TRIADES. Transversalidade Design Linguagens

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1 3 Transversalidade Design Linguagens

2 Rosane Zanotti Mestre em Design pela PUC-Rio Contribuições para o estudo do cotidiano pelas lentes do celular 3 RESUMO Este artigo trata da importância da investigação dos hábitos fotográficos cotidianos a partir das implicações que resultam da proliferação do telefone celular com câmera fotográfica. Aponta para o estudo da apropriação deste objeto manufaturado a fim de identificar seus impactos nos costumes e na caracterização de novos determinantes da realidade social, realçando um traço importante da sociabilidade contemporânea, marcada pela comunicação e pela busca incessante de soluções de mobilidade, sociabilidade e usabilidade. Palavras-chave: Comunicação, telefone celular, Fotografia. Contributions to the study of everyday life through the lens of mobile ABSTRACT This article discusses the importance of research of everyday photographic habits from the implications that result from the proliferation of cell phone camera. Study points to the appropriation of this manufactured object to identify its impacts on the customs and characterization of novel determinants of social reality, highlighting an important feature of contemporary social life, marked by communication and the relentless pursuit of mobility solutions, sociability and usability. Keywords: Communication Cell Phone, Photography.

3 1 Introdução Desde A comunicação por imagens faz parte dos hábitos inaugurais da humanidade e na sociedade atual esse é um fenômeno levado a limites nunca registrados. Apesar de ser um traço característico da constituição humana, a tradição do diálogo pelas imagens vem sendo potencializada por um modo de viver fortemente ligado à sua produção, difusão e consumo a partir do advento dos dispositivos e suportes digitais. As tecnologias digitais de informação e comunicação se apresentam, portanto, como uma base importante para um tempo que se configura por diversos ingredientes essenciais, de cunho econômico, técnico e comunicacional. É latente a experiência do que Sodré (2002) resume como sociedade midiatizada, um tempo no qual as relações socioeconômicas, culturais e políticas estão cada vez mais vinculadas às mídias, como internet e telefone celular, e também articuladas em torno de conteúdos midiáticos, produzidos pela indústria cultual contemporânea. Nesse novo modus vivendi, a cultura da imagem acaba por se disseminar e criar subjetividades fortemente vinculadas ao gosto, e ao desejo pela produção e pela propagação, ainda mais numa realidade em que os artefatos tecnológicos se simplificam, barateiam-se e agregam capacidades antes localizadas em suportes distintos. Nesse cenário de crescente popularização da produção de imagens, a câmera fotográfica ganhou então um parceiro, o telefone celular, que está revolucionando o uso de ambos e de muitas práticas socioculturais. O telefone celular com câmera é, portanto, um exemplo de objeto que contribui para o tipo de sociabilidade vivenciada neste momento da história. O artefato tem a capacidade de seduzir por suas características de dispositivo híbrido e onipresente, focado na tecnologia e na potencialidade de fotografar tudo sem custo, a qualquer hora, no fetiche do instantaneísmo, da portabilidade e da exibição ilimitada. Enfim, é a experiência de apertar o botão, salvar, descartar, publicar, compartilhar e ainda falar na câmera que é um celular. Ou celular que é câmera?

4 2 Quando Castells (2007) avalia a evolução da comunicação móvel digital e as implicações de seu uso generalizado no surgimento de um novo sistema de comunicação, o que se vê é a caracterização desse dispositivo enquanto agente transformador da vida cotidiana. Um instrumento que vem impactando as questões profissionais, as relações familiares e sociais, as atividades de lazer, segurança, consumo, moda e identidade. Nesse cenário em que um corpus de conhecimento se expande seguindo os passos da tecnologia, quando novos artefatos, novas funções, novos impactos e novos significados geram novas perguntas que surgem para compreender as transformações por que passam a comunicação interpessoal e as implicações sociais nesse movimento, nos interessa o fato de que os fotógrafos do cotidiano dispõem de um dispositivo ajustado ao seu desejo e exercício de bricolagem, à (re) invenção diária dos registros da vida. DISPOSITIVO HÍBRIDO E SOCIEDADE MIDIATIZADA Nos últimos 15 anos a telefonia móvel celular deixou de ocupar uma posição elitista para conquistar uma posição popular. De maneira geral, e no mundo todo, esse crescimento se dá em escala inédita entre as tecnologias de comunicação (Castells, 2007). O ranking que quantifica o total de assinaturas para cada grupo de 100 habitantes foi liderado pelos países da America do Norte até 2001, e desde então os países da União Européia apresentam os índices mais altos de teledensidade. No final de 2010 os países europeus mais uma vez lideraram a média por grupo de 100 habitantes, contabilizando 120 acessos 1 para cada 100 habitantes, enquanto nas Américas o total chegou a 94,1. A média mundial fechou no ano de 2010 em 76,1 acessos, e nesse cenário o Brasil já contava com 104,68 assinaturas 2 para cada 100 habitantes. 1 International Telecommunication Union (ITU). Consulta aos dados estatísticos. Disponível em: < Acesso em: 25 fev Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Consulta à Consolidação dos Serviços Móveis no Brasil. Disponível em: < Acesso em: 25 fev

