público deverá ser ouvido, necessariamente, também sob pena de nulidade (arts. 84 e do CPC-73). Da decisão que conceder ou negar o pedido, caberá apelação (art do CPC- 73). Em situações de urgência, é possível a concessão de provimento antecipatório, desde que preenchidos os requisitos genéricos previstos no art. 273 do CPC-73. Cabe ao magistrado (juízo singular) com competência material para as causas de família o suprimento da autorização marital/uxória prevista neste artigo. Cumpre advertir, porém, que a competência territorial será a do domicílio do cônjuge que se recusa ou está impossibilitado de fornecer o consentimento (aplicação analógica do disposto no art. 94 do CPC-73) 32. Esse pedido de suprimento deve ser feito antes do ajuizamento do processo, normalmente; em caso de urgência, é possível o ajuizamento sem o suprimento, pedindo ao magistrado da causa prazo para comprová-lo. Se o magistrado competente para a causa também o for para suprir o consentimento, nada impede que, já na petição inicial, se peça o suprimento da outorga. Neste caso, imprescindível a instauração de um incidente processual, em que seja ouvido o outro cônjuge quando isso for possível e o Ministério Público. Esse incidente deve suspender o processo. 4 Dívidas solidárias e litisconsórcio necessário entre os cônjuges (incisos II e III do 1º do art. 10º do CPC). Os incisos II e III do 1º do art. 10 do CPC 33 trazem duas regras que revelam uma desarmonia entre o direito processual e o direito material: impõem o litisconsórcio necessário passivo entre os cônjuges, quando demandados por dívidas solidárias. A solidariedade passiva dos cônjuges, nos casos previstos naqueles incisos, possui um regramento processual diverso daquele previsto para a generalidade das obrigações solidárias: o credor não pode escolher um dos devedores para demandar, sendo eles casados entre si retira-se, aqui, o benefício do art. 275 do CC O CPC impõe o litisconsórcio necessário sem norma de direito material que dê qualquer indicação nesse sentido. Eis as hipóteses. Primeiramente, o inciso II impõe o litisconsórcio quando se tratar de demanda resultante de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos praticados por eles. São hipóteses de causas de responsabilidade civil. O art. 942 do CC-2002 prevê a responsabilidade solidária de todos os co-autores da ofensa 35. Há solidariedade passiva por força de lei (art. 265 do CC-2002), mas o fato de os co-autores serem casados entre si redefine o regime jurídico 32 Diante da igualdade dos cônjuges prevista constitucionalmente, não se deve mais aplicar a regra do art. 100, I, do CPC- 73, que poderia ser usada como parâmetro para a analogia, que prestigia o foro do domicílio da esposa para as causas que disserem respeito ao casamento. 33 Art. 10, incisos II e III, do CPC: II - resultantes de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos praticados por eles; III - fundadas em dívidas contraídas pelo marido a bem da família, mas cuja execução tenha de recair sobre o produto do trabalho da mulher ou os seus bens reservados Art. 275 do CC-2002: O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto. 35 Art. 942 do CC-2002: Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação. Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art
9 processual dessa obrigação solidária, retirando do credor o benefício do art. 274 do CC-2002, impondo o litisconsórcio necessário 36. Agora, o inciso III. Ao mesmo tempo em que submete o cônjuge à necessidade de consentimento prévio do outro, para a prática de certos atos (art do CC-2002; art. 10, caput, CPC-73), a legislação cuidou de especificar alguns atos que podem ser praticados sem a vênia conjugal (art do CC-2002) 37. Trata-se de atos relacionados à administração da economia doméstica. Esta permissão aplica-se a qualquer regime de bens. Cria-se uma presunção legal iure et de iure de que o cônjuge está, nesses casos, autorizado pelo outro cônjuge a contrair dívidas. Assim, não pode o outro cônjuge alegar a falta de sua autorização, quando ficarem evidenciadas as despesas de economia doméstica, que ele e os demais membros da família foram destinatários. Não se incluem as despesas suntuárias ou supérfluas, ainda que tendo destino o lar conjugal, pois não se enquadram na economia doméstica cotidiana. 38 O art do CC cria uma regra de solidariedade legal (art. 265 do CC-2002) entre os cônjuges, com relação às dívidas contraídas para os fins de administração da economia doméstica. Nos casos de cobrança de tais dívidas, em razão da solidariedade legal e da regra do art. 10, 1 o, III, CPC-73, exige-se a formação de litisconsórcio passivo necessário entre os cônjuges, para que se possam atingir os bens de ambos os cônjuges. Como observa Paulo Lôbo, essa norma, em conjunto com os arts , IV, e 1.664, encerram as hipóteses nas quais o patrimônio comum responde por dívidas contraídas por um dos cônjuges. 40 Embora solidária a dívida, nesses casos os devedores-cônjuges devem ser demandados conjuntamente, e, não, isoladamente. A redação do inciso III do 1 o do art. 10 do CPC precisa ser revista: não se se restringe mais ao marido a possibilidade de contrair dívidas em nome da família nem se pode mais falar de bem reservado da mulher. Viu-se que ambos são autorizados a contrair as dívidas para a economia doméstica e que ambos respondem por elas solidariamente. Justificava-se o inciso em razão da possibilidade de a mulher responder, com seus bens, por dívidas contraídas em benefício da família (art. 246, par. ún., do CC-1916, e art. 3 o da Lei Federal n /62). Como agora há solidariedade legal, é desta forma que deve ser lido o mencionado dispositivo da legislação processual: a cobrança de dívidas oriundas dos negócios previstos no art do CC-2002 deve ser dirigida a ambos os cônjuges, em litisconsórcio necessário, se se quiser executar bens de ambos os cônjuges 41. A falta de citação de um deles impede que a sentença lhe possa produzir qualquer efeito, embora possa ser executada em face do cônjuge já citado (o caso aqui é de litisconsórcio necessário simples). 36 Não fossem os autores casados, a responsabilidade solidária tornaria desnecessária a formação do litisconsórcio (CC, art. 942). A existência da sociedade conjugal, todavia, afasta a faculdade de escolha conferida ao credor pelo legislador material. (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, cit., p. 71.) 37 Art do CC-2002: Podem os cônjuges, independentemente de autorização um do outro: I comprar, ainda a crédito, as coisas necessárias à economia doméstica; II obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir. 38 LÔBO, Paulo, Código Civil Comentado. São Paulo: Atlas, 2003, v. 16, p Art As dívidas contraídas para os fins do artigo antecedente obrigam solidariamente ambos os cônjuges. 40 LÔBO, Paulo Código Civil Comentado, p Em sentido diverso, para quem, nos casos de dívida contraída pela mulher, com base nos arts e do CC- 2002, tendo em vista a inexistência de previsão de litisconsórcio necessário, é desnecessária a citação do marido na demanda proposta contra a devedora, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil Interpretado, p
10 O caso é de litisconsórcio necessário simples por força de lei. Assim, se não houver a citação de um dos cônjuges, o processo é valido e eficaz para aquele que foi citado, mas a execução não poderá recair sobre os bens que componham a meação ou os bens particulares do cônjuge não-citado THEODORO Jr., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 41ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. 1, p
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