UM OLHAR SOBRE OS MORADORES DO SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO E SUAS POSSIBILIDADES DE CIRCULAÇÃO E AÇÃO NA CIDADE DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP
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- Luciano da Conceição Belém
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1 UM OLHAR SOBRE OS MORADORES DO SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO E SUAS POSSIBILIDADES DE CIRCULAÇÃO E AÇÃO NA CIDADE DE SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP Camila de Assis Covas 1 Karina Soares Montmasson 2 Ligia Moraes e Silmara Dantas 3 Promover um olhar sobre a relação dos moradores do Serviço Residencial Terapêutico (SRT) da cidade de São José dos Campos (SP), com o espaço urbano, refletindo sobre suas possibilidades de circulação e de ação é o nosso objetivo assim como uma análise sobre a trajetória da reinserção desses pacientes. O que chamamos hoje de conquista do espaço urbano é fruto de uma longa trajetória e merece ser repensada, analisada. Como já é de conhecimento de todos nós, a construção no campo da saúde mental se dá de forma lenta, assim como tudo que é relativo à psicose e as demais patologias mentais. Aceitar esse traço como uma característica da própria patologia nos ajuda a refletir sobre uso da palavra reinserção para pacientes psiquiátricos crônicos e entender que é preciso pensar para além do que a gramática nos dá como significado. Um doente mental que está ampliando seus horizontes, suas relações, conhecendo espaços, está, acima de tudo, se reconstruindo. Juntando os pedacinhos dos destroços causados pelos anos de internação, mas causados também pela cronificação da própria patologia. Uma reconstrução desse nível, dessa importância, uma reconstrução de si não pode se dar de forma rápida como nós que cuidamos muitas vezes queremos ou desejamos. É preciso respeitar o tempo. E quando falamos em tempo, falamos também em singularidade. Cada um de nossos moradores tem um tempo particular para se reconstruir. Conseqüentemente, cada um deles terá uma forma diferente para se adentrar nesse novo mundo que lhes é apresentado desde que a saída do hospital psiquiátrico é oficializada. Há casos 1 Serviço Residencial Terapêutico São José dos Campos- SP 2 Serviço Residencial Terapêutico São José dos Campos- SP 3 Serviço Residencial Terapêutico São José dos Campos- SP
2 2 em que isso poderá ser da ordem do impossível e é bom lembrarmos, pois nos remete à nossa condição de sujeitos limitados. Mas mesmo enfrentando inúmeros obstáculos, sejam eles de ordem clínica ou de ordem social, hoje, podemos dizer que a maioria dos moradores do nosso Serviço estão inseridos. Mas o que queremos dizer quando falamos que eles estão inseridos? Primeiramente é muito importante frisar que não se trata de um simples tirar-colocar. Mas é justamente o que se passa entre o tirar do hospital e o colocar na cidade que pode ser chamado de trabalho de reinserção. E é isso que fazemos o tempo todo no trabalho que desenvolvemos em nossos serviços de residências terapêuticas. Falando especificamente do Serviço de Residências Terapêuticas de São José dos Campos, é importante mencionar que esse trabalho é fruto de uma parceria entre Secretaria Municipal de Saúde e o Centro de Valorização da Vida, uma organização não governamental que atua na área de saúde mental da cidade. Criado em 2004, o Serviço foi se consolidando gradativamente e hoje é composto por 8 residências distribuídas em diversos bairros da cidade acolhendo um total de 58 moradores. Imaginamos que muitos dos SRTs também sejam frutos de diversas parcerias, mas o que acreditamos ser uma particularidade nossa, é que este possui uma equipe ambulatorial constituída exclusivamente para atuar com os moradores das residências. Ter essa equipe exclusiva para os moradores foi uma condição contratual estabelecida entre Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Campos e o Centro de Valorização da Vida e foi assim que nasceu o ambulatório do SRT. Este espaço físico que acolhe a equipe foi e