5 3 A constante atualização destes números não carrega apenas dados quantitativos, uma vez que a telefonia móvel promoveu grandes transformações nas interações sociais. Como bem anota Nicolaci-da-Costa (2004), o celular é um elemento-chave da vida contemporânea, na medida em que provê a mobilidade conectada, tão requerida pelos moldes da vida líquida e nômade da contemporaneidade midiatizada e global (Bauman, 2001; Sodré, 2002; Castells, 2000). Essa mobilidade se configura como um princípio importante da cultura digital, definida por Amadeu (2009, p. 67) como aquela que nasce no interior, e a partir da expansão das redes digitais. E é justamente o resultado dessa expansão das redes, com a presença dos sujeitos via compartilhamento, colaboração ou participação efetiva, que contribui para a reconfiguração de muitos pontos da cultura popular. A mobilidade comunicacional multimidiática permite ou é usada, na intenção de criar, reforçar ou manter laços e pertencimentos diversos. Reportando análise sobre celularescâmeras, Lemos (2009, p.32) identifica que o uso desses artefatos parece responder à necessidade de parte dos usuários de inserir suas relações num determinado contexto e também de se apropriar visualmente de seu lugar social. Tal possibilidade de apropriação visual e de narrativa imagética da vida diária teve início na década de A primeira câmera fotográfica portátil disponível para o registro cotidiano foi criada por George Eastman em 1888, quando então a Kodak realmente popularizou a fotografia. Com o slogan Aperte o botão, nós fazemos o resto foi apresentada a solução para registros feitos pelos próprios sujeitos, sem a necessidade de técnicas rebuscadas (Gernsheim, 1991). O rompimento da barreira da impossibilidade de compra de equipamentos pelos usuários amadores fez fronteira com um tempo marcado pela profusão crescente de imagens. Lissovsky (2008) e Sontag (2004) deixaram claro que a fotografia encontrou no espírito da modernidade a condição ideal para seu surgimento.

6 4 Se Eastman vendia suas câmeras Kodak com o argumento de que qualquer um poderia fotografar, libertando-se do peso dos primeiros equipamentos, da incompreensão dos processos técnicos rudimentares e da reserva de mercado dos especialistas e tutores dos direitos de usar os daguerreótipos e similares, hoje avança para muito além. À simplicidade característica das câmeras automáticas que muito contribuiu para viabilizar a fotografia amadora é somado o incremento do digital, que reduziu o custo do processo fotográfico e acelerou a entrega da imagem ao fotógrafo, agora imediatamente e no mesmo artefato responsável pelo registro. Com o advento da imagem digital é latente o que Santaella (2006) identifica como fim da ritualização da captura, o que torna qualquer momento fotografável. E, com a incorporação da câmera fotográfica no aparelho de telefonia celular, cada vez mais pessoas se tornam potenciais fotógrafos 24 horas por dia, dando vazão à suas necessidades e desejos de registro, expressão, conexão e compartilhamento, entre outros requisitos tão centrais à midiatizada vida atual. Talvez Martin Cooper não pudesse imaginar todas as possibilidades de uso vinculadas a um só aparelho quando liderou a equipe responsável pela criação do DynaTAC, cujo protótipo foi utilizado para a primeira chamada de um telefone móvel do mundo na cidade de Nova York, em abril de Na ocasião Cooper patenteou o novo artefato com o nome de sistema telefônico de rádio (Donohoe, 2010) e atribuiu o projeto ao fato de as pessoas quererem falar uma com outras de qualquer lugar. Desejo comprovado e amplamente constatado: celulares são para pessoas em movimento (Bauman, 2001, p. 78). Talvez o engenheiro não pudesse prever que num futuro próximo o celular se transformaria em uma importante ferramenta tanto para a produção, envio e recebimento de dados, como para assumir as mais distintas funções a partir de diversas possibilidades de conexão. E a função relacionada à fala passasse, portanto, a ser somente um dos itens da extensa lista de especificações técnicas desses aparelhos, que não podem mais ser considerados apenas telefones, pois tornaram-se metadispositivos (Aguado; Martinez,

