O JORNAL, O LEITOR E A LEITURA NO OITOCENTOS BRASILEIRO
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- Luiz Fernando Schmidt Vilanova
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1 O JORNAL, O LEITOR E A LEITURA NO OITOCENTOS BRASILEIRO Patrícia Kátia da Costa Pina UESC dacostapina@gmail.com Resumo: Este estudo aborda as práticas editoriais próprias do século XIX brasileiro, após a chegada da Corte Portuguesa e da conseqüente abertura para que se construísse a imprensa periódica no Rio de Janeiro e em outros pontos do Brasil, associando-as à produção literária (ou não) publicada nos jornais, sua circulação e sua recepção, a partir do enfoque da folha paulista O Diabo Coxo. Trata-se de uma investigação acerca da importância da diagramação das páginas, da relação texto/anúncio, do uso de imagens, do tipo utilizado para a impressão do texto, do tamanho do periódico, enfim, das estratégias dos tipógrafos/editores de jornais, no Brasil do oitocentos, a fim de que pudessem aproximar do jornal uma sociedade oralizada por séculos de um colonialismo controlador do impresso. A História da Leitura produzida por Roger Chartier, bem como reflexões de Márcia Abreu, Lúcia Santaella, Marisa Lajolo e outros estudiosos da cultura impressa, fundamentam este estudo. Palavras-chave: Cultura escrita e cultura oral; Suportes da escrita; Práticas editoriais Entre os retiros da vida privada e as leituras das reuniões, autênticas ou idealizadas, existem, portanto, outras situações de leitura às quais se aliam as competências individuais e estabelece-se uma relação pedagógica imediata e espontânea. Roger Chartier, Do Livro à Leitura O trecho destacado como epígrafe relaciona leitura silenciosa (vida privada) e leitura oral (reuniões) como algumas das possíveis situações de leitura que ocorreriam na época do Romantismo, na Europa. De tais situações, o autor depreende um processo pedagógico imediato e espontâneo. Quero, a partir da afirmação do renomado pesquisador, discutir a compreensão do que seria o processo de leitura: no fragmento acima, Chartier refere-se à leitura de textos escritos e impressos, à decifração da palavra, o que é bastante pertinente, quando aplicado à sociedade européia, detentora de bons índices de alfabetização e, portanto, possuidora de significativo leitorado, ao menos, potencialmente, salvo raras exceções. Atravessando o Atlântico, no Brasil oitocentista as práticas de leitura seguiam, na medida do possível, os moldes europeus, mas a questão aqui foi mais complexa, em virtude das dificuldades históricas do meio. Foi no dezenove brasileiro que se desenhou nosso leitorado, aí se estabeleceram padrões de produção e recepção do texto literário, 1
2 nossa geografia intelectual e cultural foi traçada nesse momento. O artista desse desenho não foi o escritor de romances ou poemas, foi, sim, o editor de jornais e revistas, o desenhista, o tipógrafo, foi o cronista, que ocupava a seção de folhetim variedades. Em tal contexto, a decifração do escrito não me parece ser a única forma de leitura: penso que produzir sentido para imagens visuais é, também, ler. Assim, o uso de imagens impressas pode ter sido uma estratégia de formação de hábitos de consumo de jornais, revistas, livros etc. Nosso analfabetismo é histórico e resulta de sanções metropolitanas, as quais fizeram com que, somente a partir de 1808, o Brasil conquistasse o direito de contar, oficialmente, com tipografias, direito este que, nos sendo negado nos séculos precedentes, reduziu nossas letras impressas à marginalidade. Com a chegada de D. João VI e a transferência da Corte para cá, entramos, tardiamente, na era da imprensa. E como, até então, o impresso era raro, a habilidade da leitura era um tanto ociosa. Na parte introdutória de A letra e a voz, Paul Zumthor estuda três formas de oralidade: a primária, própria de grupos analfabetos, sem contato algum com a escrita; a mista, que sofre influência externa da escrita; a