GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS

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1 Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa Lisboa 1999

2 INDICE Índice Índice de quadros Agradecimentos Introdução A construção de um objecto de estudo e objectivos de análise Objectivos e organização do texto Trabalho de campo com grandes famílias empresariais de Lisboa Opções metodológicas e conceitos fundamentais Capítulo I Grandes empresas familiares As grandes empresas familiares como objecto de estudo Estudos sobre empresas familiares nas ciências sociais Grandes grupos económicos de base familiar em Portugal: uma perspectiva histórica Capítulo II Grandes famílias empresariais de Lisboa As grandes famílias de Lisboa formam uma comunidade de práticas Estudos sobre elites na antropologia A importância da família na formação e na continuidade das grandes empresas A importância do passado e da tradição: a adesão ao ideal aristocrático A formação das novas gerações Capítulo III Sócios e Parentes Sócios e Parentes: dois jogos no mesmo tabuleiro A empresa familiar como elemento do parentesco Empresa e família simbolizam-se mutuamente

3 Capítulo IV A continuidade como ideal da família e do grupo social De que falamos quando falamos de família Somos uma família antiga : a importância do passado na organização do presente e na construção do futuro Elementos de ancoramento da memória familiar Produzir a história da família A importância de ter o nome de família Os nomes próprios como património familiar Capítulo V Casamentos e descendentes Casamento: aliança entre indivíduos e relações entre famílias Filhos, descendentes e sucessores Casamento e herança: a devolução promove a continuidade Afins: os novos membros da família Divórcios: de como as práticas sociais não correspondem aos modelos culturais Capítulo VI Homens de negócios e Gestoras familiares Produzir diferenças num sistema igualitário: distinções de género entre a elite lisboeta Formar homens como gestores Ser uma Senhora: a formação de gestoras familiares Homens de negócios e gestoras familiares: a construção da complementaridade

4 Capítulo VII O pé do dono é o adubo da terra O pé do dono é o adubo da terra: a importância de uma sucessão bem sucedida A formação da vocação empresarial A escola do trabalho: a valorização da aprendizagem pela prática A importância da formação profissional na produção de sucessores A transmissão de um capital compósito: o legado mais importante na produção de sucessores Herdar ou ganhar? Sangue e mérito como critérios na sucessão na empresa A lei das três gerações nas empresas familiares: o caso português Capítulo VIII Conclusão Bibliografia

5 ÍNDICE DE QUADROS Quadro nº 1 - Sucessão da liderança na família Mendes Godinho Quadro nº 2 - Primeira definição de família usada por Mar Quadro nº 3 - Segunda definição de família usada por Mar Quadro nº 4 - Terceira definição de família usada por Mariana Quadro nº 5 - Quarta definição de família Quadro nº 6 - Linhas de transmissão das alianças Quadro nº 7 Linhas de transmissão do bule de doente Quadro nº 8 - Transmissão de nomes masculinos ao longo de cinco gerações de homens Quadro nº 9 - Transmissão de nomes masculinos ao longo de quatro gerações mistas Quadro nº 10 - Continuidade de laços de identificação através da transmissão de nomes masculinos de familiares próximos 196 Quadro nº 11 - Continuidade de laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos Quadro nº 12 - Continuidade de laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos Quadro nº 13 - Nomes próprios masculinos transmitidos por famílias Quadro nº 14 - Nomes próprios femininos transmitidos por famílias Quadro nº 15 - Total de nomes próprios transmitidos por famílias Quadro nº 16 Casamentos importantes para a família Espírito Santo Quadro nº 17 Alianças matrimoniais por famílias Quadro nº 18 - Casamentos de descendentes de José Maria Espírito Santo e Silva com sócios Quadro nº 19 - Número de divórcios nas grandes famílias Quadro nº 20 - Sucessão na presidência das empresas da família Espírito Santo Quadro nº 21 - Sucessão na presidência das empresas da família Mendes Godinho Quadro nº 22 - Sucessão na presidência das empresas da família Pinto Basto Quadro nº 23 - Sucessão na presidência das empresas da família Jerónimo Martins...265

6 Quadro nº 24 - Sucessão na presidência das empresas da família D Orey Quadro nº 25 - Sucessão na presidência das empresas da família Queirós Pereira Quadro nº 26 - Sucessão na presidência das empresas da família Vaz Guedes Quadro nº 27 - Homens da família Mendes Godinho que trabalham nas empresas.272 Quadro nº 28 - Participação familiar nas empresas do Grupo Somague

7 Agradecimentos O longo caminho de produção desta tese foi um percurso solitário durante o qual recebi, no entanto, apoios fundamentais, sem os quais dificilmente teria conseguido chegar ao fim da tarefa. A importância destes apoios não me permite esquecer que afinal foram muitas as pessoas que participaram neste trabalho. A elas quero expressar a minha mais profunda gratidão. O meu primeiro agradecimento vai para o Professor Doutor João de Pina Cabral. O rigor científico e a dedicação com que orientou esta tese foram decisivos para a sua realização. Os comentários que fez às várias versões dos capítulos que fui produzindo foram um estímulo permanente ao rigor científico e à imaginação antropológica. O ânimo nas horas mais difíceis, a boa disposição e a amizade que soube dispensar em doses fartas ao longo destes cinco anos foram, sem dúvida alguma, um dos ingredientes indispensáveis neste percurso, ultrapassando largamente as obrigações inerentes à orientação. Por tudo isto estou-lhe muito grata. Para o cumprimento das várias fases da investigação tive o apoio de diversas instituições: o ISCTE concedeu-me uma dispensa de serviço docente, que me permitiu uma dedicação exclusiva à investigação; no Departamento de Antropologia devo agradecer em particular ao Professor Robert Rowland, que tendo herdado a coordenação da cadeira que lecciono, sempre fez tudo o que estava ao seu alcance para que eu pudesse usufruir dessa dispensa, e à Dr.ª Ana Cristina Castro pelo seu incansável apoio; a JNICT/FCT financiou a investigação com o projecto PCSH/C/ANT/851/95; o ICS e o CEAS acolheram o referido projecto; a FLAD concedeu-me uma bolsa de curta duração para pesquisa bibliográfica na Universidade de Berkeley, Califórnia. A minha maior gratidão é, no entanto, para com as pessoas que se disponibilizaram a falar sobre as suas vidas, familiares e profissionais, dispensando-me o seu tempo e a sua atenção. Sem estas o trabalho nunca teria sido feito. Em particular devo agradecer ao Dr. José Manuel Espírito Santo, à Sra. D. Mary Espírito Santo Salgado, a Marta Mello Breyner (infelizmente

8 desaparecida entretanto), à Sra. D. Mathilde Mello Breyner, ao Comandante Ricciardi, ao Dr. Manuel Fernando Espírito Santo, à Sra. D. Nina Espírito Santo, ao Sr Pedro Queirós Pereira, à Sra. D. Isabel Juzarte Rolo, ao Dr. Bernardo, ao Dr. José Luis D Orey, ao Sr. Eng. João Vaz Guedes, ao Dr. Diogo Vaz Guedes, à Dra. Maria Amália Vaz Guedes, ao Dr. Carlos Bobone, ao Dr. Bruno Bobone, ao Dr. Manuel Mourão, ao Dr. José Maria Mendes Godinho, ao Eng. António Queiroz e Melo, à Sra. D. Maria de Lurdes Soares dos Santos, ao Sr. Alexandre Soares dos Santos, a Isabel Santos e ao Dr. Carlos Damas. Sem o apoio inicial do Professor José Maria Brandão de Brito e do Sr. Engenheiro José Manuel Consiglieri Pedroso os contactos iniciais para esta investigação não teriam sido possíveis. Devo um agradecimento particular a algumas pessoas que leram versões anteriores de partes desta tese e cujos comentários em muito contribuíram para melhorar o resultado final: Sylvia Yanagisako, Jean Lave, George Marcus, José Manuel Sobral, Purificación Ruíz, Cristina Lobo, Clara Carvalho, João Leal, António Luis Pedroso de Lima, José Manuel Consiglieri Pedroso. A Catarina Mira agradeço a cuidadosa revisão final do manuscrito. Mas, sobretudo, devo agradecer a Manuel Pedroso de Lima que, com o rigor e a atenção que lhe conheço desde que nasci, leu as várias versões que este texto teve durante o seu processo de crescimento, fazendo sugestões, críticas e revisões fundamentais para a versão que agora apresento. Agradeço também as críticas, comentários e sugestões de Susana Matos Viegas, Filipe Verde, Luís Quintais, Miguel Vale de Almeida, Sandra Xavier e Nuno Porto um grupo de amigos/colegas, que de há vários anos para cá, debate work in progress que me ajudaram a redireccionar algumas questões. Os apoios necessários à realização de uma tese ultrapassam largamente o âmbito académico. Os amigos tornam-se durante este período um ponto de apoio sem o qual dificilmente se sobreviveria. Não posso aqui agradecer a todos por manifesta falta de espaço. Alguns, pela importância que têm, merecem uma referência especial, porque, no fundo, esta tese também é deles: os meus pais, Luísa e Manuel, cuja amizade e apoio constantes foram uma enorme almofada

9 que amorteceu este longo caminho, confortando nos momentos mais duros e colaborando em várias frentes; a Susana com quem a partilha de trabalhos e amizades tem ajudado a aumentar o prazer de uns e outros; a Marzia e a Cristina que de companheiras de tese e de gabinete se tornaram grandes amigas; a Adriana Piscitelli que do outro lado do oceano foi uma interlocutora insubstituível; a Ana e o Miguel que cresceram com o trabalho grande da mãe e que, para além de encherem o coração e preencherem os momentos de lazer, me ensinaram que as teses são uma espécie de Pokemons, com evoluções, involuções, vidas, fraquezas e poderes; o meu último e maior agradecimento vai para o Luís, que tendo sido obrigado a viver com a produção desta tese, foi uma ajuda preciosa para a sua realização, libertando-me das tarefas domésticas sempre que precisei e mantendo o bom humor para levar esta empresa familiar até ao fim. Como se isso não bastasse, não se poupou a esforços, horas e desesperos para fazer os quadros e mapas genealógicos que acompanham a tese. Por último gostaria de dedicar esta tese ao Paulo Valverde, amigo e companheiro de percursos académicos. Começámos ao mesmo tempo e devíamos estar a acabar ao mesmo tempo. O vazio deixado pelo seu súbito desaparecimento continua a encher o nosso apertado gabinete.

10 INTRODUÇÃO

11 1. A construção de um objecto de estudo O presente trabalho é o resultado de uma investigação empírica que realizei entre 1994 e 1997, junto de sete grandes famílias, detentoras de grandes empresas com sede na área de Lisboa. O objectivo inicial desta pesquisa era o de analisar a forma como a sobreposição das relações familiares e económicas que se verifica no contexto destes dois universos sociais empresas e famílias cria, por um lado, condições para a formação de relações familiares específicas e, por outro, promove o desenvolvimento de estruturas organizacionais próprias das grandes empresas familiares. A escolha deste tema decorreu, em grande medida, da vontade de aprofundar algumas das questões que discuti na minha tese de mestrado. Ao analisar as práticas e estratégias da organização e composição doméstica no bairro da Madragoa, em Lisboa, verifiquei que, em momentos de crise económica, social ou política, um número considerável de unidades domésticas se constituíam informalmente em pequenas empresas para fazer face às precárias condições de existência. Nessas situações, as relações domésticas reorganizavam-se com base e em função das actividades económicas desempenhadas por cada um dos seus membros (cf. Lima 1992). O desafio que assumi, ao escolher um novo tema de pesquisa, foi o de tentar compreender a forma como, num outro contexto social, o da elite social e económica lisboeta, as famílias se constituem e organizam enquanto empresas; como é que os seus membros gerem a sobreposição das relações familiares e empresariais; quais as especificidades que essa situação cria numa e noutra esfera de acção: na família e na empresa. Ao definir o meu universo de análise, escolhi, exclusivamente, famílias e empresas de Lisboa. Desde logo, porque as empresas familiares de dimensão nacional mais importantes e mais antigas têm a sua origem nessa zona do país

12 2 Introdução (Robinson 1979: 146). Depois, porque, circunscrevendo a investigação a uma única região do país, pude delimitar o contexto de acção quotidiana do grupo de pessoas que fazem parte do universo de análise escolhido, o que me permitiu identificar as redes de relações interpessoais em que estes se integram e verificar que muitos membros das famílias estudadas faziam parte das mesmas redes de sociabilidade. Chegar a esta conclusão, que teria passado despercebida numa análise de âmbito nacional, teve um peso decisivo no delinear do argumento desta dissertação. É certo que, se tivesse optado por privilegiar um universo de famílias empresariais alargado ao âmbito nacional, poderia ter ganho uma perspectiva comparativa mais representativa. Todavia, teria perdido a possibilidade de apreender as relações existentes entre as famílias de uma mesma região socioeconómica e a forma como elas se constituem como um grupo social, o que, afinal, me parece constituir a mais importante mais-valia da análise que efectuei. O tipo de pesquisa etnográfica que delineei, baseado no conhecimento aprofundado das dinâmicas que caracterizam as relações entre os membros destas famílias que detêm empresas há várias gerações, não podia ser aplicado nem a um grande número de empresas, nem a uma grande dispersão geográfica, por impossibilidades de ordem prática. Assim, as grandes famílias que constituíram o universo de análise foram escolhidas com base em três requisitos fundamentais: 1) as famílias tinham de ser titulares de empresas, ou de grupos de empresas; 2) as empresas tinham de existir há, pelo menos, três gerações dentro da mesma família; 3) tinham de pertencer, ou já ter pertencido, à lista das cem maiores empresas portuguesas. Dentro destes critérios, seleccionei os seguintes grupos económicos de base familiar: Grupo Espírito Santo (da família Espírito Santo), Grupo Orey Antunes (da família D Orey), Grupo Semapa (da família Queiroz Pereira), Grupo Somague (da família Vaz Guedes), Grupo Jerónimo Martins (da família Santos), Vista Alegre/Casa E. Pinto Basto (da família Pinto Basto) e Fábricas Mendes Godinho (da família Mendes Godinho). Este universo não foi definido a priori. Ele é resultado de um conjunto de sortes e azares, de circunstâncias que envolveram as

13 Introdução 3 possibilidades de acesso a pessoas dos grupos económicos que me interessava estudar e a sua disponibilidade para colaborar neste projecto. As empresas que serviram de base a este trabalho são grandes organizações económicas, poderosas e complexas, cuja gestão está a cargo de um conjunto de profissionais competentes. No entanto, elas são construídas sobre uma rede de relações familiares que une os seus accionistas e muitos dos seus trabalhadores. Esta conjugação cria uma situação particular resultante da sobreposição de dois tipos de relações sociais que têm sido considerados muitas vezes pelas ciências sociais como distintos e por vezes opostos: a família: o universo privado dos indivíduos, no seio do qual se está junto daqueles que partilham o nosso sangue ; o domínio, por excelência, das relações baseadas nas emoções e na afectividade; a empresa: o universo público de acção dos indivíduos, no interior do qual se estabelecem relações de trabalho ; o domínio, por excelência, das relações económicas baseadas numa lógica de lucro e competição. A minha hipótese de partida era a de que, a relação entre estes dois domínios de acção, é central para a organização deste grupo de famílias e é o que garante a longa duração da empresa. Neste sentido, um dos meus objectivos centrais foi compreender a forma como os indivíduos articulam, tanto no seio da família como no interior da empresa, as lógicas de funcionamento de ambos os contextos e as relações sociais que se estabelecem, em cada um deles. O facto de algumas das mais importantes empresas, ou grupos empresariais existentes em Portugal serem sociedades familiares, tanto antes de 1974 como actualmente, 1 foi uma das razões que me levou a estabelecer a hipótese de o 1 A preponderância das empresas familiares na economia portuguesa pode verificar-se através de dados apresentados por vários autores. No trabalho pioneiro que Makler realizou sobre os empresários portugueses, os dados apresentados mostram que sessenta e oito por cento das empresas portuguesas eram dirigidas pelos seus fundadores ou pelos seus herdeiros (cf. Makler 1969). Num estudo feito em 1989 pela revista Exame vemos que quarenta por cento das duzentas sociedades cotadas na bolsa de Lisboa, portanto, as grandes empresas portuguesas, são controladas pelas famílias que originalmente as fundaram (cf. Exame Set. 1989). Este número aumenta exponencialmente no quadro das pequenas e médias empresas (cf. Guerreiro 1996).

14 4 Introdução sucesso económico destas empresas e o prestígio social das famílias que as detém, estarem directamente relacionados com a articulação destas duas lógicas de organização social. A análise destes grandes grupos empresariais mostrou a importância da história da família dos seus titulares para perceber o processo de evolução da empresa. Mais ainda, fez-me ver que os acontecimentos no interior da empresa influenciam as relações que os parentes estabelecem entre si, conduzindo àquilo que Fruin define como the family as a firm, and the firm as a family (cf. Fruin 1980). Na verdade, as posições que os membros da família ocupam na hierarquia da empresa são, muitas vezes, resultantes de relações de poder e autoridade que se estabelecem no universo familiar. As grandes empresas familiares constituem, assim, um objecto de análise duplo, no sentido em que são concebidas, tanto pelo investigador como pelas pessoas que as constituem, através de duas perspectivas: a das grandes empresas familiares e a das grandes famílias suas proprietárias. Consequentemente, tanto podemos pensar as empresas familiares como estruturas simbólicas fundamentais para a construção da identidade de grupo familiar, como vê-las enquanto estruturas organizacionais onde se desenvolve uma actividade económica de interesse nacional, das quais os membros da família são accionistas e os que nela trabalham e delas retiram os seus rendimentos pessoais. A empresa familiar é, portanto, simultaneamente, um projecto económico e um projecto familiar e o seu sucesso é, também, a legitimação do prestígio social da família. Uma das questões que, no meu entender, torna particularmente interessante este objecto de análise é o facto de cada um destes universos não ser exclusivamente ele próprio: empresa e família simbolizam-se mutuamente, sem que nem uma nem outra tenham total autonomia. Cada uma delas é, simultaneamente, uma e a outra, interligando-se na sua existência: a empresa familiar é um símbolo da família e a família é um símbolo central da empresa. Neste sentido, o meu objecto de análise não pode ser definido como sendo exclusivamente a família ou exclusivamente a empresa. É um universo de acção duplo e indivisível onde família e empresa são indissociáveis. São dois universos interligados e sempre presentes na vida dos seus protagonistas. Geersick, um

15 Introdução 5 consultor americano especialista em empresas familiares, salientou este facto ao afirmar que para a maior parte das pessoas a família e o trabalho são o que têm de mais importante, pelo que a instituição que junta estas duas coisas se torna extremamente poderosa e extraordinariamente interessante para reflectir (Geersick et al 1997: 2). As empresas familiares fornecem, assim, um contexto particularmente rico e interessante para estudar a integração de duas dimensões fundamentais da vida social: o trabalho e a família. Aqueles que estão à frente da gestão e dos destinos destes poderosos grupos económicos posicionados entre os mais importantes a nível nacional gerem e zelam, simultaneamente, pelo sucesso de um projecto empresarial e pela continuidade da sua família. Por isso, a análise das relações familiares neste contexto social deve articular-se permanentemente com a reflexão sobre as relações económicas que os seus membros mantêm. Colocar assim a questão conduz ao debate teórico lançado por Jaber Gubrium sobre os limites sociais da família enquanto unidade social, sobre os espaços de actuação dos seus membros e sobre a natureza dos laços que unem as pessoas (Gubrium 1987). A forma pluridimensional como actuam os proprietários das grandes empresas familiares no âmbito da família e da empresa revelou-se um contexto particularmente estimulante para questionar esses limites. A relação entre os indivíduos que compõem este duplo universo de acção estrutura-se, portanto, a diversos níveis que devem ser compreendidos de uma forma interligada e de entre os quais se destacam a afectividade, a racionalidade económica e as diferentes posições na hierarquia da família e da empresa. O resultado da minha investigação não é, portanto, nem exclusivamente um estudo sobre a família e as suas formas de organização, nem uma análise sobre os processos de organização económica de grandes grupos empresariais. O ponto de partida da análise é a forma como os elementos constitutivos das identidades familiares e da sua transmissão ao longo de gerações se tornam visíveis, no âmbito da intersecção entre o mundo da família e o mundo empresarial. Aliás, e de

16 6 Introdução acordo com esta perspectiva, não faria sentido fazer uma abordagem da família em termos puramente organizacionais pensando-a na sua composição enquanto grupo ou em termos funcionais analisando as funções que desempenha enquanto instituição. Estruturar a análise das relações familiares nos diversos domínios de acção em que se desenvolvem obrigou-me a repensar a relação entre família e empresa. Neste sentido, procurei analisar os fenómenos de natureza económica de um ponto de vista multidimensional, tendo presentes as diversas dimensões de acção e de valores que influenciam as tomadas de decisão dos gestores empresariais que, como mostrarei, não se baseiam exclusivamente numa lógica puramente económica. Simultaneamente, ao reflectir sobre as relações familiares tomando em conta a importância que estas podem ter no sucesso económico da empresa, pude compreender melhor a natureza das relações familiares em contextos de modernidade.. 2 Com este trabalho, procuro expor esse lado das relações económicas que não é visível habitualmente aquele que é tecido pelas pessoas concretas, nas suas redes sociais particulares, resultantes de escolhas feita no seu dia-a-dia. Creio, assim, poder contribuir para tapar lacunas existentes ao nível dos trabalhos sobre as camadas mais altas das sociedades urbanas e sobre a família em contexto da elite económica nacional. 2 Numa recente análise sobre a importância dos estudos de parentesco, Joan Bestard (1998) salienta-os, precisamente, como centrais para perceber a modernidade, contrariando a ideia geralmente veiculada na história das ciências sociais, que tendia a associar parentesco a tradicionalismo e a continuidade. Este autor defende que o parentesco põe em perspectiva os símbolos da modernidade: os indivíduos e a sociedade, da mesma maneira que a modernidade põe em perspectiva os símbolos do parentesco: a natureza e a cultura (Bestard 1998: 14).

17 Introdução 7 2. Objectivos e organização do texto As principais questões que pretendo desenvolver ao longo desta dissertação são as seguintes: a) analisar as formas através das quais estas grandes famílias se organizam e estruturam a sua continuidade, em redor de um projecto económico comum, que une os seus membros ao longo de gerações sucessivas a empresa; b) compreender a articulação permanente entre família e empresa, entre interesses e afectos, entre racionalidade económica e voz do sangue, algo que está sempre presente na vida dos membros das famílias ligadas a empresas; c) analisar os processos de sucessão que visam assegurar a continuidade da família e do grupo empresarial; e os processos através dos quais as novas gerações adquirem o desejo e a vocação para continuar o projecto económico dos seus antepassados; d) perceber os valores sociais e os modelos culturais que estruturam o agir quotidiano neste contexto social; a forma como são transmitidos à geração seguinte, e a forma como os membros desta os apreendem e integram no processo através do qual se constituem como pessoas, dando continuidade à comunidade de práticas das gerações anteriores; e) compreender as dinâmicas através das quais estas grandes famílias ligadas a projectos económicos de sucesso se constituem enquanto comunidades de acção onde se consolidam fortes redes de socialidade; f) compreender os processos de reconstituição dos grandes grupos financeiros portugueses, após a ruptura criada pela revolução de Abril de 1974, e analisar as transformações e desenvolvimentos por que passaram ao longo

18 8 Introdução deste século, de forma a conseguirem manter-se na linha da frente da economia portuguesa; g) analisar as transformações visíveis nas mudanças das práticas económicas, sociais e familiares ocorridas neste contexto social nos últimos vinte anos. Ao longo dos capítulos que se seguem procurarei dar conta destas questões. No Capítulo I, após uma apresentação dos estudos sobre empresas familiares, descreverei os principais grupos económicos de base familiar em Portugal, apresentando as sete grandes empresas familiares escolhidas para o presente estudo. O Capítulo II é dedicado às formas de construção de continuidade destes grupos familiares e aos processos através dos quais o conjunto destas famílias se constitui e se reproduz como uma comunidade de interesses e práticas identificável na sociedade portuguesa. Em particular, analiso o facto de estas famílias apoiarem a imagem do seu prestígio social em formas de competência legitimadas pelo tempo longo que as associam a um modelo de organização aristocrático e conservador. No Capítulo III discutirei uma das mais importantes contradições vividas pelos membros destas famílias: a contradição entre negócios e relações familiares. Através da análise desta questão, mostrarei a forma como a família se torna um importante elemento para a manutenção da existência da empresa ao longo do tempo e como, consequentemente, a grande empresa de sucesso se torna um elemento fundamental para a continuidade da manutenção da unidade da grande família, chegando mesmo a tornar-se um símbolo desta. No Capítulo IV abordarei os elementos de ancoramento da memória familiar entre os quais os apelidos, os nomes, as histórias de família. Trata-se de elementos centrais na produção de uma identidade familiar continuada, visível ao longo de gerações de descendentes da família. A centralidade do estabelecimento de alianças matrimoniais entre estas famílias é o tema do Capítulo V. A articulação destes casamentos com os ideais e valores definidos e praticados por estas famílias será discutida, assim como o facto de a existência de um elevado número de divórcios não os pôr em causa. No Capítulo VI procurarei mostrar que é na complementaridade da agencialidade de cada género que sobressaem as

19 Introdução 9 características definicionais da identidade de uns e outras, através da qual contribuem para a realização do seu projecto comum. Uma das questões centrais desta tese a forma como se estruturam os processos de sucessão nas grandes empresas familiares portuguesas ao longo deste século será discutida no Capítulo VII. Neste será discutido o difícil equilíbrio entre herdar ou conquistar a sucessão nas posições de liderança das empresas familiares em momentos sociais e em condições económicas historicamente distintas. Nomeadamente, abordo a forma como o nepotismo não era considerado uma prática estranha num sistema económico pré-capitalista, pouco desenvolvido e pouco internacionalizado e se torna um critério dificilmente aceitável num sistema económico moderno onde os critérios da competência individual na gestão se sobrepõem aos da herança de títulos de propriedade. Assim, tendo partido da hipótese de que existia uma relação entre o êxito destas grandes empresas familiares e o destaque das posições sociais que os seus membros adquirem, a investigação empírica que realizei permitiu-me concluir que essa relação não só existe, como as suas variáveis são interdependentes. Tal como tinha verificado no bairro da Madragoa num grupo social com características bem distintas a forma como as famílias se organizam em empresas cria condições de adesão a um projecto económico colectivo que promove condições vantajosas tanto para o prestígio social da família como para o sucesso económico da empresa. A investigação empírica permitiu mostrar que a separação entre família e negócios é um elemento simbólico cultural. Apesar de este elemento estar presente na forma como os indivíduos organizam a sua vida quotidiana e os seus projectos de futuro, ao nível das práticas observadas as relações familiares entrelaçam-se constantemente com relações económicas, que se influenciam e fortalecem mutuamente. A relação que a antropologia mantém com os modelos dominantes na modernidade produziu um espaço que nos permite ver para lá dos modelos hegemónicos que os grupos sociais nos apresentam. Ora, apesar de as relações familiares e as relações económicas não serem a mesma coisa, também

20 10 Introdução não podemos apresentá-los como se fossem realmente separados e há casos, tais como os que estudei, em que a estreita relação entre ambas se revela fundamental. Em suma, estudos futuros da organização social urbana, que normalmente focam aspectos associados ao que cada grupo social constrói para existir e se reproduzir, deverão compreender que tudo depende também de como cada um desses grupos se integra num conjunto de relações de poder e diferenciação com os outros. O caso que estudei mostra que, neste processo de diferenciação socioeconómica, a maneira como se usa essa articulação neste caso entre família e negócios, é um poderoso elemento diferenciador. 3. Trabalho de campo com grandes famílias empresariais de Lisboa Pelo menos desde finais do século XIX, a produção da teoria antropológica baseou-se na prática de viajar para outros locais, de preferência para um outro local distante geográfica, moral e socialmente da metrópole teórica e cultural do antropólogo. A ciência do outro tem estado inevitavelmente ligada à viagem para outros lugares. Mas a questão de que tipo de outro lugar está sempre ligada, e de uma forma complexa, à história da expansão europeia (Appadurai 1986a: 337). Ao longo dos anos setenta e oitenta, e como resultado da crescente apetência dos antropólogos para fazerem investigação etnográfica no seu país de origem, assistese a um debate sobre a legitimidade, vantagens e desvantagens do chamado trabalho de campo em casa (cf. Jackson 1989; Strathern 1989; Okely 1996; Pina Cabral 1991). Na base dessa polémica estava a ideia de que o trabalho de campo,

21 Introdução 11 levado a cabo num lugar longínquo e exótico, seria uma condição indispensável para o antropólogo ter a distância cultural necessária para compreender as especificidades sociais e culturais do contexto que estuda (cf. Crapanzano 1980, Appadurai 1986b, Clifford 1990). Como corolário deste pressuposto, atribuía-se ao antropólogo que trabalha em casa um nível intrínseco de familiaridade com o seu objecto de análise. Marylin Strathern chama a atenção para os perigos deste pressuposto e do seu corolário, num estimulante artigo sobre antropologia em casa, onde defende que não se podem medir níveis de familiaridade com base na metáfora em casa. Na verdade, a própria ideia de que o antropólogo está em casa contribui para criar a ilusão de que existe um continuum entre o investigador e o contexto que procura compreender, facto que, na sua opinião, obscurece o hiato conceptual existente entre ambos (cf. Strathern 1989: 16). Efectivamente, os dados pessoais do antropólogo nada nos dizem sobre o facto de estar ou não em casa, no sentido de haver uma continuidade cultural entre os produtos dos seus trabalhos e as coisas que as pessoas da sociedade que estudamos produzem como descrições de si próprios (Strathern 1989: 17). Para evitar a ideia implícita de um território familiar, usarei a expressão trabalho de campo ao pé de casa, proposta por João de Pina Cabral (1991: 52). Fazer trabalho de campo no contexto em que vivemos, crescemos e que nos é familiar pode ter, e tem certamente, muitas vantagens. Todavia, não me parece que uma delas seja o conhecimento prévio do terreno. Muitas vezes este conhecimento acaba, afinal, por ser uma ilusão que conduz a interpretações perdidas em lugares-comuns. Porém, o trabalho de campo ao pé de casa coloca problemas surpreendentes a quem o pratica e que são, com frequência, difíceis de identificar e superar. Num primeiro momento, o antropólogo pode sentir-se mais ou menos "em casa" ao fazer investigação no seu contexto de pertença, mas, devido aos próprios objectivos da sua tarefa, estará motivado para procurar as características específicas do contexto que analisa.

22 12 Introdução Os antropólogos que trabalham ao pé de casa devem estar preparados para superar um problema distinto e que raramente tem sido identificado na literatura antropológica: para as pessoas com quem interage, o antropólogo é alguém com quem se tem muitas coisas em comum. 3 As relações que estabeleci com os sujeitos de análise durante o trabalho de campo foram caracterizadas por dificuldades derivadas da assimetria de estatuto, de posição social e de poder económico. As pessoas que fazem parte de um grupo de elite têm uma consciência muito clara do seu poder económico, social, político e mesmo, por vezes, académico e controlam, de uma forma consciente e sistemática, o acesso de estranhos ao seu grupo social e familiar, garantindo, assim, a sua privacidade. Situações semelhantes, sobre dificuldades no acesso aos sujeitos de análise, são relatadas pela maioria dos antropólogos que trabalharam com grupos de elite em sociedades ocidentais. 4 O trabalho de Gary McDonogh (1989) sobre as famílias da elite de Barcelona é particularmente revelador. Devido à dificuldade em estabelecer contactos pessoais com os sujeitos que pretendia estudar, a maior parte das informações etnográficas foram recolhidas em situações de observação distante: nos espectáculos realizados na Ópera de Barcelona o Liceu, na distribuição das campas no cemitério da cidade e em fontes históricas. Quando iniciei este projecto não conhecia ninguém que fizesse parte do universo das grandes famílias empresariais de Lisboa e que me pudesse introduzir no meio. Assim, um dos primeiros desafios que enfrentei foi a dificuldade em estabelecer um contacto directo com as pessoas com quem me interessava falar. 3 Todos aqueles que optámos por conduzir as nossas investigações em casa já ouvimos frases que nos pretendem integrar constantemente no seu mundo do tipo: como sabe... ; você sabe, já viu certamente, também é de Lisboa... Uma outra questão que se coloca frequentemente a quem trabalha ao pé de casa, é o déficit de imersão no terreno em que se encontra (cf. Pina Cabral 1991). Estando ao pé de casa pode viver na sua casa, mantendo mais ou menos inalteráveis as suas relações familiares, os contactos com os seus amigos e as suas obrigações sociais. Se, de um ponto de vista humano, isto pode ser uma vantagem, do ponto de vista do trabalho de investigação constitui um enorme entrave à maneira e à disponibilidade para o antropólogo se envolver com o seu terreno. Desta forma, os imponderáveis da nossa vida quotidiana interferem, constantemente, na relação que estabelecemos com o terreno que procuramos compreender. 4 Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Susan Ostrander 1984, Lisa Douglass 1992, George Marcus 1992, José Manuel Sobral 1993 e Gary McDonogh 1996.

23 Introdução 13 As famílias de elite vivem resguardadas dos olhares do mundo, nas suas casas particulares, situadas em diferentes zonas da cidade, ou mesmo em cidades limítrofes de Lisboa. Movimentam-se em territórios fechados e inacessíveis a quem deles não faz parte. O acesso de outras pessoas a estes territórios relacionais circunscritos só é possível mediante intermediários, pelo que, apresentar-me à porta da casa de alguém, por exemplo, seria totalmente infrutífero. As barreiras que constituem secretárias na empresa e empregadas em casa revelarse-iam totalmente intransponíveis para contactos sem marcação prévia e sem conhecimento do assunto ou da pessoa que o solicita. Assim, foi recorrendo aos conhecimentos de amigos, de amigos de amigos, e conhecidos de amigos ou conhecidos de conhecidos que fui estabelecendo os meus primeiros contactos. Comecei a tentar estabelecer contactos com possíveis informantes em Junho de No entanto, só em Janeiro de 1995 iniciei realmente o trabalho de terreno. Conseguir as primeiras entrevistas foi um processo demorado. Quando conseguia um contacto, revelava-se difícil encontrar tempo disponível na agenda dos grandes senhores da alta finança portuguesa. No dia em que, finalmente, consegui marcar a primeira entrevista e senti que alguma coisa estava a começar a acontecer, falei com outro possível informante que me marcou uma entrevista exactamente para o mesmo dia. De repente, começaram a aceder todos ao mesmo tempo. O segundo destes primeiros contactos ficou tão entusiasmado com o trabalho, que me marcava entrevistas de um dia para o outro, quase não me dando tempo para organizar e analisar o material recolhido e preparar a conversa seguinte. E, dadas as dificuldades em marcar estes encontros, eu não podia, obviamente, dizer que nesse dia não me dava jeito. Mais tarde, alguns dos novos contactos começaram a ser indicados pelas pessoas que já conhecia, dando origem à prática do conhecido sistema da bola de neve (cf. Pujadas 1992 e Bertaux 1991). As dificuldades de acesso a estas famílias de elite são algo que é referido por todos aqueles que se dedicaram ao seu estudo, sendo também frequentemente apontadas como razão para a escassez de trabalhos no âmbito deste contexto social. Para citar alguns exemplos, podemos ver como George Marcus descreve,

24 14 Introdução detalhadamente, a forma como foi impossível falar pessoalmente com os mais altos dirigentes das empresas com que trabalhou (Marcus 1979: 136 e comunicação pessoal). Por seu turno, Alexandra Ouroussoff, que trabalha com grandes corporações multinacionais, iniciou desta forma a sua comunicação à conferência da reunião anual da associação inglesa de antropologia social (Association of Social Anthropology, ASA), sobre elites: Esta comunicação é o resultado do meu repetido fracasso no acesso aos sujeitos etnográficos que quis estudar os proprietários e dirigentes de grandes empresas multinacionais ocidentais (Ouroussoff 1999: 1). Tendo partido com essa expectativa, nunca deixei de me sentir surpreendida com a forma, razoavelmente rápida, como os elementos destas famílias acederam em falar comigo. Parece-me importante salientar este ponto, pois creio que a investigação que agora apresento é um caso relativamente isolado nos trabalhos sobre elites económicas no ocidente. Penso, no entanto, que, há uns anos atrás, não teria sido possível levar a cabo esta investigação, pois as grandes empresas familiares adoptavam ainda uma postura muito defensiva quanto à sua visibilidade pública, por terem estado fortemente conotadas com o Estado Novo e serem acusadas de ter beneficiado de grandes privilégios. 5 Acidentalmente, este foi o momento certo para esta pesquisa: os grupos económicos estavam já suficientemente estabilizados em Portugal para se poderem mostrar publicamente; 5 Um facto que revela bem o zelo com que os elementos destas famílias defendem a sua privacidade é a sua quase total ausência das colunas sociais e das chamadas revistas de sociedade. É muito interessante notar a evolução histórica verificada. Numa análise das revistas de sociedade portuguesas, verifiquei que a sua presença era constante até ao 25 de Abril de 1974, tendo-se interrompido nessa altura. O que me parece mais interessante é o facto de a re-entrada nas revistas não ter ocorrido no momento do seu regresso a Portugal, em meados dos anos oitenta. Só a partir de meados dos anos noventa começam a aparecer de uma forma sistemática, o que revela que a re-entrada em cena na vida social pública portuguesa não coincidiu com a sua re-entrada no mundo financeiro. Esta décalage revela uma estratégia de invisibilidade social que este grupo de elite procurou manter na altura do seu regresso a Portugal, tentando não repetir os erros de excesso de exposição pública que os tornavam mais vulneráveis no período anterior à revolução.

25 Introdução 15 a situação social e política estabilizou-se; os meados dos anos noventa revelaramse uma boa altura para estas grandes famílias tentarem demonstrar que a posição de líderes da economia portuguesa, que detinham antes de 1974, se devia ao seu mérito e não à sua relação com o poder, como seria confirmado pela sua actual posição no mercado económico nacional e internacional. A concretização dos encontros com os membros deste grupo social ao longo de três anos, nunca dependeu exclusivamente de mim, ou da minha vontade, mas da deles: da sua disponibilidade e apetência. Eles é que decidiam se iam ou não encontrar-se comigo, onde, quando e durante quanto tempo. A maior parte da interacção foi conduzida nos termos por eles definidos e no seu território. 6 Durante o meu trabalho de campo, senti, claramente, que os mecanismos que dificultam a etnografia sobre grupos de elite são, em grande parte, os mesmos que contribuem para a manutenção do poder deste grupo social: a aura de inacessibilidade que constróem à sua volta torna-se uma importante forma de manutenção de poder. O privilégio da privacidade, de que gozam é, em si mesmo, uma demonstração do seu poder: controlar o acesso ao seu mundo tanto no sentido físico como no sentido do controlo da informação disponível sobre eles é uma parte do poder da classe alta. Em consequência deste facto, e desta atitude, a manutenção da privacidade das pessoas que gentilmente acederam a falar comigo foi uma questão essencial na elaboração desta dissertação. Optei por usar os nomes reais das famílias, das empresas e dos grupos económicos, devido ao amplo conhecimento que o público em geral tem das famílias com que trabalhei, das actividades profissionais dos seus membros, e dos montantes das suas fortunas. 7 O uso de 6 Na sua monografia sobre famílias da elite jamaicana, Lisa Douglass refere várias vezes o facto de ter sofrido este mesmo tipo de constrangimento durante o seu trabalho de campo (1992: 48-9). 7 Veja-se, por exemplo, a quantidade de artigos em revistas da especialidade que se debruçam sobre os principais gestores das mais prestigiadas e rentáveis empresas portuguesas, e o facto de, a par da publicação da lista das 500 maiores empresas portuguesas que teve início no princípio dos anos oitenta, desde 1994 se publicar anualmente a lista das maiores fortunas de Portugal, esgotando-se sistematicamente as suas edições. Antes de 1974 não havia revistas que se dedicassem a este tema. Havia apenas um conjunto reduzido de revistas de sociedade com pouca circulação e vocacionadas, sobretudo, para as grandes estrelas do mundo do espectáculo. A

26 16 Introdução pseudónimos tornar-se-ia um exercício sem qualquer proveito, pois todo o leitor atento e conhecedor da realidade económica portuguesa identificaria facilmente a verdadeira identidade destes grupos. No entanto, se uma parte do material que utilizo é pública e poderia ser compilada através de uma pesquisa bibliográfica, outra é do foro da vida privada das pessoas com quem falei durante a pesquisa e só foi possível consegui-la através de um longo e intenso trabalho de recolha etnográfica no qual os membros destas famílias depositaram em mim a sua confiança, pelo que tive sempre em conta a necessidade de preservar a sua identidade. Neste sentido, sempre que ao longo do texto me refiro a depoimentos de pessoas concretas, utilizarei apenas iniciais. Na maior parte dos casos, o primeiro encontro com cada pessoa que entrevistei foi marcado por uma certa apreensão em relação à minha pessoa e aos meus objectivos. Quem é? Será jornalista? Economista? Porque insiste em misturar assuntos de família e de negócios nas conversas? Mesmo mais tarde, quando as pessoas adquiriam confiança em mim, quando se habituavam à minha presença e às minhas questões, nunca consegui ter o à-vontade e a liberdade de acesso aos indivíduos e aos espaços onde estes circulam, como acontece nos meus anteriores trabalhos de campo. Eu não podia simplesmente aparecer em casa das pessoas ou nas suas empresas. Era preciso telefonar, marcar um dia, a hora exacta, escolher o local. Isto significa que o elemento surpresa não existe e que, quando me encontrava com as pessoas com quem ia falar, estas estavam sempre preparadas para o acontecimento e muitas vezes já sabiam qual ia ser o tema da conversa desse dia. Os contactos que mantive decorreram, fundamentalmente, em dois espaços: na empresa e nas casas da família. As excepções foram convites para almoçar ou explosão da importância e da fama dos bons gestores, visível não apenas na proliferação das revistas dedicadas ao sector, como também no enorme aumento da procura de cursos de Gestão de Empresas a que assistimos a partir da segunda metade dos anos oitenta, é resultado de duas ordens de razão. Por um lado, só a partir de meados dessa década se viveram os primeiros anos de estabilidade e crescimento económico do regime democrático (cf. Lopes 1996: 243-5) e, por outro, nesse momento estavam já mais calmos os entusiasmos do período pós-revolucionário, durante o qual os sinais exteriores de riqueza eram marca de uma clara ligação ao

27 Introdução 17 lanchar normalmente no seguimento de entrevistas e algumas tardes nas quintas de duas das famílias com quem trabalhei. Todo o trabalho de campo se desenvolveu em espaços onde o meu acesso era estritamente condicionado ao convite e onde não tinha possibilidade de me deslocar livremente, ou de estar simplesmente a observar. De uma maneira geral, todas as situações de interacção que mantive com os membros destas famílias podem ser definidas como encontros formais de entrevista, marcadas normalmente com antecedência e por vezes, marcadas, desmarcadas e reagendadas devido à complicada e apertada agenda das pessoas com que trabalhei. 8 Mesmo quando era convidada para ir a casa das pessoas ou estava presente em situações mais informais almoços, lanches, ou tardes na quinta, a minha presença era sempre sentida como uma visita, uma pessoa que quer saber coisas sobre nós. Quando me encontrava com alguém, havia um objectivo claro: eu queria saber coisas sobre a sua família e sobre as empresas que esta possuía, e eles tinham-se disponibilizado a dar-me essa informação. A minha presença era bem aceite, mas tinha um propósito definido. Quando se cumpria esse objectivo, era suposto eu sair. Fazer trabalho de campo nestas circunstâncias foi particularmente perturbante no início da investigação. Confrontada com as minhas anteriores experiências de trabalho de terreno, tive sempre a sensação de que me escapava regime fascista, ao sistema capitalista e ao reduzido grupo de famílias que dominou a economia do país durante meio século. 8 Uma situação particularmente reveladora deste facto foi o caso de uma entrevista com o vice-presidente do conselho de administração de um importante banco privado português, que tinha sido marcada e desmarcada várias vezes. Quando por fim cheguei ao banco na data combinada, o entrevistado informou-me que tinha de partir para Londres com urgência e a secretária não me tinha conseguido encontrar para desmarcar. Claro que eu disse que não tinha importância e que ficava para outro dia, mas ele não aceitou e, depois de conversarmos durante cerca de quinze minutos na sede do banco, sugeriu-me que o acompanhasse ao aeroporto pois assim poderíamos conversar no carro. Assim foi, e com isso ganhei mais meia hora do seu tempo ou talvez fosse melhor dizer que ele perdeu menos meia hora comigo.

28 18 Introdução algo de fundamental sobre o contexto social que queria compreender. Foi-me difícil fugir ao ideal da observação participante, à ideia de que, para podermos compreender um grupo social, temos de passar pela experiência de estar no centro da interacção dos seus membros, porque os actos não verbalizados estão cheios de prática cultural. A pouco e pouco fui adoptando uma atitude metodológica mais ecléctica. No fundo, estas pessoas estavam apenas a assumir de uma forma mais clara porque têm o poder e a legitimidade para o fazer aquilo que acontece em todas as situações de trabalho de campo, mas que normalmente não se revela de uma forma tão evidente: as pessoas só se envolvem numa pesquisa deste tipo se quiserem e da maneira que lhes parece mais adequada. Habituados às investidas dos jornais e revistas sociais e tendo já sofrido os efeitos negativos de algumas publicações, os meus entrevistados nunca quiseram gravar as entrevistas que fizeram comigo. De tal forma a questão os incomodava que, depois das três primeiras solicitações para gravar as nossas conversas, e de igual número de polidas recusas, decidi prescindir desse auxiliar de recolha de informação e socorrer-me exclusivamente de anotações escritas durante a entrevista e das notas que, depois desta terminada, me apressava a escrever. Porém, estas dificuldades não foram prejudiciais ao desenvolvimento do meu trabalho. Cada contexto social impõe constrangimentos específicos à investigação, cuja compreensão e posterior superação são, em si mesmos, momentos decisivos para a forma como o antropólogo apreende o terreno. Também neste caso, as diversas tentativas de superação das dificuldades com que me deparei foram de uma grande utilidade para a compreensão do contexto social em si mesmo. A necessidade de modificar as estratégias de investigação e de adoptar uma aproximação mais adequada ao contexto social que estava a estudar é, em si mesmo, um motivo de reflexão interessante. Na verdade, tal necessidade mostrou que, aplicar o método tradicional de recolha de informação em antropologia a um contexto não tradicional no âmbito desta disciplina, revela que o próprio método é produto de um tipo específico de encontro etnográfico 9 oriundo da prática de 9 Mary Bouquet chama a atenção para esta mesma questão como resultado de uma tentativa de aplicar o método genealógico ao estudo das relações familiares em Portugal (cf. Bouquet 1993).

29 Introdução 19 investigação antropológica num contexto colonial, no qual se desenvolve uma relação de poder desigual entre investigador e sujeitos de análise, em que o primeiro se sobrepõe ao segundo. No caso dos estudos das camadas de topo da sociedade, onde o estatuto social do antropólogo é, de alguma forma, considerado como sendo inferior ao dos sujeitos que analisa, a limitação da sua presença no contexto de acção onde se pretende integrar a um acordo prévio é feita de uma forma muito explícita, obrigando, assim, a alterações no recurso à metodologia clássica da antropologia. Em última análise, a questão da dificuldade de realizar estudos etnográficos, no âmbito de grupos de elites, deve colocar-se ao nível da própria história da disciplina. O facto de este contexto social estar ausente de grande parte da literatura antropológica torna-o um objecto pouco familiar, para o qual não há uma grelha etnográfica comparativa. 10 Estudar um grupo de famílias de elite situa a reflexão no âmbito do que Arjun Appadurai denominou de etnopaisagem global, um núcleo essencial do mundo que afecta as políticas das e entre as pessoas e as nações (1991: 192). Segundo Appadurai, estes espaços etnográficos globais opõem-se às comunidades relativamente estáveis, baseadas em redes de parentesco, de amizade, de trabalho e de lazer, de nascimento, residência e outras formas de filiação (1991: 192). No entanto, ao estudar estas famílias da elite portuguesa, tornou-se claro que a oposição entre essas duas dimensões não faz sentido, na medida em que elas aparecem constantemente associadas, e essa é, precisamente, uma das suas características definidoras. Por um lado, o conjunto de famílias que analisei constitui uma comunidade baseada em redes de parentesco, de amizade, de trabalho, de lazer, de nascimento, residência e outras formas de filiação mas, por outro lado, os indivíduos que a constituem movimentam-se nessas etnopaisagens globais : as suas vidas pessoais são extraordinariamente cosmopolitas nos seus hábitos e práticas; muito frequentemente viajam quer em turismo quer em trabalho, uma

30 20 Introdução vez que as suas empresas têm filiais espalhadas pelo mundo; têm casas nas mais importantes cidades do mundo Londres, Paris, Nova Iorque ou Lausanne ; estudaram no estrangeiro tal como fizeram os seus pais e os seus filhos; as suas redes de amizade englobam estrangeiros, e não é raro encontrarmos alianças matrimoniais internacionais. Este conjunto de factores mostra-nos que estas grandes famílias empresariais de Lisboa fazem também parte da etnopaisagem global. Para as analisar não devemos, portanto, basear-nos em oposições e exclusões, como as sugeridas por Appadurai, mas sim, seguir os caminhos a que nos conduzem as relações sociais que analisamos. Ora, o estudo destas famílias empresariais lisboetas mostrou que as relações sociais, pessoais e profissionais, mantidas por este grupo restrito de pessoas têm uma importante palavra a dizer na economia nacional e, por vezes, internacional. As suas relações pessoais tornam-se, então, uma dimensão importante para compreender alguns fenómenos económicos e sociais de amplitude mais vasta, dando conta, em particular, da importância que as relações familiares assumem ao mais alto nível da sociedade portuguesa e o seu peso na reprodução de certas formas de hegemonia. Por último, saliento que as relações sociais do meu universo de análise não se delimitam a um espaço geográfico ou social exclusivo. As vivências familiares e as relações empresariais ocorrem em locais diversificados, estruturam-se e activam-se em diversos contextos de acção e referência. Para dar conta dessa multiplicidade etnograficamente, conduzi a investigação através de uma abordagem multisituada (cf. Appadurai 1986b e Marcus 1995). Os múltiplos sítios em que a minha etnografia se localizou foram as casas, as quintas, as empresas, as festas, alguns restaurantes, bancos e empresas os distintos contextos em que se desenvolvem os percursos de vida dos membros das famílias com quem trabalhei. Esta dispersão dos espaços de acção dos sujeitos da análise por múltiplos territórios privados, espalhados por diversas zonas da cidade e arredores, 10 Num estimulante artigo sobre o problema da tradução em antropologia, João de Pina Cabral alerta-nos para o facto de a ausência de comparação constituir um problema central à interpretação (cf. Pina Cabral 1991).

31 Introdução 21 reflectiu-se na minha capacidade para me sentir dentro do meu contexto de análise, dificultando-a sistematicamente. 4. Opções metodológicas e conceitos centrais A dupla perspectiva que caracteriza o meu sujeito de análise universo familiar e universo empresarial tem consequências a nível metodológico, na medida em que, de certa forma, institui como unidade de análise algo que é concebido pelos seus actores como constituindo dois universos de acção, de valores e com expectativas distintas. Para poder dar conta deste contexto bidimensional, optei por iniciar todos os meus contactos através da empresa e só depois passar aos contactos directos com os restantes membros destas famílias. Estou convencida de que o contrário teria condenado a investigação ao fracasso. Ao começar os contactos pelo universo das empresas um universo analítico aceite como legítimo, dada a sua importância na economia nacional, tornei a posterior passagem para a família, sua proprietária, um passo expectável e natural. 11 De uma maneira geral, as primeiras pessoas que falaram comigo foram os presidentes ou outro membro do conselho de administração das empresas. Queriam perceber quais os objectivos do meu trabalho, serem eles a fornecer-me a primeira versão genérica da história da empresa e da família e decidir se os outros elementos da família deveriam, ou não, colaborar no projecto. Creio que o que os fez decidirem-se a falar comigo foi o interesse pessoal na história da 11 O facto de ter uma filiação institucional com o ISCTE - Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa - constituiu um elemento particularmente favorável para conferir legitimidade ao meu interesse sobre as empresas da família.

32 22 Introdução família, da empresa e o empenho em divulgar os sucessos e os méritos de ambas, dos quais tanto se orgulham. O passo seguinte recolher informação mais detalhada sobre os processos históricos de desenvolvimento da família e da empresa foi remetido para outros elementos da família a trabalhar na empresa e para as pessoas da família que se ocupam, sobretudo, da gestão da vida familiar: as mulheres. O meu percurso da empresa para a família foi, simultaneamente, marcado por uma mudança nos meus interlocutores preferenciais, tendo passado dos homens para as mulheres. A separação destes dois universos de acção, associada a uma distinção entre grupos de género, será analisada detalhadamente no Capítulo VII. A construção da continuidade do contexto familiar envolve várias dimensões sociais. Os diversos indivíduos que fazem parte de uma família constróem várias versões da história familiar, a partir das suas diferentes experiências e perspectivas. Neste sentido, as famílias são identidades multiconstruídas onde encontramos uma diversidade de vozes. Por esta razão, tive a preocupação de entrevistar diversos membros de cada uma das sete famílias com que trabalhei, de forma a poder conhecer e identificar o maior número possível de pontos de vista sobre a organização e a história de cada uma destas famílias e empresas. Este conjunto diversificado de pessoas, que inclui os presidentes das empresas, os principais quadros executivos, os patriarcas, pequenos accionistas, membros da família que não possuem acções, mulheres, jovens a começar a sua carreira profissional, permitiu-me ter acesso a um número considerável de diferentes experiências de vida num mesmo contexto social. Para além disso, esta estratégia permitiu-me compreender a forma como diferentes membros da família atribuem significados distintos e fazem investimentos específicos na empresa e na família. Ao cruzar a informação recolhida com pessoas que vivem no centro da empresa familiar e com pessoas que vivem nas suas margens, pude construir uma imagem mais correcta deste grupo social como um todo. Não quero deixar de salientar que há uma clara desigualdade na informação que pude recolher sobre cada uma das famílias com que trabalhei. Essas

33 Introdução 23 diferenças, tanto de ordem quantitativa como qualitativa, são, por um lado, resultado da diferente relação que mantive com os elementos particulares de cada uma e, por outro, da forma como cada família guarda os seus arquivos pessoais e da empresa. As disparidades existentes a este nível são muito grandes. A título de exemplo posso referir que uma das famílias tem um historiador a trabalhar a tempo inteiro no arquivo histórico na sua empresa, enquanto outras nem o arquivo da empresa têm organizado. Foi com base na informação recolhida durante as entrevistas que elaborei a história de cada uma destas famílias 12 e construí o seu mapa genealógico 13 desde, pelo menos, o fundador da empresa até aos nossos dias. Foi, também, com base nessas entrevistas, que elaborei a história da constituição e do desenvolvimento da empresa, ou grupo de empresas, de que a família é titular e identifiquei os membros da família que nela têm, ou tiveram, participação activa. Apesar de a elaboração de histórias de família não constituir um dos objectivos do trabalho, 12 O método de recolha de histórias de família foi proposto por Daniel Bertaux como alternativa à recolha de histórias de vida. Esta mudança na perspectiva de análise das narrativas resulta, sobretudo, de aceitar que as trajectórias individuais devem ser explicadas pelo enquadramento dos indivíduos nas suas famílias de origem e nos diversos capitais que estas lhes transmitem (cf. Bertaux 1981, Bertaux e Bertaux- Wiame 1988). Para além das inúmeras vantagens de acesso a informação que a elaboração de histórias de família me proporcionou na pesquisa sobre as grandes famílias empresariais de Lisboa, a mais-valia deste método tem-me sido amplamente confirmada no âmbito da disciplina de Antropologia Social II que lecciono na licenciatura de Antropologia no ISCTE. Desde 1989 e por sugestão do Professor João de Pina Cabral, então coordenador da referida cadeira, os alunos realizam um pequeno trabalho empírico de recolha de uma história de família. A quantidade de informação qualitativa sobre a construção de trajectórias sociais que cada aluno consegue descrever nos seus ensaios tem provado anualmente as potencialidades desta perspectiva de recolha de informação. Gostaria de agradecer ao Professor Robert Rowland, novo coordenador da cadeira desde 1997, ter aceite continuar este projecto. 13 Os mapas genealógicos foram de grande utilidade neste trabalho, pois, dada a extensão dos universos familiares com que trabalhei e a enorme quantidade de informação de que dispunha cada família, teria sido difícil entender-me dentro delas sem o apoio desta grelha. De notar, no entanto, que os mapas genealógicos não tiveram, em si mesmos, utilidade analítica. O seu valor heurístico decorre exclusivamente das questões que construímos a partir deles (Bourdieu 1986, Bouquet 1996). Para tornar estes mapas de representação de redes de parentesco mais úteis e para os distinguir das meras genealogias tradicionais, Daniel Bertaux propõe a utilização de genealogias sociais - mapas genealógicos com informação sobre as trajectórias sociais dos indivíduos que representam (cf. Bertaux 1991).

