O ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO AO EGRESSO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO- RELATO DE EXPERIÊNCIA

Transcrição

1 O ACOMPANHAMENTO PSICOLÓGICO AO EGRESSO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO- RELATO DE EXPERIÊNCIA Grayce Lourdes Amboss Merçon Leonardo- Especialista em Psicologia Clínica e Jurídica Kênea Peixoto Lasmar- kpeixotolasmar@hotmail.com Especialista em Psicodrama e Terapia Familiar Olhe para mim. Por favor, me veja. Não minhas roupas ou unhas curtas Ou minha face descuidada. Abra seu coração, de modo a ver o meu. Não estou lhe pedindo para concordar com Ou compreender tudo o que vê, Pois nem mesmo eu faço isso. Apenas olhe para o que está realmente aqui E permita ser. Peg Hoddinott 1- INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo relatar a experiência de atendimento ao indivíduo que se encontra em liberdade, através do instituto penal chamado Regime Aberto, no Serviço Social e Psicológico da Vara de Penas e Medidas Alternativas de Vitória/ES SSP/ VEPEMA. O referido regime deve ser cumprido na Casa de Albergado, espaço este em que o indivíduo que está cumprindo uma pena tem o direito de sair durante o dia para trabalhar ou estudar, devendo retornar à noite e ali permanecer também nos finais de semana. Tendo em vista a região metropolitana de Vitória/ ES não ter tal estabelecimento prisional, o Juiz da VEPEMA substituiu este recolhimento noturno e de final de semana, numa Prestação de Serviço à Comunidade (PSC) até Agosto de 2008 quando, através da Portaria 002/08, foi adotado a Prisão Domiciliar de final de semana. Porém, o projeto continua acontecendo como ferramenta de trabalho dos profissionais.

2 Em dezembro de 2004, os técnicos que estavam atendendo ao Regime Aberto elaboraram um projeto de atendimento para esta clientela, onde acrescentavam, além da modalidade de PSC, a educação, a profissionalização e a participação em grupos de desenvolvimento pessoal como forma de aplicação de medidas alternativas à Casa de Albergado. Tal proposta surgiu em função de uma pesquisa já realizada pelo Serviço Social e Psicológico da VEPEMA em 2001, quando foi constatado que 58,66% dos usuários do setor tinham a idade compreendida entre 22 a 35 anos, ou seja, faixa da população considerada economicamente ativa e que 48,11% cursaram até a 4ª série do ensino fundamental e 33,02% tinham de 5ª a 8ª série completa. Também foi observado que 97% não freqüentavam nenhum tipo de curso, seja educação formal ou profissionalizante. Assim, nasceu o projeto Educação, Profissionalização e Desenvolvimento como forma de Aplicação de Penas e Medidas Alternativas Recuperandos em Regime Aberto com PSC. Este projeto iniciou em janeiro de A equipe técnica era composta por 2 (duas) Assistentes Sociais e 1(uma) Psicóloga, depois foram sendo agregados ao grupo mais 1(uma) Assistente Social e 1(uma ) Psicóloga, pois a demanda de atendimento cresceu. O projeto consta das seguintes etapas: atendimento individual, onde é feita uma entrevista buscando coletar dados pessoais, familiares, de saúde, profissionais, processuais, sua história de vida antes de ser preso e após a prisão, verificando também o interesse e os recursos individuais para participação em grupos de vivência. Caso não seja de interesse do indivíduo participar dos atendimentos grupais, o mesmo continua no atendimento individual, porém deve fazer parte dos outros sub-projetos. Trabalhamos metodologicamente com a possibilidade de abordagem a partir de 03 (três) alternativas de inclusão, em sub-projetos que permitam o cumprimento da pena, tendo como princípio que o indivíduo pode freqüentar até mais de um. -Sub projeto Qualidade de Vida e Cidadania : São atividades mensais realizadas em grupos, cujos temas focam as relações intra e interpessoais, ministradas por psicólogos e assistentes sociais neste SSP/VEPEMA com o objetivo de propiciar reflexões e ações que possibilitem a elevação da auto-estima e melhoria do relacionamento na família e na comunidade.