terceira, chamada segunda, que se refaz pelo papel e pela tinta. Assim ele distingue cultura escrita (possuidora de uma escritura) e cultura letrada, na qual...toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita... (ZUMTHOR, 1993, p.18) Mesmo voltadas para a Idade Média européia, as colocações de Paul Zumthor abrem caminho para que se reflita sobre as práticas culturais oitocentistas brasileiras. Nós não eliminamos radicalmente a oralidade; aqui, escrita e oral partilharam a cultura. O olho não lia a palavra, mas lia imagens e ouvia as vozes que, alternativamente, conduziam o impresso, permitindo que a leitura ficasse na interseção visual/auditivo e contactando diretamente o universo oralizado do leitor. Como conseqüência desse atraso, o Brasil do início do século XIX tinha poucas tipografias, livrarias e periódicos. Com o correr do século, a situação muda em parte, surgem livreiros, editores de periódicos (PINA, 2002, p ). Essa precariedade, se, por um lado, criou obstáculos para a formação de grupos de leitores, por outro, tornou imprescindível o aproveitamento dos protocolos de comunicação oral 2
3 que reinavam por estas plagas, deu margem à sua incorporação aos padrões do impresso, aproximando este último de possíveis receptores. Tal incorporação, como a entendo, significou, de certa forma, fazer do papel e da tinta substitutos do corpo e da voz dos contadores de causos, dos porta-vozes das instâncias administrativas etc, num processo de modernização das ações de produção e de recepção. Uma das formas de tornar o impresso palatável foi incorporar a ele elementos do cotidiano que fossem familiares aos grupos de possíveis consumidores, alfabetizados ou não. A reprodução de imagens ganha, então, relevo. Ilustrar as folhas foi um meio encontrado, por editores e demais produtores de bens culturais, para se acercarem do potencial público que poderia movimentar, sustentar, o mercado cultural da época. Em Foi o Diabo!, introdução à edição fac-símile do periódico paulistano Diabo Coxo, objeto deste estudo, Cagnin afirma: A imagem fascina o homem. Na leitura do jornal, os olhos buscam primeiro as fotos dos fatos, as críticas das charges, as histórias em quadrinhos. Mais que ler e ouvir, é imperioso ver notícias. (CAGNIN, 2005, p. 9) Na tímida São Paulo da segunda metade do século XIX, berço do periódico enfocado, a imagem era para poucos. Com a litografia, os desenhistas, conhecidos na época como repórteres do lápis, enriqueceram a página jornalística, ornamentando-a de forma que se tornasse atrativa para letrados e iletrados. Agostini, desenhista do Diabo Coxo, foi o precursor das tiras jornalísticas brasileiras. É assim que vai a público o Diabo Coxo: todo domingo, o pequeno jornal de Luís Gama e Ângelo Agostini, medindo 18cm por 26cm, com 8 páginas somente, sendo 4 de ilustrações e 4 de textos variados, chegava às famílias paulistanas, com material para diferenciados interesses, e tendo como fio a atar esse mosaico o bom humor com que os fatos eram tratados. No primeiro número, ressalta a página inicial: duas grandes ilustrações dividem espaço com informações sobre assinaturas e contribuições e com um pequeno poema, de duas estrofes. Na parte de cima da página, um diabrete, com perna de pau e asas, mostra, do alto de um elevado, a cidade a um jovem, vestido de terno e com um papel em branco ao lado. Essa personificação do jornal coloca-o como concretização de algo superior que é dado aos homens, num ato de vontade quase mágica. 3
