VOCÊ CONCORDA COM O PERSONAGEM? VAMOS DISCUTIR? RELAÇÕES INTERATIVAS EM DISCUSSÃO DE HISTÓRIAS MEDIADAS PELO PROFESSOR
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1 VOCÊ CONCORDA COM O PERSONAGEM? VAMOS DISCUTIR? RELAÇÕES INTERATIVAS EM DISCUSSÃO DE HISTÓRIAS MEDIADAS PELO PROFESSOR Alessandra Cardozo de Freitas 1 Maria do Carmo Fernandes Lopes 2 Marly Amarilha 3 Na atividade de discussão, seja qual for a natureza do assunto, a interação entre sujeitos constitui-se em um dos aspectos fundamentais, considerando-se que somente se instaura uma discussão (em termos do confronto de idéias) quando os interlocutores se mostram mutuamente dispostos a interagir. Mas é preciso entender que para vivenciar essa relação interativa em sua plenitude não se faz suficiente apenas (apesar de fundamental) a disposição dos interlocutores no sentido da aceitação eventual do ponto de vista do outro. Mesmo porque a existência desse contato intelectual pressupõe a formação de uma comunidade efetiva de espíritos, no dizer de Perelman (1996), que, por sua vez, exige um conjunto de condições, quais sejam: a existência de uma linguagem em comum, de uma técnica que possibilite a comunicação; a necessidade da defesa de um ponto de vista (ou tese) e a assunção de uma atitude ética por parte do mediador (orador), a quem também cabe organizar a progressão do discurso. É fundamentando-se nessa compreensão que se analisa, neste texto, o modo como o professor interage com os alunos em discussão de histórias. Esse objetivo desdobra-se em um segundo, que é refletir sobre estratégias pedagógicas que ajudem o professor a potencializar as relações interativas nessa atividade. As discussões de histórias aqui analisadas concretizaram-se a partir da pesquisa O ensino de leitura: a contribuição das histórias em quadrinhos e da literatura infantil na formação do leitor (AMARILHA, ), um estudo de natureza quase-experimental que investigou a contribuição dos gêneros Histórias em Quadrinhos e Contos de Fadas na formação do leitor, em três turmas de 4ª série (A, B e C, esta última dita de controle), do ensino fundamental, de uma escola pública de Natal RN. O trabalho empírico desenvolveu-se ao longo de 10 (dez) sessões de leitura por turma. Em cada sessão, foi contada uma história em quadrinhos e um conto de fada correlato. A abordagem desses gêneros textuais teve 1 Doutora em Educação. Professora da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte UERN. Líder do Núcleo de Pesquisas em Educação UERN. 2 Doutoranda em Educação. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 3 Doutora pela University of London, UL, Inglaterra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Líder do grupo de pesquisa Ensino e Linguagem. Orientadora deste artigo.
2 2 como método orientador a experiência de leitura por andaime (GRAVES e GRAVES, 1995), envolvendo atividades de pré-leitura, leitura oral das histórias e discussão subseqüente à leitura do texto. As sessões de leitura foram conduzidas pelas próprias professoras de sala de aula, após estas terem participado, à exceção da professora da turma C, de estudos teóricos e metodológicos sobre leitura, literatura e formação do leitor, contando com a orientação dos pesquisadores, que também compareceram às sessões na condição de observadores. Visava-se, com tal procedimento, realizar uma análise comparativa do desempenho das professoras. No estudo que ora se desenvolve, avalia-se, em específico, a mediação das professoras nas discussões de histórias provenientes da 4ª (quarta) sessão de leitura realizada nas três turmas. Nessa sessão, foram trabalhados os textos Cascão em o porquinho borralheiro (SOUSA, 2002) e A gata borralheira (GRIMM, 2003). Para proceder à avaliação docente em tal atividade, faz-se ancoragem nos seguintes questionamentos: 1. As professoras revelam apreço pela participação dos alunos nas discussões, demonstrando disposição para aceitar o seu (deles) ponto de vista? 2. As professoras fazem uso de alguma estratégia específica para garantir a progressão da argumentação? 3. As professoras expressam-se com clareza e objetividade ao encaminhar perguntas sobre o texto, adequando o seu nível de linguagem ao de seus alunos? 4. As professoras acolhem as respostas dos alunos considerando as possibilidades de leitura que o texto apresenta, ou tentam impor o seu ponto de vista como o único verdadeiro? Vale ressalvar que tais questionamentos serão propostos na avaliação do desempenho de cada docente, por turma, fazendo-se, em seguida, uma análise comparativa entre as professoras assistidas pelos pesquisadores e a professora do grupo de controle. Discutir sobre a história contada constitui uma atividade significativa para o aluno, que, ao externar seus pensamentos, ordena as idéias e reflete sobre as emoções por ele vivenciadas no decurso da leitura das histórias. Nessa direção, Bettelheim (1996, p. 75) afirma que [...] quando o contador dá tempo às crianças de refletir sobre as estórias, para que mergulhem na atmosfera que a audição cria, e quando são encorajadas a falar sobre o assunto, então a conversação posterior revela que a estória tem muito a oferecer emocional e intelectualmente.
