FOCO NA MARCA. Origens históricas do branding
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- Orlando de Sousa Balsemão
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1 FOCO NA MARCA Origens históricas do branding O branding existe, de uma forma ou de outra, há séculos. 1 A motivação original do ato de marcar era possibilitar que artesãos e outros identifi cassem os frutos de seu trabalho de modo que os clientes pudessem reconhecê-los facilmente. A utilização de marcas, ou pelo menos de marcas comerciais, remonta à cerâmica antiga e às marcas dos pedreiros aplicadas a bens fabricados à mão para identificar sua fonte. Utensílios de cerâmica e lâmpadas de argila às vezes eram vendidos longe das ofi cinas onde eram fabricados, e os compradores procuravam os selos de oleiros confiáveis como guia de qualidade. Foram encontradas marcas em porcelana chinesa antiga, em jarros de cerâmica da Grécia e Roma antigas e em mercadorias provenientes da Índia datadas de cerca de 1300 a.c. Na época medieval, a essas marcas juntaram-se as marcas de impressores, as marcas d água sobre papel, as marcas de padeiros e as marcas de várias corporações de artesãos (as guildas). Em alguns casos elas eram usadas para atrair compradores fi éis a determinados fabricantes, mas também foram utilizadas para policiar quem infringia os monopólios das corporações e para identifi car fabricantes de mercadorias de qualidade inferior uma lei inglesa aprovada em 1266 exigia que padeiros aplicassem sua marca em cada pão vendido; assim, se qualquer pão estivesse abaixo do peso, seria possível saber de quem era a culpa. Ourives que trabalhavam com ouro e prata também eram obrigados a marcar as mercadorias que produziam com sua assinatura ou símbolo pessoal e também com um sinal indicando a qualidade do metal. Em 1597, dois ourives condenados por terem aplicado marcas falsas em seus produtos foram pregados ao pelourinho pelas orelhas. Punições similarmente severas eram decretadas para aqueles que falsifi cavam as marcas de outros artesãos. Quando os europeus começaram a se estabelecer na América do Norte, levaram com eles a convenção e a prática de utilizar marcas. Os fabricantes de remédios patenteados e produtores de tabaco foram os pioneiros do branding nos Estados Unidos. Poções medicinais como Swaim s Panacea (panacéia de Swaim), Fahnestock s Vermifuge (vermífugo de Fahnestock), Perry Davis Vegetable Pain Killer (analgésico vegetal de Perry Davis) tornaram-se bem conhecidas do público antes da Guerra Civil. Medicamentos patenteados eram embalados em pequenas garrafas e, por não serem considerados uma necessidade, eram vigorosamente promovidos. Para influenciar ainda mais a escolha dos consumidores nas lojas, os fabricantes imprimiam rótulos elaborados e característicos, muitas vezes apresentando seu próprio retrato no centro. Os produtores de tabaco americanos já exportavam sua produção desde o início de No início de 1800, eles tinham fardos de tabaco embalados com rótulos como Smith s Plug e Brown e Black s Twist. Durante a década de 1850, muitos produtores de tabaco reconheceram que nomes mais criativos como Cantaloupe, Rock Candy, Wedding Cake e Lone Jack eram úteis para vender seus produtos. Na década de 1860, eles começaram a vender suas mercadorias acondicionadas em saquinhos, diretamente aos consumidores. Embalagens de aparência atraente também eram consideradas importantes e, como resultado, foram desenhados símbolos, fi guras e elementos decorativos nos rótulos. A história do branding nos Estados Unidos, desde 1860 até seus desenvolvimentos mais modernos de 1985 em diante, pode ser dividida em quatro períodos principais. Em seguida consideraremos alguns dos importantes desenvolvimentos em cada um deles. SURGIMENTO DE MARCAS DE FABRICANTES DE ÂMBITO NACIONAL: 1860 A 1914 Nos Estados Unidos pós-guerra Civil, vários fatores combinaram-se para transformar produtos manufaturados com marca de fábrica e amplamente distribuídos em empreendimentos lucrativos: Melhorias nos transportes (ferrovias) e nas comunicações (o telégrafo e o telefone) tornaram a distribuição regional, e até mesmo nacional, cada vez mais fácil. Melhorias nos processos de produção possibilitaram a fabricação barata de grandes quantidades de produtos de alta qualidade. Melhorias no processo de embalagem viabilizaram produtos individuais (ao contrário da embalagem a granel) que podiam ser identifi - cados com a marca comercial do fabricante. Mudanças na lei das marcas comerciais, em 1879, na década de 1880 e em 1906, facilitaram a proteção das identidades das marcas. A propaganda revelou-se uma opção de maior credibilidade, e jornais e revistas começaram a buscar avidamente receitas oriundas de propaganda. Instituições de varejo, tais como lojas de departamentos e de variedades, e estabeleci-