3 -Sub projeto A Hora é Agora : Atividades voltadas à escolarização com enfoque básico na alfabetização, ensino fundamental e supletivo de segundo grau. -Sub projeto Eterno Aprendiz : Atividades para a capacitação profissional, com enfoque nas habilidades básicas, específicas de aprendizado de um ofício, possível de habilitá-los à geração de renda e ou colocação profissional no mercado de trabalho. Vemos que esse projeto vem preencher uma lacuna existente hoje no Sistema Prisional que é de dar assistência ao indivíduo recluso, favorecendo sua reinserção social. Conforme Liz (2004, p. 10) em Vettorazzi e Brito: Teoricamente, as pessoas que ingressam nesta estrutura teriam, de ao sair, estarem aptas a se reintegrar à sociedade o que inclui ter chances igualitárias de disputar uma vaga no mercado de trabalho, conforme prevê a legislação penal. O que se observa, no entanto, são lacunas que comprometem as garantias fundamentais do cidadão detido e a segurança de quem está do lado de fora. A inexistência de programas estatais para recuperação de presos dependentes de drogas é uma destas arestas. Eles dividem espaços com delinqüentes que cometeram outros tipos de crime como furto, assalto e estelionato em muitos casos de má fé e não para conseguir dinheiro para sustentar o vício - e esta mescla pode colocar à prova a individualidade de cada caso. (p.237) Ainda, segundo Vettorazzi e Brito (2005, p. 238) A pena privativa de liberdade como principal alternativa é uma construção social ocorrida através dos tempos a partir da racionalização das relações sociais. Dessa forma, urge construirmos outras formas de cumprimento de pena que não seja a privativa de liberdade, mas sim alternativa a esta, onde o sujeito infrator possa cumprir sua pena de forma digna e que a mesma lhe seja um ponto de partida para mudanças em sua vida. Luppe e Sotolani em seu artigo Penas Alternativas: solução para o problema carcerário no Brasil (13/05/2006) aborda sobre o sistema prisional, colocando o seguinte:

4 (...) o sistema prisional brasileiro neutraliza a formação ou desenvolvimento de valores, estigmatiza o ser humano, funciona como uma máquina de reprodução na carreira do crime, introduz na personalidade a prisionalização da nefasta cultura carcerária, estimula o processo de despersonalização e legitima o desrespeito aos direitos humanos. Nota-se assim que o desrespeito ao preso não atinge apenas aos seus direitos, agridem sua própria condição de ser humano, rebaixando-os a situação de animais insignificantes ( 2000, p. 07) As duas Psicólogas que atuam no Regime Aberto têm como orientação teórica a Abordagem Centrada na Pessoa. Esta abordagem tem como hipótese central a que o indivíduo tem dentro de si mesmo, vastos recursos para auto-compreensão, para alterar seus conceitos sobre si mesmo suas atitudes e seus comportamentos autodirigidos e que esses recursos podem ser liberados, somente se um clima definido de atitudes psicológicas facilitativas puder ser promovido (Carl Rogers, 1987, p. 67). Essas atitudes facilitadoras utilizamos como ferramenta de trabalho para alcançarmos êxito no nosso atendimento e na aplicação do projeto. Assim, partindo de um referencial teórico que acredita na potencialidade do homem, nos seus vastos recursos de autoconhecimento e de modificação de atitudes e comportamentos, buscamos estabelecer uma relação de ajuda com o nosso cliente com a intenção de ajudá-lo a fazer mudanças construtivas em sua vida. MIRANDA & MIRANDA (1989) acreditam que a relação de ajuda ocorre no encontro entre duas pessoas e será através desse encontro que o ajudador vai acolher o ajudado e construir a base de uma relação a dois. O relacionamento de ajuda é desenvolvido a cada encontro de modo a render o máximo para ambos. É como se o ajudador formasse a imagem do ajudado nos momentos iniciais, checando o quanto de abertura e disponibilidade pode esperar dele. A partir dessa concepção, o nosso trabalho consiste em cooperação entre profissional e cliente, cujo objetivo é construir uma relação de ajuda, sem no entanto, efetivar qualquer tipo de julgamento, objetivando proporcionar a descoberta ou redescoberta da auto-estima, da auto-confiança e do amadurecimento emocional e conseqüentemente, seu crescimento pessoal, o que facilitará uma melhor reinserção na sociedade, resgatando sua cidadania.