4 Logo abaixo e ocupando quase a página inteira, surge a figura de um diabo civilizado: sem asas, vestido de fraque, segurando uma cartola, como se se apresentasse ao leitor. Abaixo da imagem, a frase: O Diabo-coxo comprimenta [sic] aos seus leitores. O olhar do diabinho é cortante, profundo, e seu sorriso é cáustico. Ladeando a imagem, as estrofes: Sou o Diabo coxo: quem ha que desconheça Na vida social, meu vasto poderio? Percorro o mundo inteiro, ora pedestre humilde, Ora atirado aos lombos de um palafrem sombrio Não ha palacio altivo, nem misera choupana Cujos mysterios fundos não possa penetrar; Cheguei hoje a S. Paulo, - sentido meu povinho! A musica está prompta, nós vamos começar. (GAMA, 2005, p.1) [sic] A linguagem alusiva aponta para a função do periódico: invadir os subterrâneos da vida paulistana, desvendando-lhe segredos e expondo-lhe as chagas sociais, sem respeitar fortunas, nem outras limitações que lhe tentassem impor. Essa folha paulistana é um exemplo perfeito do que a junção imagem-palavra poderia fazer, numa terra em que o impresso foi realidade tardia e cheia de percalços. Marisa Lajolo e Regina Zilberman afirmam, ao estudarem a formação do público leitor brasileiro, que...só existem o leitor, enquanto papel de materialidade histórica, e a leitura, enquanto prática coletiva, em sociedades de recorte burguês, onde se verifica no todo ou em parte uma economia capitalista. (LAJOLO e ZILBERMAN, 1996, p.16) Leitor e consumidor são, portanto, termos equivalentes. Nesse contexto, o jornalismo foi fundamental. Suas características periodicidade, universalidade, variedade de temas e matérias, atualidade, difusão fazem dessa prática cultural um grande instrumento de agregação de público (leitores e/ou ouvintes). O jornalismo delimita o espaço social, marca seus contornos, suas áreas de interseção; tudo, nas páginas dos jornais, tem uma seqüência, obedece a uma ordem. Dessa forma, os produtores de cultura impressa, especificamente, os tipógrafos, desenhistas e editores de jornais, desde os inícios do século XIX, constroem suas folhas, a fim de atenderem às necessidades e expectativas dos indivíduos que, em função da nova ordem social e econômica, passavam a ser vistos como consumidores em potencial. 4
5 Ana Luíza Martins afirma que o jornalismo brasileiro teve uma fase heróica, cujo termo veio com a coroação de D. Pedro II. Vendo o Brasil transformado em um Império de verdade, nossos jornalistas engajaram-se em outras lutas: A consolidação da unidade do país e o estabelecimento das bases do sistema representativo são, em boa parte, tributários da imprensa desse Império tropical. Como diferencial do período em que o anonimato também foi uma constante sublinhe-se a ampla liberdade de expressão, propulsora daquela rica produção, de credos diversos e ensaios múltiplos, em busca do ideal maior: a construção da nação. (MARTINS, 2008, p.79) Formar público leitor significava formar opinião pública, isto é, formar grupos de cidadãos conscientes de sua força e capazes de constituir teias sociais representativas. O jornalismo engajou-se nesse processo, entendendo que a construção de um público era, por conseqüência, a construção de um sentimento nacionalista sólido e contagiante. Assim, pode-se perceber que para nossa imprensa heróica e seus sucessores oitocentistas, a criação de um mercado de bens culturais impressos rico em produtos de boa qualidade e em consumidores interessados nesses produtos era o caminho para plantar a semente da nação brasileira nas mentes e nos corações desses leitores. Luís Gama e Ângelo Agostini planejaram e executaram o Diabo Coxo a partir dessa perspectiva nacionalista, mas com um viés crítico. Daí, seguindo uma tradição européia, o uso de uma referência demoníaca para nomear o jornal: o diabo simbolizaria a subversão das normas impostas pelas sociedades para calar suas falhas. Sarcástico, irônico, corrosivo, o diabo atravessa céus e terras para cumprir seus desígnios. Dentre eles, o de ampliar o leitorado paulistano, agregando às hostes elitizadas, grupos populares indefinidos pela flutuação de limites entre letrados e iletrados. Trazer o impresso para perto do homem comum, até para perto do analfabeto, tentando-o pela imagem, parece bastante diabólico! A estruturação da folha em foco, no entanto, não descarta uma proximidade com a mídia das elites, talvez até para dessacralizá-la. Na segunda página desse periódico, veio, no primeiro número, uma espécie de Editorial de apresentação, nomeado Introducção. Chama-me a atenção a nomenclatura, por dirigir a leitura para o campo do livro, conhecido por poucos e ambicionado por muitos dos leitores de folhas da 5