34 24 Introdução ela revelou-se um instrumento metodológico fundamental ao longo de todo o processo de investigação, na medida em que a organização e continuidade destes grupos se baseia, em primeiro lugar, na família. Conhecer a história de cada uma destas famílias e analisá-la em paralelo com a história da sua empresa, permitiu-me compreender melhor a forma como as estratégias familiares se estruturam de acordo com o projecto empresarial e, também, as múltiplas maneiras pelas quais este condiciona o contexto familiar. A análise da forma como a história nacional influencia o desenvolvimento destas grandes famílias e destas grandes empresas ao longo deste século foi uma preocupação constante ao longo do meu trabalho, dado que os processos de desenvolvimento da família e da empresa não podem ser compreendidos sem estarem integrados no contexto socioeconómico nacional onde ocorrem. Da mesma forma, analisam-se as múltiplas influências que os projectos empresariais e as relações familiares e sociais deste universo empírico tiveram na história recente do país, pois eles mostram o fazer, desfazer e refazer de relações de naturezas diversas, mas com implicações decisivas, não apenas para essas famílias, e suas empresas, mas para todo o país. Em resultado destas opções, o limite temporal da investigação foi definido pelo próprio período em que se desenvolve a história destas empresas, desde o momento da sua fundação até ao presente. Esta análise processual da relação entre família e empresa permite contribuir para uma melhor compreensão do desenvolvimento das grandes famílias e das grandes empresas portuguesas e da articulação entre ambas ao longo deste século. Por outro lado, a adopção de uma perspectiva diacrónica para a análise destas grandes famílias foi fundamental para perceber a dinâmica interna dos processos familiares que se encontram em permanente mudança e reequilíbrio. A importância atribuída à preparação das gerações seguintes, para que estas possam manter a família e o seu grupo económico no topo da hierarquia económica e social sublinha, também, a importância da análise no tempo longo da família. A perspectiva processual em que se estruturam todas as narrativas de histórias de família que recolhi demonstra a importância desta questão. Ao relatarem os percursos de vida dos seus elementos, as histórias de construção de

35 Introdução 25 alianças, das decisões tomadas ao longo de gerações fundamentais para a sobrevivência, ou não, desses grupos as histórias de família fornecem-nos uma dimensão temporal, pois cada relação surge inserida no seu contexto sociohistórico. Desta forma, as histórias de família fornecem-nos uma visão dinâmica das relações entre os indivíduos que permite compreender melhor as relações particulares que os parentes específicos estabelecem entre si, a construção de redes sociais e os processos de construção de identidades familiares continuadas 14, em paralelo com a história da empresa. Este tipo de conhecimento da vida das pessoas que constituem estas famílias, transmitido através das histórias de família, possibilita uma visão global da forma como se articulam, interpenetram e influenciam essas duas realidades em que se move o mesmo universo de agentes sociais. A recolha das histórias de família mostrou particularmente bem a importância das relações familiares para a compreensão dos processos subjacentes ao desenvolvimento de alguns dos grandes grupos económicos portugueses e designadamente que os períodos de sucessão nos postos de liderança das empresas são momentos decisivos para perceber tanto a história das empresas, como a das relações familiares e sociais dos principais titulares do seu capital. Para a análise desta dimensão processual, sem a qual não podemos perceber estas organizações complexas que são as empresas familiares, recorri a dois conceitos fundamentais: processo em constituição e gerações. As estratégias familiares que garantem a manutenção das relações entre os seus membros, assegurando ao mesmo tempo a continuidade do seu projecto económico comum, dependem da transmissão de um conjunto de valores que levem as novas gerações a empenhar-se activamente na reprodução dos projectos das gerações anteriores e, posteriormente, a transmiti-los às gerações que lhes seguirão. Estamos, portanto, perante um processo de continuidade familiar que está em permanente constituição. Ao usar o conceito constituting process proposto por 14 Utilizo o conceito identidade continuada, proposto por João Pina Cabral para descrever processos de construção de identidade que resultam da influência de unidades de identificação anteriores nos sentimentos de união e partilha de interesses em unidades posteriores. São processos de construção identitária em que elementos de identificação passados são uma fonte de identificação do presente (Pina Cabral 1991: ).

36 26 Introdução Christina Toren (1999) quero chamar a atenção para o facto de ser através da agencialidade quotidiana (cf. Giddens 1996) dos diversos membros destas famílias que se vão tecendo as negociações e adaptações que permitem a continuidade, apesar das permanentes transformações, da unidade familiar associada a um projecto colectivo. Para dar conta da forma como as diferentes pessoas se integram de maneiras distintas no tempo longo das famílias empresariais a que pertencem, utilizo o conceito de geração, tal como ele é formulado por Lisón-Tolosana. Segundo este autor, Uma geração, no sentido sociológico, compreende um grupo etário de homens e mulheres que levam uma forma de existência semelhante, ou que partilham de um mesmo conceito de vida: que julgam os acontecimentos que lhes ocorrem em dado momento em termos de um fundo comum de convenções e aspirações. Há assim três características que distinguem uma geração: a primeira e a mais importante é a aceitação e/ou criação parcial de atitudes e valores o facto de os seus membros partilharem de uma mesma imagem do mundo ou da vida. A segunda deriva da primeira: a aceitação conjunta de atitudes e valores implica uma coincidência temporal o facto de os membros da geração estarem activa ou passivamente interessados nos acontecimentos que lhes ocorrem ou que eles causam e/ou tentam controlar. A terceira, é a existência de um fundo comum de aspirações e tarefas a levar a cabo. Estas três características sugerem dois corolários: em primeiro lugar, as ideias e atitudes que constituem o núcleo fundamental de uma geração condicionam o indivíduo que a ela pertence, ou, caso ele pertença a uma elite inovadora, são impostas por ele. Ele só pertence ao grupo, na medida em que é condicionado ou é criador destas ideias e atitudes. Do que se segue o segundo corolário: qualquer indivíduo, seja qual for a sua idade biológica, que aderir a essa forma de vida a esse modo de existência é membro dessa geração. ( ) Os mundos respectivos de cada geração, embora coincidam no tempo, são diferentes (Lisón-Tolosana 1983:180-1). Esta noção de geração foi particularmente útil para construir uma perspectiva processual dos processos de desenvolvimento das famílias e das suas

37 Introdução 27 empresas que analisei. Os diversos elementos de cada família estão sempre em fases diferenciadas do seu crescimento como pessoas e, consequentemente, em situações diversas nas suas relações com a empresa, com os seus familiares e com o contexto histórico em que se inserem factos que em conjunto os afectam diferenciadamente. O resultado das diferentes formas de reagir a estas relações produz o desenvolvimento das empresas nos processos de continuidade e mudança que os constituem. São estes diferentes posicionamentos e percursos que analisarei ao longo dos capítulos que se seguem.

38 CAPÍTULO I GRANDES EMPRESAS FAMILIARES

39 1. As grandes empresas familiares como objecto de estudo O universo de empresas familiares com que trabalho é, como já afirmei, constituído por empresas, ou grupos de empresas 11 de grande dimensão, de grande importância económica e que ocupam uma posição importante no seu sector de actividade. Todas elas são empresas de grande prestígio, com projecção internacional, com múltiplos accionistas, que podem ser da família do seu fundador ou não, mas onde a soma das acções dos membros da família garante o controlo dos destinos da empresa ou do grupo. Uso, assim, o conceito de empresa familiar para denominar estas grandes empresas em que, pelo menos durante três gerações, os sucessores do elemento que as funda têm mantido a titularidade da maioria do capital e o controlo da gestão. O facto de me referir a estas grandes empresas através do conceito de empresas familiares pode parecer estranho, na medida em que elas não fazem, normalmente, parte do universo definido por este conceito. No entanto, faço-o porque creio que a frequente associação entre a ideia de empresa familiar e 11 Quando se fala em grupo de sociedades grupo económico ou grupo de empresas referimo-nos, em geral, a um conjunto de empresas juridicamente distintas, que se subordinam à direcção ou ao controlo de um centro comum. No entanto, a aparente simplicidade desta ideia é desmentida quando procuramos definir quais as situações em que se deve entender que existe o apontado poder por parte do referido centro comum, ou seja, quais os critérios para delimitar o âmbito do grupo de empresas. De acordo com a lei comercial portuguesa, o referido conceito de grupo corresponde às sociedades em relação de grupo (os casos em que uma sociedade é a única sociedade titular das acções de uma sociedade comercial anónima, os casos em que duas ou mais sociedades independentes aceitam subordinar-se por contrato a uma direcção unitária e comum e os casos em que uma sociedade aceita subordinar a gestão da sua actividade à direcção de outra) e às sociedades em relação de domínio (os casos, mais numerosos, em que o controlo de uma sociedade é assegurado por uma participação maioritária no capital social ou através da participação nos órgãos de gestão) (cf. Código das Sociedades Comerciais art.º 486º e 488º).

40 32 Grandes empresas familiares pequenas estruturas económicas, decorre mais da verificação da superioridade estatística destas, por relação às grandes empresas familiares, que de razões definicionais. Vejamos porquê. De uma maneira geral, a definição de empresa familiar reporta-nos ao universo das pequenas empresas, a situações empresariais em que um indivíduo dinâmico e empreendedor montou, sozinho ou em conjunto com outros familiares, um negócio com algum sucesso, no qual a família é proprietária da totalidade da empresa e onde empregados e dirigentes são maioritariamente membros da família (cf. Jones e Rose 1993, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997). 12 Esta associação entre empresa familiar e pequena empresa não é apenas uma ideia do senso comum. Ela é, surpreendentemente, veiculada por compêndios e dicionários de economia. Se tomarmos em conta, a título de exemplo, o Dicionário de Economia organizado por Bannock, o item empresa familiar remete-nos para o item pequena empresa (Bannock 1987: 154), por sua vez definida como uma empresa gerida de um modo pessoal pelos seus proprietários ou sócios e que detém apenas uma pequena quota do mercado em que se encontra (Bannock 1987: 314). O termo empresa familiar é, mesmo, usado frequentemente num sentido algo pejorativo, para significar que os gestores dessas empresas não estão bem preparados para os cargos que ocupam, em resultado das suas relações de parentesco. Associa-se com frequência o termo empresa familiar à prática do nepotismo entendido como a promoção dentro da empresa com base na pertença à família e não com base na competência profissional, considerado um critério de selecção que coloca a empresa em desvantagem no mercado económico. Um bom exemplo desta associação ao nepotismo e da dificuldade em separar a definição de empresa familiar da conotação de pequena ou média empresa foi-me claramente revelado durante a investigação pelo presidente de 12 De acordo com economistas e sociólogos, a distinção entre os vários tipos de empresas micro, pequena, média e grande não se baseia apenas em indicadores quantitativos (facturação, capital e número de trabalhadores), mas inclui também o tipo de organização da empresa, das suas funções, sistemas de produção e tipo de trabalho de gestão e de execução (cf. Gersick et al 1997 e Guerreiro 1996).

41 Grandes empresas familiares 33 uma conhecida grande empresa portuguesa, que me disse que não valia a pena ter uma entrevista comigo porque a sua empresa não era uma empresa familiar mas uma empresa moderna cotada em Bolsa. As empresas familiares existem em todo o mundo e a variedade das suas organizações e do seu êxito é enorme. Numa amplitude que pode ir desde a mercearia de esquina até às grandes corporações multinacionais, há uma longa, rica e variada tradição de propriedade e envolvimento familiar nos negócios. Porém, a importância das empresas familiares a nível mundial não se comprova apenas em termos estatísticos. Na verdade, elas assumem um papel central na economia de diferentes países. Tal é o caso da importância deste tipo de empresas no crescimento e desenvolvimento do sistema americano de livre iniciativa, onde elas são, por isso mesmo, consideradas o tipo de empresa americana por excelência (Rose 1983: 1). Noventa e cinco por cento das empresas americanas são, pelo menos em parte, de propriedade familiar (Donnelley 1964: 96, Buchholz e Crane 1989: 15/24 e Goody 1996: 203). A predominância estatística das empresas familiares no quadro da economia norte-americana pode explicar a impressionante quantidade de trabalhos publicados sobre empresas familiares nos EUA, sobretudo na área da economia e da gestão de empresas, tendo também dado origem a um grande desenvolvimento de empresas de consultoria nesta área. 13 Outros elementos demonstram, também, a importância das empresas familiares. Algumas das maiores e mais importantes empresas dos países capitalistas industrializados foram, precisamente, fundadas como empresas familiares. Em 1993, a lista das quinhentas maiores empresas dos Estados Unidos publicada pela Revista Fortune chamava a atenção para o facto de um terço destas serem de propriedade familiar. Na lista que a mesma revista apresenta das grandes 13 A grande maioria destes serviços de consultoria tem como objectivo ajudar as famílias proprietárias de empresas a definir as estratégias de desenvolvimento e organização, de forma a não sofrerem as consequências dos problemas de sucessão que, em muitos casos, promovem rupturas irreversíveis na empresa, podendo mesmo dar origem à sua extinção. Há também uma vasta literatura de aconselhamento aos profissionais que trabalham com estas empresas, revistas dedicadas exclusivamente aos negócios familiares como a Family Business Review, congressos e seminários regulares para as pessoas que trabalham ou detêm empresas familiares.

42 34 Grandes empresas familiares sociedades europeias deste tipo estavam incluídas empresas como a Michelin (a maior indústria de pneus a nível mundial), a Mars (o gigante da indústria de chocolates), o C & A (uma rede de armazéns ingleses de roupa com uma significativa implantação internacional) e a Caterpillar Inc. É evidente que as grandes empresas familiares não são a regra no mundo empresarial. Mas, por outro lado, funcionam também como exemplos de viabilidade e sucesso para a generalidade das empresas familiares. A diversidade deste tipo de empresas é, portanto, enorme. Porém, todas partilham de uma característica comum: estão ligadas a uma família e esta ligação torna-as um tipo particular de empresa. Da mesma forma, estas empresas vinculadas a um universo familiar têm uma clara influência na organização e na vida dessas famílias. Assim, as empresas familiares são constituídas por dois subsistemas interligados e por vezes sobrepostos: a família e a empresa, facto que as torna instituições particularmente complexas. Cada um deles tem os seus próprios valores, regras de pertença e estruturas organizacionais e alguns dos seus membros têm obrigações nos dois círculos. Encontrar maneiras de satisfazer os dois subsistemas é um desafio central para todas as empresas familiares, pois a sua continuidade depende, em grande parte, do sucesso dessa articulação. De acordo com este argumento, considero que o principal elemento de definição das empresas familiares é a articulação entre os referidos sistemas e não a dimensão da sua estrutura organizacional. Claro que a dimensão da empresa é um elemento importante, a ter em conta no processo de investigação, pois analisar estas grandes empresas, com centenas de empregados e dotadas de complexas estruturas organizacionais, implica, necessariamente, uma perspectiva distinta da que se adoptaria para pequenas empresas. No entanto, essa distinção decorre das exigências específicas da organização de cada um desses contextos empresariais e não do facto de a sua diferente dimensão imprimir uma natureza essencialmente diferente à empresa. Vejamos, através de uma das grandes famílias empresariais que estudei, como a definição de empresa familiar se pode aplicar a empresas integradas num grande grupo económico que, apesar de grandes mudanças na sua dimensão, ao

43 Grandes empresas familiares 35 longo de mais de dois séculos de existência, enraíza nesse critério uma parte importante da caracterização identitária da instituição. A casa Jerónimo Martins foi fundada, em 1792 no Chiado, por um jovem e empreendedor galego. A longa existência da Jerónimo Martins é exaltada, em 1989, numa brochura publicitária da seguinte forma: Vivemos cinco regimes políticos, as invasões francesas, duas guerras mundiais, quatro revoluções e o incêndio do Chiado. Das inúmeras vissicitudes dos seus duzentos anos de existência, as mais significativas verificaram-se, no entanto, nos últimos cinquenta anos, durante os quais o pequeno estabelecimento comercial se transformou numa empresa de distribuição de produtos alimentares com participações na indústria e, posteriormente, num dos maiores e mais poderosos grupos económicos nacionais. Hoje em dia, o Grupo Jerónimo Martins domina diversas grandes empresas em três sectores de actividade: indústria (Lever, Fima, Iglo, Melgaço, Vidago e Pedras Salgadas), distribuição (JM Distribuição) e comércio (supermercados Pingo Doce, Cash & Carry Recheio, Hipermercados Feira Nova, uma cadeia de supermercados na Polónia, e outra no Brasil). Para cada um dos ramos de actividade em que estão envolvidos, as empresas do grupo têm joint ventures com prestigiadas empresas nacionais e internacionais. A melhoria dos serviços prestados no âmbito do seu sector de actividade tem estado sempre associada ao desenvolvimento das empresas desta família. Prova disto foi o seu lançamento, em 1996, em conjunto com o Grupo BCP/Atlântico, numa nova aposta: os bancos Expresso Atlântico que funcionam dentro das lojas dos supermercados, em horário alargado, sete dias por semana, para irem ao encontro das necessidades dos clientes. A modernização e a procura de novos investimentos nas suas áreas tradicionais de acção são as linhas de orientação do crescimento deste grande grupo económico. A Jerónimo Martins SGPS, SA, é uma sociedade gestora de participações sociais, detida em sessenta por cento pela holding familiar Francisco Manuel dos Santos, cujo quadro de administradores é composto maioritariamente por membros da mesma família. O actual presidente do conselho de administração da

44 36 Grandes empresas familiares Jerónimo Martins, SGPS que é também o maior accionista individual da holding familiar, da qual detém quarenta por cento, pertence à terceira geração da família Santos que, em 1921, adquiriu a Jerónimo Martins & Filhos. Três dos seus quatro filhos varões já integram esse conselho e o quarto está a receber formação especializada para poder, em breve, ser admitido no referido órgão, sem escapar aos apertados níveis de competência e experiência exigidos para tal. É de prever que, tal como o seu pai sucedeu ao seu avô, também um dos filhos do actual presidente venha a ocupar a presidência do Grupo. Para além dos membros do conselho de administração, numerosas pessoas da família trabalham nas empresas do grupo, numa diversidade de lugares que vão desde o secretariado, passando por chefes de publicidade, marketing, distribuição e administração. Os próprios elementos da família Santos definem desta forma o seu grupo económico: A Jerónimo Martins é uma empresa familiar. Está nas mãos da família há cem anos e antes de nós esteve nas mãos de outra família ao longo de três gerações. Como vê, desde a origem que a estrutura familiar acompanha a evolução da nossa empresa e ela é uma parte fundamental da nossa cultura de empresa e do nosso sucesso (IS). As características organizacionais da Jerónimo Martins, a quantidade de membros da família que trabalham nas diversas empresas do grupo e que nelas ocupam os principais lugares de decisão, permitem-me afirmar que este grupo económico de grande dimensão que em 1999 empregava mais de trabalhadores e facturava 654 milhões de contos (cf. Relatório e contas 1999) assenta numa base fortemente familiar. Consequentemente, podemos integrar este poderoso grupo económico na categoria empresas familiares. O êxito e a continuidade de muitas empresas familiares sejam elas pequenas, médias ou grandes empresas, indica claramente que a participação familiar não é, em si mesma, um factor decisivo no sucesso ou no fracasso desse projecto económico. O seu êxito ou falência depende mais da forma como se

45 Grandes empresas familiares 37 concretiza essa participação e, sobretudo, a qualidade do empenho e da competência profissional que os diversos membros da família investem nesse projecto comum. Um dos factores decisivos para a consolidação de uma grande empresa familiar decorre da transmissão, pelo fundador do negócio aos seus descendentes, da ideia de que o legado empresarial e não meramente económico que lhes vai deixar é algo importante, algo que deve ser continuado. Conseguir criar nos descendentes a vontade e a vocação de virem a ser empresários, dando continuidade aos projectos económicos do fundador, é uma mais-valia decisiva para o sucesso deste tipo de empresas. 14 Para perceber melhor a importância do fundador na história do desenvolvimento das empresas familiares, usarei como exemplo uma outra das famílias com que trabalhei: a família Espírito Santo, cuja história descreverei em pormenor mais adiante. O fundador, José Maria Espírito Santo Silva, criou uma fortuna muito considerável para a sua época. Em 1897, fundou a casa bancária a partir da qual os seus filhos viriam a constituir o Banco Espírito Santo e criou uma excelente rede de relações sociais em Lisboa, no seio da qual os seus filhos foram educados, cresceram e casaram, aumentando posteriormente o património tanto a nível material e económico como a nível relacional deixado por seu pai. Desde cedo, os filhos começaram a trabalhar com o pai no banco e, após a sua morte, souberam aproveitar os seus ensinamentos e expandir a actividade bancária de tal maneira que, em 1955, eram já considerados o primeiro banco português (cf. Magalhães 1996: 199) e são, hoje em dia, considerados por vários autores como a única dinastia de banqueiros portugueses (Resener 1991). José Maria Espírito Santo e Silva não transmitiu aos filhos apenas uma fortuna considerável e um bom negócio. O seu maior trunfo foi ter conseguido transmitir-lhes a ideia de que 14 No seu trabalho sobre grandes empresas familiares no Texas, EUA, George Marcus salienta também a importância deste elemento na formação e desenvolvimento do projecto de continuidade familiar. Na sua opinião, as grandes formações empresariais de base familiar só se desenvolvem nos casos em que o fundador consegue transmitir aos membros da segunda geração, de uma forma integrada, três coisas: uma organização empresarial de sucesso, uma família e uma fortuna pessoal (cf. Marcus 1992: 21).

46 38 Grandes empresas familiares lhes estava a deixar algo que era importante continuar, preservar e, se possível, expandir: tarefas que os filhos cumpriram com o êxito que actualmente conhecemos. O caso da família Cupertino de Miranda é também um claro exemplo, embora pela negativa, da importância do papel do fundador na continuidade da empresa familiar. Cupertino de Miranda fundou o Banco Português do Atlântico (BPA) e desenvolveu-o de uma forma tão hábil que rapidamente o transformou no primeiro banco português. No entanto, não conseguiu produzir sucessores à altura do seu projecto económico, tendo os seus descendentes acabado por vender as suas participações. Tenho pena de não ter seguidores. O meu filho não tem vontade e o meu genro é engenheiro químico. As minhas filhas são raparigas e são as únicas que me deram netos, mas também não servem. Sabe, têm outros nomes que não o meu (Arthur Cupertino de Miranda 1987 in Fernandes 1999). O exemplo do destino do empório de um dos mais importantes empresários portugueses até aos anos setenta mostra bem que uma grande fortuna empresarial não se consegue transmitir se os descendentes não a quiserem continuar ou se não se mostrarem aptos a recebê-la. Em redor da figura do fundador das grandes empresas familiares portuguesas criam-se, frequentemente, uma série de lendas, de histórias que se repetem com orgulho, de pais para filhos, de avós para netos, alimentando a memória familiar das gerações actuais e, assim, consolidando a união entre os descendentes. Encontrei exemplos da importância simbólica do fundador em todas as famílias que estudei. O Avô José é o fundador, é o ponto de identificação da família. Todos lhe chamamos avô apesar das gerações que nos separam dele. A clara apetência pelos negócios que existe na família foi herdada dele. É por isso que todos sentimos esta profunda ligação a ele, como sendo a nossa origem (BB).

47 Grandes empresas familiares 39 O Banco era do meu avô e por isso eu tenho imenso orgulho de estar aqui e participar neste projecto (Ma). Se não fosse a coragem dos avós e dinamismo dos D Orey velhos que mantiveram unidas várias gerações da família na Orey Antunes, isto nunca aconteceria, nunca teríamos esta festa tão bonita que reúne toda a família [1160 elementos] (IR). O avô era um homem de vontade de ferro. Quando, com oitenta e dois anos, lhe cortaram a perna, reagiu logo no dia seguinte, pedindo que lhe levassem a correspondência do escritório. Dois anos depois, quando a KLM ofereceu um voo inaugural da carreira Amsterdão-Lisboa, apesar da idade e de andar de muletas, não quis deixar de experimentar a nova era dos transportes que então começava, na Companhia que a sua empresa representava em Portugal (ML). Eu acompanhei o meu pai toda a sua vida. Mais ou menos da mesma maneira que ele acompanhou o pai dele. E assim vamos aprendendo os meandros dos negócios, de pais para filhos, na prática, que é onde aprendemos as melhores lições (ZM). Grupo numeroso [a família Pinto Basto] ( ) apresenta uma colecção bem recheada de talentos individuais unidos por uma coesão fora do comum. Daqui resulta a formação de um corpo social com forte consciência da sua individualidade, quase com consciência de formar uma classe à parte, praticando o culto do fundador, obedecendo a uma chefia bem definida (Bobone 1998: 21). Através destas lendas que correm na família, transforma-se o antepassado empreendedor e dinâmico num herói fundador da grande família. Apresentemos uma outra das famílias estudadas. A família Pinto Basto é um caso particular entre as grandes famílias com que trabalhei. É de todas a maior são mais de dois mil os Pinto Bastos identificados no livro da família (cf. Bobone 1998 e mapa genealógico nº 7), e a mais antiga quando se referem ao avô Pinto Basto, referem-se a José Ferreira Pinto um dinâmico empresário, nascido em Esta grande família é um excelente exemplo do êxito de uma boa transmissão da

48 40 Grandes empresas familiares ideia de um projecto económico colectivamente conduzido pela família ao longo de dez gerações. O dinamismo empresarial dos descendentes do fundador é bastante revelador. José Ferreira Pinto foi contador geral dos Tabacos e das Reais Saboarias do Reino, Ilhas Adjacentes e Macau, construiu um cais no Tejo para os seus navios, foi um dos fundadores daquilo que viria a ser a Associação Comercial de Lisboa, foi provedor da Casa Pia de Lisboa, fundou uma fábrica de moagem em Aveiro e a Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, que se encontra hoje nas mãos da sétima geração de membros da família Pinto Basto, numa situação única no país. Na geração seguinte, os seus filhos iniciaram-se no sector da navegação criando a Casa E. Pinto Basto que, tal como a Vista Alegre, ainda hoje se mantém nas mãos da família. A família Pinto Basto foi, também, aquela que, de uma forma mais evidente e continuada, teve uma participação activa na política do país tendo atravessado vários regimes políticos, marcando com a sua presença a cena política, tanto a nível local como nacional, ao longo de dois séculos. Efectivamente, durante um longo período, que vai de meados do século XIX até cerca de 1965, a família tinha uma representação política quase tão grande como um partido político: a nível de Câmaras e de representação no Parlamento e, durante a monarquia, como Cavaleiros da Casa Real. 15 Nas duas principais empresas da família Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre e Casa E. Pinto Basto ocorreram grandes alterações no panorama accionista e de gestão que se verificaram nos últimos dez anos que visam, 15 A preponderância de elementos da família Pinto Basto na vida política portuguesa, pode verificar-se na seguinte listagem. José Ferreira Pinto Basto ( ) foi Senador, tal como os seus dois filhos mais velhos: Alberto foi membro da Junta do Governo de Aveiro; Augusto esteve na junta do Governo de Coimbra; Justino (que aos dezassete anos era Coronel da GNR) foi presidente da Associação Comercial do Porto e Ministro de Marinha; vários filhos das irmãs também foram deputados; Gustavo (Filho de Augusto) foi duas vezes presidente da Câmara da Junta do Comércio, e do Teatro Municipal de Aveiro; os filhos de Teodoro, Eduardo (vice presidente da CML, presidente da Associação Comercial de Lisboa, presidente da Companhia dos Telefones e da Companhia dos Tabacos) e Teodoro (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e vice-presidente da Associação do Comércio de Lisboa). Actualmente, alguns descendentes desta família continuam a marcar a vida política nacional como, por exemplo, Teresa Patrício Gouveia, Maria José Nogueira Pinto e Mota Torres.

49 Grandes empresas familiares 41 conscientemente, modernizar as empresas e retirar-lhes o peso excessivo que, no seu entender, a família continuava a ter nos seus órgãos de gestão. Ainda em 1985, por exemplo, continuava a estar expresso nos estatutos destas empresas que só podia ser administrador alguém com o apelido Pinto Basto. Apesar disso, os corpos de gestão das empresas continuam a ser ocupados por membros da família que são ainda, no seu conjunto, accionistas maioritários. Para além das empresas, os membros da família possuem ainda em comum e sem sócios exteriores um vasto património imobiliário, composto por diversos edifícios, terrenos e prédios rústicos. Em síntese, os exemplos de empresas familiares que tenho vindo a apresentar mostram claramente que não podemos usar o critério da dimensão para definir as empresas familiares. Elas podem ser grandes ou pequenas. Porém, o que as define enquanto empresas familiares, é o facto de estarem vinculadas a uma família, é a distribuição da sua propriedade e o facto de a ocupação dos seus cargos de gestão ser garantida por descendentes do fundador da empresa. 2. Estudos sobre empresas familiares nas ciências sociais As pequenas empresas familiares têm sido um tema muito frequente de investigação em sociologia, em economia e em história. Existe sobre ele uma vasta bibliografia que, no entanto, se circunscreve fundamentalmente ao papel que as pequenas empresas familiares tiveram no processo de industrialização nos países

50 42 Grandes empresas familiares ocidentais. 16 A maior parte destes trabalhos é predominantemente elaborada a partir de duas perspectivas: a) enaltecer o carácter empreendedor, dinâmico e exemplar dos seus fundadores ou de algum dos seus sucessores 17 ; b) fornecer ferramentas que sirvam de manual de sobrevivência a essas empresas e a essas famílias e que são, normalmente, publicadas pelas empresas de consultoria especializadas nesta área empresarial. 18 O elevado número de publicações sobre empresas familiares conduz a uma interrogação óbvia: porquê uma tão grande dedicação a este tema, se este tipo de empresas é normalmente remetido pelos analistas para uma segunda ordem de importância no âmbito da economia actual? Será que o facto de serem de propriedade familiar faz com que estas empresas sejam diferentes das outras? Porque, então, partir do princípio que a gestão familiar promove, necessariamente, fragilidades na continuidade e no crescimento da empresa, que pode ser evitada pela gestão profissional? Será que a sobreposição de relações de natureza distinta mina, de facto, as relações familiares e constitui, simultaneamente, um impedimento real ao desenvolvimento económico das empresas? Se tal fosse verdade, como poderíamos explicar, então, a enorme proliferação e o aparente sucesso de empresas familiares em todo o mundo? 19 Não será que estamos, simplesmente, perante a necessidade de explicar a contradição encerrada num modelo cultural que afirma a separação e a 16 A centralidade deste tema é bem ilustrada na preponderância do lugar que ocupa nas colectâneas organizadas por Giddens e Stanworth 1974, Jones e Rose 1993, e nas obras de Rubinstein (1987) e Jaher (1973) em que se defende que as empresas familiares não só eram compatíveis com o rápido progresso económico na Europa do século XIX, como foram o seu principal agente. 17 Vejam-se, por exemplo, os casos das inúmeras biografias publicadas sobre os mais dinâmicos e bem sucedidos homens de negócios. De entre estas podemos destacar Aldrich (1996), Attali (1985), Norrington (1983) e Ferguson (1998 e 1999). 18 De entre a vasta literatura existente sobre formas de apoio à sobrevivência de empresas familiares vejam-se, por exemplo, as obras de Rosenblatt (1985), Dyer (1986), Buchholz e Crane (1989), Gersick et al (1997) e pelas revistas norte-americanas Family Business e Nation s Business. 19 Vejam-se, por exemplo, os casos do Japão (Fruin 1980 e Hamabata 1991) das Seyschelles (Benedict sd), da China e da Índia (Goody 1996), dos Estados Unidos da América (Dyer 1986) e de Portugal (Guerreiro 1996) onde se mostra a amplitude do sucesso económico deste tipo de empresas.

51 Grandes empresas familiares 43 incompatibilidade entre empresa e família? Entre racionalidade económica e solidariedade familiar? Para debater estas questões é útil tomar como referência um texto de Jack Goody, do seu livro The East in the West (1996), onde o autor discute o etnocentrismo subjacente à ideia de o sistema capitalista se ter desenvolvido, no Ocidente e não no Oriente, devido às diferentes formas de organização familiar e ao peso distinto que as relações de parentesco têm num e noutro contexto. Seguindo Goody, o facto de o sistema capitalista se ter desenvolvido primeiro no Ocidente, onde predomina a família nuclear, serviu de base para a formulação da ideia de que este sistema económico não se poderia desenvolver em contextos onde o parentesco tivesse um peso excessivo, pois este implicaria que as empresas familiares fossem a forma predominante de organização empresarial. Neste estimulante texto, Goody demonstra a importância das empresas familiares no desenvolvimento económico da Índia e na sua passagem para um sistema de produção industrial moderno. A propósito do material indiano, o autor interrogase sobre a possibilidade de as empresas familiares e o sistema de castas impedirem o desenvolvimento económico do capitalismo na Índia, uma vez que, como podemos constatar em Londres e Nova Iorque e podemos acrescentar em Lisboa, os indianos estabelecem com grande sucesso os seus negócios no mundo ocidental (Goody 1996: 150). O artigo de Goody contribui de forma decisiva para refutar a ideia que associa empresa familiar a pequenas empresas, a lógicas de organização económica pouco desenvolvidas e, em última análise, a sociedades não ocidentais. Ao analisar as grandes empresas familiares, no âmbito das sociedades capitalistas, verificamos que, pelo contrário, as redes familiares são elementos decisivos no centro das suas actividades económicas, mesmo nas sociedades mais desenvolvidas. As grandes empresas de base familiar que existem nas sociedades ocidentais constituem, paradoxalmente, um exemplo da modernidade organizacional e económica, apesar de assentarem em valores familiares. Neste sentido, é importante reter uma das principais conclusões que Marvin Dunn tira da sua análise sobre grandes grupos económicos na Nicarágua: a fusão

52 44 Grandes empresas familiares da propriedade e do parentesco não pode ser pensada como um mero vestígio de estádios anteriores de capitalismo, na medida em que ela é, pelo contrário, um mecanismo central da continuidade inter-geracional da estrutura de classes das sociedades capitalistas mais avançadas (Dunn 1980: 18). Mesmo nos casos, pouco frequentes, em que os especialistas da gestão e da economia não relacionam a capacidade de êxito da empresa com a sua dimensão e com o facto de a sua propriedade e gestão serem familiares, tendem a considerar que a longevidade dos negócios familiares é curta: Misturar família e negócios sempre foi algo precário. A maior parte das empresas familiares neste país caem mais depressa que o índice Dow Jones em segundas-feiras negras. Elas têm uma esperança de vida de menos de vinte e cinco anos. Apenas trinta por cento sobrevivem à segunda geração. De entre as que o conseguem, apenas metade conseguirá chegar à terceira geração. As quartas, quintas e sextas gerações são praticamente inexistentes nas empresas familiares (Buchholz e Crane 1989: 15). De acordo com os dados apresentados por Goody, só vinte e quatro por cento das empresas familiares atingem a segunda geração e só catorze por cento delas sobrevivem à terceira geração (Goody 1996: 201). A curta duração geralmente atribuída às empresas familiares é justificada, pelos economistas, pela falta de preparação dos membros da família na área de gestão, que tem como consequência a adopção de estratégias de gestão baseadas em critérios de afectividade o que, num mundo de competitividade económica, reduz as possibilidades de sobrevivência da empresa. É a partir deste argumento que vários especialistas sobre este tema, entre os quais Chandler, defendem que o crescimento e eficiência dos negócios familiares só poderá acontecer nas situações em que a gestão for atribuída a técnicos especializados que substituem o controlo familiar (cf. Chandler 1977). A curta duração e o insucesso das empresas familiares resultaria, de acordo com estes autores, do facto de as organizações juntarem dois domínios que deveriam permanecer separados: família e negócios. Aliás, é por esta razão que, as empresas familiares são apresentadas como um primeiro estádio da evolução organizacional, veiculando a ideia de formas

53 Grandes empresas familiares 45 empresariais pouco evoluídas e que, mais cedo ou mais tarde, serão substituídas por outras mais complexas e burocráticas. Como referem Giddens e Stanworth, durante as primeiras fases do desenvolvimento capitalista a concentração de propriedade e administração de empresas nas mãos de uma família é considerada adequada. No entanto, à medida que a economia capitalista se desenvolve a sua separação torna-se necessária (cf. Giddens e Stanworth 1974). 20 De acordo com esta ideia, à medida que as empresas crescem e se desenvolvem, tornar-se-ia necessário reorganizar a sua administração em moldes mais profissionais e menos pessoais pois, num estádio mais complexo, a concentração da propriedade e da administração nas mãos de uma família torna-se um obstáculo ao seu desenvolvimento (cf. Gersick 1997). Ao contrário de algumas teorias da gestão empresarial que consideram os interesses da família incompatíveis com os do trabalho, como a eficiência e a racionalidade, vários estudos demonstraram que a mobilização de recursos humanos e ideológicos da família poderá trazer vantagens para as empresas. Como afirma Maria das Dores Guerreiro, a propósito das PME's (Pequenas e Médias Empresas) portuguesas: Aspectos das relações constituídas na esfera da família, tais como sentimentos de confiança e lealdade, interesses e projectos de vida partilhados, estatutos de autoridade associados ao parentesco, são mobilizados para gerir as questões relativas à propriedade e direcção das empresas (Guerreiro 1994: 53). 20 Adriana Piscitelli mostra que, no Brasil, economistas e sociólogos, seguindo esta mesma linha de argumentação, construíram uma linha sequencial de fases políticoeconómicas do desenvolvimento do país, às quais está associada uma progressão de tipos de empresas predominantes. Num primeiro momento da era capitalista, na década de 1920, surgem empresários no sentido schumpeteriano do termo noção de empresário baseada na iniciativa individual no processo de desenvolvimento económico que deram um contributo fundamental para o desenvolvimento industrial do país. Nesta fase, a concentração entre propriedade e administração das empresas numa mesma família é considerada adequada. Na década de cinquenta, entrar-se-ia numa fase de expansão e burocratização das empresas, em que o desenvolvimento económico implica a profissionalização dos agentes tornando desadequada a sua associação a famílias (Piscitelli 1999: 12-4).

54 46 Grandes empresas familiares As empresas familiares têm a vantagem de dar aos membros da família um emprego e estes poderem, assim, construir uma carreira rapidamente, trabalhando em algo que também lhes pertence. Neste tipo de empresas as pessoas podem dedicar-se ao mesmo tempo à sua carreira e à sua família, investindo na continuidade do seu nome e na melhoria da sua situação económica. Isto faz com que possam investir mais e melhor na empresa, sem preocupações comuns à generalidade dos trabalhadores: horário e salário. Um caso exemplar do êxito da articulação entre empresas e famílias é o das empresas japonesas, onde a analogia entre empresa familiar e família no sentido de grupo de descendentes e não de família nuclear e, simultaneamente, a analogia entre família e empresa dá origem a empresas familiares com grande continuidade temporal e grande êxito económico (cf. Fruin 1980 e Hamabata 1990). 21 O trabalho recente de Roger Goodman mostra como a metáfora organizativa da família nas empresas japonesas está a ser levada até às últimas consequências por algumas empresas que se estão a organizar como se fossem famílias (cf. Goodman 1999). Vários outros trabalhos de investigação, realizados noutros contextos sociais e geográficos, têm também mostrado como a articulação entre família e empresa não só é benéfica como chega até a ser um factor essencial para o seu sucesso. 22 Do grupo de sete famílias empresariais que analisei, todas elas existindo há mais de três gerações familiares, apenas uma, a família Mendes Godinho, não consegue manter actualmente o seu sucesso empresarial. Mesmo assim, o seu último presidente representa a quarta geração da família do fundador e vários representantes da quinta geração trabalham em empresas do Grupo. 21 Hamabata leva mais longe esta ideia ao defender que, na indústria japonesa, existe uma rede de parentesco estabelecida através das mulheres (1990: 29). 22 Neste âmbito, lembro o trabalho de Joana Afonso sobre as famílias de circo em Portugal, onde a autora defende que o facto de os circos portugueses serem empresas familiares é um elemento decisivo para a sua continuidade (cf. Afonso 1998).

55 Grandes empresas familiares 47 A Sociedade Mendes Godinho & Filhos foi fundada em 1917, por um dinâmico agricultor e comerciante da cidade de Tomar. Em 1930 a sociedade tinha alcançado uma importância local considerável e, por volta dos anos sessenta, tinha lançado em Portugal empresas industriais que se tornaram líderes do mercado nacional e internacional nos seus respectivos ramos de actividade: cerâmicas vermelhas, transformação de oleaginosas e aglomerados de madeira. O conselho de administração da sociedade familiar sempre foi constituído exclusivamente por membros da família. Quando morreu o fundador, a presidência foi assumida pelo seu filho mais velho. Como resultado da repentina morte deste, foi o seu filho mais velho que assumiu o comando do grupo de empresas. Mais tarde, um sobrinho assumiu a liderança do Grupo e, depois um outro sobrinho ocupou esse cargo (ver quadro 1). Hoje em dia, a empresa principal do grupo (a Tagol) foi retirada pelo banco BPA, que era o seu maior credor, no culminar de uma série de problemas financeiros que se tinham vindo a arrastar desde 1975, altura em que a casa bancária da família foi integrada no banco que representava. 23 Este insucesso tem sido atribuído pelos especialistas a um excesso de espírito de família que estipulava que apenas membros da família podiam assumir lugares de direcção nos negócios familiares. Este ideal estava tão fortemente enraizado que não era abandonado nem em momentos em que conduzia claramente à ruptura da empresa e das relações familiares. 23 Uma história que os membros da família contam frequentemente remonta ao princípio do século quando Manuel Mendes Godinho emprestou dinheiro ao seu amigo José Maria Espírito Santo Silva para lhe resolver um problema de liquidez financeira. As boas relações com o banqueiro, e posteriormente com os filhos deste, são seladas em 1934 com a abertura em Tomar de uma casa bancária, representante do Banco Espírito Santo. Para a família Mendes Godinho é, portanto, irónico que, após o 25 de Abril, o Banco Espírito Santo os tenha integrado em cumprimento de uma medida estatal e que tenha tentado retirar-lhes a titularidade das outras empresas que possuíam e controlavam. Esta situação resultou do facto de os familiares que estavam à frente dos destinos da empresa nunca terem feito a autonomização jurídica (imposta pelo Estado em 1960) da Sociedade Fábrica Mendes Godinho e da casa bancária e que atribuía setenta e cinco por cento de Fábrica Mendes Godinho à Casa Bancária. Assim, ao perder esta última, perderam também o controlo dos restantes negócios.

56 48 Grandes empresas familiares

57 Grandes empresas familiares 49 A propósito deste exemplo, vale a pena lembrar que, na história do mundo ocidental, a empresa e a família estão imbricadas. Ao nível do desenvolvimento dos grandes negócios na Europa medieval, eram precisamente os grandes grupos económicos familiares, como os Medicis ou os Fugger, que dominavam. De facto, os mais destacados exemplos históricos no sector da banca estiveram desde sempre ligados a famílias, como as já referidas famílias italianas, mas também os Warbourg, os Rothschild ou os Rockfeller. Quanto ao caso português, verifica-se que, no final do século passado, as sociedades anónimas de capital disperso eram ainda praticamente inexistentes, sendo a maior parte das empresas de base familiar (cf. Castro 1971: 51). A tentativa de promover uma separação ideal entre ambas só se produziu recentemente. No entanto, como mostro nesta tese, esse ideal de separação não se verifica na prática. Assim, dizer que família e empresa são entidades separadas é considerar, apenas, uma realidade que caracteriza o presente da sociedade ocidental industrializada, cuja ideologia hegemónica as define como instituições separadas e onde, na maior parte dos casos, o são efectivamente. Fazê-lo significa esquecer um passado, não muito longínquo, onde a empresa era a família. O êxito das grandes empresas familiares actuais representa, consequentemente, um desafio permanente à ideia de insucesso, precariedade e falta de profissionalismo que a racionalidade capitalista, hegemónica no mundo ocidental, associa às empresas familiares. Foi, portanto, com surpresa que verifiquei a existência de tão poucos trabalhos publicados sobre esta questão. Na verdade, as análises dos grandes grupos económicos de base familiar têm estado arredadas das ciências sociais. As poucas que existem são orientadas para uma análise organizacional que procura explicar o funcionamento e a história da instituição. Pelo seu lado, os economistas tendem a analisar a empresa como uma unidade de produção que compete no mercado, pelo que a eficácia dos seus desempenhos é o seu objectivo central. Pela sua vez, os sociólogos têm analisado as empresas enquanto organizações, retomando, de maneira geral, as categorias analíticas definidas pelos economistas. Michel Bauer foi um dos primeiros sociólogos a identificar o centro da questão ao afirmar que o problema das

58 50 Grandes empresas familiares análises produzidas, tanto por sociólogos como por economistas, resulta do facto de ignorarem que os gestores proprietários de empresas são também pais de família, pelo que as suas preocupações empresariais são muito influenciadas pelas suas preocupações patrimoniais (Bauer 1991: 23-5). De destacar, em Portugal, o trabalho da socióloga Maria das Dores Guerreiro (1996) sobre empresas familiares, em que a autora se debruça sobre a relação entre família e empresa, no âmbito das Pequenas e Médias Empresas (PME). No que diz respeito ao contexto específico da produção antropológica, a análise das grandes empresas familiares é um tema praticamente inexistente. Podemos destacar o trabalho de George Marcus nos Estados Unidos da América (1988 e 1992), o de Sylvia Yanagisako em Itália (1991) e o de Adriana Piscitelli no Brasil (1999). Sobre grandes empresas familiares em Portugal não existe nenhum trabalho, nem do ponto de vista económico nem do ponto de vista sociológico. Existem alguns trabalhos sobre os sete grandes grupos económicos de base familiar que dominaram o panorama da economia portuguesa antes do 25 de Abril de 1974, entre os quais se devem destacar os de Martins 1973, Santos 1977 e Pintado e Mendonça No entanto, estes trabalhos visaram, sobretudo, identificar as diversas empresas que constituíam cada um dos grupos e as suas ligações a cada uma das famílias que os detinham. Nunca foi realizada uma análise detalhada sobre o significado da relação entre empresa e família, que me parece estar no centro do sucesso desses gigantes, no âmbito da pequena dimensão da economia portuguesa. Na verdade, é estranho que os investigadores do desenvolvimento económico e político tenham negligenciado o estudo deste universo. Estes grupos tinham uma grande importância a nível nacional, controlaram sectores-chaves da actividade económica e dominaram, pelo menos durante cinquenta anos, a economia e o desenvolvimento do país, pelo que parece óbvia a importância que a sua análise terá para uma melhor compreensão do nosso passado recente. Se nos basearmos nos exemplos das famílias do meu universo de análise, podemos ver a forma como elas se cruzam nas suas actividades. Já referi a relação entre o Grupo Espírito Santo e o Grupo Mendes Godinho. Nessa mesma altura o

59 Grandes empresas familiares 51 Grupo Espírito Santo mantinha também relações com a empresa Orey Antunes. Em 1906, José Maria Espírito Santo era sócio dos irmãos D Orey na Companhia Colonial do Buzi uma empresa açucareira de Moçambique. A Orey Antunes é uma empresa que actua nos sectores de transportes marítimos e armazenistas de ferro, carros e máquinas, foi fundada em 1886 por Ruy e Waldemar Orey. Em 1900, a empresa fundiu-se com a Casa José Antunes dos Santos dando origem à Orey Antunes & Cª, de que todos os irmãos Albuquerque D Orey eram sócios. A partir de 1920, começaram a representar automóveis Pacard, Nash e Peugeot e, em 1939, tornaram-se agentes da KLM em Portugal. Nos anos trinta, compraram uma companhia marítima de transportes e pescas a Empresa de Pescas de Viana e, no final da II Guerra Mundial, construíram os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Nos anos sessenta, tentaram a sua sorte na construção turística no Algarve Hotel da Balaia, em parceria com o Konin Klipke Rotterdamshe Lloyd, fundaram um serviço particular de contentores tendo como sócio o BPA e depois a Kilom, uma empresa de agro-pecuária. Em 1972 entram na bolsa. Nalguns negócios tinham como sócios a Sonasim e Manuel Bulhosa, com quem constituíram, em 1974, duas sociedades: o Credito Predial Português e a Soponata. O Grupo Orey Antunes é constituído por várias empresas de navegação, transportes, viagens e seguros, participadas a cem por cento, nas quais se encontra sempre alguém da família em cargos de gestão: Sociedade Comercial Orey Antunes; Orey Antunes Transportes e Navegação; Orey técnica Naval e industrial; Orey Viagens e Turismo; Orseg mediadora de seguros; Orey Angola, Lda; Agência de Navegação, em Luanda; Casa Marítima Agência de Navegação; Agência de Transportes e Navegação. Detêm ainda participações noutras empresas de navegação, NedLloyd Portugal Navegação Lda, e armadores, Portwal. Um outro grupo económico de base familiar com que trabalhei pode também ser apresentado a propósito das suas ligações com o Grupo Espírito Santo: o Grupo Semapa, da família Queiroz Pereira, virado fundamentalmente para as áreas dos cimentos, automóveis e imobiliária. A colaboração entre as duas

60 52 Grandes empresas familiares famílias é muito forte desde, pelo menos, os anos quarenta. O avô do actual presidente do Grupo era um importante accionista e administrador da Companhia das Águas de Lisboa. Desde cedo foi desmultiplicando as suas participações em empresas e estava ligado à banca através do Banco Comercial de Lisboa. Foi o filho, Manuel Queiroz Pereira quem, em conjunto com Ricardo Espírito Santo, concretizou a fusão com o Banco Espírito Santo. Assim, em 1937 surgiu o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL). Têm participações na Sorel, na Licar, no Hotel Ritz e em diversas empresas na área da indústria cimenteira Secil, a Cimianto e a Cimenteira de Maceira e Pataias e a Compta nalgumas das quais detêm o controlo. Os exemplos apresentados nesta secção permitem verificar que o sucesso das empresas familiares é evidente, mesmo a nível das grandes empresas, pelo que se torna surpreendente o facto de haver tão poucos estudos sobre estas organizações em Portugal, onde a sua incidência e impacto a nível da economia nacional é tão forte. 3. Grandes grupos económicos de base familiar em Portugal: uma perspectiva histórica A presença de grandes empresas familiares tem sido um elemento marcante na economia portuguesa deste século. A política económica do Estado Novo privilegiou a concentração do investimento, favorecendo, dessa forma, a criação e o desenvolvimento de grandes grupos económicos, a que muitos autores chamaram núcleo monopolista da economia portuguesa (cf. Santos 1977 e

61 Grandes empresas familiares 53 Pintado e Mendonça 1989). O período Marcelista de 1968 a 1974 representou o culminar desta situação, tendo-se então desenvolvido consideravelmente o poder e a influência dos sete grupos económicos que dominavam a economia nacional. Curiosamente, todos estes grandes grupos económicos tinham uma ampla base familiar. Eram eles: o grupo CUF, o Grupo Espírito Santo, o Grupo Champalimaud, o Banco Português do Atlântico, o Banco Borges e Irmão, o Banco Nacional Ultramarino e o Banco Fonsecas e Burnay (cf. Martins 1973, Santos 1977, Pintado e Mendonça 1989). Para além do seu imenso poder económico, as famílias que dominavam estes grupos 24 gozavam de um enorme prestígio social e de uma intervenção significativa, ainda que indirecta, na política portuguesa. Estes poderosos grupos económicos de base familiar começaram a sua implantação em Portugal no final do século passado e projectaram-se durante a Primeira República. No entanto, o insucesso da Primeira República na reconstrução material, política e social do país fez com que durante este período a situação económica se degradasse progressivamente, tanto mais que os efeitos da Primeira Grande Guerra foram desastrosos para a economia portuguesa. Na altura do golpe militar de 1926, o problema mais grave do país era económico e não político. Portugal era, então, um país maioritariamente agrícola, onde o desenvolvimento industrial era incipiente e atrasado, o sistema de comunicações deficiente e a iliteracia predominava entre a população. Para piorar a situação, os sectores mais desenvolvidos entre os quais se encontrava a extracção mineira, os transportes, os telefones e a electricidade estavam nas mãos de capital estrangeiro (cf. Robinson 1976: 35-43). Quando Salazar ocupou pela primeira vez a pasta das Finanças em 1926, o seu objectivo era equilibrar as finanças e estabilizar a economia. Por razões de natureza ideológica, Salazar optou por travar e controlar o desenvolvimento da industrialização, retardando o crescimento dos grupos económicos dominantes na cena nacional, sobretudo até ao final da Segunda Guerra Mundial (cf. Santos 24 São apenas catorze as famílias que dominam os sete grandes grupos financeiros portugueses durante o Estado Novo: Espírito Santo, Mello, Champalimaud, Burnay, Cupertino de Miranda, Pinto de Magalhães, Quinas, Mendes de Almeida, Queirós Pereira, Figueiredo, Feteiras, Vinhas, Albano de Magalhães e Domingos Barreiro (Martins 1973: e Santos 1977: 72).