5 A nossa preocupação com o usuário do setor vai desde o ambiente físico até o atendimento com o técnico. Entendemos que o ambiente físico deve ser acolhedor, um espaço limpo, onde a pessoa que ali esteja sinta-se bem. Conforme MIRANDA & MIRANDA preparar o ambiente é arranjar o ambiente físico em que o ajudado vai ser atendido, levando em conta que este ambiente é a extensão do atendimento do ajudador. Se cuido do ambiente físico, cuido indiretamente do ajudado, de modo a fazê-lo sentir-se valorizado (p. 43). Entendemos também que o primeiro atendimento é determinante no estabelecimento da relação, mas não descuidamos de nenhum atendimento, procurando sempre acolher o indivíduo que chega, seja pela primeira vez, seja nos atendimentos mensais ao longo de sua pena. Neste ponto, observamos que o modelo de ajuda descrito anteriormente tem algo em comum com a Abordagem Centrada na Pessoa. Rogers enfatiza as seguintes qualidades que são consideradas como atitudes facilitadoras, fundamentais para o processo terapêutico ser bem sucedido: a Empatia, a Congruência e a Aceitação Positiva Incondicional. A Empatia é a capacidade do Psicólogo se colocar no lugar do outro, mostrando uma real compreensão pelos sentimentos de seu cliente. Essa atitude em relação à nossa clientela é de fundamental importância na medida em que são pessoas que pela própria história de vida e por já terem estado presos, pouco tiveram a oportunidade de serem realmente ouvidos em seus sentimentos. A Congruência é outra atitude importantíssima, pois se refere ao próprio Psicólogo. É a capacidade do profissional de se escutar e enfrentar o que há dentro de si com aceitação. Através desta abertura, nossa intuição nos guia para o agir com espontaneidade e propriedade nas diversas situações. Esta harmonia entre o que está acontecendo na intimidade e o que transparece por fora é o que compreendo por congruência... Para mim, a essência da congruência é enfrentar a coisa como ela é e separá-la de nossas projeções e distorções (BOWEN, p. 64-5).

6 Dessa forma, quanto mais o psicólogo se dispuser a fazer esse contato com seu interior, mais saberá escutar-se e enfrentar o que está dentro de si com mais clareza e espontaneidade e assim, mais preparado para ajudar seu cliente em sua viajem interior. A Aceitação Positiva Incondicional é entendido como aceitar o meu cliente como ele é, sem julgamentos ou juízo de valor. Quando faço isso, facilito o meu contato com o cliente, bem como sua auto aceitação. Estamos fazendo essas colocações, pois na nossa busca incessante de tentar entender aquele indivíduo que se apresenta mensalmente no Serviço Social e Psicológico, trazendo toda uma gama de problemas e perguntas, buscando uma resposta para suas indagações, foi através de uma postura de respeito e valor incondicional à pessoa que obtivemos melhores resultados ao trabalho que desenvolvemos. Dessa forma, vimos que através de um atendimento onde se respeita o indivíduo, independente dos atos infracionais que fez, podemos ter esperança de que o ser humano é capaz de mudanças positivas em sua vida. Mesmo trabalhando no Judiciário que tem uma visão completamente diferente do indivíduo infrator, para o qual o tratamento deve ser punitivo e retributivo segundo o seu delito, conseguimos incluir nesse sistema de forças, o reconhecimento desse sujeito como uma pessoa de valor incondicional. Para finalizar, trazemos um trecho de uma pesquisa realizada com a clientela sobre a atuação dos profissionais no SSP/VEPEMA. Segundo LASMAR (2006): Durante a pesquisa visualizamos os pontos positivos de nossa intervenção sob os diferentes pontos de vista pesquisados. De uma forma geral, o que mais foi explicitado, foi sobre a oportunidade do egresso ser bem tratado, respeitado como ser humano, resgatar sua cidadania, visando investimento em seu potencial para que ocorra a ressocialização, inserção no mercado de trabalho e conseqüentemente, a grande diferença da intervenção realizada no regime fechado. Desta forma, existe a convicção de que nosso trabalho tem contribuído de alguma forma para o processo de restauração e da construção do respeito, da cidadania e dos direitos humanos

7 dessa parcela da população egressa. Enxergamos o mesmo como uma oportunidade de mudança... (p.59). 3 - REFERÊNCIAS BOWEN, M. C. V.B. Psicoterapia: o processo, o terapêutico, a aprendizagem. In: Santos, A.M., Rogers, C.R. E Bowen, M.C.V.B. Quando fala o coração: a essência da psicoterapia centrada na pessoa. Porto Alegre: Artes Médicas, LASMAR, K.P. A justiça proporcionando alternativas ao egresso do sistema prisional do Espírito Santo. Vitória, Tese (Curso de Especialização em Família) CEAF / FDV. MIRANDA, C.F.. MIRANDA, M.L. Construindo a relação de ajuda. 5.ed. Belo Horizonte: Crescer, ROGERS, C. R. Abordagem centrada no cliente ou abordagem centrada na pessoa.in: In: Santos, A.M., Rogers, C.R. E Bowen, M.C.V.B. Quando fala o coração: a essência da psicoterapia centrada na pessoa. Porto Alegre: Artes Médicas, VETTORAZZI, M.S. BRITTO, M.A. Reinserção social de egressos do sistema prisional. In: Cruz, R.M., Maciel,S.K., Ramirez, D.C. O trabalho do psicólogo no campo jurídico. São Paulo:Casa do Psicólogo,2005.