Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder. Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008
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- João Estrela Imperial
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1 Fazendo Gênero 8 - Corpo, Violência e Poder Florianópolis, de 25 a 28 de agosto de 2008 A identidade feminina no surf em Florianópolis: o processo de empoderamento Roberto Milton Brasil Vieira 1 (Instituto Estadual de Educação) Palavras-chave: Gênero; corpo; surf feminino ST 07 - Defesa de direitos, poder e eqüidade No século XX, as mulheres brasileiras, gradativamente, conquistaram o espaço público, como profissionais, participantes de movimentos sociais e da vida fora de casa em geral. Ao mesmo tempo, concepções normatizadas sobre a feminilidade continuaram exercendo influência muito grande, contribuindo para a limitação da prática esportiva das mulheres. De acordo com Carla Bassanezi, as formas hegemônicas de representação das mulheres enfatizavam ainda 'papéis tradicionais', ou seja, a identificação das mulheres com a família, o casamento e a domesticidade, 2 indo inclusive contra a corrente da gradativa abertura do espaço público, principalmente por meio do trabalho assalariado, para um crescente contingente de mulheres que precisava ou desejava acesso maior ao mesmo. Em concordância com essa análise, no âmbito da prática corporal prevaleciam as restrições. Entre 1941 e 1975 vigorava o Decreto-Lei 3.199, que estabelecia as bases da organização dos esportes no Brasil e incluía um artigo que colocava que "às mulheres não se permitirá à prática de desportos incompatíveis com as condições da sua natureza". 3 Na atualidade, o mundo esportivo tem, em parte, incorporado a luta das mulheres para se apropriarem de espaços existentes ou para criar novos espaços. Desta forma, este artigo procura tematizar uma das questões que se destacam na contemporaneidade do surf em Florianópolis e a abordagem que dele fazem: a questão de gênero. A cidade conta com atletas masculinos representando-a em campeonatos mundiais, mas foi uma mulher, Jaqueline Silva, quem alcançou o vice-campeonato mundial, vencendo por duas vezes consecutivas a etapa do circuito WQS (World Qualifying Series). 4 Em entrevistas realizadas com praticantes de surf do sexo feminino da cidade de Florianópolis 5, foi possível perceber a conscientização das conquistas realizadas pelas mulheres neste esporte, além da percepção do universo do surf como um espaço que pode legitimar outras conquistas com visibilidade social. Em 2002, Jaqueline Silva, catarinense natural da Barra da Lagoa, foi a primeira mulher brasileira a conquistar o título de campeã mundial no circuito profissional de surf,
2 2 lugar ainda não alcançado pelos homens surfistas brasileiros. Desta maneira, passou a integrar a elite das dezesseis melhores surfistas do mundo fazendo que o Brasil obtivesse sua melhor colocação no surf. A capital de Santa Catarina possui um dos melhores circuitos profissionais do Brasil e o mais forte circuito amador, além de sediar duas etapas do tour mundial. Desta maneira, muitos surfistas passaram a freqüentar o Estado atrás de suas praias, fazendo do esporte, um dos principais focos de atração turística. E além do turismo, outros negócios ligados ao surf, como roupas, equipamentos, serviços, campeonatos e publicações especializadas passaram a ter impacto positivo na economia local, gerando receita e empregos o que fez Florianópolis merecer o título da capital brasileira do surf. Desta maneira, é interessante observar a forte participação de Jacqueline Silva na construção da identidade de Florianópolis como capital brasileira do surf e ponto turístico internacional, à medida que, com sua atuação em campeonatos mundiais deu visibilidade à capital do Estado de Santa Catarina. Porém, a presença das mulheres neste esporte ainda é considerada rara, causando certo estranhamento manifestado pela incredulidade acerca da capacidade de sua performance. Assim, quando a história do surf em Florianópolis