DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO
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- Luiz Guilherme Chaves Alencastre
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2 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO
3 Governo do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin Governador do Estado Elival da Silva Ramos Procurador Geral do Estado José do Carmo Mendes Júnior Procurador Geral do Estado Adjunto Sylvia Monlevade Calmon de Britto Procuradora do Estado Chefe de Gabinete Dionísio Stucchi Corregedor Geral Raquel Freitas de Souza Ouvidora Geral Ana Maria Oliveira Toledo Rinaldi Subprocuradora Geral do Estado Área da Consultoria Mariangela Sarrubbo Subprocuradora Geral do Estado Área da Assistência Judiciária José Renato Ferreira Pires Subprocurador Geral do Estado Área do Contencioso Maria Clara Gozzoli Procuradora do Estado Chefe do Centro de Estudos Fabiano Brandão Majorana e Marcelo Augusto Fabri de Carvalho Coordenadores do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE
4 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO
5 Governo do Estado de São Paulo Procuradoria Geral do Estado de São Paulo Grupo de Trabalho de Direitos Humanos Direitos Humanos no Cotidiano Jurídico Centro de Estudos 2004
6 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO CENTRO DE ESTUDOS PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SÃO PAULO Rua Pamplona, 227-3º e 4º andares - Bela Vista São Paulo - SP - Brasil Telefone: (011) Fax: (011) Home page: pgecestudos@pge.sp.gov.br Procuradora do Estado Chefe do Centro de Estudos: Maria Clara Gozzoli. Assessoria: Raquel Freitas de Souza, Maria Aparecida Medina Fecchio, Norberto Oya e Marialice Dias Gonçalves. Serviços de Divulgação: Marialice Dias Gonçalves (Coordenação Editorial) e Celso de Almeida Braga Mitaini (Distribuição). Comissão Organizadora desta obra: Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da PGE, coordenado por Fabiano Brandão Majorana e Marcelo Augusto Fabri de Carvalho. Tiragem: exemplares. SÃO PAULO (ESTADO). Procuradoria Geral do Estado. Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Direitos humanos no cotidiano jurídico. São Paulo: Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, p. (Série Estudos n. 14) 1. Direitos Humanos Brasil. I - Título. CDU (81) Capa: Uma Azinhaga Perto de Arles, de Van Gogh Arles, Maio de 1888 Óleo sobre tela, 61 x 50 cm Kiel, Pommern Foundation Produção Gráfica e Fotolitos: Quality Planejamento Visual Ltda. - Tel.: Impressão: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo - IMESP - Tel.:
7 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO... 9 Elival da Silva Ramos INTRODUÇÃO Marcelo Augusto Fabri de Carvalho e Fabiano Brandão Majorana O PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS E SEU IMPACTO NO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO Mônica de Melo A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS Flávia Piovesan e Daniela Ikawa A VIOLÊNCIA PRATICADA CONTRA A MULHER IDOSA E OS DIREITOS HUMANOS Mônica Bezerra de Araújo Lindoso LEGALIDADE E TRANSAÇÃO PENAL Gustavo Octaviano Diniz Junqueira O SIGILO BANCÁRIO E AUTORIDADE FISCAL CONSTITUCIONALIDADE DA LEI COMPLEMENTAR N. 105/ Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira A PRISÃO DO INFIEL DEPOSITÁRIO E OS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS BREVE CRÔNICA DE UMA CLARA INCOMPATIBILIDADE Wagner Giron De La Torre DIREITOS HUMANOS ASPECTOS ÉTICOS E JURÍDICOS PERTINENTES À SITUAÇÃO DOS PORTADORES DE AIDS Ana Cecília Rodrigues Medeiros PROTEÇÃO JURÍDICA AOS PORTADORES DO HIV E ÀS PESSOAS QUE VIVEM COM AIDS ASPECTOS TRABALHISTAS, PREVIDENCIÁRIOS E ASSISTENCIAIS Renato Campos Pinto de Vitto
8 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO OBRIGATORIEDADE DA GENOTIPAGEM PARA HIV: ENSEJO À CONSTATAÇÃO DA PROXIMIDADE DOS DIREITOS CIVIS E SOCIAIS Fabiano Brandão Majorana A CREDIBILIDADE DO PODER JUDICIÁRIO André Brawerman DIREITOS HUMANOS E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL INTERNACIONAL Flávia Piovesan JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E GARANTISMO JURÍDICO: FUNDAMENTOS PARA UMA FILTRAGEM HERMENÊUTICO- CONSTITUCIONAL DO DIREITO PENAL José dos Santos de Oliveira