62 54 Grandes empresas familiares 1977: 80). O seu projecto de recuperação económica assentava na criação de infra-estruturas que permitissem promover o desenvolvimento do país a longo prazo. Para a concretização desses objectivos foram essenciais os diversos Planos de Fomento 25 com que Salazar controlou o desenvolvimento do país. O primeiro Plano de Fomento, aprovado em 1953, investiu fundamentalmente na dotação do país de infra-estruturas, entre as quais se destacaram os caminhos-de-ferro, estradas, portos, aeroportos, telefones, hidroeléctricas e escolas. Estes investimentos foram o principal factor de aceleramento do crescimento industrial a que assistimos em Portugal a partir, sobretudo, de finais dos anos cinquenta. Com a entrada de Portugal na EFTA 26, que tem lugar em 1959, a economia portuguesa abre-se, ainda que só relativamente, aos mercados internacionais, facto que contribui de forma decisiva para a sua dinamização. O segundo Plano de Fomento, iniciado em 1959, visava o desenvolvimento das citadas infra-estruturas e o aumento da produção e do consumo, de forma a contribuir para uma melhoria das condições de vida da população portuguesa. Estes objectivos foram continuados tanto no Plano Intercalar ( ), que procurava também estimular as relações económicas e os investimentos nas ex-colónias; como ainda no terceiro Plano de Fomento, iniciado em 1968, que pretendia simultaneamente corrigir progressivamente os desvios regionais e favorecer uma repartição mais equilibrada do rendimento Os Planos de Fomento eram planos globais de orientação da política económica e social. Foram elaborados quatro planos de Fomento: o primeiro para aplicar no período compreendido entre 1953 e 1958; o segundo de 1959 a 1964; o terceiro de 1968 a 1974 e o quarto de 1974 a 1979 que nunca foi implementado. Para o período de 1965 a 1967 foi elaborado um Plano Intercalar (cf. Santos 1996a). 26 EFTA: sigla inglesa de Associação Europeia do Comércio Livre. O acordo de Salazar sobre a adesão de Portugal à EFTA surpreendeu a comunidade internacional. No entanto, esta só implicava um acordo comercial, ao contrário da CEE, que implicava também um acordo político, e onde só eram admitidos países democráticos. A abertura da economia portuguesa aos mercados internacionais e a liberalização do investimento estrangeiro em Portugal, que se verificou na mesma altura, aceleraram significativamente a economia portuguesa (cf. Lopes 1996: 73). 27 Para informações mais detalhadas sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Brandão de Brito 1996 e Santos 1996.

63 Grandes empresas familiares 55 Porém, estes planos de desenvolvimento da economia nacional e as preocupações em dotar o país de infra-estruturas foram sempre implementados com parcimónia e sem grande vigor, atitude para a qual contribuiu decisivamente a política do condicionamento industrial. 28 De acordo com o actual presidente do conselho de administração de uma das empresas com que trabalhei, O condicionamento industrial talvez tenha tido razão de existir à época. Mas, depois, foi completamente distorcido. Constituía uma arma nas mãos de alguns grupos para transformarem o país numa quinta, entravando o desenvolvimento. Nós fomos muito afectados. Estivemos anos e anos a lutar para obter a licença de hidrogenação, um processo necessário para alterar o ponto de fusão, de forma a tornar as margarinas mais duras. Até 1960, a Fima não conseguiu essa autorização, fundamentalmente devido à oposição da CUF. No princípio da década de 1960, essa autorização foi, por fim, dada. Mas sempre que queríamos aumentar a capacidade da refinaria também não nos davam licença. Só já muito para o fim dos anos sessenta é que as coisas melhoraram (EA). Estas observações mostram bem os entraves colocados pela política de desenvolvimento económico de Salazar à livre iniciativa na criação, expansão ou modernização da indústria e das actividades económicas em geral. Esta orientação do regime, apoiada nos ideais corporativistas, familistas e tradicionalistas, bem expressos na ideologia subjacente ao condicionalismo industrial impediram, não apenas o desenvolvimento económico do país, como a própria criação das infraestruturas de base que os Planos de Fomento pareciam defender, contribuindo para a consolidação de um enorme atraso de Portugal em relação a todos os outros países do mundo industrializado. O grande desenvolvimento que um reduzido grupo de empresas portuguesas teve durante o Estado Novo deve-se, em grande medida, à aplicação do regime do condicionamento industrial. Este regime permitia que, na prática, só 28 O condicionamento industrial foi o modelo de desenvolvimento industrial adoptado durante o Estado Novo, que se baseava numa política proteccionista e nacionalista que, na prática, impediu o crescimento da livre iniciativa e incentivou o crescimento dos grupos monopolistas (cf. Brandão de Brito 1989).

64 56 Grandes empresas familiares os grandes grupos obtivessem autorização para novos projectos e dispusessem de capital para os realizar, acabando frequentemente por se estenderem por diversos ramos de actividade. Daí que se assista a partir dos anos cinquenta em Portugal a uma situação muito particular. Como resultado de necessidades de autofinanciamento, os grupos preferencialmente industriais viraram-se para as áreas financeiras e seguradoras. Tal se passou, por exemplo, com o grupo CUF. Por seu turno, os grandes grupos financeiros, como o Grupo Espírito Santo, expandiram os seus investimentos para a área industrial. O Grupo Espírito Santo foi, até 1974, o segundo maior grupo económico português sendo, no entanto, aquele que tinha uma maior projecção internacional, com excelentes contactos com poderosos grupos internacionais. José Maria Espírito Santo e Silva que, no final do século passado, fundou a casa bancária que viria a dar origem ao primeiro banco da família o Banco Espírito Santo começou a sua vida em Lisboa como um modesto mas dinâmico revendedor de lotaria espanhola. Fez uma fortuna considerável em apenas duas décadas. Adquiriu ainda relações sociais importantes e ganhou uma notável consideração pública. Teve cinco filhos, três rapazes e duas raparigas e, através das suas bem sucedidas actividades económicas, pai e filhos construíram uma rede internacional de relações profissionais e pessoais. O grupo tinha uma raiz eminentemente financeira: detinha um dos mais importantes bancos portugueses que, a partir de meados dos anos quarenta, após a sua fusão com o Banco Comercial de Lisboa passa a denominar-se BESCL (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa) e se torna o maior dos grandes bancos portugueses (Pintado e Mendonça 1989: 18) e representava o Chase Manhattan Bank. Juntamente com o First National City Bank (também norte-americano) tinham constituído o Banco Interunido de Angola. O grupo dominava também a Companhia de Seguros Tranquilidade que era a segunda mais importante do país, e a Tranquilidade Moçambique. A partir dos anos trinta, as colónias portuguesas tornam-se o mercado preferencial das actividades do Grupo Espírito Santo, sendo nesse contexto que o grupo diversifica a sua área de actuação económica para o sector agrícola 29, industrial 30 e imobiliário 31. Antes de 29 O GES liderava o mercado nacional do açúcar (com a Sociedade Agrícola do Cassequel, em Angola, a Sociedade Agrícola do Incomati, em Moçambique e a refinaria Sores, no

65 Grandes empresas familiares 57 Abril de 1974, eram mais de sessenta as grandes empresas portuguesas que eram participadas pelo Grupo Espírito Santo ou que com ele mantinham relações directas (cf. Martins 1973: 27-31, e Pintado e Mendonça 1989: 18-20, 63-69). Os processos de nacionalização dos bancos e companhias de seguros que ocorreram em 1975 forçaram muitos membros da família a partir para o Brasil, Inglaterra e Suíça. No estrangeiro, construíram um novo grupo económico que rapidamente se desenvolveu, baseado de novo na conjugação de áreas financeiras (bancos, sociedades de investimento e companhias de seguros no Luxemburgo, Brasil, EUA, Bahamas e França) e não financeiras (empresas imobiliárias e hoteleiras nos EUA e Brasil, unidades agrícolas no Brasil e Paraguai). Apesar de este novo projecto económico da família Espírito Santo se ter desenvolvido em conjunto com sócios estrangeiros, foi sempre mantido o controlo da família. A rede de relações sociais dos elementos desta família e o elevado prestígio da sua reputação na finança internacional foram elementos centrais para a sua nova entrada no mundo dos negócios, na medida em que dependeu de um crédito financeiro considerável e da angariação de sócios poderosos. Em meados dos anos oitenta, iniciaram um lento regresso a Portugal. Quando começaram os processos de privatização, compraram as suas antigas empresas ao Estado. Em meados dos anos noventa, o Grupo Espírito Santo tinha já reconquistado a sua antiga posição de destaque na vida económica portuguesa. Actualmente, a sua influente actividade nacional e internacional é, de novo, extremamente Continente) e do café (com as plantações de café da Companhia Angola de Agricultura e a indústria de torrefacção Tofa, em Lisboa); explorava uma das maiores herdades do Continente (a Herdade da Comporta) e em Angola era dono da Sociedade Agrícola do Quanza Sul, com largos milhares de hectares de culturas diversificadas; e detinham uma importante posição na exploração de petróleo (em Angola é um dos principais sócios da Petrangol e da Purfina e na metrópole participa nas duas refinarias de capital nacional Sacor e Sopa). 30 No campo industrial, o GES participa na Companhia Portuguesa de Celulose, na Socel, na INAPA, na Firestone portuguesa, na Gás Cidla, na Marconi, na Central de Cervejas, na Tabaqueira Intar, na têxtil angolana Siga, nas Cervejas da Angola, é o maior accionista da Companhia Portuguesa de Electricidade e participa no importante Grupo Amoníaco Português. 31 O Grupo controla a Sodim proprietária do Hotel Ritz de Lisboa e participa na Sociedade que controla o Hotel Sheraton.

66 58 Grandes empresas familiares diversificada: seis bancos (dois em Portugal, um no Luxemburgo, um no Brasil, um nas Bahamas e um na Florida), duas grandes companhias de seguros (em Portugal e no Brasil), participações em empresas industriais, em telecomunicações, na televisão, no ramo imobiliário, na hotelaria, na agricultura e na criação de gado. O enorme crescimento e expansão das actividades do GES a partir dos anos cinquenta não é, apesar do carácter excepcional da sua dimensão, um exemplo único de desenvolvimento de um grande grupo económico, a coberto do regime proteccionista então vigente e que assim dinamizava a economia portuguesa. Disso é exemplo um dos casos de empresas familiares que analisei: a Mague e a Somague, pertencentes à família Vaz Guedes. A empresa que está na origem do grupo Somague, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia, Duarte & Vaz Guedes, foi criada em 1947 por dois engenheiros civis, Ernesto Moniz da Maia e José Vaz Guedes, para poderem participar no concurso público, que ganham, para a construção da barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere. Segundo contam os seus descendentes, o que deu ânimo a José Vaz Guedes para avançar na constituição de uma sociedade própria, aos trinta e nove anos, foi a autonomia financeira que adquiriu com a construção da auto-estrada Lisboa-Caxias, e os generosos apoios pessoais e financeiros que daí resultaram. A pouco e pouco, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia & Vaz Guedes, Lda adquire uma posição destacada na construção de barragens em Portugal, das quais se destacam as de Ceira, Arade e Cabril, do Pocinho no Douro e da barragem do Limpopo, em Moçambique. Desde então, a empresa não parou de crescer, tendo-se tornado um marco fundamental no sector das obras públicas em Portugal construíram a doca seca da Lisnave e da Setenave, fizeram as obras do Porto de Aveiro e o terminal de carvão do Porto de Sines. Paralelamente, constituíram a Mague com o objectivo de aproveitar o equipamento que detinham. Transformaram o seu estaleiro de reparações numa metalomecânica pesada que fabricava turbinas hidráulicas, turbo-grupos para centrais térmicas e aparelhos de elevação e movimentação, em colaboração com a empresa suíça Brown Boweri. Em poucos anos, a Mague impôs-se como uma das maiores empresas de

67 Grandes empresas familiares 59 metalomecânica portuguesas, tendo como única concorrente a empresa estatal Sorefame. A política de dinamização económica conduzida a partir de meados da década de cinquenta teve repercussões claras na economia do nosso país, demonstradas pelo valor anual médio de crescimento do sector industrial entre 1953 e 1970 que foi de oito por cento, valor que deve, no entanto, ser relativizado pelo baixo índice deste crescimento até à década de cinquenta (cf. Santos 1977 e 1998). Os incentivos promovidos pelo Estado não foram, no entanto, aproveitados pela média burguesia, mas sim pelos grupos económicos já estabelecidos, dando origem a uma situação em que os já referidos sete grandes grupos económicos controlavam todos os sectores básicos da economia portuguesa, quer a nível da esfera produtiva, quer ao nível dos sectores da banca, seguros e transportes (cf. Robinson 1979, Martins 1973, Santos 1996 e Lopes 1996). Maria Belmira Martins caracteriza a economia portuguesa desse período como tendo um baixo grau de desenvolvimento e um elevado grau de concentração (Martins 1973: 11). Segundo esta autora, tal situação decorria fundamentalmente do facto de as transformações estruturais em Portugal não resultarem apenas do desenvolvimento das forças produtivas, mas serem provocadas pela intervenção estatal (Martins 1973: 12), permitida pela situação política do nosso país. Na sua opinião, foi a política seguida por Salazar condicionalismo industrial, benefícios e incentivos fiscais, leis do Fomento Industrial com uma política selectiva de crédito e apoios aos empreendimentos considerados chaves que acelerou o processo de concentração e permitiu que um pequeno número de grupos adquirisse uma enorme dimensão. Dando uma ideia muito clara da dimensão da concentração no panorama económico português, Américo Ramos dos Santos refere que em 1973, das quatrocentas e onze empresas que vendiam mais de trinta mil contos por ano, cerca de trezentas são dominadas pelos sete grandes grupos nacionais (Santos 1977: 78).

68 60 Grandes empresas familiares A partir de 1960 há uma centralização e concentração crescentes excepcionalmente intensas nos últimos oito anos do regime. Será neste período que os grandes grupos económicos irão evidenciar uma dimensão verdadeiramente anormal para um país tão pequeno. ( ) Em 1973, 2,4% das sociedades detém 75,4% do capital social total da economia portuguesa. É a partir de 1959 e sobretudo a partir de 1968 que o desenvolvimento monopolista vai eliminando a pequena empresa (Santos 1977: 80-1). Todavia, após a conjuntura favorável que se viveu durante os anos sessenta, no final da década a economia portuguesa entrou em dificuldades, no momento em que Marcelo Caetano substituía Oliveira Salazar na chefia do governo, em 1968, na linha da grande crise da economia internacional. A aceleração da inflação, o agravamento do défice comercial, a dispendiosa guerra colonial e o crescimento muito rápido da emigração marcaram a fase final do Estado Novo ( ). A partir da década de cinquenta e, apesar de manter um enorme atraso em relação ao resto da Europa, Portugal passou de país agrícola a um país relativamente industrializado, tendo aumentado grandemente a importância de um pequeno número de industriais capitalistas. No entanto, e como lembra Hermínio Martins, não se devem exagerar as mudanças na composição e no aspecto das classes altas e na elite governante portuguesas. Segundo este sociólogo, num país pequeno como Portugal a elite governante e a classe alta 32 eram facilmente identificáveis e estavam, frequentemente, interligadas por casamentos sobrepostos. Para além disso, partilhavam uma educação comum, os seus valores e estilos de vida eram convergentes e tendiam mais para um consumo aristocrático do que para uma racionalidade burguesa (Martins 1998: 105). 32 Hermínio Martins definiu a classe alta portuguesa como sendo composta por: latifundiários, financeiros, grandes industriais e outros homens de negócios; os mais altos escalões dos corpos oficiais e do professorado, o episcopado católico e os mais prestigiados profissionais liberais (Martins 1998: 105).

69 Grandes empresas familiares 61 Este panorama foi radicalmente alterado com a revolução democrática de Abril de A nova orientação da política económica, claramente visível no processo das nacionalizações, promoveu uma ruptura total no processo de crescimento e desenvolvimento dos grandes grupos económicos então existentes em Portugal. A 14 de Março de 1975, como reacção ao golpe militar frustrado do dia 11 desse mês, foram nacionalizados os sectores financeiros (bancos e companhias de seguros nacionais), industriais mais importantes (cimentos, siderurgia, adubos, petróleos, tabacos, cervejas, construção e reparação naval) e outros sectores de interesse público, como a electricidade, gás, água, transportes colectivos. Os processos de nacionalização de empresas privadas tiraram às famílias que constituíam o denominado núcleo monopolista do Estado Novo o controlo sobre os seus negócios e sobre os destinos económicos do país, ao mesmo tempo que fizeram desaparecer as condições privilegiadas em que viviam antes da revolução. Concomitantemente, a nova ordem social e as novas condições políticas do período revolucionário, sobretudo as que resultaram dos acontecimentos do 11 de Março de 1975, forçaram uma parte significativa dos membros destas famílias a sair do país a maior parte para o Brasil, Grã-Bretanha e Suíça deixando para trás os seus antigos impérios económicos nas mãos do Estado. No estrangeiro, reiniciaram as suas actividades económicas e reconstruíram os seus impérios económicos com grande rapidez. Para obtenção do crédito e dos sócios capitalistas que lhes permitiram este segundo começo na vida empresarial foram decisivos a boa reputação e as excelentes relações sociais e profissionais que os membros destas grandes famílias empresariais portuguesas mantinham no mundo da finança internacional. A partir da segunda metade dos anos oitenta, com os três governos sucessivos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Cavaco Silva, a economia portuguesa entrou numa nova fase, com características marcadamente diferentes das dos dez anos anteriores. Estes tinham sido caracterizados por uma

70 62 Grandes empresas familiares marcada crise económica que, apesar de coincidente com a mudança de regime político, não lhe deve ser atribuída em exclusivo. 33 Ironicamente, foram aqueles que tentaram instituir uma democracia e iniciar um processo articulado de desenvolvimento económico que receberam a pesada herança de um regime totalitário que tinha retardado o desenvolvimento industrial, onde a agricultura era demasiado atrasada e insuficiente e o sector terciário muito incipiente. Simultaneamente, a nacionalização de sectores chave da economia portuguesa não cumpriu o seu objectivo de proporcionar o desenvolvimento do sistema económico. Depois de quarenta e oito anos de um crescimento e desenvolvimento económico limitado, os resultados pouco visíveis dos primeiros dez anos de regime democrático, as oscilações político-económicas num ambiente pós-revolucionário de tendências socializantes acompanhados por movimentos sociais mais ou menos radicais, não contribuíram para a estabilidade e para o desenvolvimento social e económico do país. Um dos principais elementos de limitação da transição aberta pelo 25 de Abril resulta, precisamente, do fosso existente entre as urgentes necessidades de transformação da sociedade portuguesa e as capacidades internas disponíveis para o fazer. Segundo Augusto Mateus isto é particularmente identificável no terreno das realidades económicas: dez anos depois, o desenvolvimento económico português continua à espera de uma estratégia e de uma realidade prática capazes de responder quer aos anseios internos quer aos desafios colocados pelas mutações que atravessam a própria economia mundial (Mateus 1985: 285). Apesar de a transição política imposta pelo 25 de Abril ter promovido importantes transformações institucionais, o facto de, em 1974, a economia portuguesa se encontrar numa situação incipiente e precária, levou a que o 33 De acordo com José da Silva Lopes, a verdadeira explicação para essa crise deve procurar-se na influência conjugada de três factores preponderantes: 1) os choques petrolíferos de 1974 o preço do crude passou de três para doze dólares por barril e de 1979 o preço duplicou; 2) o choque da descolonização que causou um aumento de cerca de sete por cento da população portuguesa durante os anos de 1975 e 1976; 3) o choque das perturbações revolucionárias que se seguiram à mudança de regime político (Lopes 1996: 240).

71 Grandes empresas familiares 63 processo de desenvolvimento e modernização económica do país fosse muito lento. Como lembra Augusto Mateus no artigo citado anteriormente, não devemos esquecer que as transformações económicas estruturais não podem ser induzidas apenas por mudanças institucionais, é necessária uma alteração de comportamentos. Em 1986, a entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu reforçou os efeitos da tendência para um enquadramento económico mais liberal, mais assente nas forças de mercado e na iniciativa privada, tendo os primeiros apoios dentro do quadro comunitário (iniciados em 1987) e a descida do dólar e do petróleo contribuído largamente para a consolidação da estabilidade social 34, política 35 e económica 36 que se atingiu nesse período. No decorrer destas legislaturas o governo promoveu reformas estruturais nas instituições, regulamentações e mecanismos de funcionamento da economia com vista a reduzir os obstáculos que se opunham à livre actuação das forças de mercado e da iniciativa privada. Um dos aspectos centrais destas reformas foi a privatização de uma boa parte das empresas nacionalizadas a partir de Os movimentos sociais de carácter mais radical que marcaram o período pós-1974, como as greves, as ocupações de empresas, casas e terras, as manifestações e alguns, felizmente poucos, actos de violência, tinham já acalmado por esta altura. A viragem à direita que resultou na vitória do PSD nas eleições de 1985 e que teve a sua confirmação nas maiorias parlamentares que este partido alcançou nas eleições de 1987 e 1991 revelam que a população portuguesa procurava recuperar alguma estabilidade. 35 Pela primeira vez desde 1974 assistia-se a um governo de longa duração: entre 1985 e 1995 sucederam-se três governos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Aníbal Cavaco Silva. 36 Marcada pela estabilização da inflação e a diminuição da divida externa para as quais muito contribuíram a estabilidade do mercado internacional e dos preços do petróleo (cf. Lopes 1996). 37 A possibilidade legal para promover as privatizações foi aberta pela revisão constitucional de 1989 e em 5 de Abril de 1990 publica-se a lei quadro das privatizações, que enunciava como objectivos da reprivatização de empresas do sector publico a modernização e o aumento da competitividade das unidades económicas, o reforço da capacidade empresarial nacional, o desenvolvimento do mercado de capitais ( ) e a redução da dívida pública. Várias privatizações parciais tinham, porém, já sido efectuadas (até 49% do capital, como foi o caso do Totta & Açores e da Unicer) antes da publicação da lei (Lopes 1996: 356).

72 64 Grandes empresas familiares O contexto global de estabilidade que se começa a sentir nos anos oitenta, fortemente marcado pela reconstituição da classe média e do seu nível de vida, transmitiu àqueles que tinham saído do país a ideia de que estavam reunidas as condições necessárias para poderem regressar a Portugal. Mas foi, sobretudo, o início do processo de privatizações e a possibilidade de readquirirem as suas antigas empresas que permitiu às grandes famílias retomar as suas actividades e relações económicas, sociais e políticas no contexto nacional. Desde então, assistimos ao rápido crescimento destas empresas, o que reflecte o grande dinamismo das novas gerações das antigas famílias que dominavam a economia portuguesa antes da revolução democrática que, desta forma, conseguiram readquirir a importante posição que tinham perdido. Efectivamente, foram principalmente os elementos das gerações mais novas que levaram a cabo este processo de reconstituição dos grupos económicos das suas famílias, recuperando as suas prestigiadas posições no mundo económico português e internacional. Actualmente, alguns dos antigos grupos de base familiar que se desenvolveram e cresceram ao longo deste século voltaram a ter um peso importante no panorama económico nacional e, embora com características e dimensões diferentes, ocupam de novo um lugar de destaque na sociedade portuguesa. 38 Simultaneamente, neste período de expansão da economia portuguesa, em grande parte resultante do estímulo à iniciativa privada, começaram a desenvolver-se outros grupos económicos de grande dimensão, de entre os quais podemos destacar a SONAE, o grupo Amorim e o grupo BCP. A mudança de regime político em 1974 implicou transformações radicais na economia portuguesa. O impacte destas não teve, no entanto, resultados idênticos nas diversas empresas portuguesas. As diferenças desses impactes devem-se, fundamentalmente, ao facto de umas terem sido nacionalizadas e outras, apesar de na altura terem passado por algumas dificuldades, terem continuado nas mãos dos seus donos. 38 A série de artigos publicados por Helena Garrido no Diário de Notícias em 1995 sobre este assunto intitulava-se, significativamente, O regresso das grandes famílias.

73 Grandes empresas familiares 65 Para o conjunto de empresas que estudei, o 25 de Abril teve efeitos e consequências muito diferentes. Por exemplo, as empresas da família Mendes Godinho foram muito afectadas pelo processo de nacionalizações, pois foi-lhes nacionalizada a Casa Bancária que tinham em Tomar. Como já se disse, o facto de esta ter sido posteriormente integrada no BESCL foi fatal para a família, pois as restantes empresas que detinham eram propriedade da sociedade que detinha a Casa Bancária. Durante um primeiro período a Tagol, sendo uma empresa muito rentável, permitiu a sobrevivência económica da família e do seu grupo económico. 39 Porém, este período de sucesso não durou muito tempo. O grupo não conseguiu recompor-se e reestruturar-se de forma a superar as alterações promovidas no sistema económico português após Por seu lado, as empresas da família Espírito Santo foram, na sua grande maioria, nacionalizadas em A saída para o estrangeiro obrigou os membros desta família a dar um salto muito grande a nível da organização da gestão e planificação dos seus investimentos, que não se vislumbrava num futuro próximo, caso Portugal tivesse continuado sob um governo que defendesse a ideologia e a política económica do Estado Novo. O espírito nacionalista de Salazar era aplicado também aos mercados de concretização dos negócios, pelo que as empresas portuguesas investiam fundamentalmente em Portugal e nas Províncias Ultramarinas. Os empresários mais ligados ao regime aceitavam as regras do jogo. Num depoimento à revista Exame, Manuel Ricardo Espírito Santo relata a resposta que o seu pai, então presidente do Conselho de Administração do BESCL, lhe dava sempre que ele insistia na ideia de que era oportuno o Grupo e a família fazerem alguns investimentos no estrangeiro: 39 A Tagol era, aliás, uma importante referência económica nacional (em 1990 facturou vinte e três milhões de contos) tendo o presidente do seu conselho de administração sido considerado por Filomena Mónica um dos grandes patrões da indústria portuguesa (Mónica 1990).

74 66 Grandes empresas familiares Portugal é grande demais para que nos possamos dar a esse luxo; não se esqueça de que o País não é apenas um canto da Europa mas também as Províncias de Além-Mar; e os elevados investimentos que lá temos feito, como bons portugueses, não nos permitem encarar outras alternativas além das nacionais (in Manuel Ricardo Espírito Santo 1989: 44). No caso do Grupo Espírito Santo, foi o exílio forçado dos seus membros e a necessidade de recomeçar, no estrangeiro, as suas actividades económicas a partir do zero, como gostam de lembrar, que transformou o que era um grande grupo financeiro de âmbito nacional num grupo internacional de grande envergadura. Neste momento, o grupo que é aparentemente o mesmo de há vinte e cinco anos, nada tem a ver com o Grupo Espírito Santo anterior a Já não são uma tradicional família de grandes banqueiros portugueses. São, nas palavras de Manuel Ricardo, uma partnership, um grupo com parceiros internacionais poderosos de entre os quais se destacam o Crédit Agricole (francês), o grupo Agnelli (Italiano) e o Chase Manhathan Bank (norte-americano) com uma estrutura muito complexa de holdings e sub-holdings que são ramificações das duas holdings maiores: a Espírito Santo Financial Holding e a Espírito Santo Resources, dependentes da Espírito Santo International Holding. Para as famílias D Orey, Soares dos Santos, Pinto Basto e Queirós Pereira, os efeitos do novo sistema económico instalado em Portugal no pós-25 de Abril não se fizeram sentir de uma forma tão dramática como para as famílias Mendes Godinho e Espírito Santo. Apesar de algumas delas terem também visto as suas empresas nacionalizadas como o caso da família Queirós Pereira, como não tinham uma grande visibilidade social no âmbito da sociedade portuguesa, não foram tão afectadas. No caso da família Pinto Basto as dificuldades que se sentiram despois deste período tiveram a ver, sobretudo, com as grandes mudanças no âmbito dos seus negócios tradicionais. A decadência da popularidade dos navios de passageiros e a sua substituição progressiva pelos aviões afectou o núcleo central da actividade da Casa E. Pinto Basto. Depois de passados os momentos de reivindicação sindical mais activos dos primeiros anos do regime democrático, a participação deste conjunto de famílias nas empresas

75 Grandes empresas familiares 67 não foi alterada. Por outro lado, os efeitos da internacionalização da economia portuguesa no período pós-1974, da liberalização do desenvolvimento industrial e, sobretudo, do estímulo dado pela integração de Portugal no Mercado Comum Europeu, foram decisivos para o seu desenvolvimento posterior. Desde 1974 a posição, a importância e o destaque das empresas familiares na economia portuguesa sofreu uma grande alteração. Deixando de ser beneficiadas tanto a nível legislativo pelo condicionalismo industrial como a nível ideológico pela importância do ideal de família do Estado Novo, as grandes empresas familiares portuguesas estão actualmente em situação de igualdade com as empresas que têm uma estrutura accionista diferente. Aquelas que conseguem manter a sua importância no actual panorama empresarial português tiveram de adaptar a estrutura da sua organização, gestão e processos de recrutamento de pessoal às exigências da economia moderna. Sobre estas transformações falarei ao longo dos próximos capítulos.

76 CAPÍTULO II GRANDES FAMÍLIAS EMPRESARIAIS DE LISBOA

77 1. As grandes famílias de Lisboa formam uma comunidade de práticas As famílias com que trabalhei constituem grupos familiares coesos que estão na base da formação de poderosos grupos económicos. Logo no início da investigação, levantou-se a questão de saber se este conjunto de famílias constituía um grupo social com consciência de si próprio, cujos membros partilhassem valores, representações e práticas. Podia tratar-se, simplesmente, de um conjunto de famílias cujo único elemento unificador fosse a natureza e a preponderância da sua intervenção económica e social em Portugal. Desde as primeiras entrevistas, porém, foi-se tornando claro que as pessoas que constituem estas famílias empresariais partilham muito mais do que um lugar no topo da hierarquia das empresas nacionais e que estes grupos familiares apenas aparentemente são independentes. Para além de possuírem um elevado estatuto social, os membros destes grupos familiares partilham um conjunto de interesses, ideais, um modo de vida, atitudes, formas de comportamento, formas de ser, fazer e vestir. As práticas que desempenham em comum remetem para a partilha de algo mais abrangente e significativo que o simples êxito empresarial; para um estilo de vida de grupo, que é, afinal, aquilo a que Abner Cohen denominou mística da elitilidade. A elitilidade é o conjunto de qualidades de excelência, que só pode ser aprendido informalmente, na alta sociedade. Esta mística não é só uma fórmula ideológica, é também uma forma de vida, que se manifesta em padrões de comportamento simbólico. A ideologia é objectivada, desenvolvida e mantida por um corpo de símbolos e de performances dramáticas: maneiras, etiqueta, estilo de vestir, acento, padrões de actividades recreativas, regras de casamento e um conjunto de outros traços que fazem o estilo de vida de um grupo. É um culto muito elaborado e que se adquire durante longos períodos em contextos sociais informais como a família, o clube e nas actividades extracurriculares de escolas exclusivas (Cohen 1981: 2-3).

78 72 Grandes famílias Para além de um estilo de vida em comum, verifiquei que as pessoas deste grupo social formam uma rede estreita de relações, nas quais é difícil um estranho entrar. 40 Quando no decorrer de uma entrevista acontece falar de alguém que não está aparentemente relacionado com a pessoa com quem estou a falar, as respostas são, frequentemente, do tipo: Conheço lindamente, é filho de uma amiga íntima da mãe, ou é super meu amigo, andámos juntos na escola, ou o meu irmão andou com ele no colégio, ou o pai caçava sempre com ele. Os membros destas famílias conhecem-se em situações diversas e sobrepostas. Partilham relações de amizade, relações profissionais, andam nos mesmos colégios, têm amigos comuns, frequentam os mesmos clubes, são convidados para as mesmas festas, têm casas próximas umas das outras. Estes diversos espaços de sociabilidade e interconhecimento promovem redes de relações mais ou menos fechadas que se tendem a reproduzir no tempo e através das gerações criando, assim, barreiras informais à entrada de novos membros. Há um conjunto de elementos exteriores que mostram a pertença a uma elite que podem ser adquiridos ou aprendidos como sejam, a pronúncia, as escolas que frequentam os seus filhos, as profissões escolhidas, os locais onde residem, os estilos de roupa que vestem. Porém, uma pessoa só será reconhecida como um verdadeiro membro da elite se fizer parte dessa densa rede de solidariedades primárias que liga os membros do grupo. São estas redes extensas, complexas e exclusivistas que fornecem as bases da identidade colectiva destas famílias. As relações que este colectivo de homens e mulheres mantém e o estilo de vida e interesses económicos, sociais e políticos que partilham derivam de um processo cultural relacional que os transforma numa comunidade de práticas. 40 O exercício do controlo sobre quem pode, ou não, entrar na densa rede de relações que constitui a elite e a garantia de que os seus descendentes lhe continuem a pertencer constituem a chave para a manutenção do estatuto de elite ao longo de gerações familiares. A exclusividade que caracteriza o grupo de elite, claramente visível na dificuldade de admissão de novos membros no seu interior, é apontada pela maior parte dos autores que se debruçam sobre este tema como sendo uma importante característica das elites (cf. Cohen 1981; Bottomore 1965; Mills 1956; Nadel 1990; McDonogh 1989). Esta é a principal base para a formação da ideia de que a elite é um grupo conspiratório. Segundo Meisel a elite desenvolve três cês: Consciência, Coesão, Conspiração (cf. Cohen 1981: xvi-xvii).

79 Grandes famílias 73 No entanto, estas famílias não constituem propriamente um grupo social, pois a sua constituição não se baseia nas suas fronteiras, mas sim em laços de conhecimento pessoal de longa data, no cruzamento de factores identitários comuns, na partilha de projectos de vida e de uma certa visão do mundo que, desta forma, tem continuidade nas gerações seguintes. Constituem aquilo a que Jean Lave e Wenger (1991: 29, 42) designaram por uma comunidade de acção: um conjunto de indivíduos, de famílias que se relacionam e partilham um mesmo conjunto de valores e ideais, que promovem, consequentemente, sentimentos de identificação mútua e asseguram a unidade do grupo, permitindo-nos pensá-las como um grupo social perfeitamente identificável na sociedade portuguesa. A comunidade de acção que formam não deve, portanto, ser descrita em termos de processos formais de integração, mas sim através do que Abner Cohen denomina por redes de amity (1981: 222) redes de relações sociais que englobam as pessoas com as quais um indivíduo pode contar e que incluem parentes e amigos. Estas redes de identificação interpessoal unem pessoas com base, sobretudo, em formas de intersubjectividade. 41 A comunidade que estas grandes famílias de Lisboa constituem não tem uma correspondência territorial, não representa nenhum lugar particular. É uma comunidade de práticas, de representações e de valores, que une pessoas que partilham um conjunto de relações próximas e que se reconhecem como membros de um colectivo sempre activado, que partilham um passado comum e que, no presente, dão continuidade aos laços de afinidade, aos hábitos e valores que têm em comum, reproduzindo a rede de solidariedade que os une. As pessoas que pertencem a um grupo dessa natureza tendem também a integrar os seus filhos na rede de sociabilidades em que estão inseridas. Através das suas solidariedades primárias, os indivíduos criam uma comunidade de acção que 41 Entre este conjunto de famílias de elite de Lisboa encontrei apenas um espaço onde a sua existência como grupo assume uma dimensão formalizada: a pertença ao único clube social português o Turf Club. O Turf era frequentado pelas mais importantes famílias da sociedade lisboeta e pelas famílias reais europeias que passavam pela cidade (cf. Langhans 1973). O limite do número de sócios, exclusivamente homens, era em 1973 de duzentos. Entre os sócios encontramos um grande número de membros das famílias que estudei, sendo de destacar a família Espírito Santo e a família Pinto Basto, cujos membros masculinos eram todos sócios.

80 74 Grandes famílias estabelece, simultaneamente, as bases que permitem a sua continuidade nas gerações seguintes, pois os seus filhos, para além de estarem juntos em momentos de lazer, tenderão a frequentar as mesmas escolas e os mesmos lugares de sociabilidade. Desta forma, lançam as bases sobre as quais reproduzirão ao longo de sucessivas gerações, o conjunto de valores e ideais que partilham, consolidando, assim, uma densa rede de relações sociais. No âmbito destas relações partilhadas quotidianamente constrói-se um certo sentido de vida em comunidade. 42 Mas, será o facto de partilharem um elevado estatuto social e económico o suficiente para se concluir que constituem uma elite? Será que esta comunidade, que domina economicamente a nossa sociedade e que tanta importância social e política tem a nível nacional, forma uma classe na sociedade portuguesa? Já em 1965, num dos textos mais influentes sobre a teoria das elites, Bottomore afirmava que uma das questões mais problemáticas de todas as doutrinas sobre as elites é a assunção de que os homens com poder constituem um grupo coeso (Bottomore 1965: 35). Na verdade, se assim fosse, qualquer grupo de pessoas poderia constituir uma elite, exclusivamente devido ao facto de os elementos que o compõem serem ricos. Porém, a riqueza, só por si, não define a pertença social dos indivíduos e o dinheiro tem diferentes significados dependendo das suas origens e de quem o controla. Há, por exemplo, diferenças no desempenho social das famílias, que opõem old money a novos ricos. Embora o termo elite seja claro no que significa descreve situações de qualquer tipo de superioridade social, é ambíguo quanto aos seus referentes precisos pois, apesar de implicar uma imagem de desigualdade na gestão do poder nas relações interpessoais, nada nos diz sobre o grupo social a que se refere. São 42 São vários os autores que propuseram definições de comunidade neste sentido desterritorializado. De acordo com esta perspectiva defende-se que as relações sociais que os indivíduos estabelecem entre si são a base sobre a qual se produz, verdadeiramente, a comunidade. Sobre a forma como a socialidade deixou de ser pensada como resultado directo de processos de agregação passando a ser vista como o centro da constituição das comunidades sociais, vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Calhoum 1980; Worsley 1983, Strathern 1988, Lave e Wenger 1991, Sobral 1993 e Pina Cabral sd).

81 Grandes famílias 75 duas as principais vantagens da utilização deste conceito que remetem, porém, para esta relativa ambiguidade definicional: 1) o conceito de elite é mais útil do que outros conceitos frequentemente usados para descrever situações de superioridade social tais como os conceitos de classe governante, aristocracia, ricos, classe alta ou privilegiados. A vantagem da categoria elite sobre estes últimos é que, sendo uma categoria abstracta e abrangente, permite significar tudo isto; 43 2) o conceito é útil porque nos remete para a empiria. O conceito elite implica colocar a agencialidade no âmbito dos pequenos grupos e não em entidades impessoais tais como organizações formais e colectividades de massas. Através da sua utilização torna-se, portanto, mais fácil atribuir a responsabilidade das mudanças sociais a pessoas concretas que cooperam e tomam decisões, que produzem efeitos, que condicionam os acontecimentos que os outros vivem e não a colectivos abstractos e imprecisos, como acontece, por exemplo, quando falamos de classes sociais. Ao promover a descrição empírica, o conceito de elite adquire uma utilidade heurística mais vasta do que, por exemplo, o conceito de classe, categoria definida em termos de critérios formais partilhados por indivíduos rendimentos, qualificações, posses, posição na hierarquia administrativa, residência que têm pouco valor antropológico. 44 A escassez de reflexões sobre a questão das classes sociais na literatura antropológica é debatida por Raymond Smith no artigo Anthropology and the concept of class (1984), onde defende que, apesar de a antropologia não ter realizado um debate profundo sobre o tema das classes sociais adoptando, na maior parte das vezes, as definições das outras ciências sociais, a disciplina contribuiu decisivamente para o debate, pois as análises antropológicas mostram 43 Sobre a defesa da utilização de conceitos tão abstractos que evitem a prisão a determinados contextos empíricos e/ou a modelos teóricos veja-se Needham 1971 e 1971a. 44 Estes critérios não contribuem para a compreensão das classes altas porque apenas permitem produzir uma mera categorização e descrição, que seria, nas palavras de Leach, como coleccionar borboletas (cf. Leach 1961).

82 76 Grandes famílias que as dimensões culturais e ideológicas das relações de classe são fundamentais para perceber qualquer contexto social (cf. Smith 1984: 467). Num recente artigo em que debate a ausência da categoria cultural de classe no discurso americano, Sherry Ortner levanta uma questão importante e que coloca a reflexão sobre as diferenças de estatuto social na ordem do dia da agenda da antropologia: Antigamente procurávamos um conhecimento de outros universos culturais como sendo representações coerentes e valiosos sistemas de significado e ordem para aqueles que neles vivem. Tomávamos as culturas como expressões autenticas de formas particulares de vida em tempos e espaços particulares. Mas, agora reconhecemos que as culturas estão cheias de desigualdade, de diferentes conhecimentos e interpretações e com vantagens diferenciadas para as diferentes pessoas ( ) Ao estudarmos as formas como as culturas de grupos dominantes e subordinados se moldam uns aos outros, (...) temos, ao mesmo tempo, que trabalhar contra a negação da autenticidade cultural que isto implica e, simultaneamente, contra o facto decorrente de a etnografia dos mundos culturais significantes já não ser, em si mesma, uma empresa significativa (Ortner 1991: 187). A fatia mais relevante dos estudos sobre elites nas ciências sociais debruçase sobre as elites de poder, sobre as classes governantes (cf. Mosca 1939, Pareto 1950, Mills 1956, Chandler 1977 e Domhoff 1980a). Desde os pioneiros da reflexão sobre o tema Mosca e Pareto, numa altura em que importava defender as linhas ideológicas de um sistema democrático contra os princípios do socialismo (cf. Bottomore 1965), que as linhas de desenvolvimento mais abundantes sobre elites sociais se inscrevem no quadro da sociologia política, da ciência política e da economia política (Giddens 1974 e Mills 1956) Gaetano Mosca foi o primeiro autor a elaborar teoricamente a distinção entre a elite e as massas, propondo-se elaborar uma nova ciência política, a partir desse fundamento (Mosca 1939). Também Vilfred Pareto (1950) concebeu a elite como um grupo de pessoas que exercem o poder político ou que estão em condições de influir sobre o seu exercício. O contributo mais importante da reflexão destes autores sobre as questões das desigualdades na sociedade moderna e liberal, pelo menos do ponto de vista da antropologia, é a ideia de que no centro da organização dos grupos de elite se encontram as famílias. Segundo estes autores, a acumulação de capital e as redes de

83 Grandes famílias 77 A reflexão sobre as elites coloca uma contradição no seio das sociedades democráticas. Numa sociedade democrática, baseada na igualdade, onde a competência torna os profissionais iguais, independentemente da sua origem familiar, não deveria, teoricamente, haver distinções nem clivagens sociais (Bottomore 1965: 17-19, Giddens 1974: 2-4, Cohen 1981: xvi e Marcus 1983: 8-13). Neste sentido, vale a pena citar de novo, apesar de longamente, Abner Cohen: Nas sociedades liberais do Ocidente as elites não são reconhecidas como tal, isto é, como fazendo parte da estrutura social. Os membros dessas elites não são reconhecidos como um grupo, mas apenas como uma categoria de pessoas que adquiriram o seu estatuto por mérito, dentro de um sistema altamente competitivo. No entanto, mesmo nos casos em que isto eventualmente acontece, aqueles que adquirem o seu estatuto de elite começam rapidamente a coordenar as suas acções de uma forma cada vez mais sistemática e consistente. Eles procuram também perpetuar o seu estatuto e privilégios através da socialização e treino dos seus filhos, de forma a que estes os possam suceder. Assim, a categoria evolui no tempo para um grupo de interesses corporados. Estes interesses são incompatíveis com o princípio da igualdade de oportunidades defendido pela sociedade, pelo que não pode ser defendido em nenhuma associação formal (Cohen 1981: xvi). Nas sociedades democráticas não deveriam, pois, existir elites. Porém, as diferenças sociais e económicas existem. É por isso que os indivíduos que vivem em condições materiais, culturais, políticas e sociais obviamente privilegiadas, apesar de terem consciência desse facto, negam que pertencem a uma elite, tentando diluir-se na paisagem social. Mostrando isto mesmo, a maior parte dos elementos das famílias com que trabalhei afirmam frequentemente que somos todos iguais e toda a gente deve ser tratada como igual, devemos respeito a todos. Em geral não ostentam formas exteriores de riqueza. Por exemplo, no dia-a-dia não usam muitas jóias, nem peças de adorno ou vestuário exuberantes. Pelo contrário, vestem-se com descrição, exibindo o charme discreto do seu bom alianças sociais são elementos centrais para a manutenção dos grupos de elites (cf. Hansen e Parish 1983: 265).

84 78 Grandes famílias gosto, apesar de tanto as instalações das suas empresas muito bem decoradas e repletas de obras de arte valiosas como as casas em que vivem ricamente mobiladas e situadas em locais prestigiados revelarem claramente o valor do património económico, artístico, cultural e social da família. Apesar de, a um nível discursivo, defenderem a ideia de que todas as pessoas são iguais, as práticas quotidianas e os ambientes onde vivem mostram o contrário: mostram que há uns que fazem parte do seu grupo social e outros que não. A oposição entre o discurso e a prática é resultado do facto de aqueles que pertencem a este grupo de estatuto terem de ser visíveis uns para os outros mas invisíveis enquanto grupo para o público (Cohen 1981: 217). Tal decorre da referida contradição que enforma as elites nos regimes democráticos. Os trabalhos mais frequentes sobre as camadas de topo da sociedade ocidental têm sido levados a cabo no sentido da análise das classes dirigentes, por sociólogos e historiadores que se têm debruçado, sobretudo, sobre a organização da elite, sobre o seu lugar no sistema social mais vasto e têm elaborado uma análise da cultura e das práticas deste grupo social. Neste sentido, sociólogos como Giddens e Stanworth defendem que o uso do termo grupo de elite deve limitar-se apenas à designação de indivíduos que ocupem formalmente posições de autoridade à cabeça de uma organização ou instituição social (cf. 1974: 4). Defendem uma definição operacional do conceito de elite que permita definir as elites económicas na acção, na medida em que as elites económicas são aquelas que controlam a atribuição do capital e não aquelas que possuem, simplesmente, capital Num interessante artigo sobre a constituição e a definição de grupos de elites, Nadel discute as condições e as características que permitem a transformação de um grupo de pessoas que partilha o mesmo estatuto social elevado numa elite. Na sua opinião: As elites (...) devem ter um certo grau de corporacidade, características de grupo e exclusividade. Deve haver barreiras para a admissão de pessoas de fora. (...) devem formar uma unidade mais ou menos consciente de si própria dentro da sociedade, com os seus direitos, deveres e regras de conduta particulares (1990: 33). De acordo com esta ideia, Nadel defende que o termo elite só deve ser aplicado a grupos propriamente ditos: um corpo organizado de pessoas, com direitos e obrigações corporativos, com uma admissão seleccionada e que estejam unidos por uma identidade colectiva.

85 Grandes famílias 79 É a este nível que a antropologia pode dar um contributo decisivo para a compreensão deste tema. Se, através do conceito de elite, nos referimos não apenas à categoria de pessoas que partilham esses critérios, mas também aos interesses, às formas de cooperação e coordenação de actividades corporadas, através de relações comuns desses mesmos indivíduos, então, para definirmos empiricamente o conceito, teremos de dar conta do modo de vida dos membros desse grupo, dos significados e códigos de conduta que partilham, que os une e lhes confere alguma identidade colectiva. Decorrente da utilização do método etnográfico de pesquisa, através da análise do particularismo de pequenos grupos de poder, a antropologia pode fornecer uma nova perspectiva aos estudos sobre as várias formas de poder na sociedade ocidental. A acumulação de capital por parte da elite é um fenómeno transgeracional: as fortunas iniciais são geradas numa vida, mas os objectivos partilhados pelos descendentes dos dinâmicos indivíduos que constituem essas fortunas são direccionados para a sua perpetuação. Sendo as elite entidades familistas, cujas estratégias de defesa dos seus capitais acumulados ao longo do tempo assentam justamente em processos de mobilização de parentes, a antropologia está particularmente bem colocada para as analisar. Na medida em que os métodos tradicionais da antropologia examinam formas de poder que não estão claramente formalizadas ou institucionalizadas, podem ser muito úteis para examinar relações entre aspectos da vida social que outras disciplinas separam para elaborar a análise. A organização de elites baseadas na família não desapareceu. Pelo contrário, as formas como as elites organizam a sua existência demonstram que a família e o parentesco continuam a figurar de uma forma importante nas sociedades capitalistas, estando associados, ou mesmo, servindo de base para o desenvolvimento e manutenção de outras formas de poder. Neste sentido, Hansen e Parrish defendem que as classes altas da sociedade capitalista colocam um paradoxo à antropologia: sendo as elites consideradas como o núcleo social que perpetua e dinamiza o desenvolvimento da ordem social moderna, é surpreendente que o parentesco desempenhe funções de tal forma importantes na

86 80 Grandes famílias estruturação das relações primárias entre os membros dessas elites e que, mais ainda, seja um elemento central na manutenção da organização destes enquanto grupo (Hansen e Parrish 1983: 276). 2. Estudos sobre elites na antropologia A análise de grupos de elites foi sempre uma prática comum nos trabalhos antropológicos sobre sociedades exóticas, apesar de muito poucos antropólogos se terem debruçado explicitamente sobre esse tema. Na verdade, os antropólogos apoiavam-se com frequência nas elites locais para serem aceites pelo resto da comunidade. Neste sentido, a investigação etnográfica evidenciava frequentemente a perspectiva que as elites ofereciam enquanto anfitriãs dos antropólogos. Deve notar-se também que a reflexão sobre relações de poder, estrutura social e organização social, que atravessa grande parte da literatura antropológica deste século, sobretudo no âmbito do estrutural-funcionalismo britânico, assenta no estudo dos grupos dominantes social, religiosa ou politicamente. No entanto, estes temas nunca deram azo a uma reflexão mais aprofundada ou comparativa sobre elites sociais, provavelmente devido ao contexto social não moderno a que se circunscreviam Excepção a esta situação foi Edmund Leach que, em Abril de 1968 organizou no St. John s College em Cambridge um seminário sobre elites na antiga colónia britânica da Índia intitulado Elites in South Asia, que deu origem a um volume com o mesmo nome (Leach e Soumendra 1970), no qual se debatia a formação de elites sociais locais após a independência da Índia.

87 Grandes famílias 81 Na origem deste afastamento estão as ideias de Talcott Parsons sobre a forma como a importância conferida às relações de parentesco diminui à medida que se avança na escala social (cf. Parsons 1949). Talcott Parsons foi o grande precursor da ideia, com muitos seguidores durante os anos quarenta e cinquenta, de que a família nuclear neolocal, desligada das demais relações de parentesco, é um traço distintivo das sociedades ocidentais, industriais e urbanas. A sua concepção funcionalista da família ignora os trabalhos dos historiadores que há muito mostravam a existência de uma situação exactamente inversa entre as elites aristocráticas ocidentais 48 e relaciona a coesão familiar com as necessidades de sobrevivência. Daqui o corolário segundo o qual os pobres, mais que os ricos, têm redes familiares fortes. É dentro desta perspectiva que devemos compreender o facto de os trabalhos de investigação etnográfica em contextos ocidentais se terem começado a desenvolver no âmbito das sociedades camponesas, na Europa do sul e nos bairros de emigrantes das grandes cidades. Na verdade, estas eram as áreas consideradas menos evoluídas e, portanto, as zonas mais evidentemente exoticizáveis das nossas cidades modernas, constituindo agrupamentos facilmente identificáveis com as comunidades tradicionalmente estudadas pela antropologia. A chamada antropologia das sociedades complexas metamorfoseou os contextos sociais em que se desenvolveu, tornando-os semelhantes aos que inicialmente constituíam os terrenos exóticos de reflexão da disciplina. Desde finais dos anos cinquenta que os trabalhos sobre bairros de classes médias como os de Firth (1956), Young e Wilmott (1957) e Bott (1956) e a proposta de John Davis no sentido de levar a cabo uma antropologia da administração em Itália (cf. Davis 1974) contribuíram para o alargamento da antropologia urbana a sectores da população das quais estava até então arredada. No entanto, são poucos os trabalhos antropológicos sobre as camadas mais altas das sociedades ocidentais. 48 Sobre este assunto vejam-se, por exemplo, os trabalhos de LaDurie 1980 e de Georges Duby 1981.

88 82 Grandes famílias Curiosamente, proliferam um pouco por todo o mundo ocidental relatos jornalísticos sobre a vida de famílias social, económica e politicamente proeminentes. O fascínio que o tema exerce sobre o grande público é claramente comprovado pela quantidade de publicações a ele dedicadas, entre as quais podemos destacar a!hola!, Hello, Olá Semanário ou Paris Match, e pelo impressionante número das suas tiragens. 49 Este fascínio pára, no entanto, à porta da universidade, como bem o demonstra a raridade com que se realizam trabalhos sobre as classes altas no âmbito disciplinar da antropologia. Esta situação não pode deixar de surpreender. Se queremos compreender melhor uma determinada sociedade, não faz sentido excluir, à partida, os elementos que constituem o topo da sua hierarquia e que dominam importantes centros de decisão. No âmbito disciplinar da antropologia, foi Laura Nader quem chamou a atenção pela primeira vez, em 1969, para a necessidade de os antropólogos fazerem o que denomina de study up. Na sua opinião, o estudo do Homem encontrava-se, na altura, numa situação sem precedentes, pois nunca anteriormente tão poucas pessoas tiveram, pelas suas acções e inacções, poder sobre a vida e a morte de tantos membros da espécie (1969: 285). Nader defende que estudando para cima os antropólogos poderiam compreender, sob novas perspectivas, alguns vectores das sociedades contemporâneas. Segundo esta autora, a antropologia estaria particularmente vocacionada para uma reflexão deste tipo, uma vez que poderia fornecer uma nova perspectiva aos estudos sobre o poder debruçando-se sobre as dinâmicas específicas das famílias e das redes sociais de elite que têm estado arredadas do debate académico, mais preocupado em saber se há ou não uma classe governante (cf. Mills 1956, Pareto 1950, Mosca 1939, Domhoff 1980, Chandler 1977). Desde então, temos assistido a um lento desenvolvimento de trabalhos antropológicos sobre as camadas sociais mais elevadas da hierarquia da sociedade Ocidental, através dos quais diversos autores têm mostrado a existência e a 49 Os impressionantes números das tiragens semanais da revista!hola! são disto uma bom exemplo: setecentos e cinquenta mil exemplares por semana, dos quais vinte e cinco mil são vendidos em Portugal. A versão inglesa, a Hello!, tem uma tiragem de quinhentos mil exemplares semanais, esgotando normalmente as suas edições.