ainda é fundamental para o desenvolvimento do nosso trabalho da maneira como acreditamos, pois permite um acompanhamento cotidiano bem próximo do paciente-morador, indo de encontro com a demanda dos mesmos. Vale lembrar que o grupo de pacientes com o qual trabalhamos é bastante cronificado e institucionalizado e por isso o trabalho de reinserção destes pacientes começou antes mesmo que eles saíssem do hospital. Como isso poderia ser possível? Para que eles pudessem entender o que estava sendo proposto, um trabalho inicial foi feito dentro dos próprios hospitais onde equipe e pacientes puderam se encontrar, se conhecer e iniciar um vínculo mínimo necessário para o que mais tarde viria a ser uma relação de confiança, base do trabalho de reinserção. Nessa proposta, a presença da equipe dentro do hospital, favoreceu a observação das
3 3 relações existentes entre os pacientes e com isso foi possível planejar junto com eles a composição das residências terapêuticas, respeitando as relações existentes. Alguns funcionários dos hospitais foram convidados a compor a equipe que estava se constituindo para o SRT e esse foi um ponto importante, principalmente para os pacientes que inicialmente se recusavam a sair do hospital. Assim, alguns membros que compuseram a equipe inicial (hoje composta por médico psiquiatra, psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, motorista, administrativo e cuidadores), tornaram-se referência para uma boa parte dos moradores nesse importante momento de transição, o que possibilitou a vinda de pessoas cujo próprio hospital não acreditava ser possível para a proposta de residência. Com a vinda dos pacientes para as casas, a equipe se dedicava principalmente ao acolhimento e ao acompanhamento das rotinas das atividades básicas da vida diária dos moradores, auxiliando-os na adaptação do novo lugar de vida. Esse primeiro momento do trabalho de reinserção na residência foi longo e delicado. Pessoas que durante muitos anos viveram submetidos ao regime hospitalar, de repente se viam no direito (e dever?) de escolher. As escolhas sendo de toda natureza, melhor seria começar pelas básicas, como por exemplo, a que horas tomar o banho, que roupa vestir, quando acordar e quando dormir, o que preparar para o almoço, entre outras. Conseguir estabelecer uma rotina para o cuidar de si e o cuidar da casa foi, poderíamos dizer, a primeira etapa do que chamamos de processo de reinserção. Uma mudança total de paradigma na vida de pessoas cujo simples existir já é vivido como tarefa árdua é vista por nós como uma das maiores conquistas. Mudanças que requereram bastante tempo e foram construídas baseadas na confiança e na integração inicial estabelecida com a equipe do serviço, principalmente com as cuidadoras que acompanham de perto o cotidiano dos moradores. Agora o paciente já é um morador! Ele habita a casa onde mora. Ele começa a circular livremente pelos cômodos da casa, pelo quintal, e muito timidamente a sair na rua da casa onde mora. Esta possibilidade de circular livremente dentro e fora de sua casa implica em mais uma mudança extrema de vida, difícil de ser imaginada por nós, cidadãos livres. E aqui então, poderíamos dizer que entramos numa segunda etapa do trabalho de reinserção, que implica
4 4 num primeiro momento em conhecer e estabelecer interações sociais com o vizinho, com a padaria, com o supermercado, e um pouco mais tarde, freqüentar aulas de natação, de alfabetização, aulas de artesanato numa fundação cultural da cidade e em outros locais que se tornaram nossos parceiros. Favorecer essa interação que existe hoje com a cidade onde moram é, como já descrevemos acima, um processo longo e contínuo. Aqui, acreditamos que mais uma vez, ter uma equipe exclusiva para os moradores do SRT muito contribuiu para essa circulação. Pacientes muito cronificados tornaram-se, de certa forma, dependentes. È necessário o apoio cotidiano para que a vida possa seguir seu rumo, e a grande maioria deles necessitam de acompanhamento para sair de casa, ir ao médico, etc. A utilização dos