9 APRESENTAÇÃO É indiscutível a importância que o tema dos direitos fundamentais da pessoa humana assumiu no âmbito interno dos Estados contemporâneos e, mesmo a partir da metade do século passado, no âmbito da comunidade internacional. Na medida em que se consolidou a idéia de que é esse um dos pilares do sistema político democrático, passaram os Estados estruturados por Constituições documentais e rígidas a contemplar, necessariamente, um rol de direitos e garantias fundamentais, tendo mesmo a Constituição brasileira de 5 de outubro de 1988 inserido as linhas mestras desse sistema de direitos e garantias no, assim denominado, núcleo irreformável da Constituição, imune à ação do próprio poder constituinte derivado de revisão. De outra parte, no plano internacional, proliferaram nas últimas décadas tratados e convenções sobre os direitos dessa natureza, cuja importância e generalização permitiram que se disseminasse a instituição de tribunais internacionais destinados à sua proteção. Por se tratar de direitos, ainda que de importância ímpar, participam da projeção tridimensional do fenômeno jurídico nos planos normativo, axiológico e factual. No Brasil, contudo, talvez na linha da tradição de nosso pensamento jurídico, tem predominado acerca da temática dos direitos fundamentais o enfoque filosófico-normativo, que se reflete, vez por outra, em discursos totalmente descompromissados com a lógica do razoável, que se impõe a partir de dados de natureza fática. Tais discursos servem apenas para alimentar proposições divorciadas da realidade em que se estabelecem as relações sociais, incutindo no homem comum a falsa percepção de que o generoso ideário dos direitos fundamentais é algo que não lhe diz respeito, servindo apenas para alimentar inflamados discursos de oposição sistemática a quem se dedica, efetivamente, a melhorar as condições de vida da população.
10 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO Ao ensejo de reflexões como esta, surgiu no Núcleo Temático de Estudos e Pesquisas em Direitos Humanos do Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado a idéia de reunir trabalhos jurídicos voltados à promoção dos direitos fundamentais, com um enfoque pragmático-normativo, sem incidir, entretanto, no equívoco de ignorar a riquíssima dimensão axiológica daqueles, que permite uma abordagem crítica de sua vivência concreta no ordenamento jurídico brasileiro. Não se renega aqui o acervo importante de publicações que a Procuradoria Geral do Estado já produziu sobre a matéria. Ao contrário, se introduz uma vertente nova e complementar que, certamente, contribuirá para o adensamento da reflexão institucional sobre o assunto. Elival da Silva Ramos Procurador Geral do Estado
11 INTRODUÇÃO Esta singela apresentação desta obra editada pelo Centro de Estudos da PGE versando sobre direitos humanos temática já característica da recente história institucional da PGE tem por escopo apresentar os critérios que orientaram seus organizadores na seleção dos artigos que vão a seguir publicados, bem como o porquê do enfoque eleito. O que se buscou, antes de tudo, foi trazer o discurso dos direitos humanos para o cotidiano do cidadão comum, suas implicações nos seus afazeres diários, mostrando o quanto passa despercebido e conseqüentemente subvalorizado do modo de pensar do cidadão comum o discurso humanista. Tanto que ordinariamente o assunto é imediatamente associado ao cuidado de observância dos direitos mínimos dos "bandidos", referindo-se àqueles encarcerados nas prisões brasileiras. Nosso objetivo primeiro é, portanto, tentar promover uma desvinculação dessa visão enviesada e retrógrada que permeia vastos setores do extrato social, sobretudo em tempos tão bicudos, em que onde grassa a violência urbana e as supostas "soluções definitivas" e fáceis são brandidas tonitroantemente pela mídia e imediatamente seguidas pelo Congresso Nacional "caixa de ressonância" da sociedade ao editar leis e atos normativos desprovidos de séria e racional meditação para lidar com a intrincada questão. Tal enfoque que se tentou trazer à novel publicação do Centro de Estudos vem coincidentemente no ano em que ocorreu o fatal atentado em Bagdá contra o brasileiro Sérgio Vieira de Melo, que desde o ano passado era o Alto Comissário da ONU para Direitos Humanos até se afastar dessa função para assumir seu posto de chefia da missão da ONU no Iraque e que tinha exatamente essa preocupação de trazer o discurso dos direitos humanos para o cotidiano dos cidadãos. Tanto isso é verdade que, quando de sua posse no Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos, tratou de estabelecer contatos com o