89 Grandes famílias 83 importância de densas redes de parentesco nos mais altos níveis da hierarquia social. De entre estes, destaco o estudo pioneiro de Richard Sennet (1980) sobre as diferenças das relações sociais num bairro de Chicago, quando é ocupado maioritariamente por famílias aristocráticas e quando, posteriormente, é ocupado por famílias de classes médias. Posteriormente, são de destacar os trabalhos de Susan Ostrander, que estudou as mulheres da classe alta em Boston, baseando a sua investigação nas actividades de beneficência e serviço social que estas desempenham (1984 e 1989); de Gary McDonogh sobre as Boas Famílias que constituem a elite de Barcelona durante o século XIX e XX, em que o autor analisou os processos de composição e manutenção da elite da capital catalã enquanto comunidade (1989); de Larissa Lomnitz e Marisol Perez-Lizaur sobre uma família da elite mexicana (1987); de Leonore Davidoff e Catherine Hall sobre fortunas familiares inglesas (1987); de George Marcus sobre famílias dinásticas do Texas (1988 e 1992); de Sylvia Yanagisako sobre famílias de industriais no Norte da Itália (1991); de Lisa Douglas sobre as formas como a linguagem do amor, da família e do parentesco servem de base para a constituição da elite crioula em Livingston, na Jamaica (1992); de Beatrix Le Wita sobre a constituição do prestígio social entre famílias burguesas de Paris (1985 e 1988); e de Betty Farrel sobre famílias da elite de Boston (1993). A produção antropológica sobre elites em Portugal é, tal como no panorama internacional, muito escassa. São de destacar um pequeno trabalho de investigação, sem continuidade, de João de Pina Cabral sobre famílias da burguesia do Porto (1991) e a realização de uma investigação sobre as mais importantes famílias inglesas do Porto que estão envolvidas na produção e comércio de vinho do Porto (Lave 1998 e sd). Vale a pena salientar, no entanto, o importante e significativo trabalho dos historiadores portugueses sobre esta questão (cf. Mónica 1990, Costa Pinto 1992, Monteiro 1998 e Sobral sd).

90 84 Grandes famílias 3. A importância da família na formação e na continuidade das grandes empresas A área das relações domésticas é o contexto primário de produção das formas de intersubjectividade que unem os membros destas grandes famílias numa comunidade de acção. A aprendizagem, incorporação de hábitos, códigos, valores, saberes, atitudes e relações de solidariedade que os indivíduos utilizarão mais tarde, ao longo da sua vida, faz-se diariamente na intimidade da vida em família. É, portanto, no âmbito da família que se adquire o conjunto de elementos que promove a distinção dos seus membros (cf. Bourdieu 1979). Os relatos dos membros destas grandes famílias são ricos em exemplos ilustrativos desta questão. O avô queria que, de manhã, os filhos falassem com ele em Inglês (à Segunda, à Quarta e à Sexta) ou em Francês (à Terça, à Quinta e ao Sábado). Uma vez, era o tio R. pequenino e estava com o pai quando começou um tremor de terra e, assustado, disse O que é isto paizinho? A terra está a tremer e o pai disselhe serenamente dit-le en Français mon enfant (MaJ). Nós não podíamos andar a olhar para o chão. Tínhamos de olhar sempre em frente, direitas e com um ar assim altivo. Como eu tinha este problema na vista era horrível porque estava sempre a cair. Mas tinha de ser. Portanto, lá ia eu, caindo. Andava sempre toda negra. No dia do meu debute, quando ia a descer as escadas com o meu pai, se ele não me segurasse com força no braço eu tinha caído por ali a baixo, à frente de toda aquela gente. Ia ser uma vergonha (Me). Através do hábito no sentido de habitus proposto por Bourdieu (1980: 109) e da vivência familiar, os jovens interiorizam e treinam valores, regras e práticas que, parecendo pequenos pormenores, terão uma importância

91 Grandes famílias 85 fundamental na orientação da sua vida futura. São esses pequenos nadas que definem e legitimam a pertença destes indivíduos a um grupo social particular. Como resultado do processo de crescimento, as crianças e os jovens vão adquirindo, ou melhor dizendo incorporando, de uma maneira natural e inconsciente, como que por contágio, os elementos fundamentais da existência da sua unidade social primária 50, da sua vida futura na família e na comunidade a que pertencem. O que se aprende com a experiência de viver em família durante o período de crescimento, de formação dos indivíduos, não pode, portanto, ser contabilizado apenas em conhecimentos quantificáveis, pois é algo bem mais profundo. O que se aprende, ou talvez seja melhor dizer se apreende, é o material a partir do qual cada um se irá constituir como pessoa: um conjunto de valores, de formas de comportamento, de gestos, de gostos, um acesso a redes de relações sociais e uma certa maneira de se relacionar com os outros. Christina Toren defende que este processo, através do qual os indivíduos se tornam no que são, não é correctamente caracterizado pelo conceito de socialização que implica, de acordo com a autora, a ideia de um processo unívoco e estático de transmissão e recepção de regras e valores entre gerações. Para evitar esta imagem unívoca, Toren propõe que se utilize o conceito de processo em constituição, pois a formação das pessoas faz-se através de um processo de autopoiesis. 51 De acordo com a autora, à medida que os indivíduos crescem entram em relações com outros e, ao fazê-lo, atribuem um determinado sentido às coisas, construindo assim um tipo de conhecimentos que é retirado da sua experiência no mundo. Claro que as pessoas que os rodeiam, fundamentalmente familiares e amigos, têm um papel importante tanto na estruturação das suas condições de 50 João de Pina Cabral propõe a utilização do conceito de unidade social primária, em vez de família nuclear, para evitar atribuir significados pré-definidos a unidades de pertença dos indivíduos que só podem ser definidas pela descrição das relações estabelecidas no seu interior (1991: ). No caso que analiso, esta distinção tem uma grande importância heurística, na medida em que a unidade social primária a que pertencem os membros destas famílias engloba o conjunto de relações com outros parentes próximos. Sem este conjunto de relações, a primeira não adquire o seu sentido global, pois perde elementos identitários que lhe são centrais. 51 Este conceito foi proposto pelos neurobiólogos Maturana e Varela para referir sistemas vivos que são auto-suficientes para se produzirem a si próprios, ainda que envolvam, no entanto, outros no processo de se construírem (cf. Toren 1999: 6-8).

92 86 Grandes famílias existência como por lhes terem ensinado muitas das coisas que sabem sobre o mundo. Mas, em última análise, são os próprios indivíduos que produzem o sentido que atribuem às coisas e às relações a partir dos significados que lhes apresentaram (Toren 1999: 7-8). O conceito proposto por Christina Toren dá conta, de uma forma dinâmica, do permanente processo de crescimento e formação das pessoas. Não retirando peso e importância à família este conceito evita um certo determinismo subjacente ao conceito de socialização. Ao mesmo tempo que se vai formando como pessoa, a criança vai-se integrando, progressivamente, num conjunto de solidariedades primárias que são formativas da própria pessoa e expandem-se para além das relações exclusivamente familiares, integrando-as numa dada concepção do mundo (Pina Cabral e Lourenço 1993: 42). Noutras palavras, as relações que os indivíduos mantêm com os outros no decorrer da sua vida quotidiana, desde que nascem até que morrem, enformam os processos pelos quais constróem, ao longo do tempo, as suas relações sociais, as suas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas que os rodeiam. Este processo duplo de produção de pessoas enquanto indivíduos e enquanto pessoas familiares é o que conduz a que os filhos sucedam aos seus pais nas suas práticas, nas suas relações sociais e nas suas empresas e ao nascimento da vocação de empresários, nas novas gerações destas famílias. As relações de sociabilidade que se estabelecem entre os elementos deste conjunto de famílias resultam, portanto, de relações de intersubjectividade anteriores. Isto é, foram passadas de geração em geração, reproduzindo no tempo processos de solidariedades primárias de longo prazo e dando origem a um amplo e poderoso capital relacional. Nas palavras de Bourdieu: Os descendentes das velhas famílias, quando nascem, já possuem a antiguidade da sua família. E este capital estatutário de origem redobra-se nas vantagens que atribui, em matéria de aprendizagens culturais, das maneiras à mesa, à arte de conversação, à cultura musical, ao sentido das conveniências, à prática de ténis ou à pronúncia. Essa antiguidade, fornece-lhes uma precocidade da aprendizagem da cultura legítima: o capital cultural incorporado das gerações anteriores funciona como um avanço, pois o exemplo da cultura praticada no

93 Grandes famílias 87 seio dos modelos familiares permite, aos que nele entram de novo, começar desde a sua origem, da maneira mais inconsciente e insensível, a aquisição dos elementos fundamentais da cultura legítima (Bourdieu 1979: 77). Sendo um contexto fundamental de constituição de pessoas e de redes de solidariedade social, a família constitui, então, um contexto privilegiado para a análise das relações estabelecidas nestas grandes famílias e nestas grandes empresas familiares. Esta não é, no entanto, a única razão para que a família assuma um papel central neste trabalho. A centralidade que a família ocupa nas vidas dos indivíduos com que contactei durante a investigação é claramente visível ao nível das suas práticas quotidianas. O líder de uma destas grandes empresas familiares resume este princípio de uma forma que não deixa margem para dúvidas: A minha vida é apenas dedicada a duas coisas: à empresa e à minha família (EA). Todas as pessoas com quem falei afirmaram fazer um investimento consciente nas suas relações familiares. Vivem juntos, trabalham juntos e passam os tempos livres e momentos de sociabilidade juntos. Vivem imersos numa densa rede de parentes com um fortíssimo grau de trocas diárias e interdependência. Falo com a mãe aí umas três ou quatro vezes por dia. Como os meus irmãos me vão telefonando eu depois ligo à mãe a dar notícias de todos. Agora, na minha hora de almoço, antes de ir à ginástica, vou comprar umas coisas que a mãe precisa para um jantar no fim-de-semana. Como eu não sou casada e não tenho filhos sou a moça de recados e a mensageira. A To é a confidente e os meus irmãos, sobretudo os mais velhos, os conselheiros (Ma). A minha família é muito grande e muito unida. Ajudamo-nos sempre uns aos outros, e andamos sempre atrás uns dos outros. Se um faz anos lá vamos todos. ( ) Como trabalhamos em diferentes sectores do grupo estamos muitas vezes em contacto, quer pela família quer pelo Grupo. Assim, a unidade mantém-se. Há imenso jogo de equipa e a base é essa relação humana e profissional (Ma).

94 88 Grandes famílias Todos os anos alugo uma casa na quinta do Lago para mim e mais seis à volta para ter os meus filhos e netos todos ao pé de mim nas férias (EA). À quinta-feira vêm cá os meus filhos e netos todos jantar. É para os ver, porque, desde que cresceram e foram para a escola, esta casa onde antes ficavam todos os dias parece tão vazia (ML). Esta densidade de relações no contexto da rede familiar tem por corolário a consolidação de um forte espírito de família que assegura a coesão do conjunto, baseado em referências históricas comuns que são um elemento de união e traduzem a consciência de pertencer a uma rede familiar e social com contornos claros e com origem num tempo passado. 52 À semelhança do que encontramos entre as famílias aristocráticas, a origem familiar é, para estas pessoas, um capital social muito importante. Da mesma forma que nenhum aristocrata pode ser aristocrata só por si pois tanto o seu poder como o seu prestígio vêm da sua família de pertença também a grande família não se pode constituir apenas numa geração. Para que tal seja possível, os descendentes do fundador da família terão de reforçar as relações que mantêm entre si, ao mesmo tempo que enriquecem a sua rede de alianças sociais. Enquanto sistema de relações e de acumulação de capital social, a grande família só poderá tornar-se uma realidade ao longo das segundas e terceiras gerações. Neste sentido, a transmissão para as gerações seguintes dos elementos que, no seu conjunto, simbolizam a identidade da família como sejam, o nome de família, a memória dos seus antepassados e os seus bens patrimoniais adquire uma importância central, tanto para a existência da grande família como para a sua 52 As trocas e entre-ajudas familiares são uma prática muito frequente em Portugal. Este facto é anualmente confirmado no âmbito da disciplina que lecciono no ISCTE, onde os alunos fazem uma história de família. Da análise do arquivo acumulado ao longo dos últimos dez anos, com uma enorme diversidade de origem geográfica e social, é clara a importância das entre-ajudas entre familiares, tanto ao nível da organização da vida quotidiana das unidades domésticas guarda de crianças e refeições como a nível das necessidades menos frequentes cuidados de saúde, ou necessidades económicas. Porém, o sentimento de pertença familiar apresenta-se mais difundido e com maior peso no âmbito das famílias de elite do que em grupos sociais de menos estatuto, na medida em que estes dependem mais da existência de redes colaterais de solidariedade e dependência do que de sentimentos de unificação passados.

95 Grandes famílias 89 continuidade. Na medida em que a identidade social destes indivíduos se apoia fortemente nesse critério, o sentimento de pertença familiar torna-se, consequentemente, importante para este grupo de estatuto. Em síntese, a família premeia a existência dos elementos deste grupo social de uma forma tão intensa que cria e reforça um forte sentimento: os seus membros partilham algo em comum um nome de família, uma história, antepassados, casas de família e quintas, títulos nobiliárquicos, brasões, uma rede de empresas. Todavia, partilham também um objectivo comum: perpetuar tudo isto. Para me referir a este conjunto de bens identitários partilhados utilizarei o conceito de património familiar, para dar conta simultaneamente das dimensões económica, simbólica, social e cultural que caracterizam os seus múltiplos componentes A importância do passado e da tradição: a adesão ao ideal aristocrático Tenho vindo a defender que preservar a família como unidade de identificação para os membros das novas gerações é um factor central para a continuidade da grande família, pois permite a perpetuação das relações entre os seus membros, e reproduz a legitimidade da sua já longa existência. Em consequência, estas grandes famílias constróem uma imagem de si próprias baseada na ideia de uma 53 Este conjunto de bens identitários foi definido, de uma forma bastante descritiva por Allen como a herdade simbólica da família (the symbolic family estate, Allen 1990: 102).

96 90 Grandes famílias linhagem familiar, apelando para um sistema de criação e legitimação de laços de identificação continuada. 54 A importância que estas famílias atribuem ao grupo familiar e à sua continuidade baseia-se num modelo em que o nascimento é um importante classificador social e a antiguidade um bem fundamental, o que as distingue na sociedade actual que valoriza a mudança e o novo. Nalgumas ocasiões, o objectivo de continuidade do êxito social e empresarial destas famílias faz desenvolver aquilo que George Marcus designou por sentimento dinástico: o desejo de assegurar a continuidade dos símbolos visíveis da unidade de um grupo familiar, da sua identidade social, normalmente associada a um projecto económico sob o controlo dos membros da família (cf. Marcus 1992: 8-10). Nem sempre as empresas que adquirem um sucesso considerável têm continuidade numa segunda geração da família, como mostrei anteriormente a propósito do caso das empresas da família Cupertino de Miranda. Podem ser compradas por terceiros ou, simplesmente, desaparecer. Porém, também não é o mero facto de uma família conseguir transmitir propriedade, terra e dinheiro, ao longo de várias gerações, que faz dela uma grande família. Para se tornarem uma grande família, mais do que um grupo de parentesco extenso, as suas actividades têm de ser modeladas por uma tentação de imortalidade simbólica, que ganha força na prática progressiva de um destino familiar colectivo. Neste sentido, ela torna-se uma entidade que transcende os 54 A identificação de uma situação semelhante nos EUA levou George Marcus a caracterizar estas famílias dinásticas muito ricas como um fenómeno semelhante ao tribal (Marcus 1992: 4): Estas famílias adquiriram durabilidade enquanto grupos de descendência numa sociedade burocratizada, porque assimilaram, em vez de lhes resistirem, características de organização formal que são normalmente concebidas como antitéticas aos grupos baseados no parentesco (idem: 15). Apesar de ser muito interessante encontrar este tipo de ocorrência no topo da hierarquia social das sociedades ocidentais, não me parece de grande utilidade introduzir o conceito de linhagem para pensar fenómenos de organização de grupos de parentesco em sistemas sociais onde não existem fenómenos do tipo linhageiro. De facto, estas formações dinásticas desenvolvem-se através de processos de sucessão complexos, baseados na manipulação de critérios económicos, políticos e familiares e não exclusivamente por critérios de descendência que se atribuíam às linhagens e que estudos menos funcionalistas sobre o parentesco mostraram que não descrevem nem os próprios sistemas sociais a que o modelo se aplica (cf. por exemplo, Kuper 1988). Por esta razão, mesmo que estas famílias dinásticas pareçam tribos, que não são, não as devemos tratar como se fossem.

97 Grandes famílias 91 indivíduos, assegurando-lhes uma certa perenidade, enquanto um grupo de identificação social. A vontade de transmitir a empresa familiar aos descendentes é um dos dispositivos dinásticos mais importantes que encontramos nestas famílias: a continuidade das empresas que condensam interesses comuns dota-as de um valor simbólico que assenta, em grande medida, na possibilidade de aqueles que estão à frente dos seus destinos num determinado momento, poderem referir-se às gerações que os precederam, às marcas do sucesso dos seus familiares no passado. De forma a preservar a propriedade e o controlo das suas grandes empresas familiares no futuro 55, as gerações mais velhas não podem, assim, limitar-se a procurar garantir que as posições executivas de topo sejam ocupadas por membros da família. Têm, também, de garantir que os descendentes partilhem os laços identitários que uniam os seus antepassados, esse amor pelo passado familiar onde cresce o investimento pessoal para o seu desenvolvimento futuro. O esforço no sentido de criar laços de identificação simbólica é um importante contributo para a preservação da coesão familiar. A formação de uma grande família não é, portanto, simplesmente uma questão de continuidade biológica associada a um objectivo comum. A sua formação corresponde a um ideal de continuidade da família, enquanto unidade colectiva, enraizada nos símbolos mais visíveis, prestigiantes e antigos da sua identidade. Na prossecução deste ideal, as heranças ideológicas de uma tradição aristocrática apresentam-se, no âmbito das ferramentas ideológicas existentes na cultura portuguesa, como um modelo a seguir para garantir a continuidade identitária destas famílias. O ideal aristocrático atribui especial importância à 55 Uma característica comum a estas grandes famílias ligadas a empresas é a tentativa de manter a propriedade conjunta dos seus bens de maior relevância económica. Este ideal é difícil de conseguir pois, à medida que a família cresce e se desenvolve, aumentam as diferenças entre os diversos membros e diluem-se os sentimentos de solidariedade que os unem. Esta situação coloca problemas à continuidade deste projecto colectivo. O aumento de herdeiros potenciais e a proliferação de interesses que podem promover a diminuição do investimento no projecto colectivo são perigos que as novas gerações enfrentam.

98 92 Grandes famílias recordação dos laços de parentesco, sendo a identidade familiar representada pelos antepassados. Enfatiza ainda um ideal de varonia, que confere um importante valor simbólico à transmissão agnática de elementos identitários, como por exemplo o nome de família e os títulos nobiliárquicos. Ao fazer reviver a linguagem da tradição aristocrática estas grandes famílias adaptam-na ao seu interesse em privilegiar o grupo familiar continuado, em detrimento do indivíduo. O facto de recorrerem a esta forma de organização menos individualista e, portanto, menos moderna, confere a estas famílias uma imagem conservadora no âmbito da sociedade portuguesa, pois apoiam-se em valores familiares cuja importância tem vindo a diminuir significativamente entre os outros grupos sociais portugueses, apesar de ser ainda relevante. 56 Nem todas as famílias que estudei têm ligações directas à aristocracia. No entanto, é notória a aproximação que a maior parte delas faz a formas de organização aristocrática, através da valorização positiva de certos valores, ideais e práticas, centrais a esse modelo. 57 De entre estes saliento a importância atribuída à organização patriarcal da família; à primogenitura; ao casamento com elementos de famílias aristocratas; à antiguidade da família, que confere e legitima, o prestígio e o estatuto social destas famílias tornados visíveis, publicamente, através da exibição de símbolos de nobreza, como o brasão de família, colocado num lugar bem visível da casa; na utilização do título; na utilização do apelido; e a importância atribuída à transmissão destes símbolos por linha varonil. 56 Em Portugal, apesar de actualmente serem pouco visíveis, os princípios de organização aristocrática continuam a ter uma importância considerável nos meios de actuação dos descendentes das famílias nobres, ou daquelas que aspiram a sê-lo. José Manuel Sobral (sd) mostrou como estes valores estão claramente presentes nas relações de poder das aldeias da Beira interior. Outro exemplo desta situação pode ser encontrado no projecto de investigação que George Marcus está presentemente a realizar sobre a aristocracia portuguesa. A experiência do seu trabalho de campo com estas famílias e nas casas que representam, mostrou claramente que o modelo de família e de sociedade aristocráticas continua bem presente no seio da sociedade portuguesa igualitária, democrática e laica, onde a ideologia hegemónica é abertamente contrária a um sistema baseado na transmissão de cargos e estatutos por herança e filiação. Agradeço a George Marcus, Diana Hill e a Fernando Mascarenhas a gentileza de terem partilhado comigo o material da sua investigação. 57 Já Hermínio Martins tinha notado que os capitalistas portugueses tendem mais a um consumo aristocrático que para uma racionalidade burguesa (1998: 105).

99 Grandes famílias 93 Na verdade, não é necessário deter laços formais com a aristocracia portuguesa para, como se verifica nestas famílias, se recorrer à utilização dos valores culturais e das práticas centrais daquele grupo. Através da utilização dos valores e ideais de organização aristocrática poder-se-á, a la longue, vir a ser identificado com esse grupo. A família Espírito Santo é disto um bom exemplo. Apesar de alguns dos seus membros se terem casado com elementos da antiga nobreza portuguesa, a família não tem, por via do seu fundador, uma origem aristocrática. No entanto, a distinção que caracteriza os percursos sociais dos seus elementos, numa actividade pública já com um século de méritos reconhecidos ao nível das suas actividades empresariais e sociais, que se desenrolam nas mais altas esferas nacionais e internacionais, faz com que muitos elementos da aristocracia portuguesa se refiram a eles como uma das famílias mais aristocratas do nosso país. 58 Por outro, a imprensa nacional e internacional refere-se a esta família como os únicos banqueiros aristocráticos portugueses, comparando-os frequentemente aos Rothschild, tanto nos seus percursos como na distinção que caracteriza a vida dos membros destas duas famílias (cf Resener 1991). Uma das famílias que estudei, fornece-nos um excelente exemplo para melhor compreender a importância atribuída ao estabelecimento de laços de descendência com famílias aristocráticas. O fundador da empresa familiar era filho de pais incógnitos. Já depois da sua morte, um dos seus filhos tentou provar que o pai do seu pai era um importante conde português, tarefa que não conseguiu levar a cabo porque faleceu precocemente. Mais de quarenta anos mais tarde, um neto do fundador retoma esse objectivo, pondo à disposição de um historiador que se especializara sobre a história desta família, os meios financeiros e logísticos necessários para tentar documentar a origem familiar do fundador da empresa. As motivações deste neto do fundador não são exclusivamente pessoais, pois as suas próprias origens aristocráticas estão claramente asseguradas pela família de origem de sua mãe. No entanto, seria simbolicamente importante conseguir estabelecer uma origem aristocrática para a linha varonil da família, 58 De novo, devo agradecer esta informação a George Marcus e Diana Hill.

100 94 Grandes famílias aquela que representa o passado da empresa e que permitiria aristocratizar o seu fundador e toda a sua descendência. Ao usarem a linguagem da aristocracia portuguesa, estas grandes famílias empresariais não manipulam exclusivamente relações sociais. Manipulam também conceitos e valores que fazem parte do aparelho ideológico geral que é o legado cultural histórico português, que define um modelo cultural ideal sobre o que é preciso guardar, conservar de tempos sociais anteriores, de forma a garantir o presente e o futuro de acordo com os seus modelos de organização. Os valores que legitimam o modelo de ordem social e familiar destas grandes famílias enraíza-se no passado. Em resultado das grandes alterações que se verificaram na sociedade portuguesa desde 1974, o facto de estas famílias continuarem a reproduzir esse mesmo modelo de identificação, conduz a que sejam associadas a modelos ideológicos que constituíram no passado a hegemonia instituída. Em particular, essa associação é feita com o Estado Novo, cujo modelo ideológico se enraíza, também, na manutenção da tradição, da unidade da família e na harmonia familiar e na não mudança. No entanto, devo notar que este regime político em geral, apoiado por estas famílias não fez mais que legitimar institucionalmente os valores sociais e morais já defendidos por estas famílias e que, sendo anteriores à constituição do regime salazarista, contribuíram para que este impusesse o seu modelo corporativo de sociedade como modelo hegemónico durante meio século. António de Oliveira Salazar foi um ditador conservador 59 e católico que tentou moldar todos os níveis da sociedade civil portuguesa de acordo com a sua concepção do mundo e do homem, baseada numa moral nacionalista, corporativista e católica (cf. Salazar 1966, Martins 1971 e Lucena 1976). Foi com 59 O carácter conservador de Salazar é exemplarmente assumido na carta que enviou ao representante da Coca-Cola na Europa recusando a entrada do produto em Portugal. Portugal é um país conservador, paternalista e Deus seja Louvado atrasado, termo que considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo, ou seja, o modernismo e a sua famosa efficiency. Estremeço perante a ideia dos vossos camiões a percorrer, a toda a velocidade, as ruas das nossas velhas cidades, acelerando, à medida que passam, o ritmo dos nossos hábitos seculares. (Salazar in Mónica 1996: 221)

101 Grandes famílias 95 base nesse modelo que estruturou a política nacional, controlando a sua aplicação a todos os níveis da sociedade portuguesa: económico, social, político, laboral, familiar, educacional e cultural em geral. A concepção profundamente católica e corporativa da sociedade defendida por Salazar, conferia uma enorme importância aos laços familiares, tanto para a vida doméstica dos indivíduos como para a própria manutenção da ordem social da Nação. Sublinhando esta ideia Salazar escreveu num dos seus discursos: Eis na base a família a célula social irredutível, núcleo originário da freguesia, do município e, portanto, da Nação: é, por natureza, o primeiro dos elementos políticos orgânicos do Estado constitucional (Salazar 1966: 181). Não discutimos a Família. Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se forma o pequeno mundo de afectos sem os quais o homem dificilmente pode viver. Quando a família se desfaz, desfaz-se a casa, desfaz-se o lar, desatam-se os laços de parentesco, para ficarem os homens diante do Estado, isolados, estranhos, sem arrimo e despidos moralmente de mais de metade de si mesmos; perde-se um nome, adquire-se um número a vida social toma logo uma feição diferente (Salazar 1966: 185). A importância que atribuía à família era tal que Salazar a instituiu como a metáfora da Nação, concebida, por sua vez, como uma grande família. A Pátria é uma grande família. Como todas as famílias tem um chefe. O chefe que é o pai, é querido, respeitado e obedecido pelo filho (cit. in Almeida 1991: 255). Tal como os homens são os chefes das suas famílias, também Salazar era o chefe, o pai, da Nação portuguesa. E, tal como dentro da família, os filhos e as mulheres respeitam e obedecem ao seu pai/marido, também os filhos da Nação deviam respeitar e obedecer a Salazar. Desta forma, Salazar não só assegurava o respeito e a obediência da Nação ao chefe, mas impunha também um modelo de família, definindo a sua estrutura de autoridade e a divisão de papéis dentro desta. Controlando as famílias podia-se controlar a Nação. E, educando orientadamente as famílias, garantia-se a obediência do povo.

102 96 Grandes famílias Queremos que a família e a escola imprimam nas almas em formação, de modo que não mais se apaguem, aqueles altos e nobres sentimentos que distinguem a nossa civilização: a autoridade do pai e o respeito dos filhos, a honra e o pudor da mulher cujo trabalho fora do lar devia ser evitado, o profundo amor à Pátria, como o dos que a fizeram e que pelos séculos a engrandeceram. Eis outros tantos valores tradicionais que necessitam da família para se imporem na sociedade. A família será, por isso, a garantia da moral, consistência e coesão do todo social (Salazar 1966: 134). A importância da célula familiar para o Estado Novo é bem visível nas diversas instituições criadas especificamente para moldar a organização das famílias e para as educar segundo uma determinada orientação, que reproduz o modelo moral e de autoridade defendido pelo estado. De entre estas instituições, foram de particular importância a Obra das Mães para a Educação Nacional e a Mocidade Portuguesa Feminina que tinham como função educar as jovens no amor de Deus, da Pátria e da Família. A educação moral era a mais importante e nesta, a elevação da vida do lar o amor da família e a aceitação dos deveres que ela impõe. O fundamental da formação destas jovens, como mulheres, futuras esposas e mães, era constituído por noções de economia doméstica, higiene e enfermagem e pela ciência das mães a mais útil das ciências para a família e para a Pátria (Cova e Costa Pinto 1997: 83). As grandes famílias empresariais com que trabalhei organizam-se e regem-se pelos ideais da antiga tradição religiosa e aristocrática, pelo que estão ligadas a um modelo de vida profundamente católico e fortemente enraizado num ideal de vida familiar. No entanto, a ligação, por um lado, entre o modelo de vida e a concepção do mundo destas famílias e, por outro, o modelo ideológico defendido por Salazar deve ser colocada de forma a ultrapassar a mera colagem ao regime. Na verdade, este último entronca na ideologia tradicional cristã, que estas famílias de elite com perfil aristocrático seguem antes, durante e após a presença de Salazar no poder. Isto é, este modelo não foi inventado ou proposto por Salazar: ele apenas o impõe como modelo nacional, garantindo assim, talvez, o apoio destas grandes famílias ao seu regime.

103 Grandes famílias 97 Se o ideal da aristocracia portuguesa estava de acordo com o modelo ideológico sobre a organização familiar e social que caracterizava a sociedade portuguesa antes de 1974, o mesmo já não acontece actualmente. Na sociedade portuguesa moderna o peso da instituição familiar, na forma como os indivíduos estruturam a sua identidade e organizam os seus percursos de vida, diminui consideravelmente no âmbito das relações sociais e profissionais. As pessoas são cada vez mais avaliadas pelos seus desempenhos e não pelas suas origens familiares. Passamos, portanto, de um momento histórico em que estas grandes famílias empresariais estavam em sintonia com o modelo hegemónico português, para uma situação em que estas famílias se colocam nas margens dos modelos hegemónicos da sociedade portuguesa, devido ao facto de continuarem a defender e a organizar-se de acordo com os seus antigos valores, agora considerados como correspondentes a uma ordem social passada. Por esta razão, estas famílias são agora consideradas conservadoras e pouco modernas, o que contrasta obviamente com a imagem de líderes de grandes empresas de sucesso no âmbito do universo internacional de uma economia de mercado competitiva, onde a modernização é um elemento fundamental do sucesso. Porém, é fundamental deixar bem claro que o conservadorismo aristocrático, defendido e praticado por estas Grandes famílias ligadas a empresas, não se pode comparar ao conservadorismo de Salazar para quem como mostrei atrás em relação à questão da entrada da Coca Cola em Portugal era sinónimo de atraso, como ele próprio diz de uma atitude de resistência à inovação, à abertura, ao desenvolvimento e à modernidade. 60 Estas famílias, tal como outras que são representantes daquilo a que poderíamos chamar uma aristocracia empresarial como os Rothschild, os Warbourg ou os Rockefeller podem ser caracterizadas como conservadoras, apenas na medida em que, os elementos que estruturam os seus projectos identitários e as suas famílias, se enraízam em valores e tradições que remontam a tempos históricos passados. Contudo, os seus 60 Um bom exemplo deste conservadorismo excessivo e atrasado de Salazar é relatado pelo próprio A lei impede as mulheres casadas de serem enfermeiras (...) Insisti para que se aplicasse a mesma lei noutros serviços, mas não o consegui. As teorias e os factos falam contra mim e até a igreja me reprova (Salazar in Catálogo da exposição Liberdade e cidadania 1999: 80).

104 98 Grandes famílias membros são extraordinariamente cosmopolitas e as instituições que lideram são, em muitos aspectos, muito inovadoras e modernas. As empresas que gerem destacam-se das suas concorrentes pela inovação dos seus projectos, pela criatividade e visão de futuro que os anima, enraizadas, em grande parte, nas suas vivências cosmopolitas. Num certo sentido, no âmbito da vida económica nacional, estas famílias conservadoras desempenham um papel dinamizador e inovador decisivo para a modernização do país A formação das novas gerações Cada geração contribui para a formação e continuação da grande família. Estas grandes famílias empresariais inscrevem-se num tempo familiar, sincopado pelo ritmo dos ciclos de desenvolvimento das empresas, associado normalmente aos processos de passagem de liderança de uma geração a outra, dentro de uma mesma família. Esta ideia é bem visível na descrição que um membro destas famílias fez do desenvolvimento da sua empresa. Ao fundador sucederam-se os seus três filhos pela ordem natural: 1) José, que consolidou a participação familiar na casa bancária, que transformou no Banco Espírito Santo, desenvolveu a Tranquilidade e a Bonança e arrancou com as actividades em Angola, criando a Sociedade Agrícola do Cassequel; 2) Ricardo foi o obreiro da grande expansão da rede comercial do banco, da fusão com o Banco Comercial de Lisboa (BCL) e do consolidar da posição de prestígio nacional e internacional; 3) Manuel consolidou a obra dos seus antecessores e deu o 61 O importante papel destas famílias na dinamização do desenvolvimento de certas áreas da vida nacional, pode também ser visto a nível das artes ou do desporto, como mostrarei mais à frente.

105 Grandes famílias 99 primeiro passo na presença do banco no plano internacional; 4) a Manuel sucedeu o filho mais velho, Manuel Ricardo, o estratega da recuperação das posições da família em Portugal (CR). Mesmo as pessoas que pertencem a um mesmo grupo social, que partilham uma mesma concepção do mundo e vivem um mesmo tempo familiar, se integram nele de maneiras diversas, em resultado dos seus processos individuais de constituição como pessoa e das suas experiências de vida. A posição relativa dos indivíduos neste tempo familiar, o momento na história da família e da empresa em que entram como agentes activos, na produção da continuidade de ambas, condiciona a sua forma de actuação. Por outro lado, a geração a que pertencem molda fortemente a maneira de equacionar e responder aos mesmos acontecimentos, e terá uma influência diferente sobre os seus processos futuros. Neste sentido, o tempo familiar é condicionado pelo contexto mais abrangente da sociedade em que está inserido. Como lembra Lisón-Tolosana, cada geração constrói a sua identidade por referência à conjuntura que a cria de acordo com três elementos: a) o legado das gerações anteriores; b) as experiências formativas dessa geração e; c) as contribuições inovadoras dos seus membros (1983: 181). A noção de processo em constituição ganha aqui de novo valor analítico, pois permite equacionar o entrecruzar dos três elementos que enformam a constituição dos indivíduos como pessoas, de uma forma mais descritiva que os conceitos de reprodução social e de socialização. Os indivíduos que nascem nestas famílias são socializados de acordo com os valores tradicionais caros aos seus membros. No entanto, a cada geração que passa, a forma como esses valores são utilizados é diferente pois, para além do processo educativo desenvolvido pela família, os jovens contactam com os valores do seu tempo e integram-nos no modelo familiar, inscrevendo sinais de mudança na continuidade do grupo. Para descrever a forma como os diversos membros da comunidade se posicionavam face aos cargos de exercício de poder, Lisón-Tolosana define três grupos geracionais: i) a geração declinante inclui as pessoas que estão agora a deixar os lugares de poder; ii) a geração controlante que compreende as pessoas

106 100 Grandes famílias que estão actualmente a exercer os lugares de liderança; iii) a geração emergente composta pelos jovens que se preparam para a vida adulta. Esta forma de definir posicionalmente a relação dos indivíduos com as posições de tomada de poder é particularmente útil no contexto das grandes empresas familiares, pois é dessa maneira que os seus membros se concebem na sua estrutura de poder: i) aqueles que já fizeram o seu percurso profissional e que têm como tarefa fundamental assegurar a integração dos mais novos no sistema; ii) aqueles que atingiram os lugares de poder depois de se terem formado (como profissionais, como pessoas, como membros da família e do grupo); iii) a aqueles que estão a ser produzidos como futuros continuadores do projecto familiar. 62 Neste contexto social, a valorização positiva da família e da sua continuidade é um factor fundamental na educação das crianças a que é dada uma importância decisiva. Não me refiro exclusivamente à formação escolar dos jovens, mas sim à sua educação num sentido mais amplo: a aprendizagem de um conjunto de valores, interesses e comportamentos que os integrem numa determinada rede de relações sociais onde a partilha de um conjunto de significados promove uma comunidade de intersubjectividades. Os membros das novas gerações destas famílias constituem-se como pessoas no âmbito de um projecto educativo que procura imbuí-los deste espírito e torná-los nos futuros reprodutores da comunidade em que estão inseridos. É neste sentido que podemos entender que estas famílias escolham para os seus filhos um conjunto, relativamente restrito de instituições escolares, privilegiando colégios religiosos que, aliados à escolarização, lhes dêem uma boa formação moral, boas maneiras e bons costumes. Porém, onde essa valorização se expressa de uma forma mais evidente é, na prática, frequente até meados do nosso século, de os primeiros anos de escolaridade serem feitos em casa, garantindo assim a conjugação do ideal do espírito de vida em família, dos 62 Um excelente exemplo deste processo é a forma como se têm alterado, ao longo deste século, os critérios exigidos aos membros da família para trabalharem nas suas empresas sem que tenham, no entanto, mudado os valores simbólicos que lhe estão subjacentes. A análise deste ponto será desenvolvida no capítulos VII.

107 Grandes famílias 101 valores, maneiras e ideais que orientam a sua visão do mundo e do que se espera da aprendizagem escolar. Quando éramos mais novinhos tínhamos professoras em casa. Tivemos professoras inglesas, francesas e alemãs que nos ensinavam línguas e música. Quando chegava a altura íamos fazer os exames ao liceu. E mais tarde, aí por volta dos onze ou doze anos, íamos então para os colégios. Rapazes para um lado e raparigas para outro (MC). Durante os meses que estávamos na quinta, o Sr. Lopes (da escola oficial da Ajuda) ia dar-nos lições. Coitado, ia de barco, depois de camioneta até Azeitão e depois vinha na charrete dos P até à quinta. Ao fim do dia regressava pelo mesmo processo (Me). Às vezes a nossa casa era uma confusão. Tínhamos de falar em português com o pai e com a mãe, em francês com a Mademoiselle Hélene e em Inglês com a Miss Daisy (Mi). Ter professores em casa era, efectivamente, a forma ideal de conjugar a aprendizagem escolar com a aprendizagem dos hábitos e valores familiares, sem perder esse ambiente envolvente da casa de família, sem se separarem das imagens dos seus familiares que decoram as suas casas. Fazer a escolaridade sem deixar o ambiente familiar era particularmente importante no caso das raparigas, tanto no sentido de as proteger mais dos perigos do mundo exterior como para se integrarem mais precocemente e de uma forma mais profundamente enraizada na vida diária da casa de família. A frequência com que encontramos professores estrangeiros trazidos para Portugal propositadamente para educar os filhos, revela a grande importância dada por estas famílias à aprendizagem precoce de línguas estrangeiras. O domínio de diversas línguas estrangeiras, sobretudo do inglês e do francês, é considerado um sinal inequívoco de uma boa educação, de uma educação virada para uma vida cosmopolita.

108 102 Grandes famílias Nas férias de Verão, eu e os meus irmãos íamos sempre para o estrangeiro aprender línguas. Íamos sobretudo para a Suíça, mas fomos alguns anos para Inglaterra (Pq). A mãe herdou do avô o gosto de que os filhos aprendessem línguas pelo que mandou todos os filhos para colégios no estrangeiro. O tio J foi para um colégio na Escócia e o tio M para Inglaterra. Eu fui para Londres, para uma abadia beneditina onde só havia noviças. Aos quinze anos fiz a admissão a Cambridge mas acabei por voltar para Portugal e fazer cá o sétimo ano. Depois debutei e casei (MaJ). Nós, os rapazes, estivemos dois anos internos em Inglaterra e depois sete ou oito anos internos no Colégio Infante de Sagres em Lisboa, que ficava numa quinta pegada à nossa casa na Quinta do Pinheiro (onde é actualmente a embaixada dos EUA). As minhas irmãs estiveram seis anos internas num colégio de freiras em Farmborough (Hampshire, Inglaterra). Depois foram para Florença para um colégio estudar história de arte e escultura (Dt). Quando eu vivia no Restelo, os meus filhos andaram no Colégio Avé Maria. Mais tarde as raparigas foram educadas em Newall (Inglaterra). Os rapazes estudaram em Rosée (na Suíça) e depois foram para França fazer o Bac (N). Para além da aprendizagem da língua, ir estudar para um colégio estrangeiro, sobretudo para Inglaterra, era uma aposta na educação completa do filhos, na sua formação como pessoas. Efectivamente, a boa reputação dos colégios ingleses não se limitava apenas à qualidade do ensino académico que ministravam. Era resultado, sobretudo, da forma como conjugavam o ensino escolar com o ensino das boas maneiras, e com o incentivo da prática de desporto. Em suma, uma educação completa que forma pessoas cultas, educadas e saudáveis Estas famílias conferem uma grande importância ao desporto. Nas palavras de Mi, uma coisa que eu devo às freiras inglesas é o gosto pelo desporto que é uma coisa a que os portugueses não ligam nenhuma. Ainda hoje com cinquenta e sete anos faço ginástica quase todos os dias. Na verdade, a forma regular e intensa com que estas famílias se dedicam a práticas desportivas entre as quais se destacam o ténis, a vela, o automobilismo, o Golf e, até aos anos sessenta, a esgrima é uma característica comum a todas elas. Vários membros destas famílias foram campeões nacionais de ténis, esgrima e vela. Mas, mais do que estas performances notáveis, é de salientar o papel de algumas destas pessoas no desenvolvimento do desporto nacional. Por exemplo, o

109 Grandes famílias 103 No entanto, é preciso ter em conta que, apesar de se verificar uma certa homogeneidade na escolha das escolas para os filhos, a situação diverge de família para família e, dentro de cada uma delas, varia temporalmente. Por exemplo, encontrei vários elementos destas famílias que frequentaram escolas primárias públicas durante os anos cinquenta, coisa que nem os seus pais nem os seus filhos fizeram. Assim, o actual presidente de um grande grupo económico, frequentou uma escola primária pública de Lisboa, seguidamente foi para o liceu de D. Pedro V e depois a Faculdade de Economia de Lisboa. Só depois de licenciado fez uma pós-graduação em Inglaterra. Não terá sido nem por falta de posses, nem por falta de interesse na educação deste jovem que os seus pais tomaram esta opção, ao mesmo tempo que mandavam para Inglaterra as filhas com onze e treze anos para serem educadas num colégio religioso, onde já tinham andado a sua mãe, tias e avó. A ideia da necessidade de dar uma educação diferenciada a rapazes e a raparigas é claramente comprovada nas opções desta família, que teve sempre em casa perceptoras para os filhos uma inglesa e uma francesa. Os meus dois irmãos mais novos já não tiveram de ir para Santo Tirso como os mais velhos. Foram para o S. João de Brito quando abriu (IR). Os meus irmãos estiveram em Santo Tirso no colégio jesuíta La Guardia. Quando foi da revolta contra a igreja, vieram para Lisboa para casa do padre Gabriel Ribeiro que dava casa a rapazes de família que estivessem a estudar. Eu e a minha irmã estivemos dois anos num Colégio no Porto, o Coração de Maria. Depois, viemos para Lisboa. Ficámos numa casa de Freiras do Coração de Maria, pois tinha de ser uma casa que tivesse Santíssimo. Fiz o exame de solfejo para admissão ao conservatório com o Viana da Mota e entrei. ( ). Os futebol foi trazido para Portugal por jovens destas famílias de elite que estudavam em Inglaterra e a maneira como este desporto se impôs na sociedade portuguesa deve muito à acção de Guilherme Pinto Basto que tomou a iniciativa de o apresentar, em 1888, numa exibição pública em Cascais, nos terrenos da Parada, com equipas que reuniam elementos das melhores famílias da época. Em Janeiro de 1889, organizou o primeiro jogo de futebol realizado em Lisboa, no Campo Pequeno, entre uma equipa portuguesa composta por uma elite da nossa melhor sociedade, rapazes das chamadas famílias de bem (Parreirão 1996: 769) e uma de ingleses que trabalhavam

110 104 Grandes famílias meus filhos andaram no S. João de Brito. Foi muito bom quando o colégio abriu porque, assim, já não tínhamos que mandar os rapazes para Santo Tirso. Todas as famílias católicas puseram lá os filhos. Era muito bom e tinha muito bom ambiente (MC). Hoje em dia a situação é bastante diferente. Por um lado, o panorama do ensino em Portugal melhorou consideravelmente. A oferta de colégios de qualidade, nos quais se inclui um número razoável de escolas estrangeiras, é agora bastante maior. Por outro lado, a mudança de costumes e mentalidades fez diminuir consideravelmente, ainda que não totalmente, a procura de colégios estrangeiros para a frequência dos níveis do liceu e mesmo de níveis de ensino superior. De facto, já não é frequente encontrar jovens destas famílias a irem estudar internos para um colégio no estrangeiro. A situação mais frequente é fazerem o liceu e a licenciatura em Portugal e depois uma pós-graduação numa universidade estrangeira de prestígio. Apesar de já não ser muito frequente, a escolha de escolas estrangeiras sobretudo, inglesas, francesas, alemã e americana, por esta ordem de preferência continua a ser uma opção para estas famílias. Os meus filhos andam no St. Julian s. Fizemos essa opção porque quisemos dar-lhes a possibilidade de verem desde pequenos que vivem num mundo plural e cosmopolita e poderem aprender inglês como uma segunda língua materna (D). Há uma grande distinção entre os percursos de escolaridade de rapazes e raparigas que, apesar de ao longo do século se ter vindo a esbater, só na década de noventa se encontra praticamente diluída. De todas as famílias que analisei, no âmbito das quais se incluem pelo menos duas centenas de mulheres, apenas duas se licenciaram antes de No entanto, nenhuma delas exerceu a sua profissão. Casaram, tiveram filhos e dedicaram-se à sua família. A educação nestas famílias é algo mais amplo e mais importante do que a formação escolar dos membros das gerações mais novas. Deve ser vista como um no cabo submarino de Carcavelos. A este encontro assistiu a fina flor da sociedade

111 Grandes famílias 105 processo completo e complexo de constituição de pessoas familiares, de aprendizagem de um modo de vida, de uma concepção do mundo que as novas gerações devem aprender, de forma a poderem fazer parte da comunidade e poderem assegurar a sua continuidade. Uma situação em que se revela bem este projecto educativo é o facto de em todas estas famílias encontrarmos em todas um grande sentido de responsabilidade cívica e cristã que, sendo praticada diariamente, é também transmitida de uma forma muito consciente às gerações seguintes. Na nossa família há uma constante referência à benemerência. Temos sempre presente a ideia de que os ricos são privilegiados e, portanto, devem ajudar, proteger e formar quem não tem possibilidades. Os meus tios tinham todos este espírito de criar condições para dar ensino a quem não tinha acesso. O mais velho, o tio J deixou donativos para fazer um orfanato escola em Albarraque. O tio M fundou o orfanato escola Santa Isabel e o tio R a Fundação e a escola de artes (MaJ). Este espírito de ajuda foi-lhes transmitido pelo pai que, desde que teve uma situação económica estável, fez da caridade um modo de vida. Uma indiscutível prova deste modo de vida, como lhe chamou uma das suas bisnetas, pode encontrar-se numa das muitas notícias que os jornais da capital publicaram no dia a seguir à sua morte: José Maria Espírito Santo Silva era o maior benemérito da freguesia do Lumiar. Pagava a renda de casa de muitas famílias que aqui vivem, ajudava o asilo da Infância desvalida do Lumiar e a Sociedade de Instrução e beneficência José Estêvão. Que será deles no futuro? (Diário de Notícias ). A prática da caridade faz parte dos deveres do cristão. Mas ela inscreve-se de uma forma particularmente marcante na tradição destas famílias. O pai dizia sempre: seja generoso com a igreja e com os pobres. O mais importante é a família, dar sempre o exemplo e estar pronto a ajudar quem precisa (JM). lisboeta, incluindo o Rei D. Carlos, um grande entusiasta da modalidade.

112 106 Grandes famílias Na sua obra intitulada Charity begins at Home, Teresa Odenthal (1990) descreve de uma forma muito interessante a produção de uma cultura nacional de filantropia entre as famílias ricas dos Estados Unidos da América que promovem e/ou apoiam organizações voluntárias. O grande investimento que as famílias muito ricas fazem, um pouco por todo o mundo ocidental, em acções e instituições filantrópicas revela, nas palavras de Mension-Rigau, que a caridade é o contraponto moral da riqueza (1994). A primeira medida que o pai tomou depois de ter comprado a Herdade da Comporta foi mandar construir casas para as famílias dos trabalhadores que formaram bairros e que deram origem às actuais povoações onde vivem actualmente cerca de sete mil pessoas. Posteriormente, mandou construir escolas e mandou vir professoras primárias chegaram a ter dez professoras dentro da herdade: quatro no Carvalhal, quatro na Comporta e dois na Carrasqueira. A mãe mandou logo trazer um padre para a aldeia, começaram logo a dar catequese e baptizaram toda a gente. Tiveram que lhes ensinar tudo: a comer, a cumprimentar e a vestir-se. Em 1964, como o pessoal ainda estava muito mal instalado MR elaborou um plano de entrega de dez hectares a cada família pelos quais estas se tinham de responsabilizar. A empresa fornecia os adubos, máquinas e as sementes. Eles forneciam o trabalho. Conseguiram assim melhorar muito a produção (passaram de Kg de arroz por hectare para kg) e aumentar grandemente os rendimentos das famílias (as mulheres passaram de 18$00 por dia e os homens de 20$00 para 50$00) (B). Este sentimento de responsabilidade cívica e cristã é também utilizado como pano de fundo para a inserção destas famílias na vida da comunidade em que estão inseridas. Em Ílhavo há ruas e carros de bombeiros com o nome do meu bisavô Carlos Ferreira Pinto. Ele deu um contributo decisivo para o desenvolvimento da terra e, inclusivamente, foi ele que deu o dinheiro necessário para a construção da escola primária (CB). Apesar de estas actividades beneméritas serem praticadas, de uma maneira geral, por todos os elementos destas famílias, elas têm um maior relevo no âmbito

113 Grandes famílias 107 da vida social das mulheres. Estas actividades são vistas como uma contribuição fundamental que as mulheres destas boas famílias podem dar às suas paróquias ou para ajudar a resolver problemas graves da sociedade em que estão inseridas. A minha mãe sempre esteve ligada às obras de caridade e chegou a fazer parte do Conselho Supremo da Cruz Vermelha. Eu sempre aprendi com ela a ajudar os outros. Para além de ser catequista, toda a vida estive na Caritas. Actualmente faço as visitas a casa dos doentes da paróquia da Basílica da Estrela (MaJ). A minha mãe sempre ensinou catecismo na nossa paróquia (IR). Actualmente estou envolvida num projecto muito interessante naquele bairro dos realojados do Casal Ventoso. Temos conseguido um conjunto de coisas verdadeiramente impressionante tanto a nível de aquisições materiais como de ajudas humanas. E tudo com base no voluntariado. Temos tido algumas ideias que se revelaram incrivelmente eficazes. Por exemplo, a última foi pôr em todos os hotéis (primeiro nos que estavam ligados ao Grupo do meu marido e depois a muitos outros), caixas onde os estrangeiros podem deixar aqueles trocos em escudos que nunca mais vão usar. Tiveram um enorme sucesso e os portugueses também aderiram massivamente (Mjs). No ramo dos Q tenho um primo que é padre e que há uns anos fundou uma associação em Vale de Acor para ajudar toxicodependentes. Há algumas pessoas da família que trabalham lá como voluntárias. E todos os anos fazem um jantar de recolha de fundos onde vão muitos elementos da família e que deixam importantes contribuições monetárias (BB). Encontramos muitos dos membros destas famílias condecorados pelo Estado português por terem sido importantes beneméritos. Tanto na família Pinto Basto, como na família Espírito Santo, como na família D Orey. As inúmeras actividades de intervenção na vida pública da comunidade em que estas grandes famílias estão envolvidas, mostram bem a importância que atribuem à sua relação com o mundo em que vivem, não se fechando no seu espaço de actuação mais restrito. Procuram dar uma imagem pública de si como elementos importantes na vida social e não apenas no desenvolvimento

114 108 Grandes famílias económico do país. A forma como esta imagem é construída revela, também, a importância dos valores da família, da tradição, valores cristãos que guiam as diversas dimensões da vida dos elementos das famílias que compõem este grupo social. De forma a conseguirem apresentar as relações familiares como um valor positivo e de alguma forma legítimo, os membros destas famílias elaboram uma série de instrumentos simbólicos que, ao permitirem a transmissão de estruturas de poder, são também mecanismos ideológicos, tornando, assim, o parentesco num valor positivo. O investimento nesta valorização é muito importante para que o apoio à utilização de laços de parentesco, não seja visto como algo negativo, por ser excessivamente particularista, no sentido atribuído por Abner Cohen (1981). Para o evitar, há que realizar um percurso simbólico de superação desta potencial contradição. Assim, para que estas famílias adquiram legitimação pública para o seu elevado estatuto, os seus membros têm de assumir funções universalistas: fornecer um serviço para o público. Mas, para o fazer têm de se organizar de uma forma particularista, para garantir a sua existência e a sua imagem. Como lembra Abner Cohen: Uma elite é um grupo de interesses, e a sua cultura desenvolve-se como um meio de coordenação das actividades corporadas que realizam para manter e aumentar o seu poder. Nesta medida, a sua cultura é particularista. Mas, porque os seus membros são ao mesmo tempo chefes de diferentes instituições públicas e lideres de grupos nacionais, ao articularem as suas diferentes actividades eles conseguem coordenar essas instituições e grupos, tornando-se universalistas (Cohen 1981: 126-7). O parentesco de âmbito particularista não seria outra coisa senão familismo, nepotismo, e favoritismo, usado em proveito exclusivo da família, da continuação do seu bom nome e da legitimidade do prestígio familiar. Para além da acumulação de fortuna para benefício próprio, os membros destas grandes famílias empresariais realizam obras de impacto suprafamiliar como sejam fábricas, instituições de ajuda, obras de caridade, alfabetização, que conferem

115 Grandes famílias 109 uma certa estatura moral à sua riqueza. 64 Através das actividades de benemerência, feitas em nome de uma moral cristã, o recurso às relações de parentesco passa a ser também um valor universalista: algo que é bom para mais pessoas do que simplesmente para os membros da família. As actividades de intervenção social, empenhada e intensa, que os membros destas famílias têm levado a cabo ao longo das gerações, torna visível e legítima, a sua posição de destaque na vida social do país, aumentando o seu prestígio e reforçando a sua inserção numa elite nacional. 64 Um dos fundadores e actual dirigente do Banco Alimentar Contra a Fome, é precisamente um membro destas Grandes famílias ligadas a empresas que se dedica actualmente, em exclusividade a esta actividade de benemerência.

