Metabolismo do azoto dos aminoácidos e ciclo da ureia
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- Raquel Palma Aragão
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1 Metabolismo do azoto dos aminoácidos e ciclo da ureia 1- Os aminoácidos existentes no sangue e nas células resultam da hidrólise das proteínas endógenas ou das proteínas da dieta. A maior parte dos aminoácidos libertados aquando da hidrólise das proteínas endógenas são reutilizados na síntese dessas mesmas proteínas ou de outras proteínas mas uma parte sofre catabolismo perdendo o azoto e gerando intermediários não azotados que vão acabar por oxidar-se a CO Os aminoácidos ou os intermediários a que estes dão origem no decurso do seu catabolismo podem perder os grupos azotados em reacções de desamidação ou desaminação em que se liberta o ião amónio. A concentração plasmática do amónio é, no indivíduo saudável, muito baixa (cerca de 20 µm no sangue sistémico e cerca de 260 µm na veia porta). Quando a concentração de amónio aumenta no plasma (hiperamonémia) provoca alterações neurológicas que podem culminar em coma e morte. No fígado, o amónio tóxico é convertido em ureia não tóxica. Uma situação clínica aguda que cursa com hiperamonémia é, por exemplo, uma hemorragia para dentro do lúmen do sistema digestivo em doentes com cirrose hepática. 3- Numa reacção catalisada pela sintétase do carbamil-fosfato I, uma enzima da matriz mitocondrial, forma-se carbamil-fosfato (NH CO ATP + H 2 O carbamil-fosfato + 2 ADP + Pi). Na reacção catalisada por esta sintétase consome-se amónio e CO 2 que se ligam para formar o carbamilo que é fosforilado pelo ATP; o processo também envolve a hidrólise de uma outra molécula de ATP. O carbamil-fosfato vai ser o dador de um dos dois azotos da ureia que se vai formar. Embora, estritamente, não possa ser considerada uma enzima do ciclo da ureia, a relação da sintétase de carbamil-fosfato I com este ciclo é tão íntima que é assim é considerada com muita frequência. 4- No ciclo da ureia intervém uma enzima que, tal como a sintétase de carbamil-fosfato I, está na matriz mitocondrial, a transcarbamílase da ornitina; as outras três estão no citoplasma e são a sintétase do arginino-succinato, argininosuccínase e argínase. Costuma dizer-se que a ornitina (C5,N2) desempenha, no ciclo da ureia, um papel catalítico porque se consome na primeira reacção (transcarbamílase da ornitina: ornitina + carbamil-fosfato citrulina + Pi) e, via citrulina (C6,N3), arginino-succinato (C10,N4) e arginina (C6,N4), se regenera na última (argínase: arginina + H 2 O ureia + ornitina). É na reacção catalisada pela argínase que se dá a hidrólise da arginina formandose a ureia e regenerando-se a ornitina, um dos substratos da transcarbamílase da ornitina. Ao longo do ciclo da ureia a estrutura da ornitina vai aceitando os componentes da ureia; como evidenciado pela reacção catalisada pela argínase, a arginina (C6,N4) pode ser entendida como sendo formada por dois resíduos: ornitina (C5,N2) e ureia (C1,N2). Por acção catalítica da transcarbamílase da ornitina, a ornitina aceita o grupo carbamilo do carbamil-fosfato gerando citrulina que reage com o aspartato gerando arginino-succinato (sintétase do arginino-succinato: citrulina + aspartato + ATP arginino-succinato + AMP + PPi): a formação do arginino-succinato é um processo endergónico acoplado com a hidrólise de ATP a AMP + PPi. Por acção duma líase (argininosuccínase) o argininosuccinato desdobra-se em arginina e fumarato. Como já referido a transcarbamílase da ornitina é uma enzima da matriz mitocondrial enquanto que todas as outras enzimas do ciclo são citoplasmáticas: assim, o produto da transcarbamílase da ornitina, a citrulina, sai da mitocôndria, enquanto o substrato aminoacídico da mesma enzima, a ornitina, entra para a mitocôndria; os dois processos de transporte são catalisados pelo mesmo transportador. O somatório das reacções catalisadas pelas enzimas do ciclo da ureia e pela sintétase do carbamil-fosfato I pode ser expresso pela seguinte equação soma: Página 1 de 6