12 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO dirigente da OMC, o tailandês Supachai Panitchipakdi, para criar mecanismos de ação e pressão diplomática no âmbito desse organismo multilateral, a fim de promover o comércio como fator de desenvolvimento das nações subdesenvolvidas e em desenvolvimento, como forma de inclusão social e, em última análise, promoção dos direitos humanos nas sociedades que viessem a ser beneficiadas. Tudo isso a despeito dos protestos de ONGs que desejavam que a retórica dos direitos humanos permanecesse confinada nas passeatas e gritas de palavras de ordem fáceis, associando seu novo enfoque que, é bom que se diga, não prescindia do anterior à "política imperialista ianque" (quando, na verdade, era muito mais uma política pró-nações que precisam de mecanismos multilaterais de ação para se fazerem ouvir do que pró-eua que agem unilateralmente, como se viu). Fica, portanto, nossa homenagem a esse brasileiro que, no âmbito internacional, preocupou-se em implementar essa nova visão do discurso dos direitos humanos, como fonte inspiradora de nosso modesto objetivo no âmbito dessa instituição e na nossa sociedade paulista. Todavia, esse viés dos estudos apresentados não refoge ao tema, e não há perda de interesse dos leitores operadores do direito, para quem a obra foi elaborada, vindicando a máxima proliferação do discurso dos direitos humanos. No ensejo, homenageamos nossos colegas antecessores, grandes representantes da temática, dedicados juristas e estudiosos, Doutor Carlos Weis e Doutora Flávia Piovesan, que trouxeram definitivamente os direitos humanos ao seio da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Em continuidade ao monumental labor anterior desses e de muitos outros componentes do Grupo de Trabalho de Direitos Humanos, atualmente configurado em Núcleo Temático de Direitos Humanos cumprindo um firme propósito de não esmorecer diante das vicissitudes da lida diária, apresentamos este Direitos humanos no cotidiano jurídico. Marcelo Augusto Fabri de Carvalho e Fabiano Brandão Majorana Coordenadores do Núcleo Temático de Direitos Humanos da PGE
13 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS E SEU IMPACTO NO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO Mônica de Melo 1 Sumário: 1 - Introdução; 2 - O princípio da igualdade na Constituição Federal de 1988; 3 - O impacto do princípio da igualdade no Código Civil de 1916: ruptura ou manutenção? 4 - O novo Código Civil, sob a perspectiva da igualdade entre mulheres e homens; 5 - Conclusão. 1. Procuradora do Estado de São Paulo. Mestre e Professora de Direito Constitucional da PUC/SP. Diretora do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Coordenadora da ONG Oficina dos Direitos da Mulher.
14 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO
15 1. INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo demonstrar que o novo Código Civil, Lei n , de 10 de janeiro de 2002, não avança substancialmente no que diz respeito ao princípio da igualdade entre mulheres e homens, mas, por outro lado, sepulta, definitivamente, o modelo patriarcal e assimétrico do Código Civil de 1916, implementando em seus dispositivos o princípio constitucional da igualdade, nas relações entre os gêneros. Essa contribuição cinge-se a uma primeira análise do novo Código Civil, a partir de uma perspectiva de gênero. Mas o que é gênero? O termo gênero é bastante amplo, empregado com diferentes sentidos. Pode significar espécie, como quando falamos do gênero humano. Outras vezes, é empregado com o sentido de tipo. É o que ocorre quando usamos as seguintes expressões: Que gênero de gente é essa? Que gênero de música? Tem a idéia de estilo ou a natureza de um assunto da área das artes, quando se fala em gênero literário ou gênero dramático, entre outros tantos. 2 Na gramática, gênero é empregado como uma categoria que permite flexionar palavras, agrupando-as conforme os sexos masculino, feminino ou neutro. A sociologia, a antropologia e outras ciências humanas lançaram mão da categoria gênero para demonstrar e sistematizar as desigualdades sócio-culturais existentes entre mulheres e homens, que repercutem na esfera da vida pública e privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, criando pólos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando-as invisíveis e dependentes. 2. As definições do termo gênero neste trabalho foram extraídas do livro: Mônica de Melo; Maria Amélia Almeida Teles, O que é violência contra a mulher?, São Paulo: Brasiliense, 2002, (Coleção Primeiros Passos).