116 CAPÍTULO III SÓCIOS E PARENTES

117 1. Sócios e parentes: dois jogos no mesmo tabuleiro A história destas famílias empresariais constrói-se de forma entretecida com a das suas empresas. Os acontecimentos marcantes dos ciclos de vida familiar e as fases evolutivas da empresa têm implicações em ambas as esferas de acção, condicionando as respectivas dinâmicas. As relações entre a família e a empresa não se circunscrevem, portanto, simplesmente a relações de titularidade de capital. É neste sentido que Maria das Dores Guerreiro sugere que as empresas familiares envolvem também uma constante articulação entre a actividade empresarial e a vida doméstica, as trajectórias profissionais e a formação de disposições empresariais, a transmissão de recursos e a sucessão de dirigentes, o enlaçamento das estratégias familiares e profissionais (Guerreiro 1996: 54). No entanto, os diversos interesses, valores e âmbitos de acção quotidiana que se inter-relacionam inevitavelmente no âmbito de um negócio familiar, são frequentemente concebidos como opostos pelas pessoas que nele estão envolvidas. Ao levantar esta questão não pretendo reavivar fronteiras cristalizadas entre o que David Schneider chamou de o quarteto do parentesco, do económico, da política e da religião na teoria antropológica (1987: 181), alertando a comunidade antropológica para os problemas que a sua separação causou no desenvolvimento da disciplina. Antes, chamo a atenção para este facto porque, neste caso etnográfico particular, a separação entre o domínio da economia e o do parentesco é um problema émico fundamental e que está sempre presente. Analisemos o que dizem os altos dirigentes destes grupos económicos de base familiar:

118 114 Sócios e parentes Agora, na era da globalização, já não há empresas familiares. Não se pode estar à espera das pessoas da família para os quadros da empresa. Se eles forem competentes, então entrarão para lugares médios e, depois de provas dadas, podem chegar a assumir lugares de topo, mas o verdadeiro critério é a competência e não a família (MF). No mundo actual, as empresas não podem manter o controlo familiar. No GES está hoje representado um largo número de interesses que transcende a tradicional noção de grupo familiar. Isto sem prejuízo da representação da família no órgão de comando superior do grupo (CR). É preferível ter uma gestão profissional do que uma gestão familiar. O envolvimento da família deve ser um referencial de valores, mas a sua gestão deve ser profissional (Pq). A ideia de que os negócios não devem ser misturadas com as relações familiares é geralmente aceite em Portugal, aplicando-se aos parentes o provérbio amigos, amigos, negócios à parte. Os dois tipos de relações que negócios e relações familiares implicam são muito diferentes nas suas essências interesse económico e substância comum, respectivamente, mas também nos seus objectivos lucro e solidariedade desinteressada, respectivamente. A defesa deste ideal de separação entre negócios e relações de grande proximidade, tais como o parentesco e a amizade, é obviamente contraditória com o elevado número de empresas familiares que encontramos em Portugal. Neste sentido, parece-me interessante analisar a contradição entre este discurso ideal e as práticas familiares a que os indivíduos recorrem para produzir os seus descendentes como futuros gestores e líderes das empresas que possuem. Este é um dos aspectos que tornam as famílias ligadas a grupos empresariais um universo de análise interessante, pois condensa as tensões decorrentes da interpenetração e confronto entre relações familiares e económicas, que tornam particularmente visíveis as tensões entre uma lógica individualista da sociedade moderna e uma lógica grupal associada às sociedades pré-modernas (cf. Schneider 1987, Marcus 1992, Bestard 1998 e Piscitelli 1999).

119 Sócios e parentes 115 No âmbito das pequenas empresas familiares, esta sobreposição não se torna um problema difícil de ultrapassar. Aliás, como mostrou Maria das Dores Guerreiro para o caso português, o papel da família nas pequenas empresas é ainda hoje avaliado de uma forma positiva. O êxito e o empenho individual num projecto de independência económica bem sucedido são elementos tão valorizados simbolicamente que esbatem as possíveis implicações da referida contradição ideal. Porém, no domínio das grandes empresas, essa sobreposição causa uma certa forma de desconforto cognitivo entre as famílias abastadas da elite. Esta ideia de contradição, associada à imbricação de relações familiares e económicas, foi verificada em vários contextos da sociedade capitalista ocidental onde se fizeram investigações sobre grupos análogos. Vejam-se em particular os casos dos Estados Unidos (Marcus 1992), Itália (Yanagisako 1995), e Brasil (Piscitelli 1999). A necessidade de diluir a importância da sobreposição entre negócios e família é bem visível na frequência com que, ao longo destes três anos, várias pessoas das famílias com quem falei fizeram afirmações do tipo: somos uma empresa familiar, mas funcionamos a um nível estritamente profissional e os elementos da família que cá trabalham têm uma preparação profissional adequada (D). A adopção dos critérios hegemónicos do mundo dos negócios por parte daqueles que controlam os destinos destas empresas, liga-se à necessidade de tornar publicamente evidente que, no âmbito da empresa, os interesses desta têm prioridade sobre os da família. Claro que é importante ter elementos da família à frente da empresa, para dar o exemplo e garantir a marca da família. Mas têm de ser bons e mostrar resultados, se não mais vale porem um bom gestor à frente da empresa e receber os dividendos ao fim do ano. Das duas uma: ou trabalham, ou põem lá quem trabalhe. Se não fizerem nem uma nem outra coisa, ficam sem o lugar na presidência, sem os dividendos e sem a empresa (BB). A forma como este empresário fala da participação de membros da família nas actividades de gestão das suas empresas familiares é bastante reveladora da ambiguidade gerada pela sobreposição das esferas do trabalho e das relações

120 116 Sócios e parentes familiares. Por um lado, defende a importância de manter membros da família à frente dos destinos da empresa, de forma a não perderem o seu controlo. Por outro lado, afirma a exigência de excelentes qualidades profissionais às pessoas que gerem a empresa, de forma a garantir os bons resultados económicos desta. Mas, para além destas questões, surge uma outra, que considero ser mais relevante: o facto de alguns dos membros da família poderem assegurar as duas condições fundamentais a pertença familiar e a competência permite garantir, da forma que todos consideram mais prestigiante, que a continuidade do projecto empresarial da família se efective sob o comando dos seus proprietários. Há, portanto, uma clara divisão entre a propriedade das empresas e a sua gestão, sintetizada de uma forma muito clara por um dos entrevistados: A família é accionista e nada mais do que isso. O que há, são elementos da família que desempenham funções na companhia, mas pelo seu mérito próprio e não por serem membros da família (EA). Os próprios membros destas famílias dedicam tempo e atenção à reflexão sobre esta questão das empresas familiares, pois ela coloca-lhes problemas de ordem prática, teórica e simbólica. Aliás, é interessante notar que os líderes destas empresas estão, em geral, bem informados sobre a literatura respeitante às empresas familiares. Em diversas entrevistas os meus interlocutores orientaram a conversa para determinadas teorias sobre empresas familiares e para alguns autores que são especialistas conhecidos sobre este tema, revelando assim que é um assunto que os preocupa, sobre o qual estão bem informados. Simultaneamente, testavam os meus conhecimentos. Nos anos setenta, alguns teóricos defendiam que as empresas têm que ser geridas com uma direcção objectiva, logo, não familiar. Depois da febre dos take-overs dos anos oitenta, uma outra teoria veio rebater a anterior e dizer que uma empresa familiar tem a vantagem de permitir consolidar e estabilizar a sua estrutura, defendendo-a dos raiders e dos quadros superiores que procuram maximizar ganhos pela liquidação de empresas, através da venda dos seus activos. Se houver uma tradição familiar, a probabilidade de uma organização ser destruída é incomparavelmente menor (Rs).

121 Sócios e parentes 117 Quando vemos um grande economista como o Jacques Attali escrever sobre um grande homem como o Warbourg (não sei se conhece o livro mas se não tiver eu posso arranjar-lho) e o vemos defender a possibilidade de grandes empresas familiares vingarem durante séculos na alta finança mundial, percebemos que se deitaram por terra décadas de teoria económica que defendia a incompatibilidade de termos dos negócios familiares (AE). A demonstração sistemática e quotidiana da competência profissional dos familiares que gerem estas grandes empresas, verificável nos êxitos económicos destas, é o argumento prático que permite aos membros da família superar a contradição ideal entre os dois universos de acção e legitimar o seu estatuto de profissionais competentes. Esta contradição ideal entre sócios e parentes faz parte do modelo cultural ocidental que separa família e trabalho, parentesco e economia, bem visível na forma como a ciência económica tem relegado as empresas familiares para segundo plano, em resultado da imposição de um modelo hegemónico de uma racionalidade económica de mercado (cf. Weber 1984 e Goody 1996). O carácter aparentemente paradoxal que sobressai, de múltiplas maneiras, da forma como estes empresários se vêm a si próprios como sócios e parentes, como administradores e herdeiros é um dos pontos que torna interessante a análise destas situações organizacionais. Analisar a relação entre trabalho e família, no âmbito deste universo empírico, mostra que a empresa une o que o ideal separa. A empresa familiar, enquanto projecto comum a diversos elementos de uma mesma família, ao longo de várias gerações, produz um sentimento de colectivo. A união de esforços que assegura a continuidade assenta, sobretudo, no valor simbólico do sucesso económico e social, ultrapassando-se, assim, o ideal cultural que separa trabalho e família. A análise desta contradição é um bom terreno para pensar os valores que estão por trás das práticas destas grandes famílias empresariais, pois estas nem sempre correspondem à transposição desses valores. Apesar de os membros destas famílias defenderem idealmente a separação da família e do trabalho, os seus percursos de vida e a história das suas empresas

122 118 Sócios e parentes revelam uma total interligação e inseparabilidade entre ambos. Em primeiro lugar, a grande família só existe, na forma como se apresenta no presente momento, devido à existência da empresa familiar como resultado do trabalho do fundador e dos seus descendentes que deram continuidade aos seus projectos. Por outro lado, essa indissociabilidade é revelada no facto de um número significativo de membros destas famílias trabalharem nas empresas que possuem e no facto de recrutarem para os seus quadros aqueles que entram para a família por casamento. As grandes empresas familiares mostram que as relações familiares não podem ser analisadas como se as relações de parentesco fossem dissociáveis das suas implicações económicas, políticas e das diversas esferas de acção em que se movem os indivíduos que nelas estão envolvidos. 65 Neste sentido, tornam-se um 65 Esta pluridimensionalidade das relações de parentesco tem vindo a ser defendida na antropologia pelo menos desde o trabalho de Evans-Pritchard sobre os Nuer (1940), onde o autor mostra a existência de uma estreita inter-relação entre as relações de parentesco e o contexto económico em que se movem os sujeitos. Mais tarde, Edmund Leach, no seu trabalho sobre Pul Elyia, defende que o parentesco é simplesmente um código para falar de relações económicas (Leach 1971: ). No âmbito das sociedades camponesas, a discussão das relações de parentesco e sobretudo das escolhas matrimoniais estrutura-se, também, em redor das estratégias de maximização dos recursos (vejam-se por exemplo os trabalhos de Brian O Neill 1984, José Sobral sd, Martine Segalén 1985 e Françoise Heritier 1981). Todavia, é curioso notar que só bem mais tarde estas reflexões foram incorporadas nos estudos sobre contextos urbanos, onde esta relação é também muito evidente (como mostram, por exemplo, os trabalhos de Comas et al 1987, Lima 1992 e Cordeiro 1997). No entanto, apesar de a antropologia chamar a atenção para esta questão há tanto tempo, a economia e a sociologia continuaram a pensá-las, até há pouco, como duas esferas de acção social separadas. Exemplos claros desta situação são, por exemplo, a forma subalterna como a teoria económica tem considerado as empresas familiares e a institucionalização da separação família e trabalho nos sub-ramos disciplinares da sociologia da família e da sociologia do trabalho. Apesar da demonstração evidente, feita por vários autores destas disciplinas, da necessidade de abandonar essa separação (cf. Almeida 1985, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997) ela parece continuar bem viva no senso comum. Foi no âmbito da reflexão sobre a construção das categorias de género e, sobretudo, no quadro dos chamados estudos feministas, que se produziram as críticas mais eficazes à separação das esferas do trabalho e da família. Estas vieram demostrar que os padrões e os tipos de trabalho desempenhados pelas mulheres sempre foram fortemente influenciados pela posição que estas ocupam no seio da família e pelos papéis que lhes são culturalmente atribuídos (cf. Yanagisako e Collier 1991 e Holiday e Ram 1993) os estudos feministas revelam a falsidade da separação entre trabalho e família. Não se pode compreender a integração dos indivíduos no mercado de trabalho sem conhecer o seu universo familiar, as suas necessidades, as estratégias que cada unidade familiar desenvolve para maximizar os seus recursos incluindo aqui os recursos materiais, culturais, educacionais e valores sociais.

123 Sócios e parentes 119 contexto particularmente interessante para a reflexão antropológica sobre o parentesco e as relações familiares nas sociedades ocidentais, pois força-nos a ler através das fronteiras (Yanagisako e Delaney 1995: 12). Apoiemo-nos, de novo, num exemplo empírico. A vida das empresas sempre fez parte integrante da vida familiar dos Orey. Esta presença é visível em várias dimensões: Mesmo aos Domingos, o pai e o avô iam ao escritório abrir o correio e ver se havia alguma novidade. Depois voltavam os dois de comboio para a quinta para almoçar com toda a família. A avó ia lá ter sozinha, de carro, com o motorista (IR). A quinta onde viviam era um espaço de família, mas muitas vezes era invadido pela empresa, unificando espacialmente as relações entre indivíduos que também nas suas acções, decisões e vivências quotidianas não separavam negócios e família. Usar o tempo de estar em casa para dar continuidade aos afazeres da empresa é uma prática comum, aprendida desde pequeninos a observar o pai que todos os dias trazia uns dossiers com ele para estudar em casa (ZL). No Verão, quando os dias eram grandes e toda a família dava uma volta pela quinta, o passeio era aproveitado para introduzir os rapazes mais velhos nalguns negócios. O pai ia mais à frente connosco explicando, pedindo opiniões sobre o assunto, ensinando-nos a ver todas as possibilidades. Acho que foi nesses passeios que aprendemos a discutir sempre com os outros elementos da família as decisões a tomar (ZL). De acordo com o que contam os descendentes dos vários ramos D Orey, as decisões dos negócios mais arriscados eram tomadas com o apoio de toda família e não apenas dos elementos que participavam nos negócios. Antes de Ruy D Orey investir na compra dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo que viriam a tornar-se uma das principais empresas da família reuniu com a mulher e os filhos mais velhos. Disse-lhes que ia fazer um negócio arriscado. Podiam ganhar muito, mas também podiam ter que ir lavar pratos. Todos o apoiaram. Correram o risco, porque confiavam nele. Tudo correu bem, mas o risco foi assumido por todos. O

124 120 Sócios e parentes envolvimento da família na vida desta empresa foi inscrito de uma forma indelével nos nomes dados aos primeiros lugres construídos na Companhia de Pescas de Viana: Santa Manuela e São Rui até o cardeal patriarca dizia que só o Vasco D Orey é que podia descobrir um São Rui (IR). São muitos os descendentes dos fundadores que trabalham, ou trabalharam, na Orey Antunes, tentando manter o espírito de família e de unidade que fez com que se referissem à empresa como a Casa. Esta empresa funciona, de facto, como uma casa de família, como um lugar onde se encontram muitos parentes, como uma instituição que reforça os laços entre diversos membros da grande família. Um exemplo muito curioso desta situação era repetido todos os dias de manhã, no comboio das nove horas e vinte minutos que efectua a ligação de Cascais ao Cais do Sodré, onde iam entrando ao longo das estações os muitos elementos da família que moravam na linha. Reuniam-se todos no combóio e depois saiam juntos no Cais do Sodré chegando sempre juntos e ao mesmo tempo à Casa, para começar a trabalhar no seu projecto económico comum. A tentativa de integrar todos os membros da família nos negócios correspondia a um esforço para envolver todos nesse projecto familiar. O caso de IR é particularmente revelador desta estratégia de inclusão dos parentes nas empresas da família. O meu marido era médico mas, como tinha muito bom senso, foi nomeado para o Conselho Fiscal da Companhia de Pescas de Viana do Castelo pelo marido da minha irmã, que já lá trabalhava (IR). A mera posse de acções não constitui um elo de ligação tão forte como a participação efectiva na vida das empresas. É o envolvimento no dia-a-dia das empresas e a mística que rodeia as memórias sobre os feitos empresariais dos seus antepassados comuns que os incentiva a dar continuidade ao esforço do seus antecessores e que cria um sentimento da empresa como um projecto familiar colectivo. Envolver os diversos membros da família nesta teia de práticas e significados torna-se, assim, um passo importante para a continuidade da empresa.

125 Sócios e parentes 121 Uma outra dimensão onde se revela claramente o envolvimento e a sobreposição entre as relações e os espaços familiares e as relações e os espaços dos negócios é a frequência com que os estrangeiros que tinham negócios com a Orey Antunes iam jantar à quinta, sempre que estavam em Lisboa. Eram jantares de muita cerimónia e só os filhos mais velhos é que podiam jantar à mesa. Havia muito boa relação entre as famílias que faziam negócios juntas durante muito tempo. Estes convívios em família eram prova disso (Br). Levar as relações comerciais para o espaço privado da casa cria uma maior proximidade entre os parceiros, selando a confiança entre eles numa base de intimidade e de familiaridade. Estender este tipo de relações ao longo de linhas de várias gerações de famílias empresariais exponencia largamente a eficácia da transposição do modelo familiar, reforçando linhas de identificação e solidariedades. Neste caso particular são os próprios gestores que usam a família como elemento fundamental para as relações empresariais. A história da constituição e do crescimento destas grandes empresas familiares mostra que as decisões empresariais não se baseiam apenas numa racionalidade estritamente económica. Neste âmbito empresarial, as relações familiares são construídas sobre uma rede de interesses que unem pessoas em volta de um projecto comum, que não é exclusivamente económico. Todavia, não podemos deixar de salientar que o contrário também é verdade. Neste universo social os valores familiares como as maneiras de viver em família e de promover a sua continuação através de gerações sucessivas são elementos cruciais para a definição das formas através das quais o grupo económico se organiza e garante a sua continuidade no tempo. Entre a elite empresarial, as relações familiares são acrescidas de uma série de conteúdos só aparentemente exteriores à família, como sejam a organização do trabalho, o poder económico e a propriedade. Consequentemente, as relações económicas que unem estes indivíduos são mediadas pelas suas relações familiares e pela sua posição na família. A motivação, o empenho pessoal e profissional que os indivíduos investem nas suas empresas familiares é constantemente complexificado por considerações não financeiras, como sejam o estatuto, a

126 122 Sócios e parentes posição genealógica e a reputação de cada indivíduo na família. É, portanto, difícil definir onde umas começam e outras acabam. As relações entre as pessoas são marcadas pela sobreposição dos conteúdos da relação, resultantes da coexistência de vários contextos de interacção entre as mesmas pessoas. Estamos, assim, perante aquilo que Gluckman denominou multiplexidade (multiplexity): um contexto relacional onde existe uma justaposição dos campos de actividade que modelam as relações sociais (Gluckman 1973: 19 e 164). Através destes múltiplos processos que se sobrepõem constantemente, há um certo sentido em que a família e a empresa passam a constituir apenas uma unidade e não duas. As empresas familiares criam um universo de acção duplo e indivisível onde família e empresa são indissociáveis, na medida em que constituem dimensões de acção e domínios de significado predominantes e sempre presentes na vida destes indivíduos. Os negócios familiares retiram, efectivamente, uma força particular da família, dos seus símbolos e da identidade partilhada pelos seus membros. Quando os gestores são parentes, as suas tradições, valores e prioridades emergem de uma fonte comum: a sua identidade familiar. O crescimento e o sucesso de uma empresa familiar dependem largamente da existência de uma família cooperante que partilhe uma lealdade ao projecto colectivo. Quando se juntam os ingredientes do profissionalismo com os da solidariedade familiar, produz-se uma situação ideal para a continuidade das empresas nas mãos da família. À medida que uma família empresarial avança geracionalmente, que a empresa se desenvolve e o seu poder cresce, a família vai aumentando a sua riqueza e o seu prestígio. Com o passar do tempo, a sua fama e boa reputação consolida-se na comunidade, legitimando o seu estatuto de riqueza antiga. A sucessão geracional e o tempo longo do exercício das suas actividades empresariais permite-lhe enraizar a identidade social no passado, numa tradição familiar que a distingue dos novos ricos e impõe a sua longa experiência herdada dos seus antepassados como mais-valia e garantia do seu bom desempenho.

127 Sócios e parentes 123 A inscrição da actividade empresarial na temporalidade de uma grande família é um importante elemento simbólico na legitimação da riqueza como factor de prestígio social. Evidenciar a continuidade da família como uma linha de excelência é uma forma de mostrar a sua perenidade, como família tradicionalmente ligada aos negócios há várias gerações, onde as memórias familiares se misturam com as memórias empresariais. Apesar de todas as pessoas com que falei se referirem com grande respeito aos grandes empresários que recentemente se impuseram na cena económica portuguesa, estes são colocados num patamar social bem distinto do ocupado pelas famílias antigas a que aqueles pertencem. A diferença que este enraizamento no passado promove entre estas famílias empresariais e os novos empresários de sucesso demonstra que o capital económico só produz uma pertença à elite quando está associado a um capital simbólico e cultural, como bem mostra Bourdieu no seu trabalho sobre a produção da distinção (cf. Bourdieu 1979). O uso de metáforas economicistas como a noção de capitais sociais proposta por Bourdieu (1972 e 1980a) ou de dividendos do parentesco avançada por Peter Schweitzer (1999) ganha operacionalidade no âmbito deste contexto social, o que revela a inseparabilidade entre a família e os negócios. Ao fazerem referência a acções que não se limitam à procura de interesses económicos e que vão para além dos pressupostos da teoria da escolha racional, estas metáforas adquirem um importante valor heurístico. Enquanto os benefícios económicos são os dividendos mais visíveis das empresas familiares, estas produzem também dividendos a nível das relações de parentesco que unem os seus proprietários e que se tornam evidentes num amplo pacote que inclui a coesão do grande universo familiar, um elevado prestígio social, detenção de poder e uma identidade colectiva. 2. A empresa familiar como elemento do parentesco

128 124 Sócios e parentes No capítulo anterior referi que a família Mendes Godinho perdeu recentemente o controlo das suas empresas. No entanto, os descendentes de Manuel Mendes Godinho têm-se mantido razoavelmente unidos, continuando a identificar-se como sendo uma família, ideia que reiteram quando apresentam a sua genealogia. A maior parte dos membros insistem sobre esse aspecto, mesmo em relação àqueles com quem dizem não manter relações. Desde sempre que as pessoas da minha família se dão mal. É uma família muito grande. São muitos ramos e todos com muitos filhos, pelo que as quotas que cada um tem da empresa hoje em dia, representam percentagens muito reduzidas. O que tem mantido as pessoas da família ligadas é a permanente expectativa de negócios, pois o grupo, apesar de falido, detém um património que representa um bom valor e ninguém quer prescindir disso (Ml). Se não fosse o facto de o projecto empresarial se manter, há muito que as pessoas desta família teriam perdido o contacto umas com as outras. Mesmo que as suas relações pessoais não sejam as melhores, a qualidade de sócios comum a todos eles faz com que se mantenham ainda parentes activos. Em última instância, é a própria existência da empresa que cria as condições para a continuidade dos laços familiares activos no universo familiar mais vasto. Esta situação é ainda mais visível nas famílias em que o êxito das empresas se prolonga no tempo. Tal como as casas de família, os nomes e todos os objectos que passam de geração em geração, as empresas familiares constituem, também, uma parte central dos bens comuns, que simbolizam a família e que garantem a continuidade da sua identidade. Como consequência da participação num projecto empresarial comum, entre os accionistas existem parentes muito afastados. A existência da empresa une-os. Dá continuidade à grande família, à sua existência enquanto grupo de partilha de uma substância, de um património, que se torna fundamental preservar. Quer se queira quer não, a herança das acções da empresa implica a transmissão das relações com os outros familiares da grande família, que também

129 Sócios e parentes 125 herdaram acções. A transmissão da grande empresa, ao trazer consigo a continuidade dessas relações, transmite também a grande família. É neste sentido que defendo que a empresa se torna uma componente central da identidade da família, promovendo um desejo de continuidade, demonstrado pelos sinais exteriores de perpetuação do seu sucesso. À medida que o êxito do negócio familiar se mantém e aumenta, torna-se o elemento que garante a continuidade das relações entre os parentes e da unidade simbólica dos diversos ramos da família. 66 À medida que as empresas crescem em tamanho e as famílias proliferam em gerações, torna-se cada vez mais difícil manter a intensidade do convívio dentro da grande família. Devido à multiplicação dos seus ramos e sub-ramos, eles passam a ser constituídos por um grande grupo de pessoas, algumas delas tão distantes que, se não fosse pelo facto de partilharem algo em comum, provavelmente nem se conheceriam. Nas gerações actuais, as relações genealógicas entre os membros de cada um destes ramos são na realidade muito distantes, como nos mostram alguns dos mapas genealógicos destas famílias (ver, a título de exemplo os mapas genealógicos nº 1, 3 e 7). Apesar dos laços comuns, por relação aos antepassados fundadores, o sentido da empresa familiar, enquanto projecto unido é, quando se entra na quarta geração, atenuado pelo facto de a titularidade ser dividida entre primos e segundos primos e não exclusivamente entre um grupo de irmãos, que partilham em geral uma maior intimidade. Um exemplo claro deste processo de crescimento e afastamento genealógico é o da família Pinto Basto (ver mapa genealógico nº 7). Actualmente, encontram-se à frente dos destinos das empresas membros da sexta e da sétima 66 Encontramos um processo muito semelhante entre as famílias da aristocracia rural portuguesa, para quem as terras e as casas que possuem simbolizam e reproduzem o prestígio das famílias e a legitimidade da sua posição social. Para dar conta da importância da utilização de um bem patrimonial no processo de construção da identidade social das grandes famílias, José Manuel Sobral cita Tocqueville: Nos povos em que a lei das sucessões é baseada no direito do primogénito, as propriedades passam, em geral, intactas de geração para geração. Daí resulta que o espírito de família se materializa, de certo modo, na terra. A família representa a terra e a terra representa a família. A terra perpetua o nome da família, as suas origens, a sua glória as suas virtudes. É um testemunho indestrutível do passado e um penhor precioso do futuro (Tocqueville in Sobral sd: 270).

130 126 Sócios e parentes geração de descendentes do fundador, que se esforçam por promover o contacto entre pessoas que, apesar de serem parentes, estão muito afastadas genealogicamente e alguns deles nem se conhecem. Testemunhei sempre uma clara tendência para que os vários ramos de descendentes do fundador do negócio mantenham as suas relações vivas ao longo das gerações. As pessoas partilham uma ligação a uma coisa comum que não querem perder: a empresa familiar, a sua fonte de riqueza e prestígio social. O grupo económico de base familiar adquire, assim, o estatuto de um património de grande valor simbólico. Sendo uma parte importante da identidade do grupo familiar, a empresa torna-se a própria razão de ser da família, pois esta é sentida como um grupo de partilha, o que garante a sua continuidade no tempo. Sendo uma parte integrante da família, a empresa torna-se a reificação da sua unidade, o símbolo da sua identidade. Em última análise, nestas grandes famílias empresariais é a empresa que possuem em comum, e não os laços de parentesco que partilham, que garante a existência de relações activas entre parentes afastados. Os ramos da família que se afastaram dos negócios são perdidos para a família. Mas, inversamente, os mais afastados podem tornar-se muito próximos se se mantiverem envolvidos nos negócios. Tal como mostram os casos das famílias Mendes Godinho, Pinto Basto e Espírito Santo, a existência e continuidade da empresa é a razão primordial para a manutenção de relações efectivas de parentesco no âmbito do universo total dos descendentes daquele que é considerado o fundador da família, por ter fundado o elemento que simboliza a sua identidade: a empresa. 67 Vejamos um novo exemplo. O grupo que actualmente se identifica como sendo a Família Espírito Santo está dividido em quatro grandes ramos, agora na sexta geração, e é composto por cerca de quatrocentas e cinquenta pessoas (ver mapa genealógico nº 1). Apesar de a maior parte dos membros da família 67 Segundo Bourdieu, para compreender o verdadeiro significado das relações de parentesco vividas pelos sujeitos sociais, deve distinguir-se entre parentes ideais e parentes efectivos (cf. 1980). Peter Worsley propõe uma distinção semelhante entre ligações de interacção as relações efectivas existentes entre parentes e ligações reconhecidas aquelas cuja existência é reconhecida mas raramente estimulada (1983: 172).

131 Sócios e parentes 127 conseguir reconstruir as suas extensas e complexas relações genealógicas de cor, nem todos, sobretudo os que não se encontram regularmente na empresa, mantêm contactos regulares entre si. Raramente se encontram todos. Não é vulgar juntarmo-nos todos. Só nos funerais. Nos casamentos é complicado porque é tanta gente que não dá. O último que me lembro foi o da VS em 1996 ou 1997 que convidou toda a gente. Também nos juntámos todos na reabertura da Fundação. Aí sim, foi com muita alegria, muito satisfeitos por o museu abrir de novo e tão bonito. Estavam toda a família e muitos responsáveis estrangeiros (MJB). A importância da grande família como metáfora de legitimação de uma identidade colectiva verifica-se no facto de ela não desaparecer pela simples ausência de contacto. Desde que seja lembrado pelos seus membros, o universo alargado de parentesco continua a existir, mesmo quando não é tornado efectivo. No âmbito destas grandes famílias empresariais que traçam as suas raízes até aos fundadores da empresa, os diferentes ramos da família e os seus numerosos primos poderão não ser tão íntimos como os pais foram. Se calhar apenas alguns deles se mantêm como participantes activos nos negócios. Até podem viver longe e só se juntarem ocasionalmente em reuniões do clã. Mas, se a história da família for rememorada através do culto dos seus antepassados e dos símbolos que constituem a sua identidade as casas, os apelidos e nomes, as fotografias, as histórias, as jóias, as empresas, ela fornece uma sólida rede de relações de parentesco que pode ser reactivada sempre que necessário, pois mesmo quando é pouco usada é lembrada pelos membros do universo familiar. Tive um exemplo da possibilidade de iniciar um processo de reactivação de redes de solidariedade familiar através de um simples convite para um jantar importante. FM organizou um jantar para um amigo estrangeiro a quem quer apresentar Rs, presidente de um poderoso grupo económico português. FM não via, nem tinha qualquer contacto com Rs, há cerca de dezassete anos. Quando telefonou para fazer o convite a este último, não o encontrou, pois estava no estrangeiro em trabalho, pelo que FM deixou recado à secretária. Como dois dias antes do jantar Rs ainda não tinha dado resposta, FM telefonou de novo e foi

132 128 Sócios e parentes com alguma preocupação que percebe que a secretária não tinha dado o recado a Rs, um homem extremamente ocupado. No entanto, apesar de já ter um outro compromisso social marcado para o mesmo dia do jantar, do qual só teve conhecimento dois dias antes, Rs desmarcou o primeiro compromisso e acedeu ao convite de FM, cuja mãe era muito amiga de sua mãe. Dentro deste grupo social, uma das principais razões para a constituição de grandes formações familiares o seu elemento agregador é o facto de os parentes serem sócios e não tanto os valores culturais constituintes da família como o sangue, os afectos e um passado comum ou o facto de partilharem uma fortuna familiar, como defendia George Marcus, para quem não há nenhuma outra razão para os descendentes manterem relações que não sejam exclusivamente casuais, a não ser o facto de a sua fortuna colectiva reificada se intrometer constantemente nas suas relações mútuas e nas suas vidas individuais (Marcus 1992: 56). Os inúmeros casos de famílias ricas que consumiram as suas fortunas e, em virtude de terem perdido o interesse na continuidade dos seus símbolos identitários comuns, deixaram de ser grandes famílias da sociedade portuguesa, mostram-nos que a mera existência da fortuna não produz laços eficazes de união familiar. Em Portugal, é a própria empresa que promove nestas famílias um certo sentimento dinástico, no sentido atribuído por George Marcus. No contexto destas famílias empresariais, o que sustenta as relações activas entre os parentes não são exclusivamente os laços de parentesco que têm em comum. Eles estão ligados por uma identidade familiar continuada compostas por elementos diversos e entre os quais se encontram os elos de sucessão a lugares na empresa e pela propriedade de acções em empresas. O êxito da empresa familiar fornece as bases para a continuidade da família como grupo de identificação e, consequentemente, é um factor importante para que os elementos das futuras

133 Sócios e parentes 129 gerações da família se mantenham unidos através de um modelo de cooperação intra-familiar. O facto de a empresa ser propriedade da família e ser, simultaneamente, um projecto colectivo dos seus membros garante a continuação tanto do universo alargado da família como da empresa. Trabalhar conjuntamente para a grande empresa familiar une os membros destas grandes famílias, mantendo-os como uma unidade social identificável. No entanto, sem a transmissão do ideal que institui a empresa familiar como um projecto económico comum, a sua reprodução seria impossível. Neste sentido, não podemos deixar de relembrar os casos em que, apesar de existirem todos estes elementos, a família não conseguiu reproduzir-se, não construiu essa formação família/empresa que se perpetua num tempo, mais ou menos longo, da história económica e social do nosso país. Já referi o caso de Cupertino de Miranda, que não conseguiu manter o seu próspero negócio nas mãos da família. Todavia, mesmo dentro dos casos de sucesso na transmissão do negócio ao longo de gerações familiares, encontramos esta situação entre os descendentes do primogénito do fundador do Banco Espírito Santo. Tal como Cupertino de Miranda, J não conseguiu produzir sucessores que continuassem o seu importante papel no desenvolvimento do grupo económico familiar. J era o primeiro filho varão do fundador da Casa Bancária da qual se tornou presidente, após a morte de seu pai. No entanto a sua presidência não durou muito tempo. Em resultado de um casamento infeliz, J separou-se em 1931, casando-se posteriormente com uma irmã da sua cunhada (irmã da mulher do seu irmão R). Para tentar evitar o escândalo social provocado por esta situação na conservadora sociedade lisboeta do início dos anos trinta, foi viver para Paris com a sua nova mulher. A presidência do banco foi então assumida pelo seu irmão R, que até então ocupava o cargo de Secretário Geral. O afastamento de J dos lugares cimeiros dos destinos do banco apesar de se ter mantido sempre em contacto diário com os irmãos, que ficaram à frente do banco foi também acompanhado pela separação da partilha da vida quotidiana

134 130 Sócios e parentes com os seus filhos, que ficaram a residir em Lisboa. Esta é, talvez, a causa onde podemos enraizar a incapacidade que este extraordinário homem de negócios teve de tornar os seus dois filhos em sucessores potenciais. O seu filho mais velho, JMa, foi um elemento importante no conselho de administração do banco, era vice-presidente, até à nacionalização em Março de Depois da família ter perdido, nessa data, o controlo dos destinos do banco, JMa afastou-se, não tendo actualmente qualquer participação, nem profissional nem accionista, nas actividades do grupo. Os seus filhos não têm, nem nunca tiveram qualquer participação no grupo. O seu irmão Dt foi responsável pelo sector de obras do Banco até à nacionalização. Tal como o irmão, Dt não teve qualquer participação activa na reconstrução do grupo Espírito Santo no estrangeiro nem no regresso do grupo à vida económica portuguesa. No entanto, mantém uma posição accionista no grupo e participa nas reuniões anuais da Holding familiar. Um dos seus filhos trabalha numa empresa de grupo, num lugar de pouco destaque, pois não tem qualificações académicas que lhe permitam subir mais na estrutura altamente competitiva que o grupo tem na sua organização actual. Curiosamente, hoje em dia, é a filha mais nova de J que mantém a posição accionista de maior relevo deste grupo de irmãos. Não só recebeu por herança de seu pai uma destacada posição accionista como, por morte do seu marido, que também trabalhava no Grupo, ficou com as suas acções, aumentando assim a sua posição. Actualmente, um dos seus filhos e o marido da sua filha mais velha ocupam cargos destacados em empresas do grupo, o que confere, no conjunto, uma posição importante a este ramo familiar dentro da estrutura global do Grupo Espírito Santo. Como se conclui destes exemplos, a existência das grandes empresas familiares durante várias gerações contribui para a preservação de relações regulares entre membros genealogicamente distantes do universo alargado de parentesco ao qual pertence a sua família. Esta base especial sobre a qual se tornam activas as relações de parentesco neste grupo social, faz com que elas sejam de um tipo, de uma densidade e de uma natureza particular, dando origem a

135 Sócios e parentes 131 uma situação relativamente invulgar na sociedade portuguesa: a existência de um universo familiar alargado, onde parentes afastados partilham símbolos de identificação social e mantêm relações próximas a par de um projecto económico e familiar colectivo que querem continuar e fazer progredir. A união à volta de um projecto económico comum, a propriedade familiar da empresa e as tentativas para manter indivisa a propriedade familiar constituem uma base sólida para a consciente manutenção de relações familiares activas num universo alargado de parentesco: o das grandes famílias. Nas grandes famílias empresariais portuguesas a empresa torna-se, portanto, um importante símbolo cultural do parentesco. A sua eficácia na manutenção da união entre os familiares accionistas, atribui-lhe um poder mais efectivo na manutenção das relações de parentesco do que a própria partilha de uma substância comum o sangue que é um dos símbolos culturais mais importantes da família em Portugal. 68 Neste sentido de símbolo de uma consubstancialidade familiar partilhada, o sangue torna-se uma questão importante, pois a centralidade simbólica do sangue para estas famílias é indissociável do ideal segundo o qual a identidade social dos seus membros está enraizada nos símbolos identitários de uma unidade familiar que vem desde um 68 Já Pitt-Rivers, no seu texto de referência sobre o parentesco, The Kith and the Kin, defendia também a importância do sangue como veículo do princípio de parecença entre aqueles que estão ligados biologicamente, fornecendo sempre as mais fortes manifestações do que eu gostaria de chamar de consubstancialidade: o elo primário entre indivíduos na extensão do seu self. Isto é, o material de que é feito o parentesco (1973: 92). Sobre este assunto veja-se também Pina Cabral 1991: No seu trabalho sobre o parentesco americano, David Schneider mostrou que a importância do sangue neste sistema cultural não decorria de ser um facto biológico. No sistema cultural de parentesco americano o sangue é um símbolo central, pois é através dele que se cria um campo social de solidariedade difusa e duradoura. A importância deste símbolo do parentesco estende-se a toda a cultura Ocidental onde, como sugere, o sangue é mais denso do que a água (cf. Schneider 1987: ). Com base numa análise histórica dos símbolos do parentesco europeu, Joan Bestard mostra que o sistema de parentesco cognático ocidental se desenvolveu numa estreita relação com a ideia do sangue como suporte das relações de filiação. Os textos da antiguidade clássica veiculam este tipo de concepção hematogénica, segundo a qual a transmissão do sangue, entendido como o elemento que proporciona aos indivíduos a sua identidade social, é levada a cabo exclusivamente através de linhas masculinas: ser do mesmo sangue é descender do mesmo pai (Bestard 1998: ).

136 132 Sócios e parentes tempo passado, num culto da família antiga. Este enraizamento torna a reivindicação da hereditariedade da continuidade do sangue dos membros da família um processo importante na legitimação da sua identidade social. Entre estas famílias que detêm um vasto e valioso património para transmitir às gerações futuras, verificamos uma clara tendência para a perpetuação linear da identidade, isto é, para as gerações mais novas continuarem a reclamar sinais de pertença e de identificação social com os antepassados que fundaram ou deram continuidade a esses elementos valiosos que constituem o seu património familiar. Esta pode ser uma das razões que permitem explicar a frequência com que encontramos, neste contexto social, relações de parentesco relativamente densas e coesas, unindo pessoas dos diversos ramos da família. Como afirma Bourdieu os ricos têm de ter grandes famílias, pois eles têm interesses específicos na manutenção das relações com a sua família extensa (1994: 196). A riqueza não exclusivamente material do património familiar confere um elemento importante à constituição destas identidades continuadas ao longo de linhas familiares. Não quero dizer que, nestas famílias, as relações entre todos os indivíduos sejam excepcionalmente afáveis ou desprovidas de conflitos, pois os casos de desentendimentos existem como em qualquer outra. Porém, o facto de os membros destas famílias se darem bem ou mal é sociologicamente irrelevante. O que importa é o facto de terem sido capazes de produzir mecanismos que lhes permitem existir enquanto grande família, superando possíveis desentendimentos entre os seus membros, em nome da garantia da continuidade do projecto e dos elementos identitários que mantêm em comum. O sucesso das empresas que estudei e a notável duração da sua existência como propriedade de uma mesma família mostram a eficácia deste mecanismo. A forma como as grandes famílias associadas a grandes empresas promovem o desenvolvimento de tipos de relações familiares particularmente duradouras leva-me a defender que estamos perante um fenómeno social relevante, que pode contribuir para a produção de novos olhares sobre a importância das relações de parentesco nas sociedades ocidentais. Na verdade, para além de grandes empresas familiares de Lisboa, estas grandes organizações

137 Sócios e parentes 133 económicas de base familiar encontram-se noutros contextos sociais. Tal é, por exemplo, o caso das casas agrícolas da elite agrária portuguesa, onde as famílias dos grandes lavradores se constituem em empresa, por forma a evitar dividir o património, o que lhe retiraria a rentabilidade (cf. Sobral 1993 e Vasconcelos 1995). Mas podemos, também, encontrá-los em Itália (cf. Yanagisako 1991 e 1997), no Brasil (cf. Piscitelli 1999) ou no Japão (cf. Hamabata 1990). Posso, portanto, concluir que, sempre que um projecto económico possuído e gerido por membros de uma família se consegue reproduzir ao longo de várias décadas com um sucesso considerável, tanto a nível económico como social, promove a manutenção de laços de parentesco em universos familiares muito amplos e abre o caminho à existência de grandes famílias dinásticas. 3. Empresa e Família simbolizam-se mutuamente Passar às gerações seguintes a noção da importância do património familiar como propriedade comum e da sua continuidade como projecto colectivo, é fundamental para o sucesso da preservação das fontes de identificação e prestígio familiares e das relações entre os seus membros. Desde que nasci sabia que ia ser banqueiro. Fui educado para isso. Foi nessa direcção que eu sempre estudei. Desde pequeno o meu pai pegava em mim e no meu irmão e íamos dar passeios a pé pela quinta com o avô e o tio A. Eles conversavam das coisas do banco, das estratégias a seguir, como reagir a tal eventualidade... E nós ouvíamos. Nunca conversei sobre isto com os meus primos, mas tenho a certeza que eles, tal como nós, que desde que nascemos

138 134 Sócios e parentes fomos metidos dentro do espírito da empresa, sabem que, agora que temos posições importantes no grupo, o nosso dever não é só para connosco e para com as nossas famílias. É para com os pais e para com os avós. Eu sei sempre que foi o pai que me ensinou tudo e que lhe devo sempre retribuir com o meu melhor (MF). Como salienta MF, de uma forma particularmente clara, o que se recebe deve ser posteriormente transmitido pois só assim se poderá continuar, na legitimidade conferida pelo tempo longo, o património familiar. Mas, para que a herança seja transmitida, é preciso acreditar neste projecto familiar colectivo. A ideia de uma substância e de uma identidade comuns, que devem ser continuadas através das gerações, é fundamental para o êxito de um projecto de sucessão, cujo verdadeiro sentido é passar o património à geração seguinte e não usufruir do trabalho das gerações anteriores. É de acordo com esta ideia que podemos compreender o sentimento transmitido por MF, quando afirma não se sentir o verdadeiro proprietário da empresa que herdará, mas sim o responsável pela sua continuidade. A transmissão da noção de projecto familiar tem associada a si uma espécie de relação contratual entre as gerações destas famílias. Receber o património familiar é uma responsabilidade, é receber também o dever de assegurar a sua passagem para as gerações vindouras: é ter chegado a sua vez de garantir que a família sobreviva, numa aparente imortalidade do seu património material e simbólico. Esta ideia de projecto familiar é frequentemente salientada por diversas pessoas de todas as famílias que entrevistei. No entanto, cada membro da família deposita nesse projecto colectivo diferentes expectativas e atribui-lhe diferentes significados e diferentes investimentos pessoais. Na verdade, nem todos os elementos da família querem, ou podem, estar directa e activamente envolvidos na empresa familiar. Eu nunca tive muito jeito para os negócios. Fui presidente da Assembleia Geral durante seis anos. Mas o meu grande contributo para a família é dado agora com o livro. É isso que eu sei fazer. E é com isso que eu posso contribuir para a família (CB).

139 Sócios e parentes 135 Alguns decidiram desde o princípio que esta não era uma opção razoável para eles e assumiram outros papéis na vida familiar. Outros, que gostariam de ter um papel activo na empresa, não puderam tê-lo devido à sua pertença de género. APL: Quem são os accionistas do Grupo? Me: Todos da família. Todos temos acções. APL: Todos como? De todos os ramos? Me: Todos os netos e bisnetos do Avô JoMa. Mas os manos e os primos é que governam tudo. Eles é que sabem. Depois, nas Assembleias, dizem-nos: olhem, este ano, os lucros são tanto e dividem por todos. APL: Então as senhoras nunca participam directamente? Me: (risos) Não, isso é tudo com eles. Nós só vamos às Assembleias e eles explicam o que vão fazer. A importância que cada pessoa atribui ao projecto económico colectivo da sua família varia. Esta variação depende, em primeiro lugar, do facto de possuírem, ou não, acções da empresa e do facto de nela trabalharem ou não. Para aqueles que são apenas accionistas, a continuidade dos negócios poderá ser mais ou menos importante para a manutenção dos seus rendimentos e, é claro, do seu estatuto social. Para os que nela trabalham, é também óbvia a importância do sucesso da empresa para a estabilidade e eventual melhoria dos seus rendimentos económicos e prestígio social. Porém, mesmo para aqueles que não possuem acções, nem trabalham na empresa, o sucesso da empresa é vital, devido ao que Maria das Dores Guerreiro denominou de alastramento do efeito de propriedade (Guerreiro 1996: 186). Através deste conceito, a autora salienta que, para além dos titulares formais do capital, existe um conjunto mais alargado de parentes cujo modo de vida e estatuto social dependem da continuidade da associação da família à empresa e dos rendimentos desta. O facto de a sua identidade social estar associada à da família através de símbolos bem visíveis como, por exemplo, o apelido que usam e o estilo de vida que praticam garante-lhes um prestígio social considerável. Mesmo para os membros não accionistas, a associação da empresa à família torna-se, também, algo importante.

140 136 Sócios e parentes Apesar de a família e a empresa não terem a mesma importância e significado para todos os indivíduos que nela estão envolvidos, a maior parte dos membros da família investe algo na continuidade e desenvolvimento da empresa, pois esperam dela receber, mais tarde ou mais cedo, alguns dividendos, sejam eles de ordem económica ou social. No âmbito deste universo de famílias, a empresa é um património valorizado por todos, pelo que se torna num importante símbolo da identidade familiar. O êxito da empresa é um estímulo necessário à continuidade das relações familiares. A própria natureza do regime de propriedade das empresas familiares, 69 reproduz a ligação das várias gerações à empresa. Família e empresa são, portanto, duas unidades sociais totalmente imbricadas. A densidade desta torna-se evidente tanto na análise das trajectórias da vida destas pessoas como das narrativas da história da empresa produzidas pelos seus proprietários. As narrativas da família e as narrativas da empresa misturam-se e relacionam-se de tal forma entre si, que é difícil distingui-las. Tal é particularmente visível no facto de, nas grandes famílias empresariais, os rituais colectivos mais importantes para a manutenção da unidade dos elementos da família ao longo do tempo e das gerações serem os rituais da própria empresa como as Assembleias Gerais e não os da família como o Natal, os casamentos e os aniversários. Veja-se o exemplo da família Espírito Santo. Os rituais familiares como o Natal, a Páscoa, casamentos ou aniversários são celebrados dentro de cada um dos cinco ramos da família. Mesmo dentro de cada um destes ramos, que já atingem uma dimensão muito grande (ver mapa genealógico nº 1), começam a institucionalizar-se as celebrações dentro do grupo dos descendentes dos filhos. O Natal é sempre em casa da tia M. Este ano éramos p rái uns cento e cinquenta. Só da minha geração somos vinte e cinco netos. Como nós já temos filhos casados e alguns já têm netos somos uma multidão. São quatro gerações que se juntam (MJB). 69 Marcus refere ter encontrado uma situação muito semelhante nas grandes famílias empresarias do Texas (1992: 297). Sobre este assunto veja-se também Gersick et al. 1997: 165.

141 Sócios e parentes 137 O Natal era sempre em casa da avó. Mesmo depois de a avó ter morrido continuámos a fazer lá na casa, que passou para o tio MR. Agora é a tia Nn que faz, porque o tio morreu. Somos muitos, é uma grande confusão, mas é assim mesmo. É a família (Ma). Os rituais institucionais das diversas empresas do grupo têm vindo, a pouco e pouco, a assumir o papel de momentos de união de toda a família. Dantes as Senhoras não participavam, mas, agora, desde que fizemos a holding familiar, elas vão sempre. A reunião anual da holding é uma assembleia totalmente informal onde se informam as pessoas do que se está a passar, mas tem o caracter de reunião de toda a família. As Senhoras ouvem os projectos e é uma forma de estarem informadas e de participarem na vida das empresas que também são delas (D). Mesmo nos casos das famílias menos unidas, os rituais da empresa revelamse fundamentais para a reunião de toda a grande família: A minha família não se junta no Natal, nem em casamentos. Talvez apenas nos funerais (...) mas os grandes rituais familiares são as assembleias gerais da sociedade familiar. Aí juntamo-nos todos (ZM). Também no caso da família Espírito Santo, a Assembleia Geral da holding do Grupo, que se realiza anualmente em Lausanne, na Suíça, é um momento privilegiado para os membros da família alargada de todos os descendentes de José Maria Espírito Santo e Silva, que possuem acções do Grupo, se reunirem. A reunião anual do Grupo (...) é a verdadeira reunião da família, e a única onde vão as Senhoras. É muito social e vão os partners todos. É aí que se decidem as linhas estratégicas do Grupo e se dá conta do que se tem passado (MF). Actualmente só há mais um tipo de acontecimento que reúne estes grandes universos familiares: os funerais. Em Dezembro de 1997, morreu inesperadamente uma senhora com quem eu tive muito contacto ao longo do processo da minha investigação. Não fui ao funeral, por desconhecimento, mas fui à missa de sétimo dia, celebrada na Igreja Matriz de Cascais. A missa iniciava-

142 138 Sócios e parentes se às oito horas da noite, depois de acabarem as missas normais de todos os dias. Eis um extracto das minhas notas tiradas na altura: Era uma missa privada, facto que só percebi quando estava fora da igreja à espera que a missa anterior acabasse, juntamente com os diversos membros da família que iam chegando e ficavam por ali. Uma senhora que saía disse bem alto e em tom de reprovação "agora é a missa dos ricos". Só nesse momento me dei conta do que se passava à minha volta. Da distinção que irradiava daquele grupo de pessoas vestidas de preto, com um ar sério e consternado. Dentro da igreja, onde contei aproximadamente quinhentas pessoas, a distinção continuou. Aquela missa em nada se parecia com qualquer missa de sétimo dia que tivesse presenciado antes. Era uma missa só por alma de Ma. O celebrante era o "padre da família" o padre que os casou a todos, que os confessa e com quem fizeram a primeira comunhão; o padre que diz a missa na capela da família na quinta, por alturas da Páscoa e do Natal. A homilia foi dirigida exclusivamente a Ma e à sua família. Foi tudo tão diferente das missas de sétimo dia em que o padre apenas lê uma lista de nomes por alma de quem se reza naquela missa! Os irmãos da Ma falaram, os seus sobrinhos e primos cantaram e no final a mãe e os irmãos estavam na sacristia a receber os pêsames de todos os presentes que formaram uma longa fila para o fazer; eu estava quase no final da fila e demorei cerca de quarenta e cinco minutos para chegar à sacristia (Diário de Campo 6/1/98). Este exemplo ilustra particularmente bem a ideia que tenho vindo a defender. As quase quinhentas pessoas da família de Ma que assistiram à sua missa de sétimo dia constituíam o seu universo familiar alargado, toda a grande família a que pertencia. Muitas das pessoas que ali se reuniram não se viam à muito tempo e não estavam todas juntas há quase quatro anos desde a inauguração da Fundação da família. No entanto, a consciência de pertença ao grupo familiar, de que são uma família, reactiva-se sempre que necessário. Ou seja, as relações entre as pessoas que compõem o universo familiar alargado não precisam de estar sempre activadas para que exista um forte sentimento de pertença a esse grupo. Desde que os elementos de construção identitária os liguem a um determinado conjunto de pessoas, que partilham os mesmos

143 Sócios e parentes 139 símbolos de identificação, um conjunto de memórias familiares e de antepassados em comum, os sentimentos de pertença ao grupo existirão, permitindo assim que as relações entre aqueles que o constituem se activem a qualquer momento. As empresas da família fazem parte de um conjunto de elementos que simbolizam a família e que garantem a continuidade da sua unidade. Os possíveis efeitos centrífugos e desmembradores dos interesses individuais, que crescem à medida que a família aumenta, são minimizados pelo investimento que estes indivíduos fazem no culto da família, na criação de uma identificação colectiva, enraizada num passado comum que se quer continuar no futuro, na transmissão da memória dos sentimentos de uniões passadas que enformam estas identidades familiares continuadas. Há, no entanto, outro tipo de estratégias que são usadas para manter o controlo familiar sobre a grande empresa, cuja propriedade é muitas vezes partilhada com um conjunto muito vasto de pequenos accionistas anónimos e investidores exteriores. A mais frequente e uma das mais eficazes consiste em alterar o quadro jurídico de actuação do grupo. A SOFIP é a holding familiar que fundámos em 1987, com o objectivo de concentrar os investimentos fora das áreas tradicionais e, sobretudo, para garantir a estabilidade accionista das nossas empresas durante as passagens de acções entre as gerações, de forma a prevenir eventuais tentativas de venda de acções para fora da família (Jg). A transformação dos detentores particulares e individuais das grandes empresas familiares em diferentes sociedades holding, faz com que passem a ser estas que controlam a maioria de acções das diversas empresas do grupo e facilita soluções tendentes a evitar a venda de acções a elementos exteriores à família As vantagens jurídico-fiscais das sociedades holding são grandes. Por um lado, as sociedades holding permitem controlar um vasto conjunto de sociedades através de montantes modestos de capital. Para tal basta controlar a maioria do capital da holding que as detém. Por outro lado, a sociedade holding permite aumentar as possibilidades de actuação das empresas no mercado bolsista, pois a holding é representante de todas

144 140 Sócios e parentes Desta forma, garantem a continuidade da propriedade da empresa no universo da família e impedem a sua desagregação. Na família Mendes Godinho é tradição oferecer duas acções da empresa aos jovens da família na altura em que fazem dezoito anos. É uma maneira simbólica de ritualizar a passagem destes jovens para um estádio da vida familiar em que podem passar a ter uma participação activa na vida e nos destinos das empresas que detêm. Com estas duas acções podem começar a participar nas assembleias gerais do grupo familiarizando-se, assim, gradualmente com as questões mais importantes das empresas. É difícil dizer quando é que comecei a participar na vida das empresas, porque tenho a sensação que sempre participei. Quando era miúdo passava os dias na fábrica. Era lá que brincávamos a maior parte do tempo. Em casa falava-se das fábricas, quando acompanhava o meu pai era para tratar assuntos das fábricas. Está a ver? Eu cresci nesses espaços, nessas andanças, nesses problemas. Por isso é difícil distinguir. Mas um marco importante foi quando recebi as minhas primeiras acções, quando fiz dezoito anos. Nesse altura comecei a ir às Assembleias Gerais. Podemos dizer que foi nessa altura que passei a fazer parte. Pelo menos formalmente. Mas foi um momento importante. Criou-se um vínculo, uma responsabilidade. Quando os meus filhos fizeram dezoito anos, também lhes dei duas acções para eles passarem a fazer formalmente parte das empresas. Apesar de a situação agora ser bastante diferente, achei que era importante (ZM). Estamos, portanto, perante um conjunto de acções desenvolvidas pela família com o objectivo de fazer com que a empresa continue nas suas mãos e, simultaneamente, perante um conjunto de estratégias levadas a cabo pela empresa no mesmo sentido. Porém, este exemplo chama também a nossa atenção para um novo elemento. No âmbito deste contexto social, há um nível em que podemos as empresas do grupo que individualmente poderiam não ter a dimensão mínima para se apresentarem perante o mercado bolsista (cf. Reizinho sd).