é tematizada pela mídia, são os campeões masculinos que normalmente são lembrados. Por isso, o objetivo deste trabalho é chamar atenção para os conflitos de gênero percebidos nas representações e identidades construídas no cenário surf desta cidade. O surf feminino só foi reconhecido em Florianópolis na década de 1990, com Jacqueline Silva, mas as mulheres sempre estiveram presentes na história deste esporte. No título do primeiro campeonato de surf realizado nesta cidade, na década de 1970, Rock, Surf & Brotos 6, é possível perceber que as mulheres, os brotos - sempre marcaram presença nas praias como expectadoras ou namoradas dos surfistas. No entanto, estavam em último lugar, na mesma categoria que a música e o esporte: diversão. No surf dos anos 1970, o sujeito era o homem jovem, aquele que iria curtir o rock, o surf e os brotos. A prática deste esporte era considerada pelas famílias como inadequada para uma mulher, devido ao risco de vida a que são expostas e ao desenvolvimento acentuado da musculatura, resultante da intensa prática que este esporte exige. Ou seja, ao corpo da mulher, suas formas, gestos, performance no mar, foram associados juízos de valor de uma sociedade que simbolicamente compreende o feminino como fragilidade, emotividade, passividade, sensibilidade, medo, covardia. 7 Aqui é possível perceber as composições de gênero determinando os valores e modelos do corpo
3 3 sexuado, suas possibilidades e aptidões, e criando paradigmas que tendem a homogeneizar o comportamento feminino. Essa noção de que o homem tem mais coragem, e por isso têm melhor desempenho no surf, está de acordo com o que Linda Nicholson chama de "fatos da biologia, aonde desde as primeiras sistematizações modernas vem atribuindo funções e delimitando destinos sociais de homens e mulheres com base numa noção de eu fisiológico como um dado no qual características específicas são sobrepostas 8. Thomas Laqueur fez sucessivas investigações para mostrar que, entre o final do século XVIII e o começo do século XIX, as significativas mudanças sócio-políticas o corridas no Ocidente produziram um contexto favorável (senão imperativo) à emergência de um novo modelo médico para interpretar as diferenças de sexo, modelo esse que não pode ser considerado resultado apenas dos avanços tecnológicos da época. O autor está convencido de que, mesmo portadora de contradições, essa reinterpretação da biologia reprodutiva feminina foi convocada para resolver também problemas ideológicos. Constatando que não se tratava apenas de utilizar a biologia para subestimar as mulheres, o autor conclui que partes do corpo e das fisiologias masculina e feminina passaram a ser desenhadas e vistas através da lente ideológica que lhes dava a forma. 9 Assim, apesar da crença que leva alguns cientistas naturais a acreditar que suas proposições são um espelho da natureza, elas na verdade refletem e muito, sua cultura; não são produzidas no vácuo. Assim, questionar a aparente naturalidade desta premissa biológica no cenário surf de Florianópolis ajuda a entender de que forma as relações de gênero vão tomando corpo e ordenando a movimentação em espaços físicos desta natureza. Vale destacar, que a formação física de mulheres e homens é diferenciada por uma relação de forças; às mulheres cabem exercícios com menor duração e esforço, e aos homens um universo cada vez mais normatizado e diferenciado do esporte. Os discursos tendem a definir os corpos femininos em relação aos masculinos, identificando os homens com o esporte como uma questão inata. O controle social do comportamento é exercido através de micropoderes sobre o corpo das mulheres 10, onde ter um corpo com massa muscular desenvolvida como um homem é algo que sofre restrições sociais e surfar como um homem é um elogio ao seu desempenho no mar. O que se pode observar através das entrevistas é que fica ordenada uma negociação onde a ligação da mulher com o surf seja mediada pela indústria de consumo e pelo surfwear, ou no máximo como uma atividade de lazer e descanso.