16 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO Muito se tem feito para mudar essa situação. Houve êxitos importantes. Desenvolveu-se por toda parte a luta pela igualdade de direitos, a visibilidade da situação das mulheres e as proposituras de ações afirmativas que garantem oportunidades e condições iguais. São conquistas representadas por tratados, declarações internacionais, assinados praticamente em todos os países do mundo e que representam instrumentos de desenvolvimento e progresso para a sociedade. Mesmo com esses avanços, há desigualdades que se perpetuam ao longo dos tempos. As mulheres conquistaram o direito de voto graças ao movimento das sufragistas, no início do século passado, mas ainda são pouco representadas nos espaços de poder político, seja no executivo, legislativo ou judiciário. Outro exemplo: elas têm garantido seu ingresso no sistema educacional, mas vivem uma situação de desigualdade no trabalho, pois recebem salários mais baixos e enfrentam dificuldades maiores para galgar os postos de chefia. A sociedade humana, onde ainda prevalece a ideologia patriarcal (que estabelece a supremacia masculina) tem ainda impedido de todas as formas o pleno desenvolvimento das mulheres, discriminando-as de diferentes maneiras. Portanto, o termo gênero pode ser entendido como um instrumento, como uma lente de aumento que facilita a percepção das desigualdades sociais e econômicas entre mulheres e homens, devido à discriminação histórica contra as mulheres. Oferece possibilidades mais amplas de estudo sobre a mulher, percebendo-a em sua dimensão relacional com os homens e o poder. Com o uso desse instrumento, pode-se analisar o fenômeno da discriminação sexual e suas imbricações relativas à classe social, às questões étnico-raciais, intergeracionais e de orientação sexual. O termo gênero não pode ser confundido com sexo. Este, na maioria das vezes, descreve características e diferenças biológicas, enfatiza aspectos da anatomia e fisiologia dos organismos pertencentes ao sexo
17 masculino e feminino. As diferenças sexuais assim descritas são dadas pela natureza. Mulheres e homens pertencem a sexos diferentes. O gênero, no entanto, aborda diferenças sócio-culturais existentes entre os sexos masculino e feminino, que se traduzem em desigualdades econômicas e políticas, colocando as mulheres em posição inferior aos homens, nas diferentes áreas da vida humana. O estudo das ciências humanas, com o uso da categoria gênero, não só tem revelado a situação desigual entre mulheres e homens, como também, tem mostrado que a desigualdade não é natural e pode, portanto, ser transformada em condições igualitárias, promovendo relações democráticas entre os sexos. Ao longo desta reflexão, será possível observar que as relações de gênero presentes no Código Civil de 1916 espelham um modelo desigual e assimétrico, oriundo da adoção de um modelo patriarcal das relações humanas, no qual a mulher se vê inferiorizada e subordinada em sua condição. Essa desigualdade se torna patente, principalmente, no âmbito do casamento e das relações familiares. A Constituição Federal de 1988, ao tratar da igualdade como um dos princípios fundamentais, estruturantes de nosso Estado Democrático de Direito, rompe com os parâmetros de desigualdade entre mulheres e homens presentes no Código Civil de Porém, nossa cultura jurídica, ainda de pouco prestígio e valorização da ordem constitucional, precisou da revogação expressa e de norma de mesma hierarquia, para finalmente jogar as últimas cinzas no modelo anterior, que estava absolutamente comprometido em face da atual Constituição. Este trabalho vem demonstrar que o novo Código Civil busca implementar o princípio da igualdade nas relações humanas por ele normatizadas, o que já podemos considerar extremamente positivo, embora as críticas ao novo Código apontem alguns retrocessos ou ainda timidez no trato das questões mais atuais.