6 época. O editor cria uma narrativa que justifica o jornal e seu nome, curiosamente, uma narrativa cunhada nos moldes românticos ainda em voga, com alusões góticas e ultraromânticas, as quais são desconstruídas pelo tom jocoso dado ao texto. Há, na edição em foco, um artigo meio panfletário, versando sobre leitura, política, literatura, o primeiro capítulo de um romance folhetim o Romance de Um Estudante, a seção Chronica. O mais interessante fica por conta das ilustrações de Agostini: duas páginas mediais, com oito quadros e a página final, com caricatura e alusões políticas. Ou seja: há material impresso para todos os gostos e todas as necessidades. A sociedade brasileira, até a difusão da imprensa, em meados de século XIX, mantém hábitos culturais formados no âmbito da oralidade, isto é, o leitor brasileiro foi criado nos liames da palavra-espetáculo. O ornato o seduz, a reflexão o afasta. Além de enfeitarem as páginas dos periódicos, as ilustrações guiavam o olhar dos consumidores e desenhavam as marcas identitárias do país e da região em que circulavam. Quero ressaltar, novamente, que nossa imprensa nasceu nacionalista e anti-lusitana, sempre andando de braços dados com a política, fosse para ratificar atos administrativos, fosse para discuti-los e pô-los ao alcance de todos os consumidores. Nesse filão entra o Diabo Coxo. Segundo Marco Morel,...o surgimento da imprensa periódica no Brasil não se deu numa espécie de vazio cultural, mas em meio a uma densa trama de relações e formas de transmissão já existentes, na qual a imprensa se inseria. Ou seja, o periodismo pretendia, também, marcar e ordenar uma cena pública que passava por transformações nas relações de poder que diziam respeito a amplos setores da hierarquia da sociedade, em suas dimensões políticas e sociais. A circulação de palavras faladas, manuscritas ou impressas não se fechava em fronteiras sociais e perpassava amplos setores da sociedade...(morel, 2008, p.25) Pela incorporação dos protocolos de comunicação oral ao impresso, ou seja, pela construção de uma palavra que vadiava entre as marcas dos trânsitos culturais letrados e as estruturações dialógicas típicas das interações cotidianas orais, o nosso periodismo pôde chegar a variados segmentos sociais, definindo os contornos da nacionalidade brasileira e de diferentes grupos de nosso leitorado. O livro, principal tipo de impresso conhecido por aqui, era caro, por conta da necessidade de importação, de difícil manuseio, restrito quase sempre ao clero e a 6
7 alguns magistrados. De certa forma, o livro era um objeto indicador de status social, algo por demais distante do cotidiano da maior parte dos brasileiros. Nesse contexto, o livro não poderia prescindir do jornal. Marco Morel registra: Havia relação estreita dos livros com os jornais periódicos, até porque ambos podem ser definidos como imprensa, num sentido ampliado. Os jornais (também vendidos nas livrarias) custavam entre 40 e 80 réis o exemplar, de acordo com o número de páginas o que os tornava muito mais acessíveis que os livros. E era comum, na época, impressos desse tipo transcreverem (e traduzirem, quando era o caso) longos trechos de livros, tornando-se, assim, veículos de disseminação. O jornal realizava também divulgação(e reinterpretação, com freqüência) dos livros nos anos de 1820 e 1830, antes de se expandir a publicação de volumes em folhetins nos periódicos. Ou seja, mesmo quem não tinha acesso a tais livros, poderia eventualmente lê-los em extratos na imprensa periódica. (MOREL, op. cit., p.37) Essa relação simbiótica entre as duas mídias veiculadoras de conhecimentos e saberes letrados, pode ter amplificado a circulação dos mesmos, principalmente quando