3 3 O autor faz um alerta sobre a importância de se considerar as reações que as histórias provocam nas crianças, conversando ou discutindo com elas. Ressalta, ainda, que essas reações revelam contribuições de ordem afetiva e cognitiva provenientes da escuta de histórias. Na interação das professoras com seus alunos, durante as discussões das histórias, constatou-se que o esquema interativo predominante (em todas as turmas) foi, essencialmente, a elaboração de paráfrase e/ou descrição de cenas, mediante perguntas fechadas direcionadas ao exercício de identificação. A professora da turma A, por exemplo, preocupou-se, inicialmente, em verificar as previsões formuladas, aspecto esse significativo em sua interação com os alunos. Posteriormente (em ambas as discussões com a HQ e com o conto de fada), ela procedeu à paráfrase da história lida, recorrendo, para tanto, a perguntas fechadas, cujas respostas retomam informações da estrutura aparente do texto. Segundo Smith (1991, p. 42), a estrutura aparente é a informação visual da linguagem escrita. Já a atribuição de sentido, que o leitor elabora em interação com o texto, faz parte da estrutura profunda da linguagem, não podendo ser diretamente observada nem medida. Observou-se também um número reduzido de episódios de confronto de idéias, caracterizando a existência de discussão, tal como se pode verificar no episódio transcrito a seguir. Episódio 1 (episódio referente à discussão da HQ Cascão em o porquinho borralheiro, turma A) Profª Lygia Eduardo, você limpa casa, passa roupa, passa pano no chão, lava sua roupa? Eduardo Eu lavo minhas meias. Profª Lygia Só suas meias? Eduardo E meus tênis. Profª Lygia Você não lava louça? Eduardo Às vezes. Prof.ª Lygia Aqui mostra Cascão fazendo papel de quê? Alunos De empregada, professora, lavando a louça. Prof.ª Lygia De empregada, fazendo as coisas do castelo? Eduardo Quem faz isso é minha prima. Prof.ª Lygia Por que sua prima? Eduardo Porque ela já é grande. Prof.ª Lygia Mas por que ela? Eduardo Porque o homem tem que trabalhar de outro jeito e mulher em casa. Prof.ª Lygia Deixe eu fazer uma pergunta. Sua mãe trabalha em casa? Eduardo Sim. Prof.ª Lygia Mas ela trabalha também fora de casa, não é? Eduardo Não. Prof.ª Lygia Agora não, porque ela está desempregada, mas que trabalha, ela trabalha. Então ela dá conta do trabalho fora de casa, dos filhos e da casa. Por que o homem também não pode fazer isso? Tem que ser só a mulher?