18 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO 2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é a redução das desigualdades sociais (art. 3º, II da CF/1988). A igualdade de todos prevista no caput do artigo 5º da Constituição nasce ao lado da obrigatoriedade da redução das desigualdades. Ou seja, não basta que o Estado se abstenha de discriminar, de tratar desigualmente, mas faz-se necessário que ele atue positivamente no sentido da redução das desigualdades sociais. Portanto a redução das desigualdades nasce como fundamento da República Federativa do Brasil, o que significa considerá-la autêntico princípio constitucional. E, dentro do sistema constitucional brasileiro, o que significa ser princípio constitucional? Seguindo as lições de Canotilho 3, o princípio da igualdade e da redução das desigualdades são o que ele denomina de princípios constitucionalmente estruturantes. São princípios que designam o núcleo essencial da Constituição, garantindo a ela uma determinada identidade e estrutura. Possui duas dimensões: (1) uma dimensão constitutiva, dado que os princípios, eles mesmos, na sua fundamentalidade principial, exprimem, indicam, denotam ou constituem uma compreensão global da ordem constitucional; (2) uma dimensão declarativa, pois estes princípios assumem, muitas vezes, a natureza de superconceitos, de vocábulos designantes, utilizados para exprimir a soma de outros subprincípios e de concretizações normativas constitucionalmente plasmadas. 3. José Joaquim Gomes Canotilho, Direito constitucional, 5. ed. refundida e aum., Coimbra: Almedina, 1992, p. 349 e ss.
19 Os ensinamentos de Canotilho são plenamente aplicáveis ao regime constitucional brasileiro, na medida que nossos princípios constitucionais, por força da própria Constituição, da doutrina e da jurisprudência, adquiriram ao longo do tempo aquelas características: fundam o sistema e agregam outros subprincípios. Dessa forma, o princípio da igualdade no direito brasileiro estrutura nosso sistema constitucional, espraiando-se por todo ele. Concordamos também com o estatuído por Paulo de Barros Carvalho 4, ao tratar dos princípios e ao assinalar que a ordem jurídica brasileira é constituída como um sistema de normas. Nesse sistema, algumas normas são de comportamento, outras de estrutura. As normas de comportamento estão diretamente voltadas para a conduta das pessoas, nas relações de intersubjetividade, já as regras de estrutura estatuem de que modo as regras devem ser criadas, transformadas ou expulsas do sistema. A respeito do que seja princípio, expõe o autor: 5 Princípios são linhas diretivas que informam e iluminam a compreensão de segmentos normativos, imprimindo-lhes um caráter de unidade relativa e servindo de fator de agregação num dado feixe de normas. Exerce o princípio uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras jurídicas que caem sob seu raio de influência e manifestam a força de sua presença. Algumas vezes constam de preceito expresso, logrando o legislador constitucional enunciálos com clareza e determinação. Noutras, porém, ficam subjacentes à dicção do produto legislado, suscitando um esforço indutivo para percebê-los e isolá-los. São os princípios implícitos. A condição de princípio num determinado sistema, e aqui consideramos o termo fundamento, utilizado pelo legislador constituinte, como 4. Curso de direito tributário, 5. ed., São Paulo: Saraiva, Idem, ibidem, 90.