2 CO 2 + NH aspartato + 3 ATP ureia + 2 ADP + AMP + 2 Pi + PPi + fumarato (1) Na estrutura da ureia [OC(NH 2 ) 2 ] o carbono tem origem no CO 2, um dos átomos de azoto tem origem directa no amónio e o outro origem directa no aspartato. 5- O amónio que está na origem do carbamil-fosfato hepático tem origem nos aminoácidos que sofrem catabolismo libertando amónio. Cerca de 1/3 do amónio utilizado para a síntese de carbamil-fosfato é captado pelo fígado chegando aí, através veia porta, já como amónio. Este amónio foi formado nos enterócitos a partir da glutamina (via acção da glutamínase: glutamina + H 2 O glutamato + NH 4 + ) ou no lúmen do intestino por acção das bactérias 1. Os 2/3 restantes resultam da acção de enzimas hepáticas que provocam a perda de grupos azotados de aminoácidos na forma de amónio. Exemplos deste tipo de enzimas são a enzima de clivagem da glicina (glicina + H4-folato + NAD + N5,N10-metileno-H4folato + NADH + CO 2 + NH 4 + ), a líase da cistationina (cistationina cisteína + α-cetobutirato + NH 4 + ), a asparagínase (asparagina + H 2 O aspartato + NH 4 + ), a glutamínase (glutamina + H 2 O glutamato + NH 4 + ) e a desidrogénase do glutamato (glutamato + NAD + α-cetoglutarato + NADH + NH 4 + ). De notar que o azoto do amónio libertado pela acção da desidrogénase do glutamato poderá ter tido origem última em muitos outros aminoácidos: em reacções de transaminação (quer directamente, quer através de intermediários dos processos catabólicos) quase todos os aminoácidos podem ceder o seu grupo amina ao α-cetoglutarato formando o glutamato. 6- O segundo azoto presente na estrutura da ureia tem origem directa no aspartato: o aspartato ao reagir com a citrulina e ao sair como fumarato deixa ficar azoto no grupo guanidina da arginina que vai sofrer hidrólise e gerar a ureia. No entanto, este segundo azoto pode, indirectamente, ter origem em todos os aminoácidos. A alanina (que é vertida pelos músculos ou pelos enterócitos e é captada pelo fígado) é exemplo de um aminoácido dador de amina para a síntese de aspartato no fígado. Por acção sequenciada da transamínase da alanina (alanina + α-cetoglutarato piruvato + glutamato) e da transamínase do aspartato (glutamato + oxalacetato α-cetoglutarato + aspartato) o grupo amina que estava na alanina pode originar o grupo amina do aspartato; a sequência envolve como intermediário aminado o glutamato. Sequências similares envolvendo diversas transamínases e a transamínase do aspartato podem explicar a transferência de grupos amina de diversos aminoácidos para o oxalacetato e a formação de aspartato; a equação soma que descreve estes processos é a equação 2 (ver abaixo). Quando a perda de azoto origina amónio (casos da desamidação hidrolítica da glutamina ou da asparagina ou da desaminação oxidativa ou por acção de líases de diversos aminoácidos) este ião inorgânico pode, por acção da desidrogénase do glutamato (α-cetoglutarato + NH NADPH glutamato + NADP + ), originar o grupo amina do glutamato. O glutamato formado por aminação do α-cetoglutarato pode, por transaminação, ser dador de amina ao oxalacetato para formar aspartato; assim, via α-cetoglutarato/glutamato todos os aminoácidos podem contribuir para o azoto que vai ser cedido directamente pelo aspartato na síntese da ureia. 7- A equação soma relativa ao processo de síntese de ureia (ver equação 1) mostra que se gastam 4 ligações ricas em energia do ATP durante a síntese de uma molécula de ureia. No entanto também é possível defender um outro ponto de vista. O oxalacetato é 1 É de notar que parte da ureia que circula no sangue passa para o lúmen intestinal onde é reconvertida em amónio pelas bactérias: existe assim um ciclo entero-hepático de azoto envolvendo a ureia e o amónio e as enzimas hepáticas do ciclo da ureia e das bactérias intestinais. Página 2 de 6