7 5 2006) que reúnem funções e usos importantes, próprios da sociedade da informação. Na operação dessa agregação tecnológica, o Design se coloca como um campo decisivo, pois além de ter como tarefa a compreensão dos usos e efeitos dos objetos, as relações estabelecidas e os significados a eles atribuídos (Löbach, 2001; Bürdek, 1999), deve se ocupar do resultado da apropriação dos objetos materiais, identificando seus impactos nos costumes e na caracterização de novos determinantes na realidade social. A proposta de estudo do cotidiano pelas lentes do celular tem ponto de partida o pressuposto de que atributos da nossa cultura se atualizam e se reconfiguram a partir do uso de artefatos. Interessa especificamente como um dado de nossa cultura se atualiza e se reconfigura, em especial a partir do aprimoramento de um artefato tecnológico, unindo os campos do Design e da Comunicação. Estudar a produção de imagens fotográficas registradas a partir das lentes de um dispositivo híbrido, que permite fixar olhares e transmitir vozes, é buscar entender um traço importante da sociabilidade contemporânea, marcada pela comunicação e pela busca incessante de soluções de mobilidade, portabilidade e usabilidade. É debruçar sobre os objetos como veículo social (Forty, 2007), buscando entender o que acontece depois que os mesmos passam a circular no mundo. Referências: AGUADO, J. M.; MARTINEZ, I. J. El proceso de mediatización de La telefonia móvil: de La interacción AL consumo cultural. Zer Revista de Estúdios de Comunicación, Espanha, n. 20, mai AMADEU, S. In: SAVAZONI, R.; COHN, S. (Orgs). Cultura digital.br. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, BAUMAN, Z.. Modernidade líquida. Tradução Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., BüRDEK, B. Diseño: historia, teoria y práctica del diseño industrial. Barcelona: Gustavo Gilli, 1999.

8 6 CASTELLS, M. et al. Comunicación móvil y sociedad. Barcelona: Ariel e Fundação Telefônica, A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, DONOHOE, A. The History & Future of the Mobile Phone. Irlanda, Disponível em: < resources.html>. Acesso em 12 jan FORTY, A. Objetos de Desejo. Tradução Pedro Maia Soares. São Paulo: Cosac Naify, GERNSHEIM, H. Creative photography: aesthetic trends, New York: Dover Publications JORGE, Joaquim A, Santos, Santos, Beatriz Sousa et. al. Encontro Português de Computação Gráfica: Formato das Contribuições, Dezembro de LEMOS, A. Cultura da mobilidade. Porto Alegre: Revista da Famecos, LISSOVSKY, M. A máquina de esperar: origem e estética da fotografia moderna. Rio de Janeiro: Maud X, LöBACH, B. Design industrial: bases para a configuração dos produtos industriais. São Paulo: Ed. Edgard Blücher, NICOLACI-DA-COSTA, A. M.; LEITÃO, C. F.; ROMÃO-DIAS, D. Como conhecer usuários através do Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). In: Symposium on Human Factors in Computers System, 6., NOJIMA, V. L. Os estudos das linguagens como apoio aos processos metodológicos do Design. In. COELHO, Luiz Antonio L. (organizador). Design Método. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; Teresópolis: Novas Idéias, 2006 pp NOJIMA, V. L. e ALMEIDA Jr., L.. Design Comunicação Semiótica: estudo e pesquisa das relações transversais. Rio de Janeiro: 2AB, R.E. Anderson. Social impacts of computing: Codes of professional ethics. Social Science Computing Review, 2 (Winter 1992), RIBEIRO, J. S. Antropologia visual, práticas antigas e novas perspectivas de investigação. Revista de Antropologia V. 48 Nº 2. São Paulo: USP, 2005.

9 7 SANTAELLA, L. Por uma epistemologia das imagens tecnológicas: seus modos de apresentar, indicar e representar a realidade. In: Imagem (ir) realidade. Comunicação e Cibermídia, Denize Correa Araujo (org.). Porto Alegre: Sulina, SODRÉ, M. Antropológica do Espelho. Petrópolis: Vozes, SONTAG, S. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.