A VARIABILIDADE DA VAZÃO SEGURA

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1 A VARIABILIDADE DA VAZÃO SEGURA Ticiana Marinho de Carvalho Studart 1 ; José Nilson Beserra Campos 1 ; Juliana Pontes Machado de Andrade 2 ; Othavio Luis de Sousa 2 Resumo Define-se como vazão segura como a máxima retirada, sem falhas, que pode ser retirada continuamente de um reservatório, utilizando-se a série histórica de vazões afluentes. Esse conceito, por vezes, é associado, inapropriadamente, a uma vazão com 100% de garantia. Em regiões onde os deflúvios apresentam baixa variabilidade, o conceito de vazão segura costuma ser adotada sem restrições e sem grandes problemas. Esta prática, no entanto, não se aplica bem em rios com elevada variabilidade dos deflúvios anuais, como é o caso do Semi-árido Brasileiro e do Norte da Austrália. O presente trabalho analisa a variabilidade das vazões seguras para nove reservatórios situados em quatro estados nordestinos. Utilizou-se simulação de Monte Carlo para avaliar o risco de se obter, em uma série qualquer mas de mesma duração da série histórica, uma vazão inferior à vazão segura. O risco foi definido como sendo a probabilidade de se obter uma vazão regularizada inferior à vazão segura, em uma distribuição Normal a qual os 58 valores de vazão regularizada foram ajustados. No caso mais desfavorável, esse risco atingiu o valor de 92%. Abstract - The safe yield of a water supply system is the maximum yield that can draw continually. This concept is usually associated to a yield with reliability of 100%, using the historical series. In mild climates, this concept is widely adopted without problems. This practice, however, if adopted in semiarid climates with highly variable natural discharges, like Northeast Brazil and Australia, may drive to wrong conclusions. The present paper analyses the safe yields of nine reservoir in four states of Northeast Brazil. Monte Carlo Simulation was used to analyze the risk of obtaining, in series with the same size of the historical one, a yield inferior to the safe yield. The risk was defined as the probability to obtain a yield inferior to safe yield in a Normal Distribution, which the 58 values of reservoir yield were adjusted. In the worst case, the risk reached 92%. Palavras chave: vazão segura, vazão regularizada, reservatório. 1 Professores do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental Universidade Federal do Ceará. Campus do Pici, Centro de Tecnologia, Bl. 713, Fortaleza, Ceará, Brasil, CEP , Fone: (85) , Fax: (85) s: ticiana@ufc.br e nilson@ufc.br. 2 Alunos do Curso de Engenharia Civil e Bolsistas de Iniciação Científica - PIBIC/CNPq - Universidade Federal do Ceará. s: julianapma@bol.com.br e othavioluis@bol.com.br

2 INTRODUÇÃO O conhecimento da relação vazão regularizada vs. garantia é extremamente importante para o planejamento e operação de um reservatório. Da tentativa de simplificar essa relação surgiu o conceito de vazão segura, que é a máxima retirada, sem falhas, que pode ser mantida continuamente. Esse conceito, por vezes, é associado, erroneamente, a uma vazão com 100% de garantia, assumindo os valores da série histórica. Em regiões de rios perenes, o conceito de vazão segura costuma ser adotada sem restrições. Esta prática, no entanto, se adotada em regiões de rios intermitentes, cuja variação dos deflúvios anuais é extremamente alta, como é o caso do Semi-árido brasileiro, pode levar a conclusões equivocadas. Dependendo do período retratado pela série histórica de vazões os riscos de não se obter a vazão segura são muito altos (anos de alta pluviosidade) - ou muito baixos - caso a série se concentre em períodos de baixa pluviosidade. Este é o problema de se adotar o conceito de vazão segura nestas regiões: a indução de uma falsa sensação de segurança ao tomador de decisão. Este trabalho pretende avaliar a variabilidade da vazão segura em reservatórios situados no Semi-Árido nordestino e os riscos associados a ela. METODOLOGIA Para a presente pesquisa foram selecionados nove reservatórios situados em quatro estados nordestinos: Ceará (açudes Arneiróz II, Caxitoré, Farias Brito e Trussu), Piauí (Açude Castela do Piauí), Rio Grande do Norte (açudes Umari e Poço Branco) e Pernambuco (açudes Jucazinho e Tapacurá). A Tabela 1 mostra as principais características dos reservatórios estudados. Para a determinação das vazões regularizadas, fez-se uso do SIMRES (programa desenvolvido no Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental - Universidade Federal do Ceará), que simula os reservatórios pelo Método de Monte Carlo. Os reservatórios foram considerados inicialmente cheios e a garantia G = 100%. Cada reservatório foi simulado com sua série histórica de vazões afluentes, sendo sua vazão regularizada denominada de Q 100H. Em seguida, para cada reservatório, foram geradas séries sintéticas com traços de vazões anuais, seguindo uma distribuição Gamma II. Essas vazões foram desagregadas em valores mensais através do Método dos Fragmentos (SVANIDZE, 1980) [1]. Este método produz bons resultados para os rios intermitentes do Semi-Árido Nordestino (ARAÚJO,1991) [2].

3 Tabela 1 Localização dos reservatórios estudados e características de suas vazões afluentes. Reservatório Estado Bacia Hidrográfica μ (hm 3 /ano) σ (hm 3 /ano) CV afl H (anos) Tapacurá PE Tapacurá 75,68 43,58 0,58 34 Umari RN Apodi/Mossoró 123,99 136,16 1,10 81 Caxitoré CE Curu 126,31 151,43 1,20 79 Trussu CE Alto Jaguaribe 73,28 94,17 1,29 86 Castela PI Poti 1079, ,40 1,31 34 Jucazinho PE Capibaribe 172,06 247,72 1,44 33 Farias Brito CE Alto Jaguaribe 42,50 61,49 1,45 86 Poço Branco RN Ceará-Mirim 76,57 123,15 1,61 54 Arneiróz II CE Alto Jaguaribe 100,89 163,85 1,62 85 Onde: μ = média dos deflúvios anuais afluentes ao reservatório; σ = desvio padrão dos deflúvios anuais afluentes ao reservatório; CV afl = coeficiente de variação da série dos deflúvios afluentes ao reservatório; H = número de anos da série histórica. Como a maior série histórica tem 86 anos (Trussu e Farias Brito), a quantidade máxima de séries geradas pelo SIMRES que pode ser utilizada é 58, já que o limite de vazões geradas é de anos. Sendo assim, no sentido de homogeneizar o número de séries e facilitar a comparação dos resultados, adotou-se 58 séries para a simulação de todos os reservatórios. Risco de Falha As vazões regularizadas de cada reservatório, resultantes da simulação das 58 séries sintéticas de tamanho H, foram ajustadas a uma Distribuição de Probabilidades Normal, e sua média denominada de Q 100. Neste trabalho, risco de falha é definido como a probabilidade de se obter vazões inferiores à Q 100H, ou seja, aquela obtida com o uso da série histórica e G=100%. O software utilizado nesta etapa foi o Statgraphics. A Figura 1 ilustra o caso do açude Caxitoré, onde foram simuladas 58 séries de 79 anos. A área hachurada indica o risco de não se obter a vazão Q 100H.

4 Figura 1- Distribuição das vazões regularizadas pelo açude Caxitoré e o risco de não se obter a vazão segura. Simulou-se ainda os reservatórios em seus estados de equilíbrio, ou seja, com horizonte de simulação igual a anos, com garantias de 90% e 100% (os demais fatores intervenientes no processo do armazenamento foram considerados constantes). RESULTADOS Os nove reservatórios apresentaram uma enorme discrepância nos riscos obtidos, os quais variaram de 1% (no caso do Farias Brito) a 92% (no caso do Arneiróz II). A Tabela 2 mostra os riscos obtidos para os demais reservatórios. A Tabela 2 mostra ainda a média das vazões das séries sintéticas e o coeficiente de variação de cada série. Observa-se que as séries sintéticas apresentaram valores de Q 100 variados entre si (traduzido pelo CV reg ), o que significa que o Q 100 pode não ser muito representativo. A média dos riscos foi de 47% e a sua variabilidade alta, 72%. Com exceção do Farias Brito e do Umari, os riscos foram superiores a 20%; possivelmente os anos retratados na suas séries históricas foram de baixa pluviosidade. Por outro lado, o Arneiróz II e o Trussu apresentaram riscos de falha muito altos (em torno de 90%), possivelmente pela razão inversa - séries históricas compostas por anos com alta pluviosidade. Infelizmente não é possível fazer uma análise conclusiva, pois não se sabe quais os anos representados nas séries históricas.

5 Tabela 2 Valores de vazão regularizada historicamente, características das séries de vazões regularizadas sinteticamente com garantia de 100% e risco. Reservatório Q 100H Q 100 CV reg Risco Tapacurá 37,8 37,92 0,10 0,49 Umari 33,5 45,62 0,23 0,13 Caxitoré 29,1 34,91 0,23 0,23 Trussu 36,6 29,65 0,20 0,88 Castela 442,8 439,91 0,23 0,51 Jucazinho 77,4 64,14 0,28 0,77 Farias Brito 11,5 19,79 0,19 0,01 Poço Branco 10,7 14,52 0,38 0,25 Arneiróz II 26,2 18,39 0,30 0,92 Média 0,47 CV risco 0,72 Onde: CV reg = coeficiente de variação das séries de vazões regularizadas com uso das séries sintéticas; CV risco = coeficiente de variação da série dos riscos obtidos. A Figura 2 mostra que não há uma relação direta entre o CV e o risco obtido, ou seja, séries de vazões afluentes com coeficientes de variação próximos entre si, tais como 1,61 (Açude Poço Branco) e 1,62 (Açude Arneiróz II), apresentaram grande disparidade entre seus valores de riscos 25% e 92% respectivamente. Risco 1,00 0,90 0,80 0,70 0,60 0,50 0,40 0,30 0,20 0,10 0,00 0,00 0,50 1,00 1,50 2,00 CV Figura 2 Coeficiente de variação das vazões afluentes dos deflúvios vs risco

6 Disponibilidade Hídrica vs. Garantia Conforme esperado, a vazão regularizada no estado de equilíbrio é sempre maior para a garantia de 90% (Q 90EQ ) do que para 100% (Q 100EQ ). Na maioria dos casos o aumento foi superior a 100%, atingindo um valor aproximadamente sete vezes maior no Arneiróz II (Tabela 3 e Figura 3). Os maiores incrementos na disponibilidade hídrica ocorreram justamente nos reservatórios com coeficientes de variação mais elevados (Poço Branco/RN - 506% e Arneiróz II/CE - 586%). Tabela 3 Vazões regularizadas pelos reservatórios no estado de equilíbrio com G = 90% e G = 100%. Reservatório Q 100EQ Q 90EQ Incremento (%) Tapacurá 34,00 54,50 60 Umari 18,90 59, Caxitoré 16,70 49, Trussu 16,60 38, Castela 198,70 488, Jucazinho 27,90 71, Farias Brito 11,70 30, Poço Branco 3,10 18, Arneiróz II 5,10 35, Incremento (%) ,58 1,10 1,20 1,29 1,31 1,44 1,45 1,61 1,62 CV Figura 3 Incremento na vazão regularizada com a diminuição da garantia de 100% para 90%. CONCLUSÕES O presente trabalho mostra que a vazão obtida por simulação da série histórica, com 100% de garantia, usualmente denominada de vazão segura, não é tão segura como o nome sugere. Devido à

7 variabilidade dos deflúvios naturais na região, séries históricas com anos de alta pluviosidade podem superestimar a vazão regularizada e, por conseguinte, acarretar riscos elevados de não se obter a vazão prevista. E assim duas questões podem ser consideradas neste trabalho. Em primeiro lugar: no Semi-Árido nordestino, onde a variabilidade dos deflúvios anual está entre as mais altas do Planeta, não é seguro adotar-se a vazão segura. O risco de se ter uma vazão regularizada inferior à vazão segura pode chegar a 92% em casos mais desfavoráveis. E em segundo lugar: o estudo das características das séries históricas, que levam à superestimativa da vazão segura, deve ser objeto de futuras pesquisas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] SVANIDZE, G.G. (1980). Mathematical Modeling of Hydrologic Series. Water Resources Publications, Fort Collins, Colorado, USA. [2] ARAÚJO, J.K. (1991). Método dos Fragmentos Aplicado a Rios Intermitentes: Avaliação dos Erros Introduzidos no Cálculo da Disponibilidade de Reservatórios. Fortaleza, Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental, Universidade Federal do Ceará (Dissertação de Mestrado).