4 Eduardo Meu pai faz. Prof.ª Lygia Por que você acha isso, só a mulher que tem de fazer? Eduardo Porque a mulher é diferente do homem. Prof.ª Lygia Em quê? Eduardo Eu sei lá! Prof.ª Lygia Uma característica física? Eduardo Sim, acho que é. Prof.ª Lygia Só isso!? Isaac É porque mulher é mulher, e homem é homem. Eduardo Tem coisa que o homem faz que a mulher não faz. Prof.ª Lygia O que, por exemplo? Eduardo Pegar peso. Prof.ª Lygia Dê só um exemplo das coisas que homem pode fazer e mulher não pode. Prof.ª Lygia Gente, um de cada vez. Num tempo bem remoto, lá atrás, suas avós eram só educadas para serem donas de casa. Tomar conta dos filhos. Tinha que esperar o marido chegar, que ele trabalhava para comprar alimento. Mas só que faz muito tempo que isso não acontece. Eu sou um exemplo. Eu tenho que trabalhar para ajudar meu esposo a tomar conta da casa. Eu tomo conta dos meus filhos, na educação deles. E isso não deixa meu marido de fora. Ele lava louça, lava banheiro. Sempre que for preciso, e é preciso sempre. Prof.ª Lygia Eu já vi uma motorista de ônibus. Quem já viu? Alunos Eu já vi! Prof.ª Lygia Eu já vi a cobradora trocar o pneu que o motorista não sabia trocar. Achei incrível. Eu também nunca tinha visto isso. Isaac Tem mulher que pode fazer a barba. Jameson Ela tem bigode? Prof.ª Lygia Yasmin, fale alguma coisa que eu ainda hoje não ouvi sua voz. O que você achou dessa história de Cascão fazer atividades domésticas? Yasmin É certo. Alunos É errado. Prof.ª Lygia É certo por quê? Yasmin [...] Prof.ª Lygia Na sua casa, seu pai ajuda em alguma coisa? Yasmin Sim. Prof.ª Lygia Faz ou espera pela sua mãe? Faz né? Hoje é comum a gente vê homem fazendo tarefas domésticas. Prof.ª Lygia Vamos escutar aqui o que Milena está dizendo. Milena Minha mãe diz que meu pai e meu irmão não podem fazer essas coisas. Prof.ª Lygia Então só a mulher pode fazer as coisas? Milena Eu e ela. Aluno Porque ela é boa. Prof.ª Lygia Só porque ela é boa? 4
5 5 Prof.ª Lygia Seu pai falou isso? Quando os dois saem para trabalhar, quando os dois chegam tem que continuar, só que agora com as tarefas domésticas. Porque saem muito cedo, chegam de noite, muitas vezes não podem vir em casa para almoçar. Nesse episódio, como se evidencia, a professora referida (turma A) fez progredir a discussão sobre o tema em pauta (machismo), encaminhando questionamentos nos quais ficam subentendidos seus possíveis contra-argumentos, uma vez que ela, ao testar as convicções dos alunos quanto às teses que defendem, deixa subjacente a seu discurso um ponto de vista contrário ao de seu interlocutor. Na prática, a professora, ao questionar os alunos, tenta levá-los a justificarem seus pontos de vista, favorecendo, com essa estratégia, a verticalização de idéias e a construção de argumentos convincentes, demonstrando, por tal procedimento, uma atitude ética em relação ao outro (seus alunos), condição sine qua non para o estabelecimento de relações interlocutivas proficientes. Diferentemente da professora da turma A, a professora da turma B restringe-se tão-somente a reproduzir (de modo quase literal) as afirmações dos alunos por meio de reiterações das falas destes. E mesmo quando encaminha perguntas, estas correspondem à mera paráfrase de trechos das histórias, não abrindo espaço para qualquer intervenção dos alunos, de modo a possibilitar o estabelecimento de relações interlocutivas que poderiam desencadear a discussão em favor da verticalização do tema subjacente às histórias lidas, como se pode constatar no episódio transcrito abaixo. Episódio 2 (episódio referente à discussão da HQ Cascão em o porquinho borralheiro, turma B) Prof.ª Adélia Eu queria perguntar o que tem de surpreendente na historia. Marcela, conta aí pra mim! Prof.ª Adélia Na página 06, o que você achou engraçado? Marcela O Cascão escorregar. Prof.ª Adélia Na história, Cascão faz serviços domésticos, de casa? Marcela Faz. Prof.ª Adélia Mas em que momento ele começou a fazer esses serviços domésticos? Por quê? ((Os alunos falam ao mesmo tempo)) Prof.ª Adélia Por que a mãe dele foi embora? Aluna Porque os pais dele foram seqüestrados pelas gêmeas. Elas colocaram ele para fazer todo trabalho doméstico. Prof.ª Adélia E as gêmeas eram o quê? Aluno Eram más. Prof.ª Adélia As gêmeas eram más? Aluno Porque o pai dele e a mãe dele se perderam por causa das gêmeas. Prof.ª Adélia O pai e a mãe se perderam por causa das gêmeas? Cristiane Elas tramaram que elas ficassem com o reino e Cascão ficasse como escravo delas. Prof.ª Adélia Elas ficaram com inveja da vida de Cascão. Diga, Jéssica, qual era o papel de Cascão nessa história?