145 Sócios e parentes 141 considerar que é a empresa que herda os membros da família e não apenas o contrário. Isto é, a estrutura organizativa e o significado particular destas empresas precisam de ser alimentados com novos membros da família, para que a empresa possa continuar a ser um projecto familiar colectivamente investido. É preciso, portanto, inscrever os membros mais jovens da família na vida da empresa, de forma a que não possam desvincular-se dela facilmente. Neste sentido, antes de os mais jovens herdarem posições accionistas mais ou menos importantes, é necessário criar neles vínculos que os prendam à continuidade do projecto empresarial da família, é importante fazer com que eles se queiram tornar os continuadores desse projecto. A forma eficaz da transmissão desses valores e sentimentos no seio da (con)vivência familiar, ao longo do processo de crescimento pelo qual os jovens se tornam adultos, consolida o sentimento de que aquele projecto é dos descendentes, fortalecendo, simultaneamente, as amarras com que a empresa os envolverá. 71 Em suma, estamos perante processos empresariais continuados, onde a importância dos indivíduos que neles desempenham funções vitais em cada geração se esbate nos interesses colectivos do grupo. Pela permanente referência aos antepassados fundadores e pela omnipresença das gerações futuras, os herdeiros, os continuadores do projecto colectivo, tornam-se membros do grupo familiar que os transcende. Para além de serem herdeiras de um poderoso império 71 No âmbito da literatura antropológica clássica encontramos uma situação semelhante na descrição feita por Leach sobre a forma como em Pul Elyia é a terra que herda os homens e não o contrário. Nesta comunidade pertencente ao actual Sri Lanka, os homens devem ter o melhor desempenho possível nas terras que trabalham, porque, caso contrário, perderão o direito de nelas trabalhar. Mais, é o trabalho árduo e dedicado que investem nas terras que permitirá garantir que os seus filhos venham, mais tarde, a ter acesso a elas. Tal como entre as grandes empresas familiares portuguesas, Leach demonstra como em Pul Elyia, a continuidade de um projecto familiar depende, sobretudo, do sucesso da transmissão desse ideal à geração seguinte (cf. Leach 1961).

146 142 Sócios e parentes empresarial, as gerações mais novas destas famílias são herdadas pela empresa, enredadas no dever de assumirem a sua continuidade, da qual obviamente beneficiarão, mas ficando obrigados a assegurar a sua integridade, expansão e transmissão às gerações futuras. Mas, tal como a empresa é um importante símbolo da família, também a família é um símbolo fundamental da empresa. De facto, nestas grandes empresas a família é, de uma forma recorrente, o modelo organizacional de muitas das esferas de acção empresarial. A sua estética, os seus códigos e os seus valores enformam o ambiente simbólico escolhido para desenvolver as suas actividades, contribuindo para a criação de um sentimento de ubiquidade da família. Entre as grandes famílias da elite empresarial lisboeta existe um verdadeiro culto da família que é expresso em variadíssimas situações: na utilização da família como ambiente ideal de referência para toda uma série de outras esferas de acção; na importância que é dada às transmissões dos nomes; na forma como se transmitem cuidadosamente as histórias, as tradições e os bens familiares; nas intensas trocas diárias de entre-ajudas ou de simples conversa e na forma como a família permeia, a diversos níveis, a existência destes indivíduos. É também neste sentido que devemos entender as situações em que o espaço privado da casa é perpassado pelas actividades das empresas em jantares, caçadas na quinta e pequenas recepções oferecidas a clientes. Estes acontecimentos fazem parte de um certo tipo de negócios que, sendo feitos ao mais alto nível, assentam numa relação de confiança entre cavalheiros, adquirindo maior legitimidade se forem levadas à cabo num ambiente familiar. Os clientes gostam de se sentir em família. Quando vem um cliente importante faz-se um jantar na casa da família. São as mulheres que criam o ambiente e tratam de tudo. Petit commité, low profile e ambiente familiar, com o gosto da nossa casa. Fazem tudo de uma maneira muito simples: em casa, sem alarde nem publicidade. Aliás você nunca ouve falar dessas coisas. As pessoas que têm fortunas são mais velhas, têm princípios e são educadas, pelo que não precisam de grandes ostentações nem de publicidades, que só estragam os

147 Sócios e parentes 143 negócios. Por isso, os grandes negócios fazem-se em casa, à mesa do jantar, com as mulheres (Ma). Dávamos muitas caçadas na quinta. Iam reis, príncipes, embaixadores e ministros. Às vezes os filhos protestavam e o pai respondia Oh filha, tem que ser, é pelo país (Me). Outro espaço onde podemos encontrar uma associação muito clara entre estas duas esferas de acção é nas próprias sedes das empresas. De uma maneira geral, as sedes destas grandes empresas familiares são decoradas com um ambiente bastante familiar, com móveis de estilo, semelhantes aos de casa, chamando a atenção para o facto de as empresas estarem inequivocamente ligadas à família. Da mesma forma, os quadros nas paredes representando os diversos membros da família que passaram pela administração da empresa não só lembram o vínculo da empresa à família como também a sua antiguidade. Só para dar um exemplo, a sala de reuniões da sede da E. Pinto Basto tem as quatro paredes cobertas de quadros a óleo representando, por ordem cronológica, todos os membros da família que passaram pela direcção da empresa, desde o seu fundador em 1847, até aos dias de hoje. Em síntese, no universo das grandes empresas familiares, a família é algo mais que a rede de parentes que a constitui. A família torna-se um modelo ideal de acção, amplamente visível em múltiplas dimensões do universo dos negócios. Um conjunto de valores que se devem seguir e que expressam uma ideia de confiança e honestidade que, por sua vez, é transposta do universo das solidariedades primárias para o mundo dos negócios. É isto que distingue positivamente estes grupos económicos daqueles que se formaram recentemente. Estas famílias, que enraízam a sua identidade num tempo longo, que desde há muito gerem os destinos de grandes empresas, afirmam a sua diferença, a sua distinção (no sentido bourdieusiano do termo), no facto de se basearem em valores tradicionais e em princípios que estão associados ao nome da sua família, à legitimidade que lhes é garantida pela antiguidade da sua boa e correcta performance. Nas palavras de Buchholz e Crane

148 144 Sócios e parentes As empresas familiares estão a capitalizar a viragem a que assistimos actualmente no Ocidente para um regresso aos valores do altruísmo e da família, através do uso que fazem das tradições para demonstrarem a qualidade, competência e harmonia dos seus serviços (Buchholz e Crane 1989: 26).

149 CAPÍTULO IV A CONTINUIDADE COMO IDEAL DA FAMÍLIA E DO GRUPO SOCIAL

150 1. De que falamos quando falamos de família Já salientei a importância das questões ligadas à família, tanto no processo de formação de indivíduos como continuadores de um projecto familiar e empresarial, como na produção como do projecto colectivo que os une. No entanto, a complexidade destas questões é, neste caso, ampliada pela multiplicidade de significados atribuídos pelos meus entrevistados ao próprio conceito de família. De que falamos quando falamos de família é uma pergunta que temos de nos fazer, constantemente, num contexto social onde é difícil estabelecer uma fronteira clara para o grupo a que os sujeitos chamam a minha família. Família é aqui, como em tantos outros contextos sociais, um conceito émico e polissémico (Pina Cabral 1991: e Bestard 1998: 38-40), pelo que pode ser usado, pelas mesmas pessoas, para definir coisas distintas em circunstâncias diferentes e, por pessoas diferentes que, nas mesmas situações, podem atribuir-lhe significados distintos. De facto, ao usar a expressão a minha família, os sujeitos tanto podem estar a referir-se à família conjugal, como a um ramo da família, como ainda a todo o universo familiar, que inclui os diversos ramos da família. Esta polissemia tornou-se muito evidente no decurso das entrevistas que realizei. Vejamos alguns exemplos. No decorrer da mesma entrevista, Ma utilizou o conceito de família de três maneiras distintas querendo, com cada uma delas, referir-se a grupos de pessoas a que atribui significados diferentes, que encerram práticas relacionais particulares na sua intensidade, na sua frequência ou mesmo no tipo de relação estabelecida:

151 148 O ideal de continuidade da família 1) Este mês é a minha família que está na casa de Sta. M. diz, referindo-se ao seu sub-ramo do universo total de descendentes do fundador do grupo familiar em que se insere, constituído pelos pais, irmãos, cunhados e sobrinhos; Quadro 2 Primeira definição de família usada por Ma 2) É a nossa casa de família referindo-se à casa comprada pelo avô e que agora é dos descendentes deste: seus pais, tios, irmãos, primos, sobrinhos e segundos primos (ver Quadro 3); 3) Na reabertura da Fundação estávamos todos. Foi muito bonito, a família ali toda reunida referindo-se aqui a todos os descendentes dos diversos ramos do bisavô, o fundador da empresa da família: todos os descendentes do seu bisavô paterno (ver Quadro 4)

152 Quadro 3: Segunda definição de família usada por Ma O ideal de continuidade da família 149

153 150 O ideal de continuidade da família Quadro 4: terceira definição de família usada por Ma

154 O ideal de continuidade da família 151 Pelo facto de Ma não ser casada, a polissemia que atribuí ao conceito de família não se complexifica, ainda mais, com a sua própria família conjugal um nível normalmente presente de forma muito preponderante nos discursos e nas práticas diárias dos indivíduos, como podemos ver através de alguns depoimentos: Quando nasceram os meus filhos, a mãe quis que nós fossemos viver para a casa da família uma grande vivenda onde vive a avó num piso, três filhos em cada um dos outros pisos independentes. Outro filho vive numa casa recuperada nos jardins da moradia. Mas eu não quis. Quero viver só com a minha família (MP). Quadro 5 Quarta definição de família Por vezes, estas várias dimensões da família aparecem misturadas e sobrepostas ao longo do mesmo depoimento, como mostra o exemplo seguinte. O Natal é sempre passado em casa da minha mãe. Vai só a nossa família os pais, os irmãos, cunhados e sobrinhos. (...) No Verão vou para o Algarve, mas só com a minha família marido e filhos. Uma vez por ano reunimos a família toda num pic-nic os membros do seu ramo da família (...) Só uma vez é que se juntou a família toda num grande almoço na Estufa Fria. Éramos mais de mil pessoas (Br).

155 152 O ideal de continuidade da família A definição do grupo de pessoas específico a que um indivíduo se refere quando fala da sua família, depende do contexto em que se utiliza a expressão e da pessoa que o faz, como se vê nos exemplos acima apresentados. Não há, portanto, uma definição única para o conceito de família, pelo que, quando o utilizamos, será necessário fazer referência à pessoa que o utiliza e ao conjunto particular de pessoas a que se refere. Abner Cohen encontrou uma situação semelhante no seu trabalho sobre a Serra Leoa. Para resolver esta sobreposição conceptual, sugere que o tamanho real da família é limitado em termos práticos pelas obrigações de reciprocidade que uma pessoa desenvolve e mantém na selecção dos seus parentes (Cohen 1981: 64-5). Através desta proposta, Cohen defende a ideia de que o significado de família para uma determinada pessoa, num dado momento, é algo relativo às suas relações pessoais e à sua inserção numa determinada rede de parentesco. Nas grandes empresas familiares portuguesas, esta polissemia do conceito de família decorre também do carácter relativo da sua definição. Nos casos que estudei, os limites da família são definidos pelo universo dos descendentes do fundador da empresa, aqueles que mantêm algum tipo de interesse na sua perpetuação. Para facilitar a descrição utilizo a expressão grande família o universo familiar alargado para designar o conjunto de parentes dos diversos ramos que descendem do casal fundador. Proponho a utilização deste termo para evitar o conceito de família extensa que, tal como foi definido por Peter Laslett e Richard Wall, está fortemente ligado à ideia de unidades de residência (Laslett e Wall 1978: ix). Por universo alargado da família, entendo o conjunto de famílias conjugais e descendentes originado pelo fundador da empresa e da grande família. Apesar de cada uma das famílias conjugais ter uma residência separada, independente e autónoma, a densidade das relações que mantêm entre si contribui para que este conjunto de famílias conjugais continue a existir enquanto um grupo de parentesco, que partilha colectivamente elementos de constituição identitária. Neste âmbito alargado de reivindicação da pertença familiar, a família tem uma identidade colectiva e uma existência enquanto grupo. O que define os seus

156 O ideal de continuidade da família 153 membros é o facto de descenderem todos de um mesmo antepassado e de terem também em comum o apelido e a empresa. No entanto, o significado mais frequentemente atribuído à noção de família é aquele que faz sentido nas práticas quotidianas dos indivíduos: é o que se atribui ao nível da família conjugal e parental, normalmente coincidente com a unidade doméstica a que pertencem e onde a residência comum revela e promove a partilha das vivências mais significativas para os indivíduos. Se aceitarmos a sugestão de não considerar a família como uma unidade definida a priori, mas sim um domínio de relações sociais criado no interior de solidariedades primárias (cf. Pina Cabral 1993: 42), é mais fácil entender as várias esferas de inclusão familiar que estes indivíduos usam nos seus discursos e praticam no seu dia a dia. A noção de famílias como comunidades de prática, proposta por Jean Lave e Paul Wenger revela-se, de novo, útil para a presente reflexão. De acordo com estes autores, as famílias constituem um sistema de actividades onde os membros têm uma compreensão comum das suas acções e das implicações que estas têm na sua vida pessoal e na da comunidade (Lave e Wenger 1991: 98). Neste sentido, a importância da família nas múltiplas configurações que esta pode assumir no âmbito das grandes famílias empresariais, encontra-se nas práticas estabelecidas diariamente entre indivíduos que se consideram pertencer a uma mesma unidade de identificação familiar. A construção e a continuidade das unidades sociais a que chamei universos familiares alargados dependem da agencialidade dos sujeitos. É pela acção dinâmica e empreendedora do fundador da empresa que os seus descendentes podem ou não vir a investir na continuidade das suas relações. Nos casos em que o fundador consegue transmitir à geração seguinte a noção da importância de continuar o seu projecto económico, mantendo a sua propriedade e gestão no seio da família, a continuidade efectiva das relações entre os seus descendentes é viabilizada pelas práticas de gestão deste complexo património de relações familiares. Mais ainda, é pela acção dos membros da família, por um julgamento colectivo sobre a forma

157 154 O ideal de continuidade da família e a importância da participação de cada um no projecto familiar, que os indivíduos se tornam membros mais ou menos prestigiados e influentes na família. O valor ideal da importância da família e da preservação dos laços que cria não perdura se não tiver uma correspondência nas práticas dos indivíduos. Estas grandes famílias, cuja continuidade se enraíza na memória de um passado colectivamente partilhado, que constituem identidades continuadas ao longo de diversas gerações, alimentam-se, portanto, das práticas quotidianas dos membros que as constituem. Estes processos de produção de identidade familiar que se desenvolvem simultaneamente em diferentes níveis de acção levantam uma questão, a meu ver, muito interessante. Estas grandes famílias empresariais lisboetas contêm diversos níveis de comunidade de práticas e de significado identitário que se enfatizam e diluem de acordo com os contextos de actuação dos indivíduos. Neste sentido, são estruturas familiares polissémicas e polimórficas que fazem lembrar a definição, hoje em dia clássica na literatura antropológica, dos sistemas de organização segmentares (cf. Evans-Pritchard 1977 e Kuper 1988). A grande família a que os indivíduos pertencem é o universo em relação ao qual fazem uma reivindicação identitária mais ampla, no âmbito das relações de parentesco. Quotidianamente, porém, nem sempre se reivindica a pertença à grande família, na medida em que as relações de intersubjectividade que se estabelecem no âmbito da família conjugal ou num sub-ramo da família, tendem a ser mais densas e com uma presença mais marcante na vida dos indivíduos.

158 O ideal de continuidade da família Somos uma família antiga: a importância do passado na organização do presente e na construção do futuro O passado foi sempre um tema muito presente na minha educação (...) Era o peso da história acumulada e o seu tremendo determinismo. A originalidade, como dizia o meu avô, ( ) é apenas uma falha de memória (Aldrich 1996: 5). Vimos como as relações familiares e o seu universo de acção são centrais, tanto para a vida quotidiana dos membros destas grandes famílias empresariais, como para a construção dos projectos de vida. As diversas dimensões que constituem a identidade dos indivíduos pessoal, familiar, social e profissional enraízam-se profundamente na história da família e apoiam-se no que poderíamos chamar um culto da família. A construção de uma identidade colectiva que une os membros destas famílias fortemente dinásticas apoia-se na elaboração e transmissão de lendas familiares 72, bem como na exibição de símbolos que atestam a antiguidade e a unidade das várias gerações da família como as casas, os brasões, as quintas, os nomes, os apelidos, as jóias. Estas lendas familiares e os símbolos da família tornam-se, então, poderosos factores de consolidação de sentimentos de pertença dos indivíduos ao grupo familiar, contribuindo, simultaneamente, para o fortalecimento dos laços que os unem. Este conjunto de lendas, tradições, objectos e valores centrais ao projecto de identificação familiar vai-se tornando cada vez mais importante no tempo longo 72 A expressão lendas familiares foi proposta por João Pina Cabral para descrever as narrativas mitificadas que as pessoas constróem sobre a história da sua família evocando pessoas, coisas, acontecimentos e lugares que foram importantes em algum momento para a produção de elementos identitários do grupo (cf. Pina Cabral 1995).

159 156 O ideal de continuidade da família da existência da família. Ancorar a identidade no passado torna-se, então, um elemento de legitimação da imagem pública de famílias antigas, por oposição aos novos ricos que não têm, ainda, um passado familiar que legitime a sua riqueza como base de uma posição social de prestígio. 73 A distinção característica destas famílias resulta da antiguidade e da acumulação de prestígio e riqueza através das gerações, não podendo ser construída rapidamente: é necessário ser suficientemente poderoso para escapar à erosão do tempo. Neste sentido, a atitude conservadora, de que falei anteriormente, é também uma maneira de escapar à erosão do tempo, fazendo da continuidade um elemento do projecto identitário. Os processos de produção identitária nestas grandes famílias são, portanto, inseparáveis de uma reivindicação hereditária. Por isso, o sangue enquanto substância familiar partilhada torna-se um elemento simbólico fundamental, pois é através dele que os indivíduos legitimam a pertença à unidade social que lhes confere identidade: a grande família que lhes dá o nome. Vale a pena lembrar a opinião lapidar de Alexandre Herculano: O valor de uma aristocracia de sangue assenta n uma ordem d ideias estranha ao direito; procede do sentimento e todas as sociedades teem a sua poesia. A esta luz nada é mais legitimo que a fidalguia, porque o senso esthetico é uma condição natural da sociedade civil e o orgulho pelas tradições gloriosas do passado constitui uma parte da sua vida moral (cit. in Mello Breyner 1934). O património acumulado ao longo das gerações não se pode medir simplesmente em termos financeiros e materiais, pois inclui também memória, prestígio, relações e capital simbólico. A riqueza que as famílias possuem colectivamente tem, portanto, um significado social que ultrapassa largamente o seu valor económico. A qualidade de vida e a existência quotidiana das pessoas destas famílias demonstram a multidimensionalidade da sua fortuna, onde se conjugam dimensões económicas, culturais, sociais e académicas. Pela ideia de 73 Nelson Aldrich Jr, um destacado membro das denominadas old money families americanas editou um interessante livro autobiográfico, onde reflecte precisamente sobre a importância simbólica, mas com inúmeras consequências práticas, desta distinção entre riqueza antiga e novos ricos (cf. Aldrich 1996).

160 O ideal de continuidade da família 157 permanência que instala, o tempo longo alia-se à ideia de projecto familiar transmitido pelos sucessivos portadores do mesmo nome de família, dos habitantes dos mesmos espaços, dos consumidores das mesmas relações, dos que partilham as mesmas memórias. No âmbito das grandes empresas familiares, os projectos de vida dos donos são constantemente associados ao projecto familiar. 74 O longo processo de acumulação de várias formas de capital que constituem o património familiar, é um percurso fundamental para que as famílias conjugais deixem de ser exclusivamente uma família e se tornem um grupo familiar, cuja existência e significado se prolongam pelas gerações. Ancorar a identidade do grupo familiar no passado torna-se, portanto, um passo decisivo, na medida em que essa referência temporal evoca uma dimensão de existência social que faz parte do seu presente. Garantir a continuidade da unidade familiar e a passagem dos elementos materiais e simbólicos que a representam será, então, um objectivo dos elementos das sucessivas gerações da família. Uma vez que a identidade social dos indivíduos se constrói com base na sua pertença a um grupo familiar, a genealogia torna-se um importante elemento de legitimação. É neste sentido que podemos compreender o facto de a maior parte das pessoas com quem falei ao longo da investigação conseguir reproduzir de cor extensas e complexas genealogias das suas famílias que constituem uma matriz fundamental para os densos relatos que sobre estas elaboram. 75 Veja-se, a título de exemplo, como os mapas genealógicos 1, 3 e 7 revelam aquilo que Segalen e Michelat denominam por paixão pela genealogia (cf. Segalen e Michelat 1991). Este vasto conhecimento não é fruto de um acaso, mas o resultado de um cuidado e permanente investimento colectivo no conhecimento genealógico e na 74 Utilizo a noção de projecto familiar no sentido proposto por Jaber Gubrium. De acordo com este autor, família é um projecto no sentido em que aqueles que nele estão envolvidos trabalham para fazer com que esse envolvimento seja classificado enquanto membros da mesma família ou grupo de parentesco. (...) Enquanto projecto a família cria um sentimento de identidade colectiva, no âmbito social os seus membros actuam como um grupo e usam a família na sua vida quotidiana (Gubrium 1988: 275). 75 A comparação entre memória familiar e memória genealógica mostra que existe uma relação entre a capacidade de os indivíduos se recordarem dos seus dados genealógicos e a utilidade social destes (cf. Le Wita 1988).

161 158 O ideal de continuidade da família transmissão de informações. Esse investimento torna-se necessário porque a continuidade da identidade do grupo familiar e a legitimação do estatuto social dos seus membros se enraízam no prestígio do seu passado familiar, demonstrado pela genealogia e reproduzido no presente pelo destaque social e profissional dos seus membros. Como salientam Segalen e Michelat, a aristocracia afirma a especificidade do seu corpo através do sangue (1991: 195), mostrando a antiguidade das suas alianças, pelo que a genealogia é um signo distintivo do grupo social (ibidem). No seio destas famílias, a genealogia é vivida quotidianamente, no seio do espaço doméstico, pois a memória dos antepassados está viva nos múltiplos objectos que existem na casa que já foi deles e agora é dos seus descendentes. Ao transmitir a história da família através de episódios e objectos presentes no quotidiano e que conferem uma certa ilusão de convivialidade entre as gerações, os membros da geração controlante e da geração declinante criam, nas gerações ascendentes, uma base de vivências partilhadas, onde estas poderão inscrever a sua pertença identitária. Uma ocasião particularmente importante da sociabilidade familiar é o período das férias nas casas de família. Estes momentos de intenso convívio reúnem um número alargado de membros da família por um período mais ou menos longo, numa partilha do quotidiano que, por não ocorrer nos períodos de trabalho, assume aspectos de excepção. Todos os anos no Verão nos juntávamos com toda a família em Ílhavo, na Fábrica da Vista Alegre. Havia uma festa da Nossa Senhora da Penha de França que era um fim de semana de convívio em que se juntavam todos os primos, ia toda a gente. Havia feira, um desafio de futebol, corridas de tabuleiros com loiça, jogo da corda, tiro aos pratos. Era muito divertido e acho que era a única altura em que estávamos realmente todos juntos, porque naquelas ocasiões tradicionais, como o Natal, só se juntam os membros de cada ramo (CB). O local tradicional de férias da família é a quinta da F. Mas agora já só vai um ramo da família de cada vez. Seria totalmente impossível estarmos lá todos ao mesmo tempo (BB).

162 O ideal de continuidade da família 159 O meu pai tem uma casa em VNO. É lá que nos reunimos todos no Natal, na Páscoa e nos aniversários das pessoas da família. Tem de ser lá porque já somos muitos e não cabemos em mais lado nenhum. No Verão vamos todos para o Algarve. O meu pai aluga sempre uma casa na Quinta do Lago e mais cinco lá ao pé para cada um dos filhos, porque gosta de nos ter ao pé e assim podemos estar todos juntos durante as férias. É óptimo (PS). Estes momentos de reunião proporcionam encontros particularmente propícios à transmissão de lendas familiares e, portanto, à constituição da memória familiar. São momentos de consolidação de laços de intersubjectividade que unem os membros da família. Momentos de lazer em que se fortalecem solidariedades e cumplicidades, não apenas entre as gerações adultas, mas também entre as mais novas, incluindo os primos mais ou menos afastados. Desta forma, os mais novos crescem no seio destas sociabilidades familiares que, através das lendas que as famílias constróem sobre si próprias, incluem também os antepassados. Estes momentos de proximidade familiar adquirem um peso e uma eficácia redobrada quando ocorrem na casa da família, que é símbolo da sua identidade colectiva e do seu prestígio. Numa das famílias estudadas, as férias de Verão constituem um importante momento de reunião familiar na quinta de família, onde se juntam cerca de cento e cinquenta parentes, divididos por nove casas, uma de cada ramo de descendentes do fundador. Como estávamos sempre todos na quinta durante todo o Verão às vezes era uma grande confusão. Já não distinguíamos os miúdos ao longe, não sabíamos quem era quem. Então inventámos uma maneira muito prática que ainda hoje usamos. Cada família tinha uma cor de boné para podermos ver e distinguir os nossos ao longe. A minha era vermelha. Quando víamos algum dizíamos: olha aquele é teu (Me). As férias nas casas de família não consolidam apenas as relações entre os seus membros: contribuem para inscrever nos mais novos a imagem da família

163 160 O ideal de continuidade da família como projecto colectivo, materializado em espaços e objectos que a simbolizam e a enraízam num passado legitimador, veiculando, simultaneamente, a ideia de que esses espaços e objectos devem ser preservados e respeitados para, mais tarde, poderem ser transmitidos aos seus futuros descendentes. Os momentos de lazer são passados a (re)contar velhas histórias, que apelam a sentimentos partilhados, fazem-se relatos sobre objectos famosos na família, ou mostram-se fotografias aos mais novos. Estes momentos são uma forma poderosa de incorporar nestes jovens membros uma base sobre a qual se poderá construir um sentimento de pertença, onde a identidade familiar se poderá enraizar. Ao partilhar essas histórias, os membros das gerações mais novas são, simultaneamente, incorporados na família. Os mais novos vêm sempre ouvir quando os mais velhos estão a contar histórias. Uma das que faz mais sucesso junto dos mais novos é a de um jantar de muita cerimónia em que os pais recebiam os Condes de P. Os meus irmãos mais velhos vestiram-se de criados e foram servir à mesa, enquanto que os mais novos atravessavam a sala passando por baixo da mesa durante o jantar. Os pais olhavam para estes criados sem poderem dizer nada. Está a ver, não podiam dizer aos convidados que eram os filhos que estavam a servir à mesa. Foi uma grande risota (JMe). Histórias como esta são contadas tantas vezes que acabam por adquirir o caracter de lendas familiares, histórias incorporadas na memória de todos, mesmo daqueles que as não viveram e que mais tarde as reproduzirão aos mais novos, integrando-os, por sua vez, nessas vivências transmitidas de geração em geração que permitem a continuação de sua identidade colectiva. Num texto que publicou no livro da família, uma neta de um dos fundadores da Orey Antunes, descreve exemplarmente este sentimento de continuidade intergeracional, do compromisso subjacente às relações entre as gerações, de prolongar a família e a memória dos seus membros num tempo longo:

164 O ideal de continuidade da família 161 Que saudades! (...) Éramos tantos, hoje somos tão poucos. O que vale é que não falta quem nos suceda!! Mas se foi bom nesta festa fazer reviver os que a Deus foram chamados, foi bom, através da sua evocação, saber quem somos. É destes ilustres antepassados, destes primeiros filhos e netos de G e L que descendemos. Somos a sua família. Penso que só temos de nos alegrar de saber que, por causa deles, estamos aqui hoje. É a sua mensagem de união, de trabalho e de honestidade que eles nos deixaram, que temos de transmitir aos que nos vão seguir. Aos novos de hoje é que fica o encargo de manter aceso o facho desta tradição, com a ajuda de Deus (ML). Os percursos pessoais e profissionais dos membros destas famílias são inscritos neste projecto de continuidade pois, desde pequenos, sabem que vão herdar os bens da família e ter de garantir a sua continuidade para as gerações futuras. Nestas grandes famílias empresariais, a educação dos mais jovens é direccionada para a ideia da importância da transmissão de um capital colectivo entre as sucessivas gerações da família. Uma vez que há muito para passar, tanto económica como simbolicamente, é importante garantir que o que se transmite é bem recebido: que aqueles que recebem irão posteriormente transmitir o património familiar às gerações seguintes, dando assim continuidade à família e ao património que a acompanha e simboliza. O lastro do passado tem, portanto, um grande peso no processo de desenvolvimento destas famílias que, por isso, dedicam grande atenção à reconstituição da memória familiar, de forma a salientar os princípios organizacionais mais valorizados no seu projecto de continuidade. Todas as famílias constróem algum tipo de memória familiar. No entanto, como demonstram vários autores que têm trabalhado sobre este tema Segalen (1980), Le Wita (1985), Comas (1988) e Bertaux (1981) as formas de constituição da memória familiar variam de acordo com os modos de vida, dependem dos projectos, das especificidades das práticas e da concepção do mundo do grupo social que as produz. Neste sentido, a memória familiar de

165 162 O ideal de continuidade da família diferentes famílias de classe 76 não se estrutura da mesma forma, nem se baseia nos mesmos elementos. Utilizando e valorizando signos distintos, são estes elementos particulares que transmitem às gerações vindouras. O tipo de estrutura que se privilegia maior profundidade do conhecimento genealógico ou maior extensão colateral e o conteúdo dos discursos que produzem sobre a família estão indissociavelmente ligados às práticas das pessoas que os constróem, às suas vivências particulares, ao investimento que fazem na transmissão dessa memória e aos objectivos com que ela é transmitida. 77 Num trabalho pioneiro sobre as famílias da grande burguesia de Paris, Beatrix Le Wita defendeu que a memória familiar tem uma grande importância para as famílias burguesas: Para os burgueses, a memória funciona como um capital acumulado e transmissível ao longo de várias gerações. No interior das famílias a genealogia circula de maneira inata. Não se procuram as raízes pois elas estão, por assim dizer, incorporadas. O nascimento substitui-se à função como forma de se demarcarem das classes médias. Os filhos que nascem nestas famílias são burgueses porque já o são há várias gerações. A genealogia apenas consagra um estatuto social já reconhecido pelos outros (Le Wita 1985: 23). 76 Daniel Bertaux propõe a utilização do conceito de família de classe para dar conta das diferentes formas como as famílias se integram no mercado de trabalho e nas relações de produção, e para analisar as repercussões que estas têm nos processos de reprodução das famílias (Bertaux 1978: 67-70). 77 Para dar um exemplo destas diferenças podemos comparar os resultados dos trabalhos de Martine Segalén e de Beatrix Le Wita, realizados em diferentes contextos da hierarquia social francesa. Entre os camponeses do Pays Bigouden, Segalen encontrou uma clara predominância de uma vasta memória colateral que, no seu entender, resulta das intensas trocas de ajudas entre essa rede de parentes e de uma clara preferência pelo estabelecimento de alianças matrimoniais na colateralidade afastada, devido à aplicação de um conjunto de estratégias de transmissão e manutenção de património. De acordo com a autora, foi a análise da memória familiar que lhe permitiu descobrir a existência destas preferências matrimoniais ao longo de quinze gerações nesta região (cf. Segalen 1985). De forma diferente, entre os burgueses parisienses Le Wita encontra predominantemente um tipo de memória familiar que se estende linearmente, na profundidade geracional. Este facto resultaria da necessidade de legitimar e fazer reconhecer o prestígio familiar num passado identificável e comprovável genealogicamente (cf. Le Wita 1985). A comparação entre estes dois exemplos mostra que os diferentes valores, práticas sociais e critérios de avaliação em que assentam as concepções do mundo dos indivíduos promovem variações na forma como se estruturam as memórias genealógicas e familiares de diferentes grupos sociais.

166 O ideal de continuidade da família 163 Nestas famílias, que se apoiam num ideal aristocrático de constituição de linhas de descendência, ter uma memória genealógica profunda é um elemento decisivo para mostrar a antiguidade da família, do poder e prestígio social que detém. Mais do que isso, a genealogia familiar constitui para eles uma espécie de prova da legitimidade desse prestígio, uma vez que demonstra a sua existência desde antepassados remotos. Em conclusão, a memória genealógica e familiar não tem, para estas grandes famílias, apenas uma função simbólica: ela serve, sobretudo, para perpetuar e reafirmar um estatuto previamente adquirido e reconhecido pelos outros. 3. Elementos de ancoramento da memória familiar Para a consolidação da memória familiar como um património colectivo que pode ser usado, partilhado, visitado por todos os membros da grande família, recorre-se ao uso simbólico e prático de alguns elementos que, simbolizando particularmente bem a identidade da família, servem de âncora à memória de todos. De entre estes elementos, destacam-se as casas de família, as fotografias ou quadros dos antepassados, as jóias de família, cartas, livros, festas e nomes. Estes elementos de ancoramento da memória familiar serão o fio condutor das secções seguintes. Cada uma das sete famílias com que trabalhei é, presentemente, constituída por um universo relativamente grande de parentes. Apesar de cada uma das famílias conjugais viver, regra geral, na sua própria casa, cada uma destas grandes famílias tem uma casa que é identificada como casa da família e que é um importante símbolo dela e do seu prestígio: é o local onde se enraíza espacial e

167 164 O ideal de continuidade da família temporalmente a sua identidade e a unidade dos seus membros ao longo do tempo: Depois dos pais morrerem fizemos as divisões da quinta. A casa grande ficou para o meu irmão mais velho. Nós sempre continuámos a ir lá fazer as grandes festas da família. Mesmo desde que o meu irmão morreu ( ) a minha cunhada, tem sido impecável. Fez sempre com que a casa continuasse sempre aberta para quem lá quiser ir. Eu às vezes vou lá, entro, dou uma volta pela casa toda e venho-me embora. É só para respirar aquele ar, pisar aqueles tapetes. Faz-me falta (Me). Estas grandes casas de família são uma espécie de santuário do passado familiar, onde se preservam as memórias, as colecções, os livros, as peças de mobiliário, as jóias, os quadros de família, as obras de arte. É nestas casas que estes objectos ganham sentido, porque é aí que se inscreve a sua história. A casa do meu avô é um marco. É onde nos reunimos todos quando há grandes reuniões de família, ou festas, e onde passamos os tempos livres. ( ) É o sítio onde os nossos pais e os tios cresceram e onde os da minha geração passavam os três meses de férias de Verão, mais os quinze dias de Natal e os quinze dias da Páscoa e todos os fins-de-semana, juntos com todos os primos, tios e avós. Todos [os filhos] foram fazendo as suas casinhas, uma para cada um, mas andam sempre em casa uns dos outros. As casas estão sempre abertas para todos. Janta-se num lado, toma-se café noutro e em sítios diferentes daquele onde se almoçou. É este o espírito, e isto só funciona com muita amizade, muita união e muito boa relação. Toda a gente tem um carinho muito especial pela quinta. Já há uns sobrinhos que dizem, o pai não vai, mas a gente vai. É este espírito que é a base de tudo. Os pais e os tios conseguiram transmitir isso à minha geração e nós também temos conseguido transmitir isso aos sobrinhos. E isto é que é o máximo. A grande herança é essa união, esse espírito (Ma). Sempre que íamos para a quinta, primeiro tínhamos de ir à casa grande dar um beijinho à avó e só depois é que íamos brincar ou para as outras casas, fazer

168 O ideal de continuidade da família 165 outra coisa qualquer. Ainda hoje, mesmo depois de a avó já ter morrido há tanto tempo, os mais novos sabem que não podem entrar na casa da avó com os pés sujos e pisar os tapetes da avó (T). Estas casas têm, efectivamente, um passado que conta a história dos antecessores e são indissociáveis do prestígio da família. São verdadeiras casas de família. Casas por onde passam as sucessivas gerações, dando continuidade aos seus fundadores e imprimindo um sentimento de continuidade ao projecto familiar. Estas casas mostram, melhor que qualquer outro elemento do património familiar, a multidimensionalidade da riqueza da família. Sendo um elemento de valor cultural, económico e afectivo, as casas de família têm uma característica que as distingue dos outros: têm uma utilização prática e diária. O próprio recheio destas casas móveis, quadros, objectos de arte, fotografias transmite a quem as habita aqueles que mais tarde terão de o transmitir um conjunto de conhecimentos que se torna projecto familiar incorporado. Os descendentes que vivem imersos no património familiar, em comum com as pessoas e os objectos que constituem a sua fonte de constituição identitária, incorporam o projecto familiar, adquirem os conhecimentos e os sentimentos que farão deles sucessores. Através da história destas casas podem contar-se, também, as histórias das famílias. As fotografias de família são uma das formas mais frequentes de o fazer. Os espaços públicos das casas, aqueles onde é aceite a presença das visitas 78 como sejam as salas de estar e as salas de jantar, estão repletos de fotografias de ascendentes e descendentes da família. Através deste vasto conjunto de 78 Estes espaços públicos da casa não são públicos no sentido de que qualquer pessoa os pode frequentar, pois qualquer casa, de qualquer grupo social é, obviamente, um espaço privado. Quando se admite a entrada em casa de alguém que não faz parte dela, mas que está de alguma forma relacionados com os seus membros, os espaços onde poderá entrar estão, em geral, bem definidos e circunscrevem-se àqueles que foram construídos para dar uma imagem da família para o exterior, aos espaços organizados com o objectivo de serem os locais para receber quem vem de fora.

169 166 O ideal de continuidade da família fotografias, impõe-se permanentemente a presença do grande universo familiar em que estão integrados os indivíduos que vivem naquela casa. 79 A forma como as fotografias constróem uma apresentação pública do universo familiar é algo que merece ser analisado. Os amplos conjuntos de fotografias que representam o universo familiar mais importante para os membros de uma determinada casa são colocados nos espaços onde serão vistos por todos os seus eventuais visitantes. Os espaços potencialmente públicos das casas não são, portanto, espaços inocentes. São espaços teatralizados, onde os seus membros apresentam a imagem de si e da família que querem fazer passar para o exterior. A forte presença de fotografias de família nestes espaços privados virados para o exterior revela que a vida destes indivíduos é perpassada constantemente pela dos seus familiares e que os membros da casa querem dar uma imagem de si próprios como pessoas de família, pessoas que fazem parte de um grande universo familiar cuja presença é permanente e fundamental nas suas vidas. A presença recorrente de fotografias dos parentes mais próximos e dos antepassados mais marcantes dos habitantes das casas é uma metáfora da importância que estes lhes atribuem e, simultaneamente, no primeiro caso, da densidade das relações que estabelecem quotidianamente entre si. A partir das fotografias dos diversos membros da família expostas nos locais públicos das casas, poderia elaborar-se uma genealogia ilustrada da família, ou melhor, uma genealogia dos elementos da família aos quais se atribui maior relevância. As fotografias expostas ajudam, ainda, a compreender as relações sociais mais alargadas em que estão envolvidos os membros da família, ou melhor dizendo, aquelas com que desejam mostrar estar envolvidos. De facto, é frequente encontrar, ao lado das fotografias de família, fotografias de algum parente ao lado de um chefe de Estado ou de alguma figura pública importante. É muito frequente encontrar fotografias de António de Oliveira Salazar, de Américo 79 Beatrix Le Wita ilustrou largamente a importância das fotografias de família nas casas da alta burguesia francesa como suportes de memória familiar (cf. 1988: ). Sobre este assunto veja-se também o trabalho de Nuno Porto sobre os álbuns de fotografias de família numa aldeia da Beira Alta (cf. Porto 1993: ).

170 O ideal de continuidade da família 167 Thomaz e de membros de importantes famílias aristocráticas europeias, lado a lado com as fotografias da família. Todavia, a utilização das fotografias de família, como símbolo de uma identidade que se quer continuada, como demonstração exterior do percurso genealógico dessa identidade, não se limita ao espaço da casa e estende-se aos espaços das empresas. As fotografias e os retratos pintados dos diversos membros da família que passaram pelos lugares de chefia das empresas ocupam lugares de destaque nos gabinetes dos principais executivos, nos corredores e nas salas de reunião, onde se recebem pessoas de fora. A amplitude dos significados da exposição de fotografias de família nos espaços visíveis das casas e das empresas representa algo mais do que uma simples forma de decoração, pois contribui para a construção de uma imagem de antiguidade da empresa associada à antiguidade da família. Através dessa exposição, associam-se pessoas concretas a um percurso empresarial caracterizado por valores particulares: os das famílias antigas, tradicionais, unidas e com uma reputação empresarial comprovada por longos anos de existência. Desta forma, expor na empresa retratos dos vários elementos da família que passaram pelos lugares de topo, evoca a continuidade da participação das várias gerações nesse projecto, revelando linhas familiares de transmissão de poder nas empresas. A memória familiar apoia-se, portanto, nos bens e símbolos que constituem a identidade da família, em lugares e objectos que a representam, em elementos de uma tradição que se continua e confere agencialidade às recordações. O nome de família e o conjunto de nomes próprios, as casas, as empresas, as jóias e os brasões, constituem aquilo a que chamo património familiar e que serve de âncora à memória familiar. São símbolos de uma substância partilhada que une a família e a tornam visível publicamente. A posse deste património determina, em grande medida, a pertença a uma grande família. Neste contexto social, os espaços e os objectos onde se enraíza a memória da família são extremamente valiosos. Não apenas em resultado do seu valor comercial, mas pelo valor simbólico e afectivo que adquirem ao passar de geração em geração. Em The Philosophy of Money, Simmel chama a atenção para o facto de

171 168 O ideal de continuidade da família o valor dos objectos não ser uma característica que lhes é intrínseca, mas o resultado de um julgamento que os sujeitos sociais que o usam ou desejam, fazem sobre ele (cf. Simmel 1982: 73). Estes objectos familiares transportam com eles uma história de vida que, tal como a dos seus proprietários, pode ajudar a contar a história destas famílias. Seguindo a linha de argumentação de Simmel, Appadurai chama a atenção para o facto de os objectos no sentido atribuído a commodities, objectos com valor económico terem uma vida social, tal como as pessoas (cf. 1986: 3). Neste sentido, o autor defende que a importância de um objecto não decorre apenas do facto de ser um bem valioso em termos de mercado. O objecto que se possui, sobretudo se está na posse da família há muito tempo, faz parte da familiaridade quotidiana daqueles que o possuem: tem uma vida social. Quando se trata de objectos que passam de geração em geração, para além de serem importantes marcas do passado, tornam-se também símbolos da família e da continuidade familiar. Independentemente do seu valor económico, são elementos de um património colectivo e têm um valor social insubstituível, pois comprovam a sua antiguidade. No trabalho que realizou sobre grandes empresas familiares no Brasil, Adriana Piscitelli toma como centro de análise as jóias de família que circulam entre as mulheres, criando vínculos e identidades em torno do grupo familiar (cf. Piscitelli 1999). As jóias que circulam nas famílias empresariais são símbolos de um património marcado pelo valor sentimental que flui em sentido descendente ao longo das gerações. A posse continuada desses objectos expressa a permanência de elementos importantes na estruturação da identidade familiar. Nas histórias em que as sucessões empresariais seguem linhas exclusivamente masculinas, as jóias evocam a dimensão feminina da riqueza. Esses objectos de valor aludem ao lugar precioso que as mulheres têm na família e à maneira das marcas do género que hierarquizam as distinções entre actividades empresariais, à localização secundária a elas outorgada nas empresas (Piscitelli 1999: 266).

172 O ideal de continuidade da família 169 Ao chamar a atenção para a existência de diferentes dimensões da riqueza, a autora mostra também como, nestas grandes famílias empresariais, coexistem estilos diversos de transmissão de diferentes bens, ao longo de linhas familiares diferenciadas, com base em critérios de género. A transmissão destes objectos particularmente valiosos material, simbólica e afectivamente, ao longo das gerações, foi-me várias vezes relatada. As alianças dos avós ainda hoje são conservadas e utilizadas! R usou a de seu pai quando casou. Resgatou a de sua mãe por morte dela, e passou a ser usada por sua mulher que, mais tarde, a deu a sua neta ML, que era a filha mais velha do seu filho mais velho. Quando R morreu deixou a aliança de seu pai ao seu filho V e então, sua neta ML, num gesto de grande nobreza, entregou a aliança da Bisavó à sua tia, mulher de V, pois considerava que as alianças deviam estar nas mãos do mesmo casal. Quando V morreu, deixou a aliança de seu avô a seu filho G e depois a sua mulher entregou a da avó à mulher de G. É este casal que actualmente detém e usa essas alianças (ML).

173 170 O ideal de continuidade da família Quadro 6: Linhas de transmissão das alianças

174 O ideal de continuidade da família 171 Para uma destas grandes famílias um objecto que tem uma importância simbólica muito especial é um pequeno bule de doente em barro de Estremoz, que está na posse da família desde1885, aproximadamente. O bule foi comprado por IN para ajudar às melhoras da sua filha La. Muitos anos depois IN adoeceu e a sua filha IS, lembrando-se do bule, serviu-se dele para ajudar a sua mãe. Eis como a história é relatada por uma das netas: Devia estar guardado em qualquer armário. Encontrou-o, segurou-o com carinho, até o acariciou, reviveu a sua juventude (...). O bulezinho não era a bola de cristal que faz ver o futuro, era um objecto também gordo e rechonchudo, mas de barro fino e vidrado com florzinhas pintadas que, ao contrário, fazia reviver o passado. E era num misto de passado e presente que ela dele se servia para ajudar a sua mãe. (...) Há uns vinte anos, IR (...), acompanhou a uns tratamentos o filho de IS [que era o depositário do bule nessa altura]. Com muita amizade e gratidão, ele ofereceu-lhe o bule. Será que ele sabia que as memórias da sua família podiam ser lembradas com muita saudade e ternura no pequeno bule de Estremoz da feira do Gaivão? (LGV) Quadro 7 Linhas de transmissão do bule de doente

175 172 O ideal de continuidade da família Como podemos verificar através desta pequena história, o percurso genealógico de determinados objectos segue linhas de identificação familiar e, demonstra, muitas vezes, a relevância de outros critérios de identificação. Neste caso concreto, as linhas de transmissão do objecto são, simultaneamente, linhas de transmissão de nomes próprios ao longo de gerações familiares que reforçam laços de identificação continuada. 80 Em suma, os ambientes domésticos em que vivem estas famílias são valiosíssimos em termos de valor de mercado. Mas, as casas, os tapetes, os objectos, as peças de mobiliário, os quadros que decoram as suas residências, não podem ser reduzidos à sua importância económica. São bens culturais que fazem parte da memória familiar, do prestígio e do estatuto social da família. O valor atribuído a estes objectos familiares deve, portanto, ser encontrado na sua própria história, ou seja, na história da sua relação com os indivíduos que vivem com eles e lhes atribuem um determinado valor material e simbólico. A multidimensionalidade do valor que estes objectos adquirem para os membros da família é resultado de um processo de investimento emotivo e cognitivo que desenvolvem no contexto da sua comunidade de práticas. Tomemos de novo um caso concreto para reflectir sobre esta questão. Mi é a neta mais velha de um importante empresário português que foi simultaneamente um grande apaixonado e divulgador de arte em Portugal. Desde pequenina, Mi habituou-se a acompanhar o avô pelos antiquários e pelas casas particulares, onde este via e comprava novas peças. Nos anos que viveu em Inglaterra e nos passeios pela Europa que fez com a família, o contacto com os expoentes máximos da arte europeia consolidaram o seu apurado gosto estético e os seus profundos conhecimentos sobre história de arte, que marcaram desde cedo a sua educação e que, mais tarde, viria a aprofundar num curso em Florença. As antiguidades e os objectos de arte valiosos fazem parte da sua vida quotidiana desde que nasceu. A cama onde dormia em menina, na casa dos seus pais, está hoje num museu. Actualmente Mi é restauradora de porcelanas, dá aulas de 80 Mais à frente, neste capítulo, discutirei a importância da transmissão dos nomes de família em pormenor.

176 O ideal de continuidade da família 173 história de arte e de restauro numa destacada escola profissional de artes em Lisboa e foi Comissária de uma importante exposição durante a EXPO 98, em Lisboa. Vários aspectos da vida quotidiana de Mi foram, simultaneamente, importantes elementos culturais. A imersão da sua vida num mundo onde a arte é uma parte fundamental, refinou-lhe o sentido estético, que é hoje resultado de um gosto cultivado desde que nasceu, que não vem apenas de uma aprendizagem académica ou de uma paixão de autodidacta. O percurso pessoal e profissional de Mi mostra bem como, no âmbito destas famílias, o contacto com a arte, com a Alta Cultura, feito nas suas próprias casas, num espaço de grande familiaridade, no mesmo espaço onde se constróem as identidades individuais, adquire uma eficácia poderosa, marcando de uma forma indelével a sua distinção. O viver nestes espaços habitacionais distintos (no sentido usado por Bourdieu em La Distinction, 1979), promove uma proximidade material, um contacto íntimo com a arte e com a Alta Cultura, que proporciona uma forma de aprendizagem, de orientação do gosto, do sentido estético que é apreendida pelos mais novos e incorporada da mesma maneira que as boas maneiras ou um certo tipo de linguagem. A familiarização com a arte, com conhecimentos técnicos e históricos, com a educação do gosto, faz-se através da subtil familiarização quotidiana que é, em si mesmo, um dos maiores privilégios deste grupo social. Uma parte substancial da eficácia destes conhecimentos é adquirida naturalmente em casa, decorre do facto de a identidade familiar se enraizar nesses mesmos objectos. A incorporação bem sucedida destes conhecimentos, através da familiaridade com eles, faz com que mais tarde possam parecer uma qualidade inata da pessoa. Mas não são. São resultantes do lento passar do tempo, da acumulação dos diversos capitais familiares que, ao transformar as aquisições sociais em diferenças na natureza dos processos de constituição das pessoas, permite que os espaços onde se desenrolam as suas relações familiares se transformem em poderosos contextos de incorporação de distinção social.

177 174 O ideal de continuidade da família Como se tornou claro através da análise do exemplo do percurso de Mi, o valor simbólico, cultural e estético dos bens raros e antigos, que recheiam as casas onde viveu, constitui a base material sobre a qual se transmite uma parte essencial da sua herança, desempenhando um papel central na inculcação de conhecimentos e na formação de gostos que constituem o habitus do grupo. 4. Produzir a história da família Dado o peso que a história da família tem no universo em análise, não é de estranhar ter encontrado, no âmbito destas grandes famílias, descendentes que se preocupam apaixonadamente com temas das tradições familiares. Esta paixão contribui para dar aos descendentes um forte sentido da família, como unidade de existência partilhada ao longo de gerações como uma identidade continuada que, por sua vez, irá alimentar essa paixão. Os interesses partilhados e a posse comum de objectos que transportam consigo a identidade familiar produzem uma certa mutualidade. As identidades familiares continuadas que se constróem desta forma estão em permanente adaptação, inovação e alteração, pelo que têm também de ser constantemente alimentadas. É o que acontece através das celebrações e rituais realizados nos diversos níveis da família e ao nível da empresa. Estas celebrações fazem parte de um processo de invenção de uma tradição familiar que tem de ser suficientemente poderosa para afectar a vida de várias gerações de descendentes que se mantêm unidas por sua causa. O peso do património familiar na vida de cada um contribui para a consolidação do ideal que visa a sua continuidade. No

178 O ideal de continuidade da família 175 caso das famílias dinásticas, esse ideal é perseguido de uma forma tão consciente que, ao longo do tempo, se vai transformando em tradição. 81 Entre outros exemplos, destaco o da família Albuquerque D Orey. Desde 1989, um ramo desta grande família, os Jara D Orey, organiza anualmente um picnic que reúne muitos dos seus elementos numa herdade de um dos seus membros perto de Alcácer do Sal. Da primeira vez éramos só setenta, mas no ano passado já éramos duzentos (MJo). O espírito de família criado por estas reuniões faz com que, de ano para ano, mais participantes se juntem a esta organização. Esta tradição iniciou-se na sequência de um grande almoço que, em 1985, reuniu na Estufa Fria a maior parte dos descendentes dos fundadores da família: Guilherme Aquiles D Orey e Maria Luísa Albuquerque. Essa grande festa familiar foi cuidadosamente produzida por um conjunto de dezassete pessoas que responderam à iniciativa de um bisneto dos fundadores e de sua mulher. A adesão da família foi total. Estiveram presentes mil cento e sessenta e oito pessoas, entre as quais se contavam diversos membros da família que residem no estrangeiro Brasil, França, Alemanha, Suíça, Venezuela e Espanha e que vieram a Portugal propositadamente para estar presentes neste grande encontro familiar. A festa começou com uma missa, celebrada pelo Padre Feitor Pinto 82, acolitado por vários membros da família. Os mais novos fizeram o peditório. Um coro constituído por cinquenta D Oreys acompanhou a missa e cantou as janeiras aos elementos mais velhos com uma letra especialmente escrita para a ocasião. Seguiu-se um almoço que se prolongou pela tarde fora. Para essa reunião, alguns elementos da família organizaram um livro com a história da família, com depoimentos sobre acontecimentos marcantes na história dos fundadores e dos seus filhos, sobre a própria festa, com uma descrição 81 Neste sentido, é curioso notar que as grandes redes familiares e as grandes festas de família que reagrupam todos os descendentes de um mesmo antepassado estão hoje em plena expansão, comprovando a vontade de ter o passado partilhado pelos seus antepassados como princípio que alimenta a união familiar no presente. Mas isto será material para ser usado noutro trabalho. 82 A família pediu, e recebeu, da Nunciatura Apostólica de Lisboa, uma Bênção Apostólica de João Paulo II para a sua reunião de união da família numa elevada demonstração de Fé.