2 mentos que vendiam por reembolso postal serviam como intermediários efetivos e incentivavam despesas de consumo. Crescimento da população devido às políticas liberais de imigração. Industrialização e urbanização crescentes elevaram o padrão de vida e as aspirações dos norte-americanos, embora muitos produtos no mercado ainda apresentassem qualidade irregular. Aumentou o índice de alfabetização. A porcentagem de norte-americanos analfabetos caiu de 20 por cento em 1870 para 10 por cento em Todos esses fatores facilitaram o desenvolvimento de produtos de consumo de qualidade consistente, que podiam ser vendidos eficientemente aos consumidores por meio de campanhas de marketing de massa. Nesse fértil ambiente de branding, mercadorias produzidas em massa e embaladas substituíram em grande parte mercadorias vendidas localmente e estocadas a granel. Essa mudança provocou a proliferação do uso das marcas comerciais. A Procter - Gamble, por exemplo, fabricava velas em Cincinnati e as despachava para comerciantes em outras cidades ao longo dos rios Ohio e Mississipi. Em 1851, os trabalhadores dos ancoradouros começaram a marcar os engradados da Procter & Gamble com uma estrela grosseira. A empresa logo notou que os compradores rio abaixo confiavam na estrela como marca de qualidade e os comerciantes recusavam as velas se os engradados chegassem sem as marcas. O resultado é que as velas passaram a vir marcadas com um rótulo de estrela mais formal em todas as embalagens e receberam o nome de marca Star, que desenvolveu uma freguesia fiel. H. J. Heinz construiu o nome de marca Heinz mediante inovações na produção e promoções espetaculares. A Coca-Cola tornou-se uma potência nacional devido aos esforços de Asa Candler, que supervisionava ativamente o crescimento do extenso canal de distribuição. Fabricantes de alcance nacional às vezes tinham de superar a resistência dos consumidores, varejistas, atacadistas e até mesmo dos próprios empregados. Essas empresas empregavam esforços sustentados de push e pull para manter consumidores e varejistas satisfeitos e receptivos às marcas nacionais. Consumidores eram atraídos mediante a distribuição de amostras, prêmios, folhetos com instruções sobre o produto e intensa propaganda; os varejistas, por meio de distribuição de amostras e programas promocionais nas lojas, além de assistência na manutenção das prateleiras. À medida que a utilização de nomes de marcas e marcas comerciais se disseminava, o mesmo acontecia com as práticas de imitação e falsificação. Embora as leis não fossem muito claras, mais e mais empresas buscavam proteção enviando suas marcas comerciais e rótulos para registro em tribunais distritais. O Congresso fi nalmente distinguiu o registro de marcas comerciais e rótulos em 1870 com a aprovação da primeira lei federal de marcas comerciais do país. Segundo essa lei, quem quisesse registrar uma marca teria de enviar um fac-símile de sua marca com a descrição do tipo de mercadorias em que ela era usada ao Escritório de Patentes (Patent Offi ce) em Washington, com uma taxa de 25 dólares. Uma das primeiras marcas apresentadas ao Patent Offi ce sob a nova lei foi o diabinho vermelho da Underwood, registrado por William Underwood & Company of Boston, em 29 de novembro de 1870, para uso nos produtos alimentícios Deviled Entremets ( Entradas do Demônio ). Em 1890, a maioria dos países tinha leis de marcas comerciais que determinavam que nomes de marcas, rótulos e designs eram ativos passíveis de proteção legal. DOMÍNIO DAS MARCAS PROMOVIDAS EM MASSA: 1915 A 1929 Em 1915, as marcas de fabricantes já estavam bem estabelecidas nos Estados Unidos tanto em âmbito regional como nacional. Os 15 anos seguintes testemunharam a aceitação cada vez maior e até a admiração dos consumidores por essas marcas. O marketing de marcas tornou-se mais especializado sob a orientação de especialistas funcionais encarregados da produção, promoção, venda pessoal e outras áreas. Essa maior especialização levou a técnicas de marketing mais avançadas. Profi ssionais de design foram