transportes coletivos muitas vezes torna-se inviável e nesse contexto ter a nossa disposição um veículo com a presença contínua de um motorista facilita as idas e vindas nas diversas atividades. Aqui é importante falar da presença deste funcionário. Ele, como todos nós que trabalhamos no SRT, não é territorializado na função de motorista. Sua função de dirigir é, poderíamos dizer, atravessada pela tarefa de acompanhante terapêutico, principalmente no que diz respeito à transferência que a maioria dos moradores possui com essa figura, uma vez que ele era um funcionário muito antigo de um hospital psiquiátrico da região. Ele que leva e traz grande parte dos moradores (é importante ressaltar que aqueles mais independentes pegam ônibus deixando o veículo para os que mais necessitam), tem na sua função de acompanhante terapêutico um papel importante que é o de fazer a ponte, o elo, entre a casa e o lugar de destino dos pacientes. Aquele sentimento de descontinuidade vivido pela maioria dos psicóticos fica então envelopado, com um contorno que assegura, dando confiança para que ele possa ir adiante. Para nós, circular não significa simplesmente deambular ou andar errantemente pelas ruas da cidade, como fazem muitos doentes mentais, e é nesse sentido que oferecemos aos nossos moradores uma condição de passagem 4. Passagem não somente de um lugar ao outro mas também de palavra, sendo esses movimentos suportados por um sentido, por um desejo, por uma transferência. 4 Termo usado Arthur Hyppolito De Moura no que toca as relações complementares dentro da proposta de clubes terapêuticos.
5 5 Dessa maneira, no trabalho de reinserção que fazemos, acreditamos que as residências funcionam como passarelas 5 (Lecarpentier, 1999) para as novas relações e novos espaços sociais da cidade, pois, é ali que se encontra a origem e a sustentação dos laços transferenciais dos pacientes. È ali onde se inicia a liberdade de circulação dos pacientes, até então comprometida e hierarquizada. Eles deixam de funcionar como rebanhos e começam a desenvolver a própria autonomia, abrindo espaço para a emersão do sujeito que mesmo esmagado pela doença e pela institucionalização é capaz de resgatar suas vontades e desejos, criando assim relações de modo mais espontâneo e livre e é claro produzindo subjetividade. Poderíamos pensar que a maneira como os moradores conseguiram se organizar na co-habitação nas residências, juntamente com o acompanhamento cotidiano da equipe, principalmente o das cuidadoras, propiciou uma rede viva que sustenta a possibilidade de integração entre eles, seja morador-morador seja morador pessoal. E isso é o que garante a possibilidade de circulação que leva a diferentes tipos de experiências e de relações. O trabalho de reinserção está longe de ser aquele preconizado pela portaria do Ministério da Saúde, pois atualmente nenhum dos nossos moradores, infelizmente, possui destreza para trabalhar, viver de sua própria renda sem acompanhamento cotidiano contínuo. O que esperamos mostrar aqui é que antes de chegarmos a esse ponto, existem muitas léguas a serem percorridas e que trabalho de reinserção é muito mais que dar trabalho a ex-paciente psiquiátrico. Precisamos pensar de acordo com nossa realidade e foi assim que aprendemos, graças aos nossos moradores, que reinserir é acima de tudo permitir que um paciente sem nome seja chamado novamente de cidadão. Cidadão livre e desejoso de viver. Palavras-chaves: SRT, circulação, reinserção 5 Este termo foi usado por Lecarpentier para designar a importância das redes associativas na ampliação da constelação dos doentes mentais.
6 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: HYPPOLITO DE MOURA, Arthur. A psicoterapia institucional e o clube dos saberes. São Paulo: Hucitec, LECARPENTIER, M, apud HYPPOLITO DE MOURA, Arthur. A psicoterapia institucional e o clube dos saberes. São Paulo: Hucitec, OURY, Jean. Création et schizophrènie. Paris: Editions Galilée, OURY, Jean. Le collectif. Paris: Editions Scarabée, 1986.
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