4 4 A posição que a mulher ocupava no cenário surf nos anos 1990 nos leva a refletir sobre a questão do corpo. O foco na corporalidade pode ser estendido para uma série de fenômenos contemporâneos cuja investigação colocou literalmente o corpo no centro da produção acadêmica mais recente. Desta maneira, entre os estudiosos do corpo moderno, Michel Foucault dedicou parte de sua obra a identificar os mecanismos dessa objetificação do corpo. Ele descreve a constituição da subjetividade moderna como um processo gradativo de disciplinamento dos corpos, através de uma tecnologia política do corpo 11 e de uma microfísica do poder que envolve um conjunto de técnicas, processos e disposições que submetem o corpo, tornando-o ao mesmo tempo objeto de um saber. Para Foucault, essa tecnologia política, que inclui formas de vigilância e de olhar sobre o corpo; saberes e discursos sobre a sexualidade (como a medicina e a psiquiatria); mecanismos disciplinadores, de sansão, punição e de classificação, tem como objetivo reduzir a força política do corpo 12 e aumentar a sua utilidade, constituir o indivíduo disciplinar. Nesse sentido, não são os sujeitos que produzem saber, controle, normas e olhares que produzem sujeitos disciplinados; é a disciplina que fabrica indivíduos. Desta maneira, de acordo com Joan Scott, adoto neste trabalho um conceito de gênero relacional, onde o gênero é visto como uma categoria criada para analisar o discurso sobre as diferenças sexuais construído, opondo-se ao determinismo biológico implícito no uso de termos como sexo ou diferença sexual, propondo uma pesquisa onde mulheres e homens sejam definidos reciprocamente, não podendo ser estudados totalmente em separado. Para a autora, homem e mulher são categorias vazias e transcendentes. Vazias, porque não têm nenhum significado último, transcendente. Transbordantes, porque mesmo quando parecem estar fixadas, ainda contém dentro delas definições alternativas, negadas ou suprimidas. Judith Butler faz uma análise fundamental para essa abordagem ao refletir sobre a famosa frase de Simone de Beauvoir, Não se nasce, mas torna-se uma mulher. O que Butler propõe é pensar a construção do gênero, pois não se nasce, mas torna-se um gênero. Tornar-se um gênero é um processo impulsivo, embora cauteloso, de interpretar uma realidade plena de sanções, tabus e prescrições. [...] Escolher um gênero é interpretar normas de gênero recebidas de um modo que as reproduzem e organizem de novo. A relação feita por Butler pode ser utilizada também em relação aos homens, não se nasce um homem, torna-se um. Miguel Vale de Almeida coloca essa idéia em Senhores de Si. Segundo ele: a masculinidade é um processo construído, frágil, vigiado, como forma de ascendência social que pretende ser 13. A construção da masculinidade, para Almeida,
5 5 ocorre em muitos espaços: nas divisões do trabalho, na socialização através da escola e da família, e também no domínio das relações de pessoa, corpo, das emoções e sentimento 14. De uma forma geral o esporte costuma ser visto como um espaço de sociabilidade masculina ocupado por homens, quanto mais uma prática esportiva como o surf que é considerada radical, ou seja, que requer o enfrentamento de riscos para a segurança e integridade corporais no enfrentamento do mar. No entanto, desde o final da década de 1990, é possível perceber esta questão sendo discutida e questionada, dada à modificação do comportamento social na percepção e construção da corporalidade, não apenas em Florianópolis, mas também em todo o Brasil e no mundo com o atual incentivo que a mídia e a própria indústria esportiva tem conferido à presença das mulheres neste espaço. Durante muito tempo o esporte era uma esfera de atividade social dos e para os homens. Nesse contexto, o mesmo conceito de 'mulher atleta' carregava-se de um conteúdo de transgressão, e pode-se argumentar que as mulheres que se afirmavam como atletas - particularmente as profissionais - estavam contribuindo para a desestabilização das definições vigentes da feminilidade, e talvez mesmo para o 'empoderamento' das mulheres. Mas o que acontece hoje é que de certa forma a participação esportiva das mulheres ganhou legitimidade, e há uma grande produção sobre a atleta que se insere no cenário maior da produção discursiva midiática e na sua política 'disciplinar' de gênero. 1 Professor de História do Instituto Estadual de Educação, graduado pela Universidade Federal de Santa Catarina. 2 BASSANEZI, Carla. Virando as páginas, revendo as mulheres: revistas femininas e relações homemmulher Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p ROSEMBERG, Fúlvia. "A educação física, os esportes e as mulheres: balanço da bibliografia brasileira". In: ROMERO, Elaine (Org.). Corpo, mulher e sociedade. Campinas: Papirus, p WQS (World Qualifying Series), campeonato de acesso ao WCT (World Championship Tour) - a primeira divisão do surfe mundial, que reúne os 44 melhores atletas do mundo. Ver: BRASILVIEIRA. R. M. Op. Cit. 5 Entrevistas realizadas com homens e mulheres surfistas que vivenciaram a prática deste esporte na cidade de Florianópolis entre 1990 e 2000, para o trabalho intitulado: Nas ondas do surf: o drop feminino. 6 Rock, Surf & Brotos - o primeiro campeonato de surf de Florianópolis, realizado em 1976, na praia da Joaquina, pelos colunistas Cacau Menezes e Ricardinho Machado. Ver: Página visitada em 21/07/ BRASIL VIEIRA, Roberto Milton. Nas ondas do surf: o drop feminino. ( ). Florianópolis: UFSC (Trabalho de Conclusão de Curso de História), NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. In: Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, p LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo. Corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará, FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, p Idem. p. 21
6 6 13 ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de Si. Uma reflexão antropológica da masculinidade. Lisboa: Fim de Século, p Idem. p. 59.
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