contratados para auxiliar no processo da seleção da marca comercial. A venda pessoal tornou-se mais sofisticada à medida que vendedores eram cuidadosamente selecionados e treinados para tratar sistematicamente de contas e procurar novos negócios. A propaganda combinava criatividade mais poderosa com textos e bordões mais persuasivos. Surgiu a regulamentação governamental e industrial para reduzir a propaganda enganosa. A pesquisa de marketing tornou-se mais importante e influente no apoio de decisões de marketing. Embora a administração funcional de marcas tivesse essas virtudes, também apresentava problemas. Como a responsabilidade por qualquer marca determinada era dividida entre dois ou mais gerentes funcionais, bem como por especialistas em publicidade, a coordenação precária sempre foi um problema potencial. Por exemplo, o lançamento do cereal Wheaties pela General Mills quase foi sabotado pelos vendedores da empresa, que relutavam em aceitar novas obrigações para dar suporte à marca. Três anos após o lançamento do cereal, que estava prestes a ser abandonado, um gerente do departamento de propaganda da General Mills decidiu tornarse um defensor de produto para o Wheaties e a marca alcançou grande sucesso nas décadas seguintes.
3 DESAFIOS PARA AS MARCAS DE FABRICANTES: 1930 A 1945 O início da Grande Depressão em 1929 apresentou novos desafios às marcas de fabricantes. Uma sensibilidade maior aos preços desviou o pêndulo do poder em favor dos varejistas que promoviam suas próprias marcas e abandonavam as marcas de fabricantes que não apresentavam bom desempenho. A propaganda foi bombardeada como manipuladora, enganosa e de mau gosto, e era cada vez mais ignorada por certos segmentos da população. Em 1938, a Emenda Wheeler deu poder à Federal Trade Commission (FTC) para regulamentar práticas de propaganda. Em resposta a essas tendências, a propaganda dos fabricantes foi além de bordões e jingles para apresentar aos consumidores razões específicas por que deveriam comprar produtos anunciados. Durante essa época houve poucas mudanças drásticas no marketing de marcas. Como notável exceção, a Procter & Gamble pôs para funcionar o primeiro sistema de administração de marcas no qual cada gerente era responsável por uma marca individual e pelo seu sucesso fi nanceiro. Contudo, outras empresas demoraram a seguir seu exemplo e se fiavam na sua tradicional reputação de boa qualidade e na falta de concorrência para sustentar vendas. Durante a Segunda Guerra Mundial, as marcas de fabricantes tornaram-se relativamente escassas, pois os recursos eram dirigidos para o esforço de guerra. Não obstante, muitas marcas continuaram a anunciar e ajudaram a impulsionar a demanda de consumo durante esses tempos difíceis. A Lei Lanham de 1946 permitiu o registro federal de marcas de serviço (marcas utilizadas para designar serviços em vez de produtos) e de marcas coletivas como nomes de sindicatos e emblemas de clube. ESTABELECIMENTO DE PADRÕES DE GERENCIAMENTO DE MARCA: 1946 A 1985 Após a Segunda Guerra Mundial, a demanda reprimida por marcas de alta qualidade levou a uma explosão de vendas. A renda pessoal crescia à medida que a economia decolava e a demanda de mercado se intensificava à medida que o crescimento populacional explodia. A demanda por marcas nacionais foi às alturas, alimentada por uma saraivada de novos produtos e uma classe média crescente e receptiva. Durante esse período, empresa após empresa adotou o sistema de administração de marca. No sistema de administração de marca, um gerente assumia a propriedade de uma marca. Ele era responsável pelo desenvolvimento e implementação do plano anual de marketing para sua marca, bem como pela identificação de novas oportunidades de negócios. O gerente de marca podia ser auxiliado internamente por representantes da manufatura, da força de vendas, da pesquisa de mercado, do planejamento financeiro, da pesquisa e desenvolvimento, de relações pessoais, jurídicas e públicas e, externamente, por representantes de agências de propaganda, fornecedores de pesquisas e agências de relações públicas. NOTA 1. Grande parte desta seção foi adaptada de um excelente artigo de autoria de George S. Low e Ronald A. Fullerton, Brands, brand management, and the brand manager system: a critical-historical evaluation, Journal of Marketing Research, 31, maio 1994, p , e de um excelente livro de Hal Morgan, Symbols of America. Nova York: Viking, 1986.