6 6 Alunos De menino. Prof.ª Adélia Ele era o quê? Alunos Escravo. Conforme já se havia anunciado, a professora mediadora dessa interlocução não revelou, nesse caso específico, um desempenho condizente no que se refere à condução de discussão de histórias, impossibilitando, assim, a instauração do processo argumentativo que se faria pertinente em atividades dessa natureza. Em substituição a essa passividade, decorrente de sua atuação no papel de um orador sempre em concordância com seu auditório, a professora deveria ter assumido uma atitude responsiva ativa, nos termos de Bakhtin (2003), na medida em que, na condição de sujeito mais experiente, possibilitaria aos alunos os meios apropriados para que estes pudessem ter a oportunidade de realizar uma leitura proficiente do texto em discussão. Dentre outras estratégias (que se incluiriam entre os ditos meios mais apropriados), a professora poderia, por exemplo, suscitar a heterogeneidade de opiniões mediante perguntas, de fato, problematizadoras que favorecessem a emergência de argumentos e contra-argumentos, orientando a discussão no sentido de oportunizar uma travessia consciente do plano da ficção para o da realidade e vice-versa. A professora da turma C tentou, embora de modo desarticulado, interagir com os alunos. Uma iniciativa vale ressalvar inoperante do ponto de vista do estabelecimento de relações interativas proficientes, vez que, em sua ação interveniente, se limitou a uma abordagem superficial da história, conduzindo a discussão pela recorrência a perguntas fechadas, tão-somente orientadas para a simples verificação de natureza léxico-semântica ao tratar de algumas palavras tomadas, de forma quase aletória, de passagens do texto. Verificou-se também a incidência de descontinuidade tópica, aspecto que interferiu de modo significativo na progressão discursiva, provavelmente uma decorrência da inexperiência da professora em mediar discussões dessa natureza, como se observa no episódio a seguir. Episódio 3 (episódio referente à discussão do conto A gata borralheira, turma C) Prof.ª Marina Ela chorava tanto que regou a planta e ela cresceu bonita, formosa, não foi isso? E na segunda vez que ela fugiu do príncipe, onde foi que ela se escondeu? Aluno não identificado Na árvore, na nogueira. Prof.ª Marina Atrás da árvore, né? Aonde ficava esta árvore, na casa dela? Alunos Atrás do castelo. Prof.ª Marina Atrás do castelo que ela se escondeu. No jardim, tinha uma árvore onde ela se escondeu. Que árvore era essa? Alunos Nogueira. Prof.ª Marina Que árvore era? Rafaela Pé de pêra. Prof.ª Marina Como se chama pé de pêra? Alunos Pereira
7 7 Prof.ª Marina Pereira também é um sobrenome, não é? ((Os alunos concordam com a professora)). Prof.ª Marina Na terceira noite de festa, no palácio, o que o príncipe fez para pegar a gata borralheira? Fez o quê? Gláucio Botou cola. Prof.ª Marina Botou cola? Michel Botou piche. Prof.ª Marina O que é piche? Michel É um bicho preto por dentro. Prof.ª Marina Bicho preto por dentro? Que bicho preto? É um líquido grosso que se coloca na rua para ficar bem lisinha. Pois ele colocou piche lá nos degraus. A análise comparativa do desempenho das professoras das turmas A e B em relação à professora da turma C (que não recebeu orientação dos pesquisadores) revela que esta última, contrariamente às duas primeiras, demonstrou maiores dificuldades em mediar a discussão de histórias, em virtude de sua insistência em recorrer a estratégias pouco adequadas para instaurar processos argumentativos que garantissem aos alunos uma navegação mais consciente entre os planos da ficção e da realidade. Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal.trad. de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, BETTELHEIM, B. A psicanálise dos contos de fadas. Trad. de Arlene Caetano. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, AMARILHA, M. O ensino de leitura: a contribuição das histórias em quadrinhos e da literatura infantil na formação do leitor. Projeto de Pesquisa. Natal-RN: UFRN/CNPq, Departamento de Educação, GRAVES, M. F., GRAVES, B. B. The scaffolded reading experience: a flexible framework for helping students get the most out of text. Reading. v. 29, n. 1, p Apr PERELMAN, C., OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado de argumentação: a nova retórica. Trad. de M. E. G. G. PEREIRA. São Paulo: Martins Fontes, SMITH, F. Compreendendo a leitura: uma análise psicolingüística da leitura e do aprender a ler. Trad. de Daise Batista. 3. ed. Porto Alegre. Artes Médicas, SOUSA, M. de. CASCÃO. Cascão em o porquinho borralheiro! Rio de Janeiro: Globo/ Editora, 2002, n.411. GRIMM, W; GRIMM, J. A gata borralheira. Recontado por Tatiana Belinky. Ilustração Elisabeth Teixeira. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2003.
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