associados a ilustrações. No livro, o texto estava geralmente só. No jornal, o texto literário e o não-literário caminhavam de mãos dadas, ilustrações e anúncios ladeavamnos. As linguagens misturavam-se e viabilizavam a diversificação do público nesse capitalismo emergente. No Diabo Coxo, as ilustrações tinham vida própria. No segundo número lançado, o sucesso do jornal vem estampado na primeira página: a divisão entre duas ilustrações permanece, sendo a de cima a mesma, com poucas alterações. A de baixo, que ocupa quase toda a página, tem uma pequena legenda: Recepção que teve o Diabo-Coxo. A imagem acima da legenda mostra um diabrete de chifres e asas, sobre uma nuvem, observando os leitores brigarem por um exemplar do jornal. Antônio Luiz Cagnin afirma que a publicação do referido periódico causou rumor na sociedade paulistana:...os leitores afoitos acotovelavam-se diante da Litografia Alemã para adquirir o número inaugural de 2 de outubro de 1864(foi até dezembro de 1865). Foi um pandemônio! (CAGNIN, op. cit., p.12) Para um país pouco afeito ao impresso, para uma cidade com redes culturais ainda incipientes, como a São Paulo da época, o Diabo Coxo foi um enorme sucesso de vendas. Segundo Lúcia Santaella, a linguagem jornalística insere-se perfeitamente no mundo de consumo capitalista: 7
8 O jornal, por seu lado, após um primeiro momento (suas fases ainda artesanais) de importação de beletrismo literário, foi gradativamente desenvolvendo seu próprio know-how (pós-industrialização) buscando para si uma imagem de objetividade, economia e imparcialidade que o mosaico jornalístico parecia realizar, satisfazendo a necessidade de condensação informativa e fornecendo ao leitor doses cotidianas para sua reserva de acontecimento (ficção). (SANTAELLA,1996, p.53) Enquanto suporte de informação e cultura, o jornal pode suprir as necessidades intelectuais do leitor. Mesmo em sua fase inicial, no Brasil do século XIX, ele poderia ser lido em qualquer lugar, por uma ou por várias pessoas, poderia ser alvo de uma leitura coletiva, alcançando, assim, até mesmo receptores analfabetos poderia ser, também, emprestado, vencendo limites, imposições e dificuldades financeiras. E dentro do fragmentário e sedutor mosaico jornalístico, a reprodução de ilustrações ampliava o leque do consumo, determinando padrões de produção e recepção. A viabilização da leitura como ato social, da leitura por grupos, da audição do lido, da pura visão do impresso, fez do jornal um elemento revolucionário. No entanto, o periodismo brasileiro oitocentista esteve sujeito às pressões do capital, como afirma Ana Luíza Martins:...os periódicos traziam fatura modesta, papel ordinário, dimensões reduzidas, saindo de prelos toscos que se instalaram nas capitais. A impressão de livros não vingou, conforme se conhece da experiência do editor carioca Paula Brito ( ), sucumbindo logo aos reveses mercantis ditados, sobretudo, pelo baixo consumo daquele produto. Logo, no país de fraco poder aquisitivo, o gênero periódico figurou como suporte fundamental do impresso...(martins, op. cit., p.57) Indivíduo de carne e osso, o leitor do dezenove detém o poder de sustentar o comércio cultural: orientar seu gosto, estabelecer modos de habituá-lo a determinado tipo de texto e/ou de publicação eram ações autorais/editoriais importantíssimas. Uma das maneiras de envolver o leitor nas teias textuais é convidá-lo a habitar o espaço do impresso, através das ilustrações e da palavra bem humorada. É o que fazem Luís Gama e Ângelo Agostini: as ilustrações que ficam no meio da folha podem ser vistas como antecessoras de nossas tiras de quadrinhos, muitas têm continuidade. São crônicas visuais bem humoradas da vida brasileira e da cena paulista. E as seções verbais que compõem o periódico em pauta primam pelo tom jocoso com que tratam os mais diferentes assuntos. 8