20 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO sinônimo de princípio, confere-lhe a qualidade de paradigma de interpretação de todo o texto constitucional. O fato de determinada norma ser considerada princípio, longe de afetar sua aplicabilidade, por não se tratar de norma de conduta, propicia-lhe uma força dentro do próprio sistema que as normas de conduta desconhecem. Em outro texto, no qual Paulo de Barros Carvalho 6 aprofunda sua doutrina sobre os princípios, acrescenta que os princípios são normas jurídicas carregadas de forte conotação axiológica, que introduzem valores relevantes para o sistema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores da ordem jurídica. Portanto o princípio da igualdade e de redução de desigualdades tornou-se, com a promulgação da Constituição de 1988, verdadeiro princípio constitucional, devendo servir de baliza para todo o sistema, espraiandose pela atividade executiva, legislativa e judiciária. Deve servir de norte para o desempenho das atividades públicas, ou seja, os poderes constituídos devem, por força do novo fundamento, do novo princípio constitucional, orientar-se nas suas condutas, em sua gestão e decisões, pela maior amplitude possível deste princípio. E o fato de o princípio conter toda esta carga axiológica não lhe retira sua índole normativa. Princípio é norma carreando todas as implicações deste fato. Concluindo, o fato é que, com a Constituição Federal de 1988, passamos a ter como norma jurídica constitucional, na categoria de princípio, a redução das desigualdades e a vedação de discriminação. Isso traz diversas implicações, como o de possuir o atributo da obrigatoriedade de cumprimento e de inovação da ordem jurídica. Por ser de natureza constitucional, subordina todas as demais normas do ordenamento e, por fim, por ser princípio, adquire maior relevo ainda, conforme expusemos. 6. O princípio da segurança jurídica, Revista da Associação dos Pós-Graduandos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, n. 3, p. 122, 1993.
21 No caso brasileiro, mais do que um desejo, trata-se de conferir aplicabilidade à Constituição Federal que introduziu, em 1988, em nosso sistema jurídico, o princípio da redução das desigualdades sociais. A Constituição Federal, bem como os principais instrumentos legislativos internacionais, descrevem, quase uniformemente, as formas de discriminação proibidas, a saber, as que dizem respeito à raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou outra, origem nacional, posição econômica e nascimento, bem como qualquer outra condição, afastando-se qualquer tentativa de discriminar por outros critérios. 7 Se os instrumentos internacionais de proteção geral (Declaração Universal dos Direitos dos Homem e os Pactos Internacionais de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e Direitos Civis e Políticos) não trazem definição do que seja discriminação, textos mais modernos cuidaram de cobrir essa lacuna, adotando redações que, dada sua uniformidade, cristalizaram o conceito. A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial define discriminação como toda distinção exclusão, restrição ou preferência (...) que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político, econômico, social, cultural, ou em qualquer outro domínio da vida pública. Mesmo assim, há casos em que o tratamento jurídico diferenciado não constitui discriminação, ainda que se baseie em um dos critérios enumerados nas disposições dos instrumentos internacionais sobre discriminação, o que demonstra a necessidade de interpretação, dada a vagueza dos conceitos. 7. Modernamente, fala-se em não distinção quanto à opção sexual, origem étnica, idade, orientação civil ou deficiências físicas da pessoa, não mencionadas expressamente nos textos citados.
22 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO As soluções adotadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, mencionadas por O Donnel 8, não contribuem para esclarecer o tema, recaindo em evidente tautologia. De fato, ao se afirmar que não haverá, pois, discriminação se uma distinção de tratamento está orientada legitimamente, ou seja, se não conduz a situações contrárias à justiça, à razão ou à natureza das coisas 9, nada mais fez a Corte do que empregar expressões cujo conteúdo, de tão amplo, torna-se vago e impreciso, pouco contribuindo para clarear o tema. O que se observa, mais do que um tratamento conceitual do tema, é uma construção jurisprudencial ou de Direito Positivo calcada em casos concretos, em problemas surgidos da própria aplicação das convenções, diante dos conflitos surgidos pela evolução social. Para melhor compreensão do tema, é necessário diferenciar a discriminação de jure da discriminação de facto. Enquanto a primeira diz respeito ao estabelecimento de diferenças formais na própria legislação, o segundo conceito refere-se à sua aplicação discriminatória, ambas condenadas pela doutrina e jurisprudência. Contribuindo para o melhor entendimento do tema, a Corte Interamericana de Direitos Humanos firmou três elementos para determinar se uma conduta constitui diferenciação ou discriminação, a saber: a) devem ser lícitos os objetivos da norma ou medida que estabelece o tratamento diferenciado; b) a distinção deve estar baseada em desigualdades reais e objetivas entre as pessoas e circunstâncias; e c) deve ser obedecida a proporcionalidade. Tais critérios nos levam à proposta de Celso Antonio Bandeira de Mello para o tema 10, ensinando que o elemento tomado como fator de 8. O Donnel, Protección internacional de los derechos humanos, p. 373 e ss. 9. Idem, ibidem, p Celso Antonio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3. ed., São Paulo: Malheiros, 1997, p. 21.