4 Histórico das marcas no Brasil* 1. ORIGEM DAS MARCAS A origem das marcas constitui tema controverso entre os doutrinadores. Não há consenso quanto ao momento histórico em que surgiram as marcas, dividindo-se os autores entre o período da Antigüidade e da Idade Média. No entender de grande parte dos escritores europeus, o uso das marcas remonta à Antigüidade. MAILLARD DE MARAFY assevera que, na pré-história, já se verificava o emprego das marcas nos rebanhos, com o intuito de assegurar a identifi cação de seus donos. Outros escritores, como ALEXANDRE BRAUN e KÖLER, sustentam que as marcas tiveram origem na Roma antiga. Diversos objetos da época, tais como obras de arte e artigos de cerâmica, foram encontrados nas ruínas da cidade, assinalados por marcas (sigillum) compostas por iniciais, nomes por extenso, símbolos e emblemas de seus fabricantes. Também na Grécia foram localizados potes e vasos de cerâmica, nos quais os artesãos gravavam suas iniciais ou fi guras que identificassem a procedência dos objetos. As marcas, portanto, tinham como função apenas certifi car a origem dos produtos e indicar a sua propriedade, sem a mesma fi nalidade jurídica que lhes é atribuída nos dias de hoje. Como ressalta João da Gama Cerqueira, o uso de tais sinais para a identificação das obras, bem como para a marcação dos rebanhos, demonstra apenas a tendencia natural do homem de impor a tudo o cunho de sua personalidade e a affi rmação de seu dominio, não se podendo emprestar a esses costumes o mesmo caracter econômico de que o uso das marcas se reveste na edade contemporanea. 1 Com efeito, as marcas não eram empregadas com a mesma função econômica que possuem nos tempos modernos. Por essa razão, muitos doutrinadores rechaçam o entendimento de que as marcas surgiram na Antigüidade, até mesmo porque não havia, nesta época, regulamentação quanto ao uso das marcas, nem imposição de penas à sua usurpação. 2 Nas palavras de Waldemar Ferreira, só nos tempos medievos, em que o comércio adquiriu relevantíssimo papel econômico e jurídico, que cada dia se torna mais empolgante, as marcas se revestiram de sentido jurídico, que hoje têm. Assim mesmo, não como assinaladoras de produtos da indústria individual, senão da época desenvolvida sob os auspícios das corporações de artes e ofícios. 3 De fato, nas corporações de artes e ofícios medievais, todos os produtos produzidos sob a supervisão dos mestres deveriam ser assinalados com as marcas da corporação, notadamente porque somente os seus membros poderiam exercer a profi ssão na cidade. Surgiram, então, as marcas corporativas obrigatórias, que garantiam a legitimidade das mercadorias, identificando a corporação da qual provinham. Não era vedado, contudo, o emprego de marcas individuais pelos artífices, contanto que houvesse o depósito correspondente no registro da corporação. Tais marcas coexistiam com as marcas corporativas e, uma vez registradas no livro da corporação, não era permitido o uso de sinais semelhantes que se confundissem com as marcas já existentes. Nas lições de Ramon Pella, 4 a Carta Real redigida por D. Pedro IV, em 1386, ao magistrado de Barcelona, ordenando que os tecelões apusessem a marca desta cidade em determinadas peças de tecido, a fim de evitar fraudes e enganos entre os mercadores, constitui o mais antigo documento existente na Europa sobre marcas de fábrica. Nessa mesma época, surgiram também as denominadas marcas emblemáticas, tendo em vista a aprovação da ordenação dos tecelões de Torroela de Montgri por D. Pedro IV, em Segundo esta ordenação, os tecelões locais deveriam grafar nas extremidades das peças de tecido uma torre, marca representativa da cidade de Torroela, onde eram produzidos os tecidos. Como se vê, foi na Idade Média que as marcas adquiriram função econômica aproximada às marcas contemporâneas e que surgiram as primeiras regulamentações sobre a matéria, motivo pelo qual muitos autores afi r- mam ser este o momento correto de origem dos sinais distintivos. Ressalte-se, contudo, que, na Idade Média, as marcas destinavam-se a identificar apenas o fabricante, enquanto que, nos dias atuais, as marcas referem-se ao próprio produto, tendo por fi nalidade individualizá-lo e distingui-lo de outros idênticos ou semelhantes. Houve, pois, uma evolução da função das marcas, principalmente após as mudanças trazidas pela Revolução Francesa. Segundo ressalta Maristela Basso, com a Revolução Francesa, as Declarações de Direitos Individuais, somando-se ao desenvolvimento, já desencadeado na Idade Média, das relações comerciais entre os indivíduos, a proteção dos sinais distintivos e dos privilégios passou a incorporar-se ao patrimônio pessoal dos produtores individuais e das empresas e indústrias. 