9 Canevacci, ao estudar a comunicação visual, define a concepção oitocentista de comunicação como mecanicista, resumindo-se à relação entre um emissor e um destinatário, e ressalta a inquietação de que surge o texto visual e a que este provoca. (CANEVACCI, 2001, p.8) As representações visuais, sejam as primitivas ilustrações das folhas do século XIX, sejam as arrojadas cenas cinematográficas do século XXI, definem uma negociação de significados que complexifica e aprofunda o processo comunicativo, envolvendo inclusive a afetividade dos receptores. Diálogo necessário como meio de convencimento e persuasão do leitor oitocentista, habituado a uma cultura oralizada, para quem o impresso era algo ainda muito novo, com menos de um século de vida em solo brasileiro, a ilustração foi uma interessante estratégia dos editores da época, prestando-se ao contato não apenas com o leitor alfabetizado, mas com o enorme contingente de analfabetos, que partilhavam o impresso apenas vendo-o e ouvindo-o. Intimamente ligada a uma espécie de cruzada pedagógica no campo cultural, própria do século XIX, as ilustrações, os desenhos, se apresentam como expediente de sedução do público real. O leitor, em relação aos produtores de bens culturais impressos, é uma alteridade a ser conquistada, e isso com os meios que estiverem disponíveis. Em A ordem dos livros, Roger Chartier ressalta a importância do meio material do impresso para a efetivação de um processo receptivo: Manuscritos ou impressos, os livros são objetos cujas formas comandam, se não a imposição de um sentido ao texto que carregam, ao menos os usos de que podem ser investidos e as apropriações às quais são suscetíveis. As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas, inscritas sobre as páginas de um livro, transmitidas por uma voz que lê ou narra, declamadas num palco de teatro.(chartier, 1994, p.8) O suporte da escrita, então, influi diretamente no processo de recepção. O livro, ao surgir, incrementou uma elitização da leitura: quer voltado para o estudo, quer para o lazer, o livro demanda, em geral, uma leitura particular e silenciosa, a partir da qual o leitor dialoga tão só com o lido. O livro é objeto de status, de determinação do lugar social dos grupos que com ele são habituadas. Em Do Livro À Leitura, Chartier trabalha com a questão da posse do livro e com a questão dos usos do impresso e das formas de apropriação do mesmo, colocando a história do impresso como uma história das práticas culturais a ele associadas: ele 9
10 expõe duas formas de abordagem da história do impresso e da leitura a que enfoca a produção de textos e a que aborda a produção de livros. O que importa para a investigação da leitura via produção de textos são as senhas, explícitas ou implícitas, trabalhadas pelo autor, suas instruções ao leitor, as quais têm duas estratégias, a saber, inscrever no texto convenções sociais ou literárias e empregar técnicas que objetivam a produção de um determinado efeito: Existe aí um primeiro conjunto de dispositivos resultantes da escrita, puramente textuais, desejados pelo autor, que tendem a impor um protocolo de leitura, seja aproximando o leitor a uma maneira de ler que lhe é indicada, seja fazendo agir sobre ele uma mecânica literária que o coloca onde o autor deseja que esteja.(chartier, 1996, p.96) Essas instruções, no entanto, se cruzam com outras, relacionadas ao suporte material da escrita e que envolvem questões tipográficas, como disposição e divisão dos textos, ilustrações etc. Tal trabalho editorial, essa maquinaria externa ao texto, interage com ele, e traz implícito o tipo de leitor a que o impresso se dirige: Os dispositivos tipográficos têm, portanto, tanta importância ou até mais, do que os sinais textuais, pois são eles que dão suportes móveis às possíveis atualizações do texto. Permitem um comércio perpétuo entre textos imóveis e leitores que mudam, traduzindo no impresso as mutações de horizonte de expectativa do público e propondo novas significações além daquelas que o autor pretendia impor a seus primeiros leitores.