179 176 O ideal de continuidade da família pormenorizada de quem colaborou nos diversos passos da sua organização e muitas fotografias dos fundadores da família Albuquerque D Orey e dos seus filhos e das várias casas que pertenceram à família. Este livro comemorativo, os ensaios do coro, as tarefas de organização, a contabilidade, os cinzeiros pintados para a ocasião, tudo isto foi o resultado de imenso trabalho e dedicação, revelando a importância de que esta reunião familiar se revestiu. Como este exemplo demonstra, o processo de gestão do património cultural, simbólico e material é um elemento central na construção da unidade de cada uma destas grandes famílias, compostas por muitos descendentes, divididos em muitos ramos. Cada um destes produz, por sua vez, marcas de identificação comum, como pudemos verificar através do exemplo do ramo Jara D Orey que organiza momentos próprios de reforço do seu processo identitário, paralelamente aos momentos de construção de uma identidade familiar mais ampla. Vale a pena deixar claro que, ao mesmo tempo, há também processos de identificação familiar mais restritos nas subdivisões deste ramo da família, que correspondem às redes de solidariedades primárias criadas no âmbito das várias famílias conjugais. Este processo de gestão da tradição familiar torna-se, então, uma forma de promover relações entre os parentes do seu universo familiar mais alargado. As relações neste âmbito mantêm-se activas, devido à memória colectiva constantemente transmitida e frequentemente recriada. Os trabalhos de investigação de diversos autores têm mostrado que este tipo de estratégias é amplamente usado em contextos de elites sociais (cf. Bourdieu 1979, Mension-Rigau 1994 e Le Witta 1988). No caso das famílias empresariais lisboetas, a tradição familiar é complementada por uma forte interdependência entre a estrutura de administração dos negócios familiares e o domínio das relações familiares alargadas. No capítulo anterior mostrei que a empresa familiar é um importante símbolo da família e contribui de uma forma decisiva para que a grande família composta por todos os descendentes do fundador se mantenha unida ao longo das várias gerações. Porém, a grande empresa familiar torna-se também uma

180 O ideal de continuidade da família 177 estrutura de autoridade e um local de ancoramento da tradição da família que, por sua vez, compromete os descendentes com o projecto colectivo garantindo, assim, a sua continuidade. Desta forma, o grupo económico familiar a fonte de produção dessa riqueza colectiva torna-se o principal incentivo tanto para a reprodução da tradição familiar, como para a manutenção da coesão entre os membros da família. Um exemplo revelador do investimento na família e na ligação desta à empresa, é o facto de quase todas as famílias com que trabalhei estarem a elaborar, ou já terem elaborado, uma história da sua família ou das suas empresas. 83 A importância da história de família foi apresentada de uma maneira particularmente interessante por um elemento de uma das famílias da elite texana analisadas por George Marcus: Comecei a ver a história de família como algo de certa forma semelhante à arquitectura. Tal como a arquitectura, ela é silenciosa. Ela envolve mas requere, necessariamente, atenção. Até podemos nem reparar que ela está lá. Tal como acontece com a arquitectura, podemos de repente tomar consciência da presença da história de família. Por exemplo, podemos estar sentados na biblioteca pública de Nova Iorque, na rua quarenta e dois desenhada por Carriere e Hastings e talvez o melhor edifício de Nova Iorque com o nariz dentro de um livro ou a consultar o catálogo, afastados do esplêndido interior que nos rodeia. Podemos esquecê-lo ou não reparar nele nesse dia e, de repente, casualmente ao olhar para cima, ficar espantados ou mesmo momentaneamente desorientados pelo que vemos. É assim com a história de família. Podemos levar a nossa vida sem pensar no passado e, de repente, como se acordássemos de um sonho, ficamos espantados por ver que vivemos neste ambiente. Eu já tinha trinta anos quando comecei a perceber que a minha vida estava envolvida desta forma. Ao princípio pareceu-me uma forma de 83 Adriana Piscitelli mostra, para o caso brasileiro, a importância da publicação de histórias sobre as empresas e seus fundadores para os membros das grandes famílias empresariais. Na sua estimulante análise sobre estes relatos, mostra-nos como, através deles, se pode identificar os valores que próprios actores consideram fundamentais na prossecução da continuidade do seu projecto económico familiar e que, através das narrativas, são convertidos em património genético, transmitido ao longo de linhas de descendentes da família (Piscitelli 1999: 55).

181 178 O ideal de continuidade da família prisão, mas depois revelou-se ser uma dádiva e parece-me que toda a história de família é uma dádiva (Susan Lessard cit. in Marcus sd: 13). A elaboração de histórias de família e de histórias de empresa tem, de facto, uma enorme importância, pois cria uma espécie de versão oficial dos acontecimentos mais marcantes, contribuindo assim, decisivamente, para a consolidação do projecto dinástico das famílias. A única excepção que encontrei foi o Grupo Mendes Godinho. O facto de esta família não ter elaborado nenhuma história da empresa deve-se, na minha opinião, à sua recente situação de falência. Uma vez que a empresa familiar já não funciona como um elemento agregador dos diversos ramos da família, não faria sentido celebrar um dos símbolos da sua união. Neste caso concreto, assistimos a um processo de desmembramento do universo familiar alargado e ao encerramento das relações familiares ao nível das unidades familiares mais restritas. Os percursos através dos quais cada uma das famílias com que trabalhei elaborou a história das suas empresas são diversos. No caso das famílias Pinto Basto, D Orey e Vaz Guedes, foram membros da própria família que elaboraram as suas histórias e as genealogias que as acompanham, destacando as pessoas e os factos que consideram mais importantes para a identidade do grupo. No entanto, há uma distinção de fundo entre a forma como a família Pinto Basto elaborou e divulgou a história que produziu sobre si própria e a seguida pelas outras famílias. O mais recente livro sobre a família Pinto Basto é uma obra exaustiva e rigorosa. Em primeiro lugar, apresenta uma descrição geral sobre a história da família, desde finais do século XVIII até aos nossos dias, destacando a intervenção dos seus membros na vida social, económica e política nacionais. Os acontecimentos mais marcantes são organizados numa cronologia da família que abarca o período de 1741 a Em seguida, apresenta uma genealogia muito completa dos diversos ramos do universo familiar, desde os pais dos fundadores das empresas (em 1774) até ao presente, contando o percurso pessoal e profissional da maior parte dos indivíduos. É uma obra em dois volumes, impressa em tipografia e em papel de boa qualidade, que se destina tanto ao

182 O ideal de continuidade da família 179 universo familiar como ao público em geral, encontrando-se à venda nas livrarias. Como me explicou o autor do livro, As pessoas davam muita importância à ideia de haver um livro de família. Inclusivamente, pessoas que tinham perdido o apelido há sete gerações sabiam de cor todas as histórias da família, qual era o ramo deles e tinham o primeiro livro escrito sobre a história da família. Há realmente entre nós um enorme culto da família e da sua história. Neste sentido, o livro que compila a história e as genealogias de todos os ramos da família torna-se um elemento extraordinariamente importante (CB). O lançamento deste livro foi feito por altura do segundo centenário da Casa E. Pinto Basto (1997), numa grande festa organizada na Quinta do Patiño, para a qual foram convidados todos os membros da família, os amigos mais próximos e os principais colaboradores das empresas. Esta não era, no entanto, a primeira vez que a família Pinto Basto se empenhava em elaborar um livro sobre a sua história. Já em 1957, por altura da celebração dos cento e cinquenta anos da empresa, tinham editado um livro com a história da empresa e da família que circulou amplamente entre os seus membros. No caso da família D Orey, o livro de família foi elaborado exclusivamente para consumo interno e foi editado com meios amadores processamento de texto feito em computador e fotocópias, depois da grande festa de celebração da família, a que me referi anteriormente. Cada família conjugal recebeu um livro e aqueles que quiseram, e foram muitos, tiraram posteriormente novas fotocópias. No caso da família Vaz Guedes encontramos uma situação bem diferente. Uma das filhas do fundador da empresa elaborou a genealogia da família que começa na Rainha D. Carlota Joaquina. Não foi elaborada nenhuma história da família. No entanto, o grupo económico de que a família é proprietária editou um livro sobre a história das suas empresas para celebrar os cinquenta anos de existência. Nele se relata, em pormenor, o passado, o presente e o futuro das empresas. Aliás, o livro intitula-se A Tradição de Construir o Futuro, remetendo o leitor para a antiguidade destas como uma característica importante para uma

183 180 O ideal de continuidade da família correcta e eficaz construção do futuro. Nele descreve-se, com cuidado, o papel dos diversos membros da família no desenvolvimento da empresa e incluem-se fotografias daqueles que a fundaram, a desenvolveram e dos que nela trabalham actualmente. As frases que surgem em destaque corroboram a ideia que se quer passar para os leitores: Nasce uma cultura empresarial fortemente familiar, reflexo da personalidade do fundador (A Tradição de Construir o Futuro sd: 29). Os diversos capítulos do livro alternam a descrição do desenvolvimento das empresas e fotografias das suas obras mais significativas, com a descrição da Saga da Família e com O Percurso das Três Gerações ilustrado com várias fotografias dos elementos da família que estiveram e estão envolvidos neste projecto empresarial. Quando o meu Pai e nosso Avô meteu mãos à obra e resolveu construir a SOMAGUE, acreditava piamente que o seu futuro estava comprometido com o desenvolvimento de Portugal. Saltando de estaleiro em estaleiro, foi tornando realidade o que a maioria insistia em chamar sonho. Nos sítios onde o aço e o betão davam corpo à obra, José Vaz Guedes estabeleceu um relacionamento e uma cumplicidade com cada trabalhador que levou à criação do que chamamos cultura SOMAGUE. É nestes valores que nos apoiamos para continuar a construir o futuro. Há três gerações que nos empenhamos, dia após dia, para prosseguir a obra de meu Pai e nosso Avô. Uma obra intimamente ligada à história das Obras Públicas em Portugal e de que nos orgulhamos de geração em geração. (...) Habituámo-nos a construir o futuro pedra a pedra, com rigor, seriedade e segurança. É esta a nossa herança. E é acreditando nestes princípios que esperamos passar o testemunho para a quarta geração. A nossa tradição é construir o futuro (sd: 18). A reivindicação do prestígio da empresa e dos seus representantes está neste excerto claramente associada a uma inscrição num percurso, numa história que se continua do passado para o presente dentro da mesma família, como que garantindo biologicamente a legitimidade dos seus actuais representantes. Para além da performance, o passado torna-se um elemento que garante a qualidade.

184 O ideal de continuidade da família 181 Tal como a família Vaz Guedes, também a família Espírito Santo e a família Soares dos Santos recorreram a especialistas externos para a elaboração da história das suas empresas. Para tal, os dois primeiros contrataram conhecidos historiadores e o último um jornalista. Esta estratégia não se revelou muito eficaz em nenhum dos casos. No caso da família Espírito Santo, o historiador não foi de encontro aos objectivos da família: elaborar a história do banco entrecruzada com a história da família. Consequentemente, foi chamado um antigo colaborador do banco e velho amigo da família para se encarregar desse projecto, em estreita colaboração com o responsável pelo Arquivo Histórico do Banco Espírito Santo. 84 Este livro ainda não está publicado. Outros livros editados por instituições desta família relacionam com frequência a qualidade dos seus serviços com o percurso e a antiguidade da família. Numa publicação publicitária, um administrador apresenta os serviços do banco da seguinte forma: Há quatro gerações que os membros da família Espírito Santo seguem a profissão de banqueiros observando os princípios de qualidade, criatividade e prudência na gestão dos bens dos nossos clientes, sempre vigilantes na procura de soluções particulares e feitas à medida dos seus problemas, usando as taxas e mecanismos legais apropriados para obter o melhor rendimento para os investimentos dos nossos clientes. Na esperança de passar para os nossos clientes alguma da experiência que adquirimos ao longo de mais de cem anos apresentamos alguns dos nossos produtos e serviços. No caso da família Soares dos Santos, o manuscrito apresentado pelo jornalista contratado para escrever a história do grupo Jerónimo Martins, para ser editada no ano em que a casa Jerónimo Martins completava duzentos anos, foi recusado pelo Conselho de Administração. A versão apresentada era, segundo um membro da família, 84 A própria constituição deste arquivo histórico, em 1994, promovida por um elemento da família Espírito Santo, um importante administrador do banco e do Grupo, é reveladora da importância que a família atribui à sua história e à necessidade da sua compilação e transmissão.

185 182 O ideal de continuidade da família demasiado romanesca para servir os objectivos de divulgação dos grandes feitos dos membros da família que desenvolveram a empresa até à sua situação actual, não dando também conta da grandiosidade e importância internacional atingida pelas empresas do grupo Jerónimo Martins nos nossos dias (L). No entanto, é de notar que esta não era a primeira vez que a Jerónimo Martins editava um livro com a sua história. Tal já tinha acontecido quando o grupo completou cento e cinquenta anos de existência, em Na maioria destas publicações, o percurso dos fundadores e dos descendentes que deram continuidade e desenvolvimento aos seus projectos económicos são apresentados como exemplos de vida e de trabalho: homens de capacidades notáveis, que inspiram os seus descendentes continuando assim o seu espírito empreendedor. Estas narrativas mitificadas da história das empresas salientam o êxito dos empreendimentos destes homens e, a par do valor das suas iniciativas, exacerbam o espírito de família e a unidade familiar como valores centrais. Todos os autores destes livros apresentam histórias de empresas contadas através dos percursos dos membros da família que assumem, ao longo de linhas de descendentes, o controlo dos destinos empresariais. Estas histórias relatam o êxito obtido através do trabalho intenso e empenhado e apresentam a transmissão desses valores dedicação e trabalho árduo de geração em geração, como factor essencial para promover a consolidação de uma certa cultura empresarial na família e um espírito de dedicação e harmonia na empresa. A ideia de continuidade e antiguidade destas empresas, inescapavelmente ligadas a famílias, é evocada através de imagens que nos remetem para o parentesco. Este último surge como valor associado à noção de continuidade. Nestes relatos, sobressai o espírito patriarcal e uma certa tendência de organização clânica das empresas a que estão associados. Estas características transpõem o âmbito exclusivamente familiar, associando às empresas um certo tradicionalismo que, contradizendo os modelos hegemónicos que imperam no

186 O ideal de continuidade da família 183 mundo contemporâneo dos negócios, correm o risco de lhes colar a imagem de uma sobrevivência do passado da história económica das sociedades capitalistas. 85 A produção destes livros comemorativos e a organização dos encontros de família representam processos de produção de identidade familiar que se desenvolvem, simultaneamente, em diferentes níveis de acção e influência, resultando em formas, mais ou menos conscientes, de transmissão da memória familiar. A construção social deste tipo de lendas familiares não serve apenas para reforçar a imagem pública. Serve também um objectivo unificador no seio da família. A história construída nos rituais e celebrações familiares, as memórias e os objectos partilhados, ajudam a construir uma identidade colectiva por detrás dos interesses materiais e económicos. Sendo produto dessa história, estes itens mnemónicos são igualmente os seus produtores, na medida em que são eles que enformam as novas pessoas e as renovadas entidades colectivas que prolongam no tempo o ímpeto de criação original. 5. A importância de ter o nome de família Defendi no capítulo anterior que os descendentes são elementos centrais nos projectos dinásticos destas famílias empresariais, em que a identidade se consolida na reconstituição do seu passado e na previsão do seu futuro. A importância dos descendentes é decisiva na garantia da continuidade da família, mas também da continuidade da empresa. Todavia, não podemos esquecer que, apesar de as novas gerações serem fundamentais para a continuidade da família, nem todos os seus membros têm o mesmo valor enquanto potenciais perpetuadores dessa complexa 85 Discutirei este assunto em pormenor no Capítulo VII.

187 184 O ideal de continuidade da família organização, pois nem todos podem transmitir às gerações seguintes os símbolos da unidade e da identidade familiar. Um dos mais importantes desses símbolos é o nome de família, o apelido. São vários os autores que têm defendido a importância do nome de família e que salientam o seu papel decisivo de classificador social, conferindo uma imagem ao seu portador, um estatuto social, uma posição no seio da hierarquia local (cf. Zonnabend 1977: e 1980: 7 e Severi 1980: 110-1). Reflectir sobre a forma de transmissão do nome de família permitirá compreender como ele é um factor significativo de ancoragem dos indivíduos a um modo de se conceptualizarem a si e à sua família e um poderoso símbolo de identificação social. Apesar das relações de parentesco em Portugal serem marcadamente bilaterais, as famílias tendem a enfatizar os seus laços de identificação social com um lado da família. Em consequência desta tendência, verifica-se em Portugal a existência de práticas de transmissão de nomes familiares que favorecem a continuidade agnática. Esta é resultado da aplicação do ideal de varonia, de uma predominância simbólica do género masculino. Como resultado desta hegemonia masculina, defende-se que a continuidade do apelido, da própria família e dos títulos nobiliárquicos deve ser garantida através dos homens. Idealmente, nenhuma filha ou genro o poderá fazer. Se a continuidade simbólica da família depende da transmissão do nome, a sua sobrevivência dependerá, também, da existência de descendentes masculinos em todas as gerações. Esta questão é importante, na medida em que revela a eficácia do poder simbólico conferido ao nome de família no contexto das famílias que estudei e que atribui, assim, um estatuto totalmente diferente a rapazes e a raparigas no contexto familiar. As formas de nomeação são, desta forma, um poderoso instrumento de diferenciação entre homens e mulheres. A eficácia deste mecanismo tornou-se clara para mim em duas situações particulares da pesquisa. A primeira sucedeu quando um dos meus entrevistados estava a fazer uma lista, a meu pedido, dos seus irmãos e irmãs, referindo-se a estas últimas sempre pelo apelido dos seus maridos, como se elas já não fizessem parte da sua família. O que sobressai da

188 O ideal de continuidade da família 185 análise desta forma de classificação de irmãos, é uma ideia, bem sedimentada nestas famílias, segundo a qual as mulheres, quando casadas, são pensadas como pertencentes a unidades conjugais que irão dar continuidade a outros patronímicos, a outras identidades familiares. A importância da linha agnática foi particularmente bem ilustrada durante uma conversa que tive com uma entrevistada sobre transmissão de nomes. Com o seu mapa genealógico na mão ela disse: Vê Maria Antónia, aqui é muito evidente. O sangue passa pelos homens, por isso é que as casas e os títulos têm que ir para os filhos, mesmo que as filhas sejam mais velhas (Ma). Ao construírem a sua identidade familiar com base na persecução de um ideal de varonia, estas famílias criam importantes linhas de filiação agnática que não se reduzem à transmissão do patronímico. Há várias linhas agnáticas de transmissão patrimonial associadas à transmissão do nome de família. Estas linhas de descendentes, ou melhor de herdeiros por via masculina, constróem-se, sobretudo, em relação aos bens que simbolizam melhor, que tornam mais visível a identidade familiar. Um bom exemplo desta situação é o facto de as mulheres não herdarem, de uma maneira geral, as principais casas de família. Como vimos no capítulo anterior, estas são importantes símbolos da família, pelo que devem permanecer nas mãos de quem também detenha os outros, como o apelido e o brasão, que maioritariamente são passados ao filho varão mais velho. Me: A casa grande da quinta ficou para o meu irmão mais velho APL: Mas, a mais velha era a Senhora. Não deveria ter ficado para si? Me: Não, não. Claro que não. Quando o pai nos faltou o MR é que ficou o chefe de família. Claro que a casa era para ele. Nas famílias com que trabalhei, é através dos homens que se transmite à geração seguinte os símbolos mais importantes da família de elite apelido, casas, títulos, gestão da empresa familiar que ajudam a estabelecer um sentido de posição na hierarquia social. A constituição destas linhas agnáticas de transmissão de símbolos fundamentais à família de elite é referida por vários autores como um

189 186 O ideal de continuidade da família elemento característico das narrativas familiares em contextos de elites sociais vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Le Witta 1985, Lomnitz e Perez-Lizaur 1987 e Douglass Esta forma de transmissão de símbolos de família revela uma clara influencia dos valores ideológicos aristocráticos, segundo os quais só homens podem garantir a continuidade da família, através da transmissão do nome de família ao longo de gerações de herdeiros legítimos. Este processo de transmitir nomes de família remete-nos também para um modelo de conceptualização da família, da sua hierarquização interna e dos ideais que orientam a sua continuidade. Todavia, apesar de haver em Portugal uma clara tendência agnática na transmissão dos apelidos, a lei portuguesa é muito pouco restritiva sobre esta matéria, abrindo caminho a um número diversificado de combinações nos apelidos portugueses. João de Pina Cabral mostrou que, neste contexto legal flexível, a escolha do nome de família que as pessoas usam na sua vida quotidiana não corresponde, necessariamente, a todos os que lhe foram atribuídos pelos pais quando nascem, dependendo sobretudo do prestígio social atribuído ao apelido da família do pai ou ao da família da mãe (Pina Cabral 1991: e 174-6). 86 A escolha do apelido que se usa revela que se privilegia o lado que adquiriu o maior prestígio social, a mais alta posição social e a maior fortuna. A forma de referenciação familiar que os indivíduos decidem utilizar no seu dia-a-dia não é, portanto, prescrita, mas sim escolhida. E, o que o sentido dessa escolha revela é a direcção que se quer dar à continuidade desse colectivo familiar. A flexibilidade que a lei permite na atribuição de apelidos significa que, se os membros destas grandes famílias empresariais não estivessem interessados em reproduzir o ideal de varonia familiar um termo central da sucessão aristocrática, poderiam perfeitamente transmitir o apelido que quisessem, tanto através das mulheres como dos homens. No entanto, transmitir o patronímico 86 Esta flexibilidade legal e o consequente uso frequente do apelido da família da mãe serviram de base para alguns autores classificarem erroneamente o sistema português de transmissão de nomes como sendo matrilinear (cf. Bouquet 1993).

190 O ideal de continuidade da família 187 através de gerações sucessivas de descendentes masculinos cria, à volta do nome, uma mística de antiguidade familiar que é muito valorizada. Vale a pena lembrar, de novo, a maneira como Alexandre Herculano colocava a questão: O influxo moral de um nome ilustre, herdado dos antepassados, é também uma força social. Este influxo constitui a nobreza, a qual, não sendo um facto indestrutível é, todavia, uma realidade. A democracia que o condemna, ou nega, engana-se (cit. in Mello Breyner 1934). Os casos em que o apelido perdura no tempo e, associado a ele, um conjunto de sentimentos de identificação simbólica dos membros da família mostram, também, que esta se manteve unida ao longo desse tempo. Quando os apelidos de outrora continuam a ser símbolos de identificação importantes no presente e aqueles que os usam levam a cabo esforços conscientes para que continuem a ser elementos de união para as gerações seguintes, o passar do tempo, a antiguidade torna-se, em si mesma, um elemento prestigiante e legitimador do seu estatuto social. 87 A importância destes apelidos com história na identificação social e na legitimação do estatuto dos indivíduos está bem patente nalguns casos concretos. O caso da senhora Ma é disto um bom exemplo. Ao contrário dos seus irmãos, Ma tinha apenas o apelido do pai. Curiosamente, ninguém parece saber porque é que tal tinha ocorrido. No entanto, e apesar disso, toda a sua vida usou o apelido da família da mãe, uma família com longas tradições na vida financeira de Lisboa. Aos trinta e oito anos, Ma iniciou um processo formal na Conservatória do Registo Civil para inclusão no nome do apelido da família da mãe. Passados seis 87 A importância do nome para a aristocracia é bem revelada pelo discurso do actual Marquês de Fronteira e Alorna ao seu sucessor. O mais importante é saber que somos homens exactamente iguais aos outros e que nada temos a mais, a não ser um nome sonante e uma tradição. (...) O nosso nome apenas permite que saibamos quem foram os nossos avôs e avós. O nome que uns tiveram capacidade de ganhar pelos seus feitos, pelo serviço à Pátria e ao Rei, e que outros tiveram a capacidade de conservar pela sua sabedoria e pelo seu continuado serviço à comunidade. Isto quer dizer que o respeito e a consideração que muitas vezes o nosso nome ajuda a alcançar (...) é paga ao longo da nossa vida e geração após geração. É justo que assim seja (Mascarenhas 1994: 17, 19-20).

191 188 O ideal de continuidade da família meses o pedido foi deferido. Ma passou então a poder exibir o símbolo da sua família no seu Bilhete de Identidade. As grandes famílias empresariais privilegiam, idealmente, a construção de linhas de continuidade agnática no uso do patronímico. Porém, nem todas as pessoas usam o apelido de família do pai, o que mostra que não estamos perante um sistema fechado de sucessão agnática dos nomes de família. De facto, encontramos, com frequência, situações em que tal não acontece, sendo o apelido transmitido através das mulheres. Estes casos, em que se aproveita a flexibilidade legal para conseguir pôr em prática formas de recurso que permitam a reprodução das identidades familiares, têm um objectivo concreto: passar o apelido através das gerações dando uma imagem patriarcal da família. 88 O idioma do apelido, neste caso do patronímico é, desta forma, um instrumento elástico de manipulação de símbolos de identificação social. É importante assegurar que os homens das gerações futuras possam usar o apelido pelo qual ficou conhecida a família e a empresa. Então, através de uma gestão cuidada dos processos de transmissão de nomes, as famílias portuguesas conseguem transmitir os seus apelidos aos seus filhos, mesmo que o façam através de uma linha feminina. Tal não significa, todavia, que estejamos perante dois sistemas de transmissão de nomes que funcionam lado a lado. Pelo contrário, estamos perante um mesmo sistema que privilegia a transmissão agnática dos nomes de família, mas que pode ser levado a cabo de duas maneiras que, apesar de distintas, são complementares: a) o apelido passa de pai para filho a forma processual mais forte e mais prestigiante; 88 Um tipo de estratégia negativa semelhante pode encontrar-se nas comunidades piscatórias que desenvolvem sistemas de relações matrifocais como forma de resolver contradições nas suas duras condições de existência (vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Saly Cole 1994 e de Pina Cabral 1989).

192 O ideal de continuidade da família 189 b) o apelido passa de avô para neto varão uterino esta forma, sendo menos segura e menos prestigiante, é muito útil, enquanto recurso nas situações em que não há filhos varões que assegurem a continuidade da identidade da família, simbolizada através do seu nome. Mesmo da perspectiva de quem recebe o nome, esta forma de recurso apresenta-se também como uma vantagem. Em virtude de ainda terem o nome de família, os descendentes uterinos, apesar de estarem em desvantagem, podem ainda ser considerados sucessores potenciais. Ambas as formas de passagem dos apelidos ao longo das gerações familiares são apenas variantes do mesmo princípio, a saber: um esforço de transmissão identitária marcada pela hegemonia masculina que caracteriza este grupo social. A primeira é sinónimo de uma forma de sucessão agnática directa. A segunda é uma forma de transmissão agnática mediada dos nomes de família (avô neto) que, apesar de utilizada como recurso, se pode tornar muito útil. O recurso a esta forma alternativa de manipulação do sistema não o põe em causa. Pelo contrário, revela de novo que a continuidade da identidade familiar é marcada pelos ideais de hegemonia masculina. Se não fosse assim, o neto receberia simplesmente o apelido do pai e tal não constituiria qualquer problema. O facto de o patronímico poder ser transmitido por via uterina confirma e reforça a hegemonia masculina, mediando-a. Simbolicamente, é mais prestigiante se o nome de família passar através dos membros masculinos da família mas, quando não existem filhos varões, também se pode passar o apelido à geração seguinte através das mulheres que, posteriormente, o passarão aos seus filhos varões. Não sendo a forma mais prestigiante de transmitir os nomes de família, passar o apelido para os netos varões uterinos permite, no entanto, manter o essencial do ideal que confere importância simbólica à hegemonia masculina. No caso das grandes empresas familiares estudadas por Adriana Piscitelli no Brasil, encontramos um interessante exemplo de transmissão do patronímico por via feminina. Num momento da história da família em que não havia um sucessor masculino adequado para assumir a presidência da empresa, é a filha do segundo presidente do Império Matarazzo quem assume a liderança. Esta alteração no

193 190 O ideal de continuidade da família ideal de transmissão da presidência do grupo económico por via masculina promove, simultaneamente, a necessidade de estabelecer explicitamente, em testamento, que esta filha poderia transmitir o nome de família, um dos símbolos mais poderosos da consanguinidade, segundo a autora (1999: 171). Desta forma, a herdeira torna-se a sucessora empresarial da família, mas torna-se também a transmissora da substância familiar, reificada no nome de família que no futuro transmitirá aos seus filhos varões. No contexto das grandes famílias empresariais que estudei, a importância do patronímico não se circunscreve apenas ao âmbito da acção pessoal, familiar e social dos indivíduos que o usam. A sua importância estende-se, também, à acção empresarial onde, na maior parte dos casos, o nome da empresa é o nome de família do fundador: Grupo Espírito Santo, Orey Antunes, Casa Pinto Basto, Fábricas Mendes Godinho. A identificação entre o apelido dos dirigentes e o nome da empresa exprime, de novo, uma ideia que defendi no capítulo anterior: a diferenciação entre empresa e família está longe de ser total. A sobreposição recorrente entre o nome de família e o nome da empresa reforça a partilha identitária entre uma e outra, de tal forma que o valor e o prestígio do nome de família é, frequentemente, a dimensão mais duradoura destas formações família/empresa. 89 Analisemos de novo alguns exemplos. No início dos anos noventa, a Somague desenvolveu um importante processo de restruturação. Nessa altura as actividades do grupo expandiram-se e diversificaram-se grandemente, sendo criada uma holding para melhor gerir as participações do grupo nos diversos sectores de actividade em que estava envolvido. De forma a poder assumir o papel de gestor estratégico do Grupo, o presidente da empresa aproveitou este projecto de reorganização para delegar a parte executiva da gestão. Com este objectivo, foram admitidos profissionais 89 A comunidade onde se insere a família empresarial pode atribuir um prestígio e um poder ao nome de família muito mais elevado do que esta tem realmente. O nome de família, cuja utilização e transmissão os descendentes podem negociar de diversas formas, é um recurso muito adaptável e manipulável da família empresarial, pois ele sustenta a sua imagem pública e revivaliza-se nos sucessos posteriores dos descendentes da família. Sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Marcus 1992, Mension-Rigau 1994 e Pina Cabral 1995.

194 O ideal de continuidade da família 191 exteriores à família. Esperava-se que a competência profissional destes gestores fosse uma base sólida para a nova fase de expansão do grupo em novos terrenos de investimentos. No entanto, a experiência não resultou, pois, e de acordo com vários elementos da família, esses profissionais exteriores à família não se conseguiram impor como líderes legítimos à frente dos destinos da empresa. O facto de esses excelentes profissionais não serem da família fez com que os quadros superiores da empresa nunca aceitassem totalmente a sua autoridade, não lhes conferindo legitimidade para comandar. Tornou-se muito óbvio para mim que era preciso pôr alguém da família nesses lugares, alguém que tivesse o nome da família (Jg). A importância de assegurar que as pessoas nos lugares de chefia das empresas familiares possuem o nome da família o apelido do fundador da empresa é também muito evidente no caso dos processos de sucessão do Grupo Espírito Santo. Os três filhos varões do fundador sucederam-lhe, por ordem de nascimento, na presidência do banco. Mas, quando morreu o último, não era muito claro quem lhe devia suceder. O filho mais velho do primogénito do fundador JM era então vice-presidente do banco, facto que o tornava o mais provável sucessor à presidência. No entanto, JM não tinha o apoio dos outros ramos da família, que tinham outras preferências para a presidência. Nessa altura, a pessoa mais antiga do grupo, o único representante da terceira geração, era CR, marido da filha do quarto filho do fundador. No entanto, CR não tinha o nome de família pelo que não devia ascender ao cargo de presidente: Sabe, as pessoas confiam no nosso banco, na nossa família. Pôr alguém de fora da família na posição de liderança do grupo, mesmo um sócio tão antigo e importante como CR, separaria a imagem do banco da confiança depositada na nossa família. Isso trairia a confiança dos nossos clientes (JM). Por este motivo, foi escolhido MR, o filho mais velho do presidente cessante que era o mais novo dos filhos varões do fundador. MR conjugava, simultaneamente, as condições profissionais, o perfil, o prestígio, a qualidade do

195 192 O ideal de continuidade da família seu desempenho e o nome de família. Segundo afirmam vários elementos da família, tinha sido treinado pelo seu pai para assumir a presidência do banco. Nesta situação sucessória em que era preciso escolher entre dois homens que, de um ponto de vista estritamente profissional, estavam igualmente habilitados para o lugar, o facto de um deles não trazer consigo o símbolo do grupo familiar constituiu um importante factor de diferenciação. CR não podia ser um líder em todas as dimensões da palavra. Apesar de ter dedicado toda a sua vida profissional ao Grupo, tendo mesmo trocado a sua carreira militar pelas empresas do seu sogro, faltava a CR a marca da família: o apelido. Esta situação sucessória mostra também que, entre dois profissionais competentes, a pertença ao grupo familiar atestada pela partilha da substância que une os membros da família (o sangue) e pelo símbolo que os identifica como grupo (o apelido) é um critério mais importante do que a senioridade nas empresas. Para poder vir a aceder à presidência da empresa, neste contexto empresarial, não é suficiente ser um bom profissional. Ser portador do símbolo da empresa do patronímico da família é um trunfo importante, dada a importância simbólica atribuída ao facto de os lugares de comando serem ocupados por membros da família. Como me disse J numa entrevista o pé do dono é o adubo da terra, chamando a atenção para o facto de os donos, mais do que qualquer outra pessoa, terem o empenho e o amor à causa que são a base do trabalho árduo e da dedicação necessários para garantir o sucesso destes grandes impérios económicos. Porém, apesar de o nome de família ser um trunfo importante para aceder aos lugares de topo destas empresas, detê-lo não é condição necessária nem suficiente para os atingir. O apelido faz parte de uma gama de trunfos importantes de entre os quais não podemos esquecer a competência profissional, a dedicação ao trabalho, o respeito e o prestígio que cada indivíduo consegue adquirir na sua vida profissional e familiar. A análise destas situações de sucessão na liderança de duas grandes empresas familiares lisboetas, demonstra a importância do apelido como símbolo de integração dos indivíduos num grupo de pessoas que partilham uma identidade familiar, através de linhas de descendentes. Neste contexto social, o apelido cria,

196 O ideal de continuidade da família 193 naqueles que o usam, uma certa disponibilidade no acesso a determinados lugares de importância social ou empresarial. A possibilidade de tal acontecer é, em si mesma, resultado do poder simbólico e social do patronímico. Esta capacidade de o nome de família abrir um campo de possibilidades àqueles que o usam, é resultado do facto de este grupo social apoiar e legitimar o seu poder na família de pertença dos indivíduos portadora de um passado prestigiado que se quer continuar ao longo de gerações futuras. A importância do nome de família como símbolo de prestígio social, reside no facto de nele se condensarem várias formas de capital acumulado pela família ao longo de gerações. Enquanto símbolo de um conjunto de pessoas que partilham um objectivo, o apelido identifica e revela o que dá prestígio à família, pois traz consigo um capital simbólico que é um elemento importante para estabelecer a excelência social de uma pessoa. 6. Os nomes próprios como património familiar Não é exclusivamente a nível da atribuição dos apelidos, como marcas públicas de identificação da família, que a transmissão dos nomes se revelou um importante factor de construção e continuidade da identidade familiar. O meu irmão Francisco tem a mania que é desligado dessas coisas e quebrou uma das tradições mais bonitas da família do lado do meu pai. Desde sempre que os Condes de M eram "Thomazes" e Franciscos. Uma vez um e depois o outro. Agora ele acabou com isso. Foi chamar ao filho Miguel e ao outro Frederico. A minha mãe está desolada e o meu pai, se estivesse vivo passava-se" ( ) e eu também não acho nada bem. (Ma) A reacção da família à opção de Francisco percebe-se melhor se tivermos em conta que, há nove gerações consecutivas, se mantinha esta forma de atribuir

197 194 O ideal de continuidade da família nomes próprios aos primogénitos varões. Quebrar esta tradição familiar significou também quebrar a visibilidade das linhas de inscrição de continuidade de uma substância familiar, simbolizada na repetição alternada geracionalmente, dos mesmos nomes próprios. Os nomes próprios atribuídos às crianças reforçam também as formas de identificação familiar através da escolha repetida dos nomes dos antepassados que mais marcaram a história da família. A análise das genealogias destas famílias mostra que tal prática é extraordinariamente frequente. Idealmente, espera-se que os filhos mais velhos sigam as pisadas do pai. Por isso, os primogénitos são, com frequência, baptizados com o nome próprio do pai, tornando assim mais visível a continuidade das gerações sucessivas de membros de uma mesma família, prosseguindo um mesmo projecto identitário. Não é raro, portanto, encontrarmos um homem que partilha o nome de seu pai, do seu avô e do seu bisavô. Quadro 8 Transmissão de nomes masculinos ao longo de cinco gerações de homens José Maria José José Maria José (este não tem relação profissional com o Grupo e quebra a tradição) Marco

198 O ideal de continuidade da família 195 Quadro 9 Transmissão de nomes masculinos ao longo de quatro gerações mistas Ricardo (Não teve filhos pelo que a mais velha recebeu o nome da mãe) Mary Ricardo Ricardo Este último caso, mostra-nos que, tal como vimos acontecer com a transmissão dos apelidos, também a transmissão dos nomes próprios pode ser feita de uma forma mediada por gerações onde só existem descendentes femininos. De novo, a utilização desta estratégia negativa mostra que o importante é assegurar a manutenção visível da continuidade das linhas masculinas. Esse é o objectivo a atingir, nem que seja através de um processo menos ideal que inclua, no meio das linhas masculinas, mulheres que serão intermediárias dessa transmissão. A transmissão dos nomes próprios cria laços de identificação colectiva que podem ser expressos de várias maneiras. Para além das que já mostrei, encontrei também situações em que um casal dá aos seus filhos os nomes de vários parentes próximos, que podem incluir os do pai, avós, tios ou irmãos.

199 196 O ideal de continuidade da família Quadro 10 Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes masculinos de familiares próximos Manuel Manuel Ricardo (nome do pai e do irmão) Manuel Fernando e Fernando Manuel (nome dos avós materno e paterno, ambos poderosos accionistas no grupo económico familiar) Entre os D'Orey, por exemplo, esta prática é recorrente. Os nomes dos irmãos que fundaram a grande família, tal como ela é concebida actualmente, e que constituíram as empresas a que os D'Orey estão ligados desde há três gerações aqueles a quem carinhosamente chamam os D'Oreys velhos, são dados sistematicamente aos filhos e aos netos. Assim, temos uma sistemática repetição dos nomes Rui, Guilherme, Waldemar, Luís, Frederico, José Diogo, Maria Luísa, tanto na mesma como ao longo das várias gerações, criando, por vezes, dificuldades na distinção entre indivíduos particulares que são superadas por uma abundante e sistemática utilização de diminutivos.

200 O ideal de continuidade da família 197 Quadro 11 Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos José Diogo Luís = Ana Guilherme = Mª Luiza Mª Luiza Rui Frederico Guilherme Luis Ana Luiza Waldemar Guilherme José Diogo Rui Frederico Guilherme José Diogo Luís Luiza José Diogo Waldemar Luís Guilherme Luís José Diogo Mª Luiza Guilherme José Diogo Guilherme A transmissão dos nomes próprios permite recuperar a bilateralidade característica dos sistemas de parentesco europeus e atenuar a acentuação patrilinear promovida pelo nome de família que identifica o indivíduo apenas com uma linha familiar. Através dos nomes próprios, criam-se linhas de continuidade simbólica para os quatro grupos familiares de que descendem os indivíduos. Quadro 12 Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos Vera Mary Rita = José Maria Mary = Ricardo Mary Vera Rita Ana Maria Ricardo Mary Rita Ana Ricardo Vera José Maria Ricardo Maria

201 198 O ideal de continuidade da família Os complexos e variados processos de transmissão de nomes próprios às novas gerações de descendentes, criam também linhas de identificação femininas, algo que, devido ao ideal da varonia, é evitado no âmbito dos processos de transmissão dos apelidos. Efectivamente, é possível verificar nestas famílias uma notável regularidade na transmissão dos nomes femininos. Quadro 13 Nomes próprios masculinos transmitidos por famílias Total de nomes masculinos atribuídos a descendentes Número de indivíduos que têm o mesmo nome que outros parentes Família Espírito Santo Família D Orey ,8 Família Vaz Guedes ,9 Família Pinto Basto ,8 Família Santos ,3 Família Mendes Godinho Família Queiroz Pereira ,3 %

202 O ideal de continuidade da família 199 Quadro 14 Nomes próprios femininos transmitidos por famílias Total de nomes femininos atribuídos a descendentes Número de indivíduos que têm o mesmo nome que outros parentes Família Espírito Santo ,8 Família D Orey Família Vaz Guedes Família Pinto Basto ,6 Família Santos ,4 Família Mendes Godinho ,6 Família Queiroz Pereira ,3 % Quadro 15 Total de nomes próprios transmitidos por famílias Total de nomes próprios atribuídos a descendentes Total de nomes próprios repetidos % Total Família Espírito Santo ,6 Família D Orey ,2 Família Vaz Guedes ,5 Família Pinto Basto Família Santos ,3 Família Mendes Godinho ,6 Família Queiroz Pereira

203 200 O ideal de continuidade da família Os dados estatísticos mostram que, independentemente do género dos transmissores e receptores, há, ao longo das gerações, uma regularidade de transmissão dos nomes dos antepassados mais queridos. Pelo valor simbólico e afectivo que se lhes atribui, estes nomes constituem uma parte importante do património familiar. Tal como no processo de transmissão do apelido, o importante é assegurar que as gerações seguintes dão continuidade a um dos mais importantes símbolos do grupo familiar mesmo que seja através de formas de recurso. Também no caso das transmissões dos nomes próprios se verifica uma flexibilidade formal na persecução do objectivo de dar continuidade aos nomes dos antepassados cuja lembrança se quer perpetuar. No entanto, o investimento simbólico que os indivíduos dizem depositar na transmissão dos nomes próprios de antepassados difere conforme se transmitirem nomes de homens ou de mulheres. Eu dei o nome da minha mãe à minha filha. Foi uma espécie de homenagem à mãe. Eu gostava muito dela e toda a gente tinha imenso respeito [por ela]. Era uma lutadora e uma excelente chefe de família. Quis homenageá-la e mostrarlhe a minha admiração. Os meus filhos têm o nome do meu pai, dos meus tios e do avô. É a tradição da família. Os meus primos e sobrinhos também têm todos esses nomes, todos fazemos o mesmo para tentar continuar os mais velhos, que foram tão importantes ( ) (IR). Como mostra o depoimento de IR, atribuir o nome da mãe às filhas é considerado uma homenagem. Atribuir o nome do pai, ou do avô ou dos tios, aos filhos é continuar o espírito da família, é fazer perpetuar, simbolicamente, os antepassados que desempenharam um papel importante na formação da unidade família/empresa. Veja-se também, por exemplo, a afirmação de Ma que atrás referi, sobre o desagrado sentido colectivamente pelo facto de o seu irmão, detentor do titulo nobiliárquico da família do pai, não ter seguido a tradição familiar respeitante à atribuição de nomes próprios aos seus filhos, futuros portadores desse título.

204 O ideal de continuidade da família 201 As diferenças no significado simbólico atribuído na transmissão de nomes femininos e masculinos deve-se, de novo, à centralidade simbólica atribuída aos homens na continuidade da unidade familiar e da sua identidade. A análise estatística das práticas nominativas (ver Quadros 13 e 14) mostra que apesar de tanto os nomes próprios masculinos e femininos da família se repetirem sistematicamente ao longo das gerações há uma maior frequência para a transmissão de nomes masculinos em todas as famílias. Os exemplos retirados da literatura antropológica clássica podem, de novo, ser de grande utilidade comparativa para a discussão deste argumento. Em The Critique of the Study of Kinship, David Schneider descreve a forma como, entre os Yap, a legitimidade da pertença dos indivíduos ao grupo social não decorre do seu nascimento no seio de uma determinada linhagem, mas sim do facto de os seus pais lhe atribuírem um nome escolhido de entre o conjunto limitado de nomes que são propriedade do Tabinau comunidade a que pertencem. Mas, para que os pais o possam fazer, tiveram eles próprios de provar a legitimidade da sua pertença ao tabinau; que a sua conduta social esteve de acordo com os valores hegemónicos de respeito e obediência aos mais velhos e que o seu trabalho nas terras da comunidade foi árduo e empenhado (Schneider 1985: 21-3). Se, por acaso, os pais atribuíssem ao filho um nome que fosse propriedade de outro tabinau, estariam a conferir-lhe direitos de pertença a essa outra comunidade. No caso dos Yap, só os indivíduos que estão integrados no grupo e, portanto, interessados na sua perpetuação podem, querem reproduzir o património onomástico que o grupo detém colectivamente. No caso das famílias empresariais portuguesas, o interesse em reproduzir o património simbólico, social e material que detêm colectivamente decorre do facto de a manutenção da identidade social dos seus membros assentar em grande parte na continuidade desse património familiar, pois é ele que torna reconhecíveis os elementos da família ao longo de várias gerações. Se nem todos retiram do património familiar os nomes que escolhem atribuir aos seus filhos, é porque nem todos estão igualmente interessados em investir na continuidade do projecto familiar colectivo. Aliás, é interessante notar que aqueles que cortaram mais radicalmente

205 202 O ideal de continuidade da família com a tradição de repetir os nomes próprios dos seus antepassados foram aqueles que já não têm uma participação activa nas empresas da família, como são os casos, acima referidos, do irmão de Ma e do filho de JM. Os nomes dos homens e mulheres da família cuja memória se quer perpetuar são, como mostram os quadros anteriores e os mapas genealógicos (ver anexos) transmitidos para a geração seguinte, seja por via masculina, seja por via feminina. Isto é, tanto verificamos a regularidade da transmissão: a) dos nomes masculinos através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e avôs (maternos e paternos) filhos filhos como através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e avós (maternos e paternos) filha filho. b) dos nomes femininos através da fórmula: nome da mãe, tias (maternas e paternas) e avós (maternas e paternas) filhos filhos como através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e avós (paternos e paternos) filha filho. O conjunto dos nomes próprios que se transmitem e repetem de geração em geração faz parte de um património familiar comum, ao qual pertence também o apelido da família. Quem partilha os símbolos desse património partilha também algo de maior, algo de envolvente e unificador: o espírito da família. O grupo de descendentes de um antepassado comum não partilha apenas uma certa forma de consubstancialidade, que lhes é transmitida através do sangue. Partilham também um património familiar onde se enraíza e alimenta o seu projecto identitário. O património familiar é, assim, constituído por elementos de natureza diversa. São elementos que muitas vezes não têm força em si mesmos, mas cuja importância resulta da acumulação com outros factores. São elementos simbólicos, ou materiais, valiosos tanto em termos económicos como em termos de valor sentimental. De entre o conjunto de elementos, o nome de

206 O ideal de continuidade da família 203 família e um conjunto restrito de nomes próprios são aqueles que adquirem particular visibilidade. O conjunto de nomes próprios que fazem parte do património de cada família remete-nos, também, para um passado familiar mitificado. Repetir os mesmos nomes próprios, de geração em geração, contraria a individualidade e inscreve os indivíduos no grupo, o que normalmente é marcado, precisamente, pela atribuição de um nome próprio (Zonnabend 1977: 257). No entanto, e apesar da transmissão de nomes próprios e de apelidos ser semelhante nalguns aspectos, os primeiros revelam a pertença do indivíduo ao grupo de uma forma diferente da que é promovida pelos últimos. Os nomes próprios inscrevem os indivíduos no passado familiar de uma forma personalizada, pois a sua atribuição repetida segue um ideal que procura reproduzir nas gerações seguintes o papel do antepassado que detinha o mesmo nome. Como afirma Zonnabend: dar a uma criança o nome próprio de um parente não é apenas um acto de piedade filial, é predestinar a criança a perpetuar o seu antepassado homónimo e, através disso, proteger uma linhagem (Zonnabend 1980: 13). O objectivo da atribuição de um nome próprio é, portanto, perpetuar a importância afectiva e/ou social que se atribui aos antepassados que marcam de uma forma particular a memória familiar dos indivíduos. Ao repetirem-se ao longo das gerações, os nomes próprios dos membros da família ancoram a identidade de um indivíduo no seu passado familiar e marcam a sua pertença a um grupo. A sistematicidade na transmissão dos nomes próprios revela, de novo, a importância que o passado familiar tem na vida destes indivíduos. A verdadeira importância da repetição dos nomes próprios está, portanto, no interesse em repetir os símbolos da identidade familiar, através da repetição dos elementos que melhor a mostraram, que melhor a desenvolveram e que mais investiram na sua continuidade. O valor não está no nome, mas no interesse que se investe na pessoa que o usa. É interessante notar que, nas famílias menos dinásticas com que trabalhei, esta preocupação de transmitir os nomes próprios e o nome de família não é tão visível, na medida em que não existe uma identidade familiar alargada forte que

207 204 O ideal de continuidade da família queiram continuar. Este é o caso tanto da família Santos, proprietários da Jerónimo Martins, como da família Mendes Godinho. Tanto num caso como noutro verificamos uma transmissão dos apelidos vulgar na sociedade portuguesa nome próprio + apelido da mãe + apelido do pai, sem manipulações e com uma atribuição de nomes próprios decorrente do gosto dos pais e não claramente enraizada num património familiar de nomes próprios. A diferença entre as práticas nominativas das famílias com um maior sentido dinástico e das famílias que não têm esse desejo tão acentuado confirma o argumento que tenho vindo a desenvolver. Sem ter por base uma lenda familiar, a transmissão do nome não poderia assumir a importância simbólica que encontramos nestas famílias. É por isto que as famílias pouco dinásticas não investem tanto nos símbolos da sua identidade colectiva. Consequentemente, aqueles que nestas famílias poderiam ser potenciais símbolos identitários também não adquirem um significado colectivo muito forte. Através das transmissões dos nomes que fazem parte do seu património nomes próprios e patronímico, a família leva a cabo um duplo processo de subordinação da individualidade a formas de identificação colectivas e de atribuição de vantagens simbólicas em compensação. Nomes e apelidos são passados ao longo das gerações como partes de património familiar. São bens simbólicos de grande importância, pois relembram e legitimam a pertença à grande família. A importância do passado como elemento legitimador do prestígio da grande família faz com que, através da repetição de nomes próprios e apelidos, se construa uma imagem de continuidade, em que aqueles que partilham os mesmos nomes são vistos como os perpetuadores do projecto identitário familiar. Em suma, as práticas de transmissão de nomes próprios revelam que, desde a nascença, as crianças são integradas na família de uma forma socialmente produzida: ao receber o nome a criança está também a receber um símbolo da sua identificação social. Este processo mostra o empenho com que, no contexto destas famílias, se produzem pessoas familiares, isto é, pessoas cuja identificação social se encontra claramente inscrita numa unidade familiar, numa

208 O ideal de continuidade da família 205 unidade de identificação, que são supostas continuar. Não nos devemos, portanto, surpreender quando verificamos os inequívocos traços de continuidades dentro de uma unidade familiar mais ou menos extensa. Eles foram cuidadosamente produzidos pelas gerações controlante e declinante. E o facto de as gerações ascendentes crescerem nesse ambiente marcadamente familiar, ouvirem as lendas que ilustram a memória da sua família, viverem as constantes ajudas, trocas e festas que unem recorrentemente os seus membros, ajuda a perceber porque é que se pensam a si próprios como pessoas familiares, como continuadores no presente e no futuro desses laços de identificação passados.

209 CAPÍTULO V CASAMENTO E DESCENDENTES

210 1. Casamento: aliança entre indivíduos e relações entre famílias Nos capítulos anteriores, mostrei que a intensidade das relações sociais que unem os membros destas famílias empresariais resulta, em grande medida, do facto de partilharem os mesmos projectos de vida, valores e concepções do mundo. Mostrei, também, que a rede de solidariedades primárias que liga estas pessoas numa comunidade de práticas se reafirma, quotidianamente, nas relações de sociabilidade, de trabalho e em momentos rituais. Há, porém, uma outra dimensão em que estas redes de solidariedes primárias se revelam importantes na estruturação das relações sociais futuras dos indivíduos. Refiro-me à frequência com que se verificam alianças matrimoniais entre membros desta comunidade. Eu já conhecia o meu sogro há muito tempo, desde pequeno, pois as nossas famílias estavam sempre juntas em Cascais, onde passavam os quatro meses do Verão. Para além da amizade que unia as nossas famílias, eu costumava jogar ténis com o meu sogro, mesmo antes de sequer pensar que casaria com a filha dele (CR). O F era filho do maior amigo do avô. Naqueles meses em que vínhamos viver para Cascais as nossas famílias estavam sempre juntas. Ele estava sempre em casa de R, porque era uma casa muito animada. Era lá que nos reuníamos todos. Ele chegou a namorar a Ms. Ao fim de pouco tempo o namoro acabou, mas ele acabou por ficar na família. Casou com Me (MaJ). Como bem exemplificam os casos de CR e de F, as alianças matrimoniais estabelecem-se, preferencialmente, entre o grupo de pessoas com quem se mantém relações próximas de intersubjectividade, com quem se partilha uma comunidade de práticas, um modo de vida. A realização de casamentos com

211 210 Casamentos e descendentes pessoas próximas tem sido referido por diversos antropólogos e historiadores como uma característica do contexto europeu (cf. Pitt-Rivers 1973, Goody 1973 e 1976, Davis 1972, Heritier 1981, Zonnabend 1981, Pina Cabral 1991 e Bestard 1998). Jack Goody defende mesmo que os casamentos entre indivíduos de riquezas e estatutos semelhantes que designa por in marriage constituem um pré-requisito fundamental para a continuidade dos grupos sociais (Goody 1976: 11). Clarifiquemos esta ideia através de alguns exemplos empíricos. A tendência para o estabelecimento de alianças matrimoniais dentro do universo da grande família é, claramente, identificável na família Pinto Basto e, muitos dos seus elementos, definem-na como uma característica do seu universo familiar. Há muitos casamentos entre primos, de tal forma que na terceira geração há pessoas que são quatro vezes Pinto Basto. Ainda hoje se consideram parentes pessoas muito afastadas: desde que tenham o tetravô em comum, tudo bem. Há um grande culto dos antepassados e acho que é isso que explica esta nossa atitude: convidamo-nos para tudo e, assim, continuamos a ser uma grande família (MT). Os frequentes in marriages têm como principal consequência a constituição de uma dupla base de relacionamento entre diferentes ramos da família. Através da adição de relações de afinidade às relações de parentesco consanguíneo que os uniam anteriormente, estes casamentos recriam novas formas de identificação e aproximação. O passado familiar partilhado em comum e que forma um conjunto de referências importantes à constituição da identidade social destes indivíduos, reforça-se com a produção da dupla consubstancialidade que estas alianças originam. As redes de intersubjectividade partilhadas no passado ganham nova força no seu projecto de futuro.