5 Na Idade Moderna, a primazia na regulamentação do uso das marcas é atribuída à França, com a promulgação da Lei de 12 de abril de 1803, que disciplinou o registro das marcas naquele país e estabeleceu penas em casos de crimes de falsificação de documentos privados, entre outras disposições. Nesse diploma, a aposição de marcas nos produtos não era mais obrigatória, tal como ocorria na Idade Média. Embora a Lei de 12 de abril de 1803 tenha sido a primeira, nos tempos modernos, a conferir proteção legal * Texto de autoria dos advogados Rafael Marinangelo e Tânia Aoki Carneiro.
5 às marcas de fábrica e de comércio, foi a lei francesa de 1857 que exerceu grande infl uência sobre toda a legislação moderna, tornando-se verdadeiro paradigma para os demais países do mundo, inclusive para o Brasil. 2. HISTÓRICO DAS MARCAS NO BRASIL Até o ano de 1875, não existia qualquer proteção jurídica às marcas de fábrica e de comércio no Brasil. As marcas estavam ao inteiro desamparo da lei, o que facilitava abusos e fraudes por parte de comerciantes e industriais desonestos, acoroçoados pela certeza da completa impunidade que a ausência de repressão legal lhes assegurava. 6 O Código Criminal de 1830 não continha nenhum dispositivo de proteção à propriedade industrial. Procurava-se punir a usurpação de marcas mediante a aplicação analógica de outros dispositivos do Código Criminal (falsifi cação de documento público e particular, crime de furto, entre outros), o que não era permitido, contudo, pelos princípios do direito penal. O primeiro caso de grande repercussão que demonstrou o total desamparo das marcas no Brasil ocorreu na Bahia, por volta de A empresa Meuron & Cia., dedicada ao comércio do tabaco, comercializava seus produtos sob a marca Rapé Areia Preta. Na esteira do sucesso desta empresa, a sociedade Moreira & Cia. lançou no mercado o mesmo produto sob a marca Rapé Areia Parda e, posteriormente, apropriou-se da marca Areia Preta. Inconformada, a empresa Meuron & Cia., patrocinada pelo célebre jurista Rui Barbosa, propôs ação criminal contra a Moreira & Cia. Embora o juiz de primeira instância tenha proferido decisão favorável à autora, o Tribunal da Relação da Bahia reformou a sentença de pronúncia e anulou o processo, visto que a usurpação de marcas não constituía crime punível pelas leis então em vigor. Confi ra-se trecho fi nal do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação da Bahia, quando do julgamento em questão: Portanto, reformada a sentença recorrida, julgam nullo o presente processo pela illegitimidade de sua iniciação, se já não o fosse pela falta de base, visto como nem o Codigo Criminal, nem nenhuma outra lei qualificou de delicto o facto em que assentou o processo. 7 Diante da derrota para os usurpadores de sua marca, a Meuron & Cia. e outros interessados representaram à Câmara dos Deputados, cobrando providências para a proteção das marcas no Brasil. A representação foi acolhida pela Comissão de Justiça Criminal da Câmara dos Deputados. Após estudar a questão, o relator deputado Gomes de Castro, do Maranhão, apresentou projeto de lei, o qual, com algumas modificações, converteu-se no Decreto n o 2.682, de 23 de outubro de O Decreto n o 2.682/1875, inspirado na lei francesa de 1857, foi o primeiro diploma legal a conferir proteção às marcas de indústria e comércio no Brasil. Reconhecia a qualquer industrial ou comerciante o direito de marcar seus produtos com sinais que os tornassem distintos de outros de origem diversa, sinais estes que poderiam ser compostos pelo nome do fabricante, firma ou razão social da empresa, revestidos de forma distintiva, ou quaisquer outras denominações ou símbolos. O registro das marcas era efetuado perante o Tribunal ou Conservatória do Comércio antecessor das atuais Juntas Comerciais do domicílio do industrial ou comerciante. Na época, discutia-se se o registro era atributivo da propriedade sobre a marca, prevalecendo, contudo, o entendimento do Governo Imperial de que o fato do registro não destrói o direito que alguém possa ter à sua propriedade, desde que prove posse anterior. 