(chartier, op. cit., p.98) O enfoque do suporte material da escrita abre, portanto, espaço para o social. Os protocolos de leitura implicados no impresso indiciam os possíveis usos que cada grupo social pode fazer dele. Como afirma Márcia Abreu: A leitura não é prática neutra. Ela é campo de disputa, é espaço de poder (ABREU, 2002, p. 15). A percepção da problemática envolvida no consumo do impresso implicou, desde seus começos, um investimento em estratégias capazes de abrir caminhos para que livros, jornais, folhetos, enfim, pudessem circular produtivamente nas sociedades. O periódico Diabo Coxo, publicado em São Paulo, na década de 1860, cumpriu em seu curto tempo de circulação a missão de, através da página jornalística, formar leitores críticos, aproveitando a materialidade do impresso como instrumento. As inovações trazidas pelo Diabo Coxo podem ser resumidas como: baixo custo de 10
11 publicação (pedra, lápis, água e tinta), facilidade de execução, rápida multiplicação e ilustrações. Trata-se de uma folha que se definia como resultante de um pacto do editor com o diabo, dividindo-se em duas partes, que tinham espaço definido e constante: a parte ilustrada, composta pela primeira página, pelas páginas centrais e pela última página; a parte verbal, composta pelas páginas 2, 3, 6 e 7, apresentava matéria textual variada, como já apontei anteriormente. Ao abrir a publicação com a ilustração, os editores investiam na sedução de segmentos diferenciados de consumidores. Como o teor tanto das ilustrações, como dos textos, era crítico, pondo em questão as mais variadas instituições, o humor e a ironia fechavam o cerco ao leitor, prendendo-o nas malhas do impresso. Somente a partir do quarto número, surgiram anúncios, que ocuparam parte da página 7, roubando espaço aos textos, mas inserindo o periódico no cambaleante capitalismo que se iniciava no Brasil. As ilustrações de que se utilizou o periódico em foco, casando-se às seções verbais, desenharam o perfil do consumidor desejado pelos editores: o leitor ambicionado pela referida folha deveria conhecer a política nacional e local, deveria preocupar-se com questões de ponta na cena social, e deveria, por fim, ter algumas lascas de cultura, que lhe permitissem entrar no jogo sardônico da ironia construída pelo visual e pelo verbal. Verbais ou visuais, as imagens que circulavam nas folhas da época foram instrumentos de formação e consolidação dos hábitos de consumo dos bens culturais impressos, funcionando, ainda, no sentido de estabelecerem padrões de gosto literário, uma vez que introjetavam na página jornalística, bem mais acessível que a livresca, aquilo que queriam encontrar no público. Os periódicos oitocentistas construíram seu público e o leitorado para a literatura casando ilustrações e textos, mesclando palavra impressa e imagem gráfica. Ilustrações e textos complementavam-se na missão de formar padrões de produção e recepção de bens culturais impressos, na tarefa de desenhar perfis de consumidores críticos e de estabelecer territórios férteis para a circulação do jornal e do livro. A diagramação das páginas também denunciavam uma vocação pedagógica, por parte dos editores: como os prováveis compradores da folha não tinham hábitos de ler e de manusear o impresso, foram utilizados sinais gráficos orientadores do olhar do leitor 11
12 entre as duas colunas de cada página, surgia uma linha fina e completa, que indicava simbolicamente a direção a ser seguida na leitura; entre uma seção e outra, pequenas linhas, simples ou duplas, indicavam a mudança de assunto. Essas estratégias editorias denunciam a preocupação de envolver o leitorado nas teias da página impressa, denunciam uma certa vontade de controlar o processo de apropriação do que era publicado. Martyn Lyons relê Michel de Certeau e afirma: O leitor é um invasor, rastejando pela propriedade de outrem atrás de propósitos nefastos. (LYONS, 1999, p.11) Depreende-se da