212 211 Casamentos e descendentes Este tipo de alianças é também reencontrável na família D Orey. Foram vários os membros desta família que me disseram, com grande ênfase, nós casamos todos entre primos. Apesar do óbvio exagero em que cai a generalização, existe efectivamente uma grande frequência de casamentos entre primos dentro desta família (ver mapa genealógico nº 3). O enorme orgulho de ser D Orey, é expresso nestas alianças matrimoniais dentro da família. Casar com um primo é, neste âmbito, casar com alguém que é simbólica, social e relacionalmente muito próximo, alguém que estará também empenhado em dar continuidade aos símbolos identitários da família. Na família Espírito Santo verificamos, também, dois casos de duas irmãs que casam com dois irmãos, o que revela a proximidade relacional entre as duas famílias envolvidas, factor que está também presente nos casamentos estabelecidos entre primos (ver quadro 16). No caso da família Espírito Santo, um destes casamentos entre primos é particularmente interessante pelas consequências significativas que tem nos destinos do grupo económico. A neta do primeiro casamento de José Maria Espírito Santo e Silva, filha única e herdeira universal da irmã do seu pai considerada na altura do seu casamento uma das maiores fortunas individuais portuguesas (cf. Fonseca 1991),une-se em matrimónio com o filho mais velho do benjamim de José Maria Espírito Santo e Silva, sucessor na presidência do banco e que, sendo o filho varão mais velho, era o principal herdeiro de seu pai (ver quadro 4). Através deste casamento unem-se as duas maiores participações individuais do grupo. Este facto terá importantes consequências na forma como se vieram, posteriormente, a organizar as estratégias de sucessão dentro da grande família, pois esta aliança promoveu uma concentração accionista que conferiu a este ramo da família uma posição muito especial dentro do Grupo.

213 212 Casamentos e descendentes Quadro 16: Casamentos importantes para a família Espírito Santo

214 213 Casamentos e descendentes Através do casamento constróem-se laços de união entre as famílias de origem dos noivos e fortalecem-se os laços de solidariedade, social ou profissional, que, já anteriormente, uniam os seus membros através do mais sagrado dos compromissos: o casamento. Para perceber o amplo significado deste tipo de união para estas famílias, não nos devemos esquecer da importância do catolicismo na construção da sua concepção do mundo. Para as famílias católicas, o casamento tem uma enorme importância simbólica, na medida em que é considerado um acto sagrado e não exclusivamente um contrato formal. O casamento não é um facto meramente cultural imposto pela lei: é algo bem mais fundamental, que medeia entre a natureza e a cultura. A associação que Deus cria quando une um homem e uma mulher não é apenas indissolúvel, ela corresponde à criação de consubstancialidade (Pina Cabral 1991: 207). As histórias destas famílias e os seus mapas genealógicos mostram que os casamentos entre elementos de um grupo restrito de famílias são uma prática muito frequente. Quadro 17 Alianças matrimoniais por famílias casamentos com membros da mesma família casamentos com membros de famílias de elite outros casamentos Nº % Nº % Nº % Total de casamento s Família Espírito Santo 4 4, Família D Orey 12 11, , Família Vaz Guedes Família Pinto Basto , ,4 665 Família Santos 1 2,8 5 14, ,7 35 Família Mendes Godinho 1 4, ,1 49 Família Queiroz Pereira ,6 5 33,3 15

215 214 Casamentos e descendentes Estas alianças são, simultaneamente, resultado e condição para a consolidação da rede de relações sociais, económicas e de amizade que envolvem os seus membros destas grandes famílias. Ao casarem entre si reforçam o poder dos diversos capitais que constituem o seu património familiar, pois circunscrevem a sua circulação, restringindo, consequentemente, a exclusividade da sua distinção a este grupo de famílias. À medida que as gerações vão passando e que os casamentos se vão sucedendo, estende-se e consolida-se uma densa rede de alianças entre um grupo restrito de famílias. Esta rede de alianças torna-se, assim, um poderoso capital social desta comunidade.. Um exemplo da concretização deste ideal de casamento entre membros de famílias próximas e de igual riqueza e estatuto, é o das irmãs de Jorge e José Manuel de Mello (Grupo CUF). Uma delas casou com o primogénito de José Maria Espírito Santo Silva e a outra casou com António Champalimaud. Desta forma, através do casamento, de uma aliança sagrada, este grupo de irmãos uniu os três maiores grupos económicos portugueses antes de Este caso, certamente maximal, mostra de uma forma particularmente clara que a importância das alianças matrimoniais não deve ser vista exclusivamente do ponto de vista da continuidade de cada uma das grandes famílias envolvidas. As alianças matrimoniais têm um papel decisivo na própria continuidade do grupo social, do conjunto de famílias que constituem a elite empresarial lisboeta. Encontramos uma situação análoga entre outra destas grandes famílias. Os filhos de dois dos três principais sócios iniciais de José Maria Espírito Santo e Silva na constituição da sua casa bancária, casaram-se com mulheres da família Espírito Santo (ver Quadro 18). Aos laços de amizade e de investimento económico que uniam os sócios junta-se, assim, um elemento de ordem afectiva que une através de um sacramento os filhos dos sócios, agora tornados compadres. Os netos que nascerem desta aliança serão símbolos da continuidade do sangue da família de cada um, mas serão, também, a personificação consubstanciada da continuidade das estreitas relações mantidas por esses homens de negócios.

216 215 Casamentos e descendentes Quadro 26: Casamentos importantes para a família Espírito Santo

217 216 Casamentos e descendentes A quantidade e a frequência com que se estabelecem alianças matrimoniais entre um grupo restrito de famílias tem, necessariamente, repercussões no âmbito mais vasto da comunidade a que pertencem, reproduzindo o seu estatuto social, mas também a exclusão de potenciais novos membros desta teia de relações de intersubjectividade. Estas repercussões são relevantes tanto a nível social como a económico, pois fortalecem laços de solidariedade dentro da comunidade de práticas que se estenderão às gerações seguintes. A análise das alianças matrimoniais contribui para compreender melhor as relações sociais que estas famílias mantêm entre si, mas pode, também, ajudar-nos a perceber melhor os investimentos que os seus membros fazem para a construção das redes sociais que querem vir a ter no futuro. 90 Num recente artigo publicado sobre a família Espírito Santo, a jornalista Inês Dentinho descreve, com uma certa crueza, a cuidadosa gestão dos casamentos dos elementos desta família na primeira metade do século: Depois dos estudos feitos em Edimburgo, Ricardo casara em 1918 com Mary Cohen, filha de um conhecido judeu sefardita, financeiro de Gibraltar. José Espírito Santo, pelo seu lado apaixonara-se pela irmã Vera Cohen. Mas Maria a irmã mais velha dos Espírito Santo não aprova o namoro, que repete as famílias, e programa um casamento mais pensado: Maria José Borges Coutinho, Marquesa da Praia e Monforte, seria a mulher ideal para José Espírito Santo. (...) Explique-se que há uma vontade de ligar a família, burguesa na sua essência, à aristocracia lusitana (...) (Dentinho sd). A pronta intervenção da irmã mais velha dos filhos de José Maria Espírito Santo, demonstra a preocupação com a escolha dos parceiros matrimoniais dos membros da família. Não basta cumprir o ideal de casar dentro de um determinado grupo de famílias. É preciso também assegurar o alargamento das relações sociais, sobretudo se, através destas, se puderem integrar elementos da velha aristocracia portuguesa que tragam para a família os símbolos da antiguidade 90 Não posso, no entanto, deixar de referir que existem alguns casamentos estabelecidos com pessoas que não se adequam aeste ideal. Nas conversas que tive com os meus informantes sobre este tema, as referências a essas alianças eram sistematicamente evitadas.

218 217 Casamentos e descendentes ilustre, com que se legitima o prestígio, o elevado estatuto social, a pertença a um grupo de elite. A gestão dos afectos é um interesse de todo o grupo familiar e não apenas uma opção tomada individualmente. A atenção dedicada à escolha dos parceiros conjugais dos membros mais novos da família é bem descrita por uma senhora da família D Orey. A mãe via crescer os filhos. Preocupava-se com o seu futuro, sobretudo moral. Evitar a tentação... Eis a questão! E tratava de os empurrar para o casamento na boa altura, escolhendo ela, se possível, as noivas! Penso que todos, excepto o tio Ri foram casados sem dar por isso, ou dando mas gostando, pelas manobras discretas e hábeis da mãe... Eis como a avó procedia. Quando entendia que um dos filhos estava pronto para o matrimónio, convidava umas meninas que ela já devia ter debaixo de vista, alugava uma ou mais calèches e partia tudo: as meninas, os filhos, grandes cestos de pic-nic, para um alegre almoço ao ar livre. Depois da refeição, o bem-estar ajudando, os corações encontravam-se e... meu Deus... o resultado está à vista. Foram óptimos casamentos!! (ML) Este depoimento mostra bem a importância que é reconhecida aos casamentos dos mais novos para a continuidade do grupo familiar. Nestas famílias dinásticas, que têm um projecto de continuidade que implica a unidade e a colaboração dos seus membros, a escolha de um parceiro conjugal adequado é um facto decisivo para todos e não apenas para as duas pessoas que contraem matrimónio. Por isso, esta questão não pode ser deixada ao acaso. Uma vez que é no seio da família que se consolidam as bases da continuidade cultural, económica e social entre as gerações familiares, o casamento torna-se um passo decisivo para a continuidade da grande família, cuja importância está longe de poder ser considerada individualmente. É neste sentido que autores como Bourdieu (1972 e 1980) e Bertaux (1978) falam em estratégias matrimoniais: processos de decisão que desempenham um papel importante no funcionamento e na organização do grupo para garantir a manutenção ou o aumento dos seus poderes e privilégios herdados.

219 218 Casamentos e descendentes No entanto, é necessário ter algum cuidado, ao falar em estratégias familiares, para não correr o risco de reificar demasiado a família como unidade dotada de vontade e consciência própria,nem cair no reducionismo de afirmar que o estabelecimento de alianças dentro de um universo relativamente reduzido de potenciais parceiros matrimoniais é constrangido por estratégias expressamente produzidas para o efeito. Apesar de haver situações em que tal se verifica, como mostram os exemplos anteriores, creio que elas são uma excepção. De uma maneira geral, as coisas não se passam de uma forma tão explícita. Aliás, nem tal seria necessário. Não esqueçamos que os nossos projectos de vida, as nossas escolhas individuais e os nossos afectos não são exclusivamente pessoais. Eles são largamente condicionados pelos contextos socioculturais em que vivemos e dos quais são um reflexo. A eficácia dos processos de continuidade do projecto familiar vê-se, sobretudo, na forma como os membros mais novos da família se constituem como pessoas adultas, adoptando para si os valores, princípios e opções que são as do seu grupo de pertença. A forma como estas escolhas se apresentam como uma actividade electiva, escondendo os elementos que as condicionam e moldam, é, para mim, uma maneira mais enriquecedora de colocar esta questão, pois essas escolhas do coração são enformadas pelos valores culturais que ilustram as expectativas do seu modo de vida, da sua comunidade de pertença. Como afirma Joan Bestard, estas escolhas livres e por amor produzem-se sempre entre casais do mesmo grupo de estatuto, da mesma classe social, da mesma educação e do mesmo grupo étnico. A homogamia foi efectivamente um dos elementos característicos desta estrutura matrimonial baseada no amor individual. Não parece, portanto, que as asas do Cupido tenham voado com muito vigor através das afinidades electivas do casamento ocidental (Bestard 1998: 94). Pierre Bourdieu sugere uma interpretação semelhante, ao defender que os casamentos tendem a fazer-se entre famílias do mesmo estatuto económico (cf. Bourdieu 1980). Para este autor, se o sistema funciona na grande maioria dos casos é porque a educação familiar tende a assegurar uma correlação muito

220 219 Casamentos e descendentes estreita entre critérios fundamentais do ponto de vista do sistema e as características primordiais aos olhos dos agentes. A educação, reforçada por todas as experiências sociais, tende a impor esquemas de percepção e de apreciação, que se aplicam também aos potenciais parceiros conjugais. Nas suas palavras, o amor socialmente aprovado, portanto predisposto ao sucesso, não é outra coisa que o amor do seu destino social, que reúne os parceiros socialmente predestinados pelas vias aparentemente casuais e arbitrárias de uma eleição livre (Bourdieu 1980: 269). Se admitirmos, como Bourdieu, que uma das principais funções do casamento é reproduzir as relações sociais das quais ele é um produto, vemos também que as alianças matrimoniais que os indivíduos escolhem, correspondem estreitamente às características das relações sociais que as tornam possíveis e que elas tendem a reproduzir: a homogeneidade do modo de produção do habitus (as condições materiais de existência e de acção pedagógica) produzem uma homogeneidade de disposições e de interesses (1980: 320). Este argumento é, no entanto, teleológico, pois presume a existência de uma vida cultural e social íntegra e consistente, que precede a própria existência dos indivíduos: isto é, uma vida social que não é construída social e culturalmente através das acções dos sujeitos sociais. Levando a ideia de Bourdieu até às últimas consequências, teríamos um sistema endogâmico de alianças num sistema social que se reproduziria sem transformação geracional. Devemos, portanto, procurar outros modos de formular esta tendência para o estabelecimento de alianças matrimoniais entre indivíduos que partilham uma mesma visão do mundo e um estatuto social mais ou menos equivalente. Defendi anteriormente que a identidade reivindicada pelos indivíduos, e os projectos de vida que estes constróem, estão fortemente ligados à rede de solidariedades primárias em que estão inscritos. Neste sentido, a escolha homogâmica de parceiros matrimoniais enquadra-se nesta identificação de projectos e de identidades sociais que permitirá a continuidade da própria comunidade.

221 220 Casamentos e descendentes Proponho, então, que a questão seja colocada a partir da análise das formas como os indivíduos escolhem os seus parceiros matrimoniais, orientados pela sua pertença a um determinado contexto familiar e social, pois, como dizia Joan Bestard, as pessoas não flutuam na sociedade, mas estão encravadas em relações com outras pessoas (idem: 229). Uma formulação que adopte uma perspectiva construtivista da pessoa permite fugir a uma concepção funcionalista e reificante da unidade familiar. Parte-se de uma perspectiva que pensa os indivíduos como sujeitos sociais activos, independentes e coerentes, mas integrados num determinado contexto social em cujos valores e orientações se constróem como pessoas, num intercâmbio dialéctico entre auto-identificação e alter-identificação. Assim, se, por um lado, o contexto social em que os indivíduos se formam como pessoas condiciona a sua acção e as suas escolhas, por outro, ele pode ser, e é, também, manipulado pelas opções particulares que orientam a conduta social de cada indivíduo particular. Seguindo esta perspectiva, os arranjos matrimoniais devem, então, ser pensados como escolhas pessoais, resultantes das disposições culturais que os indivíduos incorporam através das suas condições de existência. Se somos construídos à imagem da nossa família, porque é que não iríamos reproduzir, se bem que sempre só parcialmente, as expectativas da nossa família? Desta forma, poderemos dar uma maior ênfase à maneira como os agentes obedecem aos seus sentimentos, não deixando de ter em conta que, ao fazê-lo, os indivíduos se aproximam do sistema de constrangimentos do qual são produto as suas disposições éticas, valorativas e afectivas. À medida que o tempo corre, as pessoas do mesmo grupo conhecem-se, ou conhecem alguém que conhece alguém ou conhece aquela pessoa; não há nenhum local na América onde a consciência de classe seja maior que entre a elite; em nenhum local o grupo é tão organizado como entre a elite do poder (Mills 1956: 283). Não estamos, portanto, perante nenhum fenómeno específico a este grupo de pessoas, nem tão-pouco a Portugal, mas sim perante uma situação que é comum, pelo menos, a toda a Europa mediterrânica (cf. Goody 1976, e Bestard

222 221 Casamentos e descendentes 1998: 162). Seguindo a sugestiva reflexão de Joan Bestard, torna-se claro que, para perceber o significado social do casamento, temos de analisar esta aliança na sua relação com o processo de reprodução social mais amplo em que as pessoas estão envolvidas: tanto a nível da continuidade da sua unidade familiar de origem como da continuidade da comunidade a que pertencem. O cumprimento do ideal social que privilegia o estabelecimento de alianças matrimoniais com indivíduos que não se encontrem nem demasiado próximos em termos de parentesco nem demasiado distantes em termos sociais (cf. Heritier 1981 e Zonnabend 1981), torna-se a expressão simbólica do ideal homogâmico de casar dentro do mesmo grupo de estatuto social. É precisamente neste sentido que Joan Bestard apresenta o casamento como uma forma de relacionar a identidade com o passado; pois apesar de o casamento implicar descontinuidade, os bens familiares que herdam criam continuidade social (1998: 160). O autor defende que os efeitos mais importantes do casamento dentro do grupo de pertença do indivíduo são a protecção patrimonial e a consolidação de redes familiares estáveis (idem: 147). Consequentemente, com o passar do tempo, a regularidade da repetição da prática de as pessoas se casarem com indivíduos com um estatuto social equivalente ao seu promove coesão e exclusividade no grupo. A propósito desta questão vale a pena analisar o trabalho de Lisa Douglass sobre famílias de elite na Jamaica (1992). Douglass mostra como a família e os valores familiares são utilizados na sociedade jamaicana para construir e legitimar as relações de poder que caracterizam todos os níveis de acção da comunidade. Ao longo da sua interessante monografia, a autora mostra-nos como as práticas e os valores familiares têm efeitos decisivos na hierarquia social de Livingston. A grande ênfase que os jamaicanos colocam na afirmação de que casam por amor mostra, segundo Douglass, que as emoções são enformadas por um significado cultural particular e que o poder dos sentimentos cuja importância empírica é reforçada no título da monografia The Power of Sentiments é uma das formas culturais mais operativas na estruturação da hierarquia social na Jamaica, uma sociedade onde a importância dos valores da família e do parentesco faz com que

223 222 Casamentos e descendentes poder e sentimento andem de mãos dadas. Com base numa análise cuidada das redes de relações de amizade de jovens e nas estratégias educativas das famílias, Douglass mostra-nos como grupos de amigos se formam com base em exclusões de relações de raça, preparação académica e acesso a determinadas profissões, que constituem importantes marcas de diferenciação na hierarquização social dos jamaicanos. Estas divisões são, mais tarde, seladas através de casamentos dentro de um grupo muito reduzido de famílias, que defendem, assim, a sua posição isolada no topo da hierarquia social de Livingston e no controlo das principais instituições públicas e empresas da capital (cf. Douglass 1992). Lisa Douglass defende que, entre as famílias da elite jamaicana, se encontra um tipo de casamento endogâmico (idem: 125). Todavia, o conceito de endogamia remete-nos para uma obrigatoriedade de escolha dos parceiros matrimoniais dentro da comunidade de existência dos indivíduos. Neste sentido, não me parece adequado o argumento da existência de casamentos endogâmicos, nem em Livingston, nem entre as grandes famílias empresariais de Lisboa, onde verificámos uma situação semelhante de recorrência de alianças entre famílias de elevado estatuto social. Por um lado, estas famílias não constituem exactamente um grupo social, com uma existência claramente definida e delimitada. Por outro lado, as suas escolhas de parceiros conjugais não seguem regras explícitas nem obrigações definidas. Elas são resultado de opções individuais, enformadas pelos valores culturais que ilustram as expectativas do seu modo de vida, da sua comunidade de pertença. Estamos, portanto, perante um tipo de casamento homogâmico e não endogâmico. Este conceito tem a vantagem analítica de se referir a alianças estabelecidas entre pessoas que partilham um estatuto social semelhante, sem presumir que existe um grupo particular dentro do qual se devem escolher os parceiros conjugais, e que estas escolhas obedecem a regras explicitamente definidas (cf. Bourdieu 1980: 269 e Bestard 1998: 94). Para perceber melhor a importância da distinção analítica operada pela utilização de um ou outro conceito podemos tomar como exemplo o trabalho de Gary McDonogh sobre as Boas famílias de Barcelona (1989). Nesta análise, o

224 223 Casamentos e descendentes autor defende que as alianças matrimoniais são decisivas para a continuidade, não apenas da família enquanto unidade social, como símbolos de identificação colectiva, mas também para a continuidade do grupo de elite social de que fazem parte. Mostrou como os casamentos sistemáticos entre famílias aristocráticas possuidoras de títulos e de símbolos de nobreza, mas economicamente desprovidas e famílias da nova burguesia ascendente muito rica mas sem símbolos de prestígio social foram fundamentais para a fusão destes dois grupos sociais, dando assim continuidade às antigas boas famílias catalãs. No entanto, apesar de os dados etnográficos que apresenta mostrarem que há um entrecruzamento estratégico entre as famílias que estabelecem alianças matrimoniais, Gary McDonogh afirma que estamos perante um tipo de casamento endogâmico (cf. idem: 215), remetendo-nos para uma realidade contraditória com a que procura mostrar através do argumento das alianças estabelecidas entre as famílias dos dois grupos sociais. Uma das consequências da recorrência de casamentos entre membros da mesma rede de solidariedades primárias é o prolongamento no tempo da unidade e da exclusividade deste grupo social, pois a frequência e a intensidade das solidariedades primárias estabelecidas no seu interior aumenta consideravelmente e a entrada de elementos novos no grupo é, desta forma, necessariamente restringida. São vários os contextos etnográficos onde podemos encontrar situações semelhantes a esta. De entre estes, parece-me interessante destacar, novamente, o trabalho de Abner Cohen sobre a elite crioula da Serra Leoa, onde o autor descreve a forma como este grupo se torna uma comunidade fechada devido, sobretudo, à grande densidade das alianças matrimoniais entre as famílias que a constituem e a um conjunto de práticas exclusivas aos seus membros. A frequência com que na Serra Leoa se estabelecem casamentos entre membros da comunidade crioula é resultado de um conjunto bem definido de ideais sobre quem são os parceiros conjugais adequados devem ser crioulos mas é, também, consequência da forma como

225 224 Casamentos e descendentes o envolvimento em relações primárias múltiplas e sobrepostas dá pouca oportunidade aos homens e mulheres crioulos para desenvolver idênticas relações com não crioulos. Apesar de esta exclusividade não ser pretendida, ela é o resultado da natureza das coisas (Cohen 1981:38). Os casamentos adquirem uma função social muito importante, pois, ao interligar pelo menos quatro grandes redes familiares, a nova família constrói um novo nódulo social, dando origem a um dos principais patrimónios da elite crioula: a sua rede de relações interpessoais, a grande rede de amity. Abner Cohen considera o casamento uma instituição fundamental para perceber a dramaturgia do poder da elite crioula na Serra Leoa, na medida em que a aliança que define é um elemento decisivo no estabelecimento e na manutenção da hierarquia social (cf. Cohen 1981: 76). A rede de relações interpessoais dos membros deste grupo de elite é o instrumento através do qual se coordenam, de uma forma informal e invisível, vários sectores especializados da vida pública: conseguem empregos, favores, influência e acesso a determinadas instituições através das suas redes de amizade e parentesco. Noutras palavras, Cohen mostra-nos como os membros da elite crioula usam as suas relações pessoais privadas para coordenar as funções públicas da comunidade (1981: 128), trespassando assim as práticas exclusivistas que lhes conferem prestígio social e assumindo um papel universalista que legitima o seu estatuto. Corroborando este mesmo argumento, o recente estudo de Niall Ferguson sobre a família Rothschild mostra, de uma forma sem paralelo nos outros trabalhos existentes sobre esta destacada família de banqueiros, a importância dos casamentos dentro da família na manutenção das relações entre os vários ramos da família ao longo dos séculos (cf. Ferguson 1998 e 1999). O autor documenta a notável realização de cinquenta e dois casamentos entre descendentes directos do fundador, durante o período compreendido entre 1824 e Ferguson aponta, como motivo crucial para a realização destes casamentos, a necessidade de manter laços fortes entre as cinco sucursais nacionais do banco. Com base nestes dados, o autor defende que um dos segredos do extraordinário êxito da continuidade familiar dos Rothschild deve ser, portanto, os casamentos intra-familiares, que

226 225 Casamentos e descendentes constituem uma peça mestra na transmissão do projecto desta grande família (cf. idem). Vale a pena analisar a recorrência dos casamentos entre membros deste conjunto restrito de famílias da elite empresarial lisboeta a partir de um outro ponto de vista, para não correr o risco de ficar prisioneira de uma noção monolítica deste processo de reprodução das redes de relações sociais. Das alianças matrimoniais realizadas resultam novas unidades sociais, novas famílias, que não reproduzem as relações e os modelos culturais que receberam da geração anterior. Pelo contrário, a cada momento, os novos casais promovem as redes de solidariedades que acham mais adequadas, seja por motivos sociais, afectivos ou profissionais. Cada novo casal, pela posição geracional que ocupa, tem uma relação particular com as estruturas de poder familiar e social, que está de acordo com os valores culturais, estéticos, políticos e morais da época. À medida que as novas gerações se vão casando, vão aparecendo novas famílias conjugais. Cada nova família que se forma com base na conjugalidade é, preferencialmente, neolocal, pelo que tenderá a construir a sua própria identidade. Neste sentido, a cada casamento, a constelação das relações entre famílias e o projecto identitário a que os seus membros pretendem dar continuidade são ameaçados por este processo de separação que decorre do aparecimento de novas unidades conjugais, de novas casas. Porém, os sentimentos de coesão e de interesses que partilhavam nas suas famílias de origem e que são revitalizados pela participação em projectos familiares comuns entre os quais as empresas têm um peso destacado reflectem-se nesta nova fase da sua vida. Através da manutenção de formas extra domésticas de associação familiar (Pina Cabral 1991) criam-se bases de partilha identitária que permitem a continuidade das famílias de origem. Tendo-se constituído como pessoas familiares, no sentido definido por Toren (1999), num contexto sociohistórico diferente do dos seus pais, os elementos destas novas famílias organizarão a sua vida e os seus projectos de uma forma relativamente original, articulando os sinais do seu tempo com os valores, compromissos, relações e projectos familiares em que estão integrados, e que, por isso mesmo, também fazem parte do seu projecto individual. Todavia, as relações

227 226 Casamentos e descendentes sociais em que os indivíduos se inserem, não dão apenas continuidade à rede de solidariedades em que estavam integrados pelas suas famílias de origem. Ao longo do tempo, cada nova família conjugal cria também novas relações, alargando assim a sua comunidade de práticas, na qual os filhos serão posteriormente integrados e que, mais tarde, reivindicarão como sua, ao tornarem-se adultos no seu seio, partilhando dos seus afectos, modos de vida e projectos. Desta forma, os filhos reproduzirão esta tendência homogâmica para estabelecerem alianças com membros de famílias com quem partilham um conjunto de afinidades morais, económicas, de modos de vida, de estatuto social e de projectos de futuro contribuindo para a continuidade do grupo; restabelecendo, alargando e redefinindo a cada geração as redes de relações sociais em que os seus membros estão integrados. Quando regressei a casa recebi uma carta do meu futuro marido a declarar-se. Mas eu só gostava de música e não queria saber de namoros e disse à minha mãe que não queria saber de nada daquilo. Mas a mãe disse-me assim: de todas as famílias que conhecemos esta é a mais parecida connosco, também têm capela com Santíssimo. Não digas já que não. Escreve-lhe para o conheceres melhor e depois logo decides. Afinal a mãe tinha razão. Acabei por me casar com ele (MC). Este relato chama a atenção para a existência de um ideal de parceiro conjugal que, neste caso particular, é explicitado de uma forma muito clara: alguém que partilhe os mesmo interesses, as mesmas crenças e o mesmo modo de vida. Neste caso particular, a questão da adesão ao catolicismo surge como elemento importante na definição da identidade familiar. Assim, estabelecer alianças com alguém que cumpra este ideal, mesmo sem fazer parte das relações directas da família de origem, é importante para alargar a rede de relações dos seus membros ainda que dentro do mesmo grupo exclusivo. O ideal de identificação de formas e projectos de vida, subjacente ao cuidado com que a mãe de MC analisava as potencialidades do estabelecimento de uma relação com um elemento daquela família, é bastante evidente e ilustra particularmente bem a afirmação de Pierre Bourdieu: as estratégias matrimoniais

228 227 Casamentos e descendentes visam sempre, pelo menos nas famílias mais favorecidas, fazer um bom casamento e não apenas um casamento (1972: 1109). Quando certas famílias têm uma posição social privilegiada que em parte mantêm através de um conjunto de práticas e valores familiares torna-se fundamental manter e preservar relações próximas entre elas, para defender um mesmo modo de vida e partilhar uma mesma concepção do mundo. Na sociedade portuguesa têm ocorrido grandes mudanças no que diz respeito a esta questão. A ideologia oficial do Estado Novo, concebia o casamento como algo particularmente importante na vida dos indivíduos, pois era através desta aliança que se constituíam as células fundamentais da sociedade. Aliás, de acordo com esse modelo ideológico, o próprio estatuto de indivíduo adulto estava associado ao matrimónio e à procriação. De acordo com este modelo ideológico, os homens adultos eram definidos como chefes de família, garantes da subsistência de uma unidade familiar. Pelo seu lado, o destino e a função das mulheres era dar à luz, criar os filhos, ser boa dona de casa, boa mãe e boa esposa vinculando, inescapavelmente, a mulher adulta a uma existência social associada a uma unidade doméstica: a uma unidade conjugal. 91 Actualmente, não se encontra na sociedade portuguesa uma associação entre estado adulto e matrimónio explicitada de uma forma tão evidente e normativa. De uma maneira geral, a intervenção dos membros mais velhos da família nas escolhas afectivas dos mais novos é, também, cada vez menos visível e menos aceite num contexto social onde as relações matrimoniais são, cada vez mais, concebidas como fonte de realização pessoal e afectiva que podem terminar quando deixam de ser satisfatórias (cf. Strathern 1997, Giddens 1996 e Bestard 1998). Esta nova concepção do casamento, associada ao número crescente de ligações conjugais sem casamento, contraria na prática a ideia de indissolubilidade veiculada pelo ideal católico e tradicional. 91 Aliás, de acordo com o Direito Eleitoral português vigente durante o Estado Novo, as mulheres só podiam votar em situações especiais, como nos casos em que eram chefes de família.

229 228 Casamentos e descendentes No entanto, para as famílias empresariais que estudei, o casamento continua a ser concebido hoje em dia como um valor supremo, associado ao ideal católico que define o matrimónio como um sacramento. Nesta formulação encontramos, também, e de uma forma perfeitamente articulada, um ideal retirado da tradição aristocrática: o casamento cria o espaço certo, legítimo para produzir a continuidade da família. De novo, encontro neste contexto social uma articulação entre os valores hegemónicos da sociedade portuguesa moderna e os ideais aristocratizantes da continuidade da família e de uma forte presença da religião nas suas vidas. Estes ideais transformam o modelo da indissolubilidade do casamento numa demonstração perpétua do amor entre duas pessoas que escolheram viver juntas para sempre. Como resultado da eficácia desta articulação, verificamos ainda que, actualmente, os membros mais novos destas famílias continuam a casar-se preferencialmente com pessoas com quem partilhem a mesma concepção do mundo e projectos de vida semelhantes. Sendo assim, não é, de facto, necessária uma intervenção directa por parte das gerações controlante e declinante nas escolhas matrimoniais da geração ascendente, na medida em que os seus processos de constituição como pessoas são uma base suficientemente forte e eficaz para orientar as suas opções electivas. Para além do importante papel que desempenha ao estabelecer uma união sagrada entre duas pessoas, entre duas famílias, a aliança matrimonial constitui, também, a condição necessária para a procriação tornando-se, assim, a base da perpetuação da família, da sua identidade e do seu nome. Marido e mulher formam uma unidade de procriação, mas esta nova unidade social só se concretiza totalmente quando nascem os filhos. Assim, a importância do casamento como unidade de produção de descendentes não decorre, apenas, do facto de este ser socialmente considerado o contexto ideal para produzir indivíduos, mas decorre sobretudo do facto de as alianças matrimoniais permitirem (re)produzir relações entre indivíduos. Os novos casais são núcleos reprodutivos, tornam-se elementos importantes para a continuidade do grupo familiar.

230 229 Casamentos e descendentes O casamento converte-se no centro de produção da continuidade da grande família, pois, sendo o locus da produção de descendentes, a aliança condensa os símbolos da solidariedade, da identidade e da continuidade que são fundamentais à grande família. Uma família empresarial sem descendência não tem sentido, por significar ausência de continuidade. 2. Filhos, descendentes e sucessores Não é apenas no âmbito da religião católica que a procriação surge como a mais importante contribuição do casamento. O nascimento dos filhos no interior do matrimónio simboliza a produção de uma substância comum que cria uma forma de consubstancialidade entre as famílias de ambos os cônjuges, assegurando também a continuidade da família no tempo. Sendo resultado de uma aliança entre membros de grupos familiares que fazem parte de uma mesma comunidade de práticas, o nascimento de filhos e netos comuns corresponde a um acto fundamental de reprodução social que cria, para as novas gerações, condições para dar continuidade às relações e projectos de vida existentes. Neste sentido, o casamento torna-se um elemento de integração entre a reprodução biológica e a reprodução social, dois processos necessários à continuidade dos grupos sociais. O facto de o casamento constituir o locus legítimo da reprodução biológica faz com que vários autores o apontem como um dos mais importantes elementos do parentesco vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Leach 1961, Goody 1973 e 1976, Heritier 1980, Schneider 1980, Pina Cabral 1991 e Bestard A forma como cada sociedade produz uma forma ideal para o estabelecimento das alianças matrimoniais entre os indivíduos condiciona as maneiras de levar a cabo a

231 230 Casamentos e descendentes reprodução biológica e define, simultaneamente, a organização particular das suas condições domésticas. 92 No contexto das grandes famílias empresariais, a produção de descendentes legítimos é um elemento decisivo na concretização dos ideais de continuidade familiar que defendem: a continuação da substância familiar, representada através de gerações sucessivas, é um símbolo da antiguidade da família. Mas, ao garantir a continuidade da família no tempo, os descendentes garantem algo mais. Garantem também a possibilidade de manter o controlo da empresa nas mãos de membros da família. Concomitantemente, a importância da procriação para a continuidade destas famílias está também associada ao espírito católico que orienta as vidas dos seus membros. A conjunção destes dois factores permite compreender o elevado número de filhos que encontramos na maior parte destas famílias (vejam-se, a título de exemplo, as genealogias das famílias Pinto Basto, Espírito Santo e D Orey. As alianças matrimoniais tornam-se, assim, um factor decisivo para as grandes empresas familiares, pois será através delas que a grande família se poderá manter ao longo do tempo como um referente de constituição de identidade social para os seus membros. Sem um processo de transmissão de elementos identitários e substâncias familiares para a geração seguinte, a família dinástica não pode sobreviver. Este é um processo longo que se faz ao longo da vida coexistente de várias gerações, na interacção de membros da família com idades e experiências diferentes. Sem descendentes não haveria continuidade familiar. Por esta razão, à medida que os novos membros da família vão nascendo, vão sendo incorporados pelos símbolos identitários do grupo. 92 Por condições domésticas devemos entender as formas através das quais se definem as condições de subsistência e de estabelecimento de relações de longo prazo entre pais e filhos que permitem a transmissão de conhecimentos culturais fundamentais ao contexto social em que vivem (cf. Pina Cabral 1991).

232 231 Casamentos e descendentes A forma como estas linhas familiares se constróem, apoiando-se nos mesmos símbolos, vivendo nos mesmos espaços e recorrendo aos mesmos artefactos, produz modos continuados de reivindicação identitária que integram, lentamente, os novos descendentes na família. Os percursos das heranças e dos nomes que analisaremos em seguida ilustram a importância dos descendentes, enquanto continuadores do sistema. A forma como eles se transformam de herdeiros em sucessores, aptos a continuar a grande família, será também aqui analisada. 3. Casamento e herança: a devolução promove a continuidade A relação entre as formas de organização dos sistemas de herança e os tipos de sistema de casamento tem sido amplamente documentada do ponto de vista do seu desenvolvimento histórico no contexto europeu (cf. Augustins 1982, Goody 1976 e 1983, Pina Cabral 1991 e Bestard 1998). Sendo o sistema de herança entendido como a forma através da qual a propriedade é transmitida entre as gerações (Goody 1976: 1) parte do processo mais vasto, através do qual as relações de propriedade se reproduzem no tempo resultantes da forma como se estruturam as relações interpessoais, o casamento torna-se uma instituição fundamental para perceber a reprodução social, na medida em que é no seio da unidade conjugal que se constróem os critérios de acesso aos direitos sobre a propriedade.

233 232 Casamentos e descendentes Os elos entre padrões de herança e padrões de organização doméstica são uma questão que não é apenas de números e formações, mas de atitudes e emoções. A maneira de dividir a propriedade é uma maneira de dividir as pessoas (Goody 1976: 3). Os laços da aliança são uma parte fundamental da reprodução da família pelo que existe, necessariamente, uma correlação entre o sistema familiar e as preferências e as proibições relativas às transmissões de propriedade. Dois modelos sobressaem na divisão clássica da relação entre sistemas de herança e a produção da continuidade das unidades familiares a discussão dos modos de reprodução dos grupos domésticos. Por um lado, o que define um herdeiro único; por outro, o que se baseia na distribuição igualitária da heranças entre os germanos (cf. Augustins 1982). Ao distinguir entre herança e sucessão, George Augustins contribui de uma forma fundamental para compreendermos a lógica de continuidade das unidades domésticas, baseando-a nos tipos de transmissão patrimonial entre as gerações que a constituem. No entanto, a utilidade da tipologia que propõe é bastante reduzida, na medida em que se aplica apenas ao mundo rural que define como estando isolado dos outros estratos da sociedade, não permitindo, por isso, descrever uma parte significativa das situações etnográficas concretas. A análise de Jack Goody sobre sistemas de herança na Europa é útil para pensar o contexto das grandes famílias empresariais de Lisboa. Ao contrário do que acontece nas sociedades africanas, na Europa, mesmo quando um certo tipo de propriedade é associada exclusivamente a homens, as mulheres são vistas como herdeiras residuais. Isto é, em situações de recurso, e para garantir a continuidade dos bens patrimoniais que se querem preservar, estes podem ser transmitidos a uma mulher que, na geração seguinte, os transmitirá a um homem que, por sua vez, dará continuidade à linha agnática. Neste sistema, que Goody designa por devolução divergente (1976: 10), o modo de devolução do património da

234 233 Casamentos e descendentes unidade familiar às gerações vindouras 93 contribui para a forma como se configuram as relações entre as gerações de parentes mais próximos e para o estabelecimento das alianças matrimoniais. Nas grandes famílias empresariais lisboetas encontramos uma situação peculiar, onde as duas formas de transmissão se articulam com os ideais de família. Em certos momentos, encontramos indícios claros da importância de instituir um herdeiro único, expressos na manutenção da tradição aristocrática de transmitir, de uma forma indivisa, a parte essencial do património ao filho varão mais velho nome, casa de família, brasão e título nobiliárquico. Noutros momentos, encontramos transmissões patrimoniais que procuram ser igualitárias entre o grupo de germanos, conseguidas através de dotes, doações, tornas e compras. O ideal aristocrático de concentrar a riqueza patrimonial da família nos seus aspectos materiais e simbólicos, aliado ao princípio de prevalência da varonia, está na origem da formação de linhas agnáticas de herdeiros, nas quais a primogenitura tem uma grande eficácia simbólica. Contudo, a lei portuguesa, a partir do Código Civil de 1867, aplicou os princípios do Código Napoleónico, criando um evidente foco de tensão na família. Desde 1863 não se pode falar, em termos estritamente jurídicos, de primogenitura em Portugal. Mais, se a definirmos como a transmissão integral de um património e do papel de chefe do agregado ao filho mais velho nem socialmente podemos falar da existência desta prática no século XX, pois não há evidências etnográficas. Desde o Código Civil de 1867 esse processo de transmissão integral deixa de ser possível. O que não significa que não haja tentativas de aproximação a esse ideal (O Neill 1997: 127-8). No entanto, o facto de há muito não ser legalmente possível um processo de transmissão integral dos bens familiares ao primogénito, não significa que não haja tentativas para o fazer e não sejam realizados esforços para pôr em prática 93 Jack Goody utiliza o conceito de processo de devolução para se referir ao processo mais vasto através do qual as relações de propriedade se reproduzem no tempo (...) entre os

235 234 Casamentos e descendentes esse ideal. Para manter os ideais familiares sobre papéis e transmissão de propriedade compatíveis com a lei em vigor, as famílias de elite portuguesa desenvolvem diversas estratégias, que lhes permitem aproximarem-se do seu ideal. Apesar de o primogénito não poder herdar tudo, não é por isso que deixam de o preparar para assumir as posições de liderança nas empresas. Há muitas estratégias para viabilizar o ideal da primogenitura e a sua eficácia depende essencialmente das alianças familiares existentes e do respeito, confiança e formação profissional que cada pessoa consegue adquirir. Estas famílias tentam, portanto, conjugar as suas tradições familiares nomeadamente, o ideal da primogenitura com as exigências legais do sistema de herança igualitário hegemónico em Portugal. Este ideal de transmissão agnática, que valoriza o primogénito, é de difícil aplicação. A possibilidade de ter disponível uma quota de um terço ou um meio no caso dos filhos únicos para deixar a um só filho é, nestes casos em que estamos perante heranças de um valor muito significativo, um importantíssimo elemento diferenciador. Por outro lado, há também que ter em conta a diversidade patrimonial da família que é, consequentemente, transmitida diferentemente aos vários filhos, tendo em atenção as expectativas para o futuro de cada um e o cumprimento da equitatividade. Esta dupla estratégia permite perpetuar a linha de descendência do antepassado fundador da casa, da empresa e do património que os rodeia, num equilíbrio em que as novas famílias conjugais, que se vão constituindo ao longo das gerações, desenvolverão os patrimónios que herdam e os transmitirão aos seus descendentes. Estamos perante um modelo de reprodução da identidade familiar que mantém algumas tendências de linearidade, que procura manter intactos alguns bens familiares ao longo das gerações como as casas de família,num sistema de distribuição igualitária dos bens patrimoniais pelas diversas unidades conjugais que deles descendem. No Capítulo VI retomarei a análise destas questões da divisão da propriedade por géneros. detentores dos direitos sobre a propriedade e aqueles que têm interesses de continuidade sobre esses direitos (Goody 1976: 1).

236 235 Casamentos e descendentes No âmbito destas grandes famílias o sistema de transmissão patrimonial entre gerações articula duas lógicas contraditórias: um ideal igualitário num sistema de devolução divergente e a necessidade de reproduzir a identidade cultural e financeira das unidades sociais através de linhas de descendentes masculinos. É possível encontrar esta articulação entre duas formas ideais de transmissão noutros locais socio-históricos. Tal é, por exemplo, o caso do sistema de reprodução das casas no Minho rural face às exigências de uma herança igualitária (cf. Pina Cabral 1989). O paradoxo que estes exemplos põem em evidência mostra que não há modelos rígidos e que devemos analisar as manipulações locais, contextualizadas, das normas veiculadas pelos sistema legais. A realidade de cada organização social não é nunca o resultado directo da aplicação destas normas, mas sim da manipulação que os sujeitos sociais que a constituem fazem delas, tentando adequá-las aos seus ideais de organização, aos seus projectos e desejos pessoais. 94 É por esta razão que encontramos com muita frequência sistemas de reprodução mistos, que se baseiam na articulação simultânea de diferentes forças relativas à constituição de identidade ao longo de gerações, promovendo assim formas de continuidade que não podem ser definidas exclusivamente por um modelo. Esta dimensão patrimonial remete-nos para uma questão que referi anteriormente sobre as escolhas de parceiros matrimoniais mas que vale a pena analisar sob uma nova perspectiva. Apesar do evidente peso do património entendido na multidimensionalidade dos seus aspectos materiais e sociais, como prestígio, valores, símbolos nas escolhas de potenciais cônjuges, é preciso ter cuidado para não cair num certo determinismo mecânico decorrente das necessidades de reprodução da família e da comunidade. 94 Veja-se, a título de exemplo, o fascinante trabalho de Charles Stafford sobre o parentesco chinês, em que se mostra que, na prática quotidiana, as relações de parentesco na China são resultado de uma articulação permanente entre relações centradas nas mulheres e não da aplicação dos princípios androcêntricos, que desde Freedman têm caracterizado o trabalho dos sinólogos (cf. Stafford sd).

237 236 Casamentos e descendentes As alianças económicas entre famílias unidas matrimonialmente são uma recorrência empírica inescapável e as consequências económicas que resultam das tendências para o estabelecimento de casamentos homogâmicos nas classes altas são evidentes. Quando os membros destas famílias empresariais casam entre si reforçam, de uma forma muito evidente, as alianças económicas que tinham anteriormente. Estes casamentos não são, no entanto, necessariamente programados com vista a obter proveitos económicos. 95 Na verdade, estas alianças matrimoniais derivam da totalidade de um amplo conjunto de acções diversificadas resultantes da forma como as pessoas cresceram no âmbito de um círculo de socialidades particular, tomando para si os valores, as atitudes e as relações da comunidade de práticas em que estão inseridas das quais os indivíduos e os grupos familiares a que pertencem, retiram uma maior força social e económica. Este facto remete, também, para a conveniência de os elementos que entram na família partilharem os mesmos valores que os seus membros acerca da sua organização e do papel que os indivíduos nela devem desempenhar. Entre as famílias da elite empresarial encontramos uma situação em que a reprodução das relações de natureza emocional, estabelecidas por um grupo de pessoas que constituem uma comunidade de práticas, é muito visível em termos patrimoniais. Colocar a questão em termos da discussão que opõe matrimónio e património 96 remeter-nos-ia, de novo, para o debate que opõe razões afectivas e razões económicas que, no meu entender, não ajuda a iluminar melhor a complexidade destas situações. Incorrer num excesso de patrimonialismo pode fazer-nos esquecer que os valores culturais, os princípios morais e os projectos 95 Lisa Douglass defende que, uma vez que os informantes vêm o casamento como sendo uma questão de amor pois vêm os assuntos de família como questões de sentimentos e não assuntos sociais então é dessa forma que o devemos analisar (1992: 264). Os valores morais que motivam a acção social não são puramente pragmáticos, são também formados por ideais que nos permitem compreender os valores que subjazem ao processo social. 96 Na sequência das análises históricas que mostraram a existência de uma clara relação entre os tipos de casamentos e os sistemas de herança, antropólogos e historiadores utilizaram abundantemente a oposição das expressões matrimónio / património

238 237 Casamentos e descendentes que envolvem as práticas quotidianas dos indivíduos e que estão subjacentes aos processos através dos quais se constituem as opções afectivas e económicas fazem parte de uma mesma visão do mundo: a que caracteriza o grupo social a que pertencem. A grande visibilidade dos patrimónios materiais, simbólicos e sociais destas famílias torna muito notório que a sua circulação se limita a um grupo restrito de famílias. Desta forma, é evidente a relação entre as escolhas de alianças matrimoniais e os ideais de distribuição patrimonial. No entanto, não devemos deixar-nos iludir por esta evidência na interpretação destas escolhas e da formação de redes de relacionamento entre famílias, pois tal levar-nos-ia a uma análise tendencialmente funcionalista. O limitar da circulação do património às famílias que fazem parte de uma mesma comunidade de práticas, da sua rede de relações de intersubjectividade, é consequência do facto de as afinidades electivas, no âmbito deste grupo de estatuto, tenderem a reproduzir-se através de casamentos homogâmicos ao longo das gerações. 4. Afins: os novos membros da família Sem casamentos que produzam descendentes, os negócios não poderiam continuar nas mãos da família. Mas os casamentos podem conduzir a problemas com os afins e, consequentemente, a conflitos na empresa potencialmente ameaçadores da sua própria continuidade; podem conduzir a divórcios e, também, para dar conta etnograficamente desta questão. Vejam-se por exemplo os trabalhos de Bourdieu 1972, Augustins 1982, Goody 1983, O Neil 1984, e Sobral 1993.

239 238 Casamentos e descendentes a re-casamentos. Para a continuidade das empresas familiares, o casamento dos seus membros tanto pode ser uma bênção como uma maldição. Quando casei o meu irmão veio logo convidar o meu marido para entrar para a sociedade e para ir gerir a casa bancária de Tomar. O meu irmão era extraordinário. Nunca o poderei esquecer. Sempre fez tudo pelo bem da família, queria que todos estivessem unidos e que trabalhassem juntos (MC). Através do casamento cria-se a possibilidade de integrar no projecto empresarial da família as herdeiras, accionistas que, por serem mulheres, não têm forma de participação activa nas empresas fundadas pelos seus antepassados. Este é também o caso de CR que, sendo oficial de Marinha, abandonou a sua carreira porque o seu sogro só tinha filhas. Para que o seu ramo familiar não perdesse o controlo sobre os negócios da grande família, eram os genros que tinham de assegurar a continuidade da sua participação. No caso dos casamentos com mulheres de outras famílias proprietárias de grandes empresas familiares, os homens ficam a trabalhar nas suas próprias empresas. Só se a família das mulheres não tiver nessa geração homens para assegurar os cargos de gestão é que ocuparão uma posição activa nas empresas delas. A aliança conjugal promove, em determinadas circunstâncias, a entrada dos maridos das filhas, das irmãs ou das primas para a empresa. Esta situação assenta numa lógica semelhante à da devolução divergente, na medida em que os laços de afinidade que a aliança cria serão transformados em consanguinidade através do futuro nascimento dos filhos. Segundo Adriana Piscitelli, que encontra nas grandes empresas familiares brasileiras uma situação semelhante, o facto de os genros serem incorporados em representação das herdeiras inscreve-se na desvalorização da afinidade apontada por Dumont, para quem as relações de afinidade são passageiras, no sentido de que os afins se convertem em consanguíneos dos descendentes (Piscitelli 1999: 132). Através da incorporação da afinidade na empresa, implementa-se aquilo que

240 239 Casamentos e descendentes Piscitelli designou por uma sucessão colectiva (idem: 133). De acordo com o seu argumento, a presença dos maridos das accionistas na gestão diária das empresas resulta da conjugação de dois importantes ideais: a) todos os descendentes recebem acções e b) o mundo dos negócios é estritamente masculino, pelo que a participação das mulheres terá de ser feita por representação. Porém, todo o casamento faz ameaças à propriedade e, consequentemente, a todo o grupo familiar que a detém, pelo que é necessário tomar precauções para que a entrada de novos elementos para a família seja algo de positivo e não uma fonte de problemas. A ideia da desvalorização da afinidade surge nalgumas das famílias com que trabalhei. Analisemos o seguinte caso. Uma das coisas que D combinou com o tio foi que ninguém que não seja da família por sangue (cunhados ou genros) poderá entrar para trabalhar nas empresas: da família só está quem é do sangue e merecer, quem mostrar que é capaz de cumprir o seu papel e enfrentar os desafios (D). Tal atitude decorre, em parte, dos maus resultados que a incorporação de afins teve numa empresa da família. Todavia, esta atitude tem sobretudo a ver com a associação simbólica entre solidariedade, confiança e dedicação familiar e a consubstancialidade que decorre da partilha de sangue e que é vista como garantia do reconhecimento público da legitimidade que os membros da família detêm para estar à frente dos destinos das suas empresas. Outro caso exemplifica bem esta necessidade sentida por algumas famílias de ter, com os afins, uma atitude diferente da que têm com os consanguíneos. N era casada desde 1957 com AS, antigo administrador do Banco de Angola e muito amigo do primo de N, que exercia então o cargo de presidente do grupo económico da família. Depois do seu casamento, AS começou a trabalhar nalgumas empresas do Grupo da família da sua mulher, mas nunca em áreas directamente relacionadas com a actividade profissional do sogro, segundo N para que ele não adulasse o pai. Esta definição de regras claras, em relação à entrada de parentes por afinidade nos quadros das empresas, remete precisamente para essa ideia de

241 240 Casamentos e descendentes tensão entre o projecto colectivo da família e os projectos individuais daqueles que entram no seio das suas relações. Outra das precauções que encontrei com frequência entre as famílias empresariais que estudei foi um número significativo de casamentos realizados com acordos ante-nupciais. Na sociedade portuguesa a maior parte dos casamentos adoptam o regime de comunhão geral de bens (até 1966) e a partir dessa data o regime de comunhão de adquiridos. Porém, entre as grandes famílias que estudei, a prática mais frequente é seguir o regime de separação total de bens. De acordo com um especialista na matéria, o acordo pré-nupcial ajuda a proteger o negócio de ser influenciado pelas dimensões pessoais dos indivíduos (Nelton 1989: 46). Cada vez que se celebra um casamento com um acordo ante-nupcial reafirma-se o perigo potencial de a intervenção dos afins poder provocar momentos de tensão entre o grupo de parentes. O volume e o valor dos bens que os noivos possuem e dos quais são herdeiros permite-nos compreender a recorrência a esta prática. O acordo ante-nupcial tem, portanto, como objectivo proteger a empresa familiar das pessoas que entram de novo para a família e que não partilham os símbolos de identificação com o projecto colectivo dos seus antepassados. A falta de identificação afectiva com o projecto familiar poderia fazer com que os indivíduos que entram na família por laços de aliança encarassem a empresa como sendo exclusivamente um investimento económico. Como tenho vindo a mostrar, tal não