8 Entretanto, o Decreto n o 2.682/1875 era confuso no que tange às marcas admitidas a registro e na formulação dos tipos penais. Como ressaltou Afonso Celso, Visconde de Ouro Preto, (...) esse decreto ressentiu-se de alguns defeitos, que menos precipitada preparação teria corrigido. Desejava-se uma providencia prompta; queria-se legislar depressa, e assim se fez. Necessariamente deveriam escapar muitos senões, tanto mais que não era ainda bem conhecida a materia no paiz. 9 No ano de 1883, representantes de diversos países reuniram-se em um Congresso Internacional para a Proteção da Propriedade Industrial, realizado na cidade de Paris. Nesta oportunidade, foi firmado o primeiro tratado multilateral de vocação universal, 10 conhecido como Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial ou Convenção da União de Paris (CUP). O Brasil também foi signatário deste tratado, o qual foi promulgado pelo Decreto n o 9.233, de 28 de junho de Visando adaptar a legislação então vigente às disposições da Convenção da União de Paris, o Governo Imperial encarregou as seções reunidas dos Negócios do Império e da Justiça do Conselho de Estado a elaborar projeto de reforma da lei de marcas. Em 27 de maio de 1885, o projeto foi apresentado pelos senadores Visconde de Ouro Preto e Leão Veloso, tendo sido aprovado apenas em 1887, com a promulgação do Decreto n o 3.346, de 14 de outubro deste mesmo ano. Com a proclamação da República, a Constituição de 1891 renovou a garantia da propriedade dos inventores e assegurou a propriedade das marcas de fábrica (art. 72, 27). Nesta mesma época, o Código Penal alterou as disposições do Decreto n o 3.346/1887, abolindo a pena de prisão e modificando a multa estabelecida pela usurpação das marcas. Em virtude disso, surgiram difi culdades na coibição das fraudes e falsificação de marcas. Sensível às reclamações dos comerciantes e industriais, o deputado Germano Hasslocker apresentou, em 1903, à Câmara dos Deputados, projeto de lei voltado, principalmente, ao municiamento do sistema com meios eficazes de repressão aos atos de violação à propriedade industrial. A justifi cativa do projeto do deputado Germano Hasslocker estava assim redigida: Há muito tempo que
6 o clamor de todos os que trabalham e produzem se levanta contra os fabricantes falsificadores, que abusivamente se utilizam das marcas acreditadas pelo labor honesto. (...) A lei de 1887, dentre de algum tempo, se tornou insufi ciente para garantir o commercio, accrescendo que a decretação do Cod. Penal, que supprimiu a pena de prisão para os falsificadores, veio de novo anima-los, favorecendo assim as suas empreitadas illicitas. 11 O referido projeto foi convertido na Lei n o 1.236, de 24 de setembro de 1904, destacando-se, entre as modifi cações introduzidas no sistema, a agravação das penas aplicadas à contrafação e a instituição da responsabilidade solidária entre todos os que concorressem para a falsifi cação de marcas. No mais, a nova lei reproduziu o Decreto n o 3.346/1887. Em 1922, foi realizado, no Rio de Janeiro, Congresso Jurídico comemorativo da Independência do Brasil, no qual foi proposta a unificação do registro de marcas de fábrica e de comércio mediante a criação da Diretoria Geral da Propriedade Industrial. Com isto, seria evitada a pluralidade de registros em Juntas Comerciais independentes, tornando-se o serviço exclusivamente federal. Nesse passo, incluiu-se na lei orçamentária de 1923 permissão para que o Poder Executivo procedesse à reorganização dos serviços relativos às patentes de invenção e às marcas industriais. Com base