definição dada que a atividade de leitura seria invasiva, audaciosa, independente. Mais adiante, ele desenvolve a idéia: «...o leitor individual insinua seus significados e objetivos dentro do texto de outrem. Cada leitor individual tem meios silenciosos e invisíveis de subverter a ordem dominante da cultura de consumo.» (LYONS, op. cit., idem) O leitor, sob tal ótica, tem poder sobre o texto que lê, ele negocia silenciosa e sutilmente com os produtores dos bens culturais impressos, usando táticas específicas de apropriação. Para Michel de Certeau, A uma produção racionalizada, expansionista, além de centralizadora, barulhenta e espetacular corresponde outra produção, qualificada de consumo : esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU, 1996, p.39) Se o leitor, conforme a reflexão aqui estabelecida, é quem movimenta o mercado cultural, sua apropriação dos bens culturais impressos pode ser pessoal, ousada, desafiadora. Infere-se, também, que a leitura seria produção e atividade de indivíduos dominados por uma ordem maior, estruturadora das formas e manifestações da escrita. Se se agregar essa reflexão ao estudo do Diabo Coxo, pode-se perceber que seus editores criaram um jogo de poder com as instituições que desconstruíam em sua folha e com seus leitores, desestabilizando suas convicções, suas certezas. Luis Gama e Ângelo Agostini provocaram o leitorado paulistano, convidaram-no a constituir-se e a ver-se como grupo, qualquer que fosse sua atuação social. Na teoria de Michel de Certeau, os leitores só são dominados sob a ótica dos produtores de bens culturais, i.e., dos dominadores, e isso porque aqueles desenvolvem táticas de apropriação que fogem às determinações destes, implícitas no texto e no 12
13 suporte os leitores, fracos a priori, tirariam partido dos produtores, seres fortes nessa cadeia alimentar intelectual. O leitorado da época, ouso sugerir, ouve no silêncio da ilustração e das matérias publicadas no Diabo Coxo as histórias que protagoniza, direta ou indiretamente, em seu cotidiano. A dominação desses editores corajosos parece ter viabilizado a formação de um público nacionalista e crítico, capaz de questionar a própria relação de dominação. Referências bibliográficas: ABREU, Márcia. Prefácios: Percursos da Leitura. Em.: (org.). Leitura, história e história da leitura. Campinas, SP: Mercado das Letras, Associação de Leitura do Brasil; São Paulo: FAPESP, CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual. Tradução de Alba Olmi. Rio de Janeiro: DP&A, CAGNIN, Antonio Luiz. Foi o Diabo!. Em.: GAMA, Luís. Diabo Coxo. Ed. Facsimilar. São Paulo: EdUSP, 2005.p CHARTIER, Roger. A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVII. Tradução de Mary Del Priore. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. Em: CHARTIER, Roger (org.). Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 2 ed. Petrópolis, Vozes, p. GAMA, Luís. Diabo Coxo. Ed. Fac-similar. São Paulo: EdUSP, LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina. A formação da leitura no Brasil. São Paulo: Ática, LYONS, Martyn. A História da Leitura de Gutenberg a Bill Gates. Em.: e LEAHY, Cyana. A palavra impressa: histórias da leitura no século XIX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, MARTINS, Ana Luíza. Imprensa em Tempos de Império. Em: MARTINS, Ana Luíza e DE LUCA, Tânia Regina. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, p
14 MOREL, Marco. Os Primeiros Passos da Palavra Impressa. Em: MARTINS, Ana Luíza e DE LUCA, Tânia Regina. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, p PINA, Patrícia Kátia da Costa. Literatura e jornalismo no oitocentos brasileiro. Ilhéus: EDITUS, SANTAELLA, Lúcia. Cultura das mídias. 2 ed. São Paulo: Experimento, ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a literatura medieval. Tradução de Amálio Pinheiro e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras,
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