23 desequiparação deve residir na pessoa, coisa ou situação discriminada, sendo vedada a singularização presente e definitiva do sujeito discriminado. Além disso, deve haver uma correlação lógica abstrata entre o critério de discrímen e a disparidade de tratamento jurídico estabelecido. Por fim, é necessário que se verifique a consonância dessa correlação com os valores e interesses priorizados pela Constituição. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, passou a ser injustificável norma do Código Civil que atenta contra o princípio da igualdade, que veio expressa quando se trata de igualdade dentro da sociedade conjugal (art. 226, 5º ). 3. O IMPACTO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE NO CÓDIGO CIVIL DE 1916: RUPTURA OU MANUTENÇÃO? É consentâneo na doutrina constitucional que a Constituição Federal de 1988 significou uma mudança radical de paradigma jurídico, inaugurando um novo ordenamento jurídico, um novo Estado. A Constituição do Brasil de 1988 significou um importante marco para a transição democrática brasileira. Após um período de vinte anos de governos militares, tivemos em 1984 um expressivo movimento nacional por eleições diretas ( Diretas Já ) 11 que, embora não vitorioso, gerou frutos nos anos seguintes, com o nascimento dos plenários, comitês e movimentos pró-participação popular na Constituinte, em todo o Brasil. No início de 1985, surgiu o Projeto Educação Popular Constituinte, houve o lançamento do Movimento Nacional pela Participação Popular na Constituinte e as pessoas passaram a se articular para garantir sua participação naquele processo 12. Conquista fundamental das diversas organizações envolvidas foram as chamadas emendas populares, incluídas no Regimento 11. Emenda Dante de Oliveira, votada em Sobre todo o processo de formação dos plenários, comitês, movimentos e a participação direta no processo constituinte, ver: Carlos Michiles et alii, Cidadão constituinte: a saga das emendas populares, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
24 DIREITOS HUMANOS NO COTIDIANO JURÍDICO Interno da Constituinte, cuja proposta deveria ser subscrita por, no mínimo, trinta mil eleitores, em lista organizada por, no mínimo, três entidades associativas, legalmente constituídas 13. Foram propostas mais de cem emendas populares. O Regimento ainda previa a possibilidade de apresentação de sugestões e audiências públicas. Reflexos desse processo intensamente participativo permeiam todo o texto de 1988, que consagra no Título I (Dos Princípios Fundamentais), como fundamento do Estado brasileiro, a democracia participativa: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Esse momento de ruptura com o modelo anterior, com a ordem autoritária estabelecida, se fez sentir em todo o ordenamento jurídico. No tocante à igualdade que foi alçada à condição de princípio constitucional, parecia evidente que incompatibilizava a existência de todas as normas discriminatórias relativamente às mulheres presentes no Código Civil de Naquele momento, seria plenamente possível imaginar que, nessa parte, toda a doutrina de direito civil precisaria ser reescrita, já que a Constituição, pela posição hierárquica e de supremacia que ocupa em nosso ordenamento, fazia com que aquelas normas não estivessem recepcionadas. Entretanto, não foi exatamente o que aconteceu. A maior parte dos civilistas se manteve inarredável da letra do Código Civil de 1916, apontando muito timidamente as mudanças trazidas pela Constituição, sem considerar a existência de uma ruptura, de uma revolução nas relações conjugais e familiares assimétricas. Maria Helena Diniz, por exemplo, alterou muito pouco a edição pós- Constituição Federal de 1988 de seu Curso de direito civil, interpretando a Constituição, na parte relativa aos direitos na sociedade conjugal como apenas igualdade no exercício dos direitos e não na titularidade, modificando em quase nada o conteúdo de sua obra, ou seja, continuou 13. Conforme o artigo 24 do Regimento Interno da Assembléia Constituinte.
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