nisso, o governo expediu o Decreto n o , de 19 de dezembro de 1923, por meio do qual foi criada a Diretoria Geral da Propriedade Industrial. Confi ra-se a exposição de motivos do referido Decreto n o /1923: Essa reforma, além de criar a Directoria Geral da Propriedade Industrial, em obediencia ao compromisso internacional assumido pelo Brasil, institue o exame prévio para os privilegios de invenção e modifica o registro de marcas de industria e commercio. A unifi cação do registro de marcas de industria e de commercio é outra medida que não mais deve ser adiada, a bem dos interesses do commercio e do cabal cumprimento das convenções internacionais assignadas pelo Brasil sobre esse importante ramo da propriedade industrial. Manifestando-se pela conveniencia da unidade do registro, o Congresso Jurídico commemorativo da Independência do Brasil aprovou as seguintes conclusões: a) o registro de marcas de industria e de commercio, sendo um serviço de natureza essencialmente federal, não deve ser confiado às autoridades dos Estados; b) a pluralidade dos registros, em juntas completamente independentes umas das outras, é muito prejudicial ao interesse publico e facilita as manobras fraudulentas dos exploradores do trabalho alheio. É de urgente necessidade a criação da Directoria Geral da Propriedade Industrial, que unifi que o serviço, dando-lhe o necessario desenvolvimento. (...) 12 Convém salientar que, nos dias de hoje, a execução dos serviços de propriedade industrial compete ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), autarquia federal criada em 1970, em substituição ao antigo Departamento Nacional de Propriedade Industrial, vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Diversos outros decretos e leis regulamentaram a propriedade industrial no país. Atualmente, a propriedade industrial é disciplinada pela Lei n o 9.279, de 14 de maio de 1996, que revogou o antigo Código da Propriedade Industrial (Lei n o 5.772, de 21 de dezembro de 1971), e o Decreto-lei n o 7.903, de 27 de agosto de 1945, que dispunha sobre os crimes em matéria de propriedade industrial. No Brasil, a propriedade industrial também é disciplinada por tratados internacionais, dentre os quais se destacam: (i) Convenção da União de Paris, promulgada pelo Decreto n o 9.233, de 28 de junho de 1884; (ii) Acordo sobre Aspectos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio, mais conhecido como Acordo TRIPS (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights), promulgado pelo Decreto n o 1.355, de 30 de dezembro de Objetivando reduzir distorções e obstáculos ao comércio internacional e conferir proteção eficaz e adequada aos direitos de propriedade intelectual, os países participantes do GATT (General Agreement on Trade and Tariffs) iniciaram negociações multilaterais para criar padrões à proteção da propriedade intelectual, em 20 de setembro de 1986, no lançamento da Rodada do Uruguai. Após mais de sete anos de negociações, a Ata Final da Rodada Uruguai do GATT foi aprovada em 15 de abril de 1994, durante a Conferência de Marrakesh, por 123 países, surgindo, então, o Acordo TRIPS. Trata-se de relevante acordo internacional que estabelece diretrizes mínimas a serem observadas por todos os países signatários do acordo, consolidando a proteção dos direitos de propriedade intelectual na sociedade internacional contemporânea. A propriedade industrial teve grande desenvolvimento em nosso país, principalmente no que tange ao registro de marcas. Conforme dados divulgados pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial, anualmen-
7 te há expressivo número de depósitos de marcas, o que refl ete a crescente preocupação das empresas em obter proteção a este importante ativo intangível. Confi ra-se: Pedidos de marca depositados no Brasil. Ano Depósitos * * Relatório de Gestão, dado sujeito a atualização. Fonte: Banco de Dados do INPI de 1990 a 2001 (atualizado em fevereiro de 2005). casos, as marcas representam o maior ativo das empresas, principalmente na economia moderna, sendo-lhes atribuído valor freqüentemente superior ao valor do ativo tangível (patrimônio material) das sociedades. Nas palavras de WALDEMAR FERREIRA, para o proprietário ela [a marca] funciona como garantia de seus produtos, se industrial, ou de seus artigos, se comerciante. Por via dela um e outro identifi cam as suas mercadorias, de modo que, em verdade, elas levam consigo, para o mercado, o sinal característico de sua identidade. Daí o papel econômico da marca de indústria ou de comércio. Por via dela, assegura-se o comerciante ou o industrial da intensidade e da largueza de sua penetração no campo de consumo. 13 De fato, as marcas também têm importante papel no mercado de consumo, na medida em que permitem a identificação do produto ou serviço pelos consumidores e pelo público em geral, auxiliando-os na decisão de compra. Conforme pondera GILSON NUNES, a marca estabelece também uma demanda estável no longo prazo através de uma relação funcional, emocional e filosófica com os seus consumidores, criando uma barreira à entrada e um grande diferencial competitivo de longo prazo. 14 Como se vê, as marcas desempenham importante papel na economia moderna, razão pela qual, nos últimos tempos, as empresas têm se preocupado em obter proteção dos sinais distintivos apostos em seus produtos ou serviços, a fi m de assegurar direitos exclusivos sobre as marcas em todo território nacional. Com efeito, além de sua função distintiva, as marcas desempenham relevante função econômica. Em muitos NOTAS 1. João da Gama Cerqueira, Privilegios de invenção e marcas de fabrica e de commercio. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1930, v. II, p Nesse sentido, pondera Gama Cerqueira: Mesmo, porém, que se aceite como indubitável essa pratica entre gregos e romanos, o certo é que suas leis não regulavam o uso das marcas, nem puniam sua usurpação. Os autores que sustentam que em Roma taes marcas eram protegidas e sua falsificação punida, apenas podem invocar, em apoio desse asserto, leis de caracter geral, como as que facultavam a actio ex dolo, a de falsis, ou a quanti minoris, quando a contrafacção fosse inferior (Privilegios de invenção e marcas de fabrica e de commercio. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1930, v. II, p. 11). 3. Waldemar Ferreira, Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1962, v. VI, p Apud João da Gama Cerqueira, Privilegios de invenção e marcas de fabrica e de commercio. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1930, v. II, p Maristela Basso, O direito internacional da propriedade intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p João da Gama Cerqueira, Tratado da propriedade industrial, 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, v. 1, p Apud João da Gama Cerqueira, Privilegios de invenção e marcas de fabrica e de commercio. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1930, v. II, p Decisão tomada pelo Governo Imperial em 29 de outubro de 1877, em resposta a uma representação da Junta Comercial de Pernambuco. Apud Tratado da propriedade industrial, 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, v. 1, p Apud João da Gama Cerqueira, Privilegios de invenção e marcas de fabrica e de commercio. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1930, v. II, p Maristela Basso, O direito internacional da propriedade intelectual, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p Apud José Xavier Carvalho de Mendonça, Tratado de direito commercial brasileiro, 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1934, v. V, p
8 12. Apud João da Gama Cerqueira, Privilegios de invenção e marcas de fabrica e de commercio. São Paulo: Livraria Acadêmica, 1930, v. II, p Waldemar Ferreira, Tratado de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1962, v. VI, p Gilson Nunes, Marca é o maior ativo das empresas na nova economia, Revista da ABPI, n o 63, março/abril 2003, p. 69. Veja também: Maitê Cecília Fabbri Moro, Direito de marcas: abordagem das marcas notórias na Lei 9.279/1996 e nos acordos internacionais. São Paulo: Revista dos Tribunais, Newton Silveira, Curso de propriedade industrial, 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
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