3 aceitador de grupos amina em reacções de transaminação em que se forma o aspartato (equação 2). Na conversão do fumarato (formado no ciclo da ureia) a oxalacetato participam a fumárase e a desidrogénase do malato e a equação soma correspondente a esta conversão é a equação 3. A equação 7 (que é a soma das equações 1-6) mostra que, tendo em conta os ATPs que se podem formar como consequência da oxidação do fumarato (equações 3 e 4), também se pode pensar que o número de ligações ricas em energia gastas na síntese de uma molécula de ureia é de apenas 1,5 ATPs. CO 2 + NH aspartato + 3 ATP ureia + 2 ADP + AMP + 2 Pi + PPi + fumarato (1) oxalacetato + α-aminoácido aspartato + α-cetoácido (2) fumarato + NAD + oxalacetato + NADH (3) NADH + ½ O 2 + 2,5 ADP + 2,5 Pi NAD + + 2,5 ATP (4) AMP + ATP 2 ADP (5) PPi + H 2 O 2 Pi (6) CO 2 + NH ,5 ATP + α-aminoácido ureia + 1,5 ADP + 1,5 Pi + α-cetoácido (7) 8- A esmagadora maioria dos aminoácidos é degradada no fígado mas uma parte importante do catabolismo dos aminoácidos ocorre no músculo e no intestino. É de notar que o catabolismo de uma determinada molécula de um determinado aminoácido até CO 2 e ureia pode ser feito por etapas envolvendo vários órgãos. Um bom exemplo é o caso da glutamina que (em parte) é convertida, nos enterócitos, em amónio e alanina (esta conversão pode ocorrer via glutamina glutamato α-cetoglutarato succinil-coa succinato fumarato malato oxalacetato fosfoenolpiruvato piruvato alanina). A alanina é vertida na veia porta e é captada pelo fígado podendo, aqui, ser convertida em glicose (gliconeogénese); se esta glicose for libertada para o sangue pode ser oxidada a CO 2 em todos os órgãos. O amónio formado nos enterócitos a partir da glutamina e o azoto da alanina são, no fígado, convertidos em ureia. 9- O músculo é um importante local de degradação dos aminoácidos ramificados (valina, leucina e isoleucina). No processo de degradação destes aminoácidos o seu grupo amina pode acabar como azoto da alanina ou da glutamina. A alanina e a glutamina constituem, em conjunto, 60% dos aminoácidos libertados pelos músculos. (1) A alanina é uma forma de transporte de azoto e de carbonos do músculo para o fígado sendo este transporte um dos componentes do chamado ciclo da alanina. A alanina libertada pelo músculo resulta de reacções de transaminação em que intervém o piruvato formado na glicólise muscular; esta alanina é captada pelo fígado servindo o azoto para a síntese de ureia e o esqueleto carbonado para a síntese de glicose que, libertada no fígado, pode ser usada como combustível pelo músculo. (2) Embora não seja consensual [1], admite-se que o esqueleto carbonado da glutamina libertada pelo músculo tenha origem na valina e na isoleucina. No seu catabolismo estes dois aminoácidos geram succinil-coa; no ciclo de Krebs o succinil- CoA pode formar α-cetoglutarato que (via transaminação ou via acção da desidrogénase do glutamato) gera glutamato e (via sintétase da glutamina) glutamina. Na origem dos grupos azotados da glutamina estariam quer os aminoácidos ramificados quer outros aminoácidos que possam sofrer desaminação no músculo. A glutamina, libertada pelo músculo, pode ser directa ou indirectamente (via alanina e amónio formados nos enterócitos a partir da glutamina) captada pelo fígado onde os carbonos podem gerar glicose e os azotos ureia. 10- Para além da ureia, um importante composto azotado da urina é o ião amónio (NH 4 + ). A maior parte do amónio excretado na urina forma-se nas células tubulares renais por acção da glutamínase (glutamina + H 2 O glutamato + NH 4 + ) e da desidrogénase do glutamato Página 3 de 6
4 (glutamato + NAD + α-cetoglutarato + NADH + NH 4 + ): o rim capta glutamina do plasma (com origem no músculo e, em situações de acidose, também no fígado) e usa os seus azotos para formar o amónio que excreta na urina. O valor do pka do ião amónio é de cerca de 9,3 encontrando-se por isso na forma protonada em phs fisiológicos. O ião amónio formado é segregado para o lúmen tubular representando uma forma de excreção de protões. A síntese e secreção de amónio pelo rim têm um papel homeostático na regulação do ph do meio interno aumentando em situações de acidose. 11- Para além da ureia e do amónio urinários existem outras formas de eliminar o azoto que foi obtido através da ingestão de proteínas. Essas outras formas são a eliminação urinária de creatinina (formada com azoto da arginina e da glicina) e de ácido úrico (formado com azoto das purinas que por sua vez veio da glicina, do aspartato e da glutamina) e a eliminação de proteínas inteiras e outros produtos azotados nas fezes, tegumentos e genitais. No seu conjunto cerca de 16% da massa das proteínas é azoto. No adulto, mesmo na ausência de ingestão de proteínas, um mínimo de cerca de 25 g de aminoácidos são diariamente perdidos. Se admitirmos que as proteínas ingeridas contêm os aminoácidos nutricionalmente indispensáveis nas quantidades que permitem repor os que foram degradados seria de admitir que a absorção de 25 g de aminoácidos (ingeridos normalmente na forma de proteínas) seriam suficientes para compensar as perdas e permitir um balanço azotado (azoto ingerido azoto eliminado) nulo. No entanto, parte dos aminoácidos que são ingeridos sofrem catabolismo imediato ou nem sequer são absorvidos e por isso, para manter balanço azotado nulo, há que ingerir mais aminoácidos do que aqueles que são obrigatoriamente perdidos no contexto de uma dieta proteica nula. 12- Em geral, recomenda-se uma ingestão diária de, pelo menos, 0,8 g de proteínas por kg de peso (54 g num indivíduo adulto de 70 kg). Porque os mamíferos não fazem reservas de aminoácidos, um adulto saudável que não faz musculação nem está a engordar está em equilíbrio azotado (tem um balanço azotado nulo) e em resposta a um aumento da ingestão de proteínas aumenta o catabolismo dos aminoácidos. Para o total do azoto eliminado também contribui o azoto das proteínas das células da pele ou das mucosas que no seu processo de renovação cíclica descamam assim como as proteínas da dieta cujo digestão e absorção é incompleta. A digestão incompleta de proteínas é mais marcada no caso das proteínas dos alimentos vegetais. Dependendo da dieta as perdas nas fezes podem constituir cerca de 20% do total do azoto eliminado diariamente sendo que o restante é, quase todo 2, eliminado na urina. Embora varie com a quantidade de proteínas ingeridas e de outras condições, cerca de 85% do azoto urinário é azoto ureico sendo o restante componente de diversos compostos azotados da urina (ácido úrico, creatinina, amónia, etc.). Assim, se admitirmos que à ingestão de 100 g/dia de proteínas (a ingestão média nos EUA) corresponde uma absorção de 80 g/dia a eliminação de ureia poderia ser de cerca de 23g /dia (80g * 0,16 * 60/28 * 0,85) A velocidade com que o azoto dos aminoácidos é convertido em ureia depende da velocidade de desaminação e oxidação dos aminoácidos (catabolismo dos aminoácidos) e da actividade das enzimas do ciclo da ureia. A actividade das enzimas envolvidas nestes processos aumenta sempre que existe aumento de aminoácidos livres no fígado. Este aumento de aminoácidos livres tanto pode ser uma consequência de aumento da ingestão de proteínas na dieta como resultar do jejum ou de deficit de ingestão calórica. Nestes últimos casos, a proteólise endógena está aumentada fornecendo 2 Cerca de 0,5 g de azoto (correspondente a 3,1 g de proteínas) é eliminado por dia nos tegumentos e genitais. 3 16% é a percentagem média da massa de azoto nas proteínas; 60/28 é a razão entre a massa molecular da ureia e a massa dos átomos de azoto na ureia. Página 4 de 6
5 aminoácidos como substratos da gliconeogénese. De notar que, pelo contrário, uma dieta equilibrada do ponto de vista energético e deficiente em proteínas provoca diminuição da proteólise e do catabolismo dos aminoácidos. O aumento da actividade das enzimas do ciclo da ureia é uma consequência do aumento da transcrição dos genes que as codificam. No entanto, no caso da sintétase de carbamil-fosfato I, a actividade depende estritamente da presença de um activador alostérico: o N-acetil-glutamato. A enzima responsável pela síntese deste composto denomina-se síntase do N-acetil-glutamato (acetil-coa + glutamato N-acetil-glutamato + CoA) e está activada, provocando activação da sintétase de carbamil-fosfato I quando a dieta é rica em proteínas. 14- Um outro factor que pode influenciar a velocidade de oxidação e catabolismo dos aminoácidos é a composição aminoacídica da dieta. Se uma dieta é deficiente num aminoácido essencial a síntese proteica está prejudicada e aumenta a concentração de aminoácidos livres. Existem aminoácidos que, em condições normais, seriam usados na síntese proteica e que, nestas circunstâncias, vão sofrer catabolismo. Uma dieta deficiente num aminoácido essencial provoca aumento do catabolismo dos outros aminoácidos. 1. Stipanuk, M. H. (2006) Biochemical, Physiological, Molecular Aspects of Human Nutrition, 2nd edn, Sunders, Elsevier., St. Louis. Página 5 de 6
6 Página 6 de 6 Metabolismo do azoto e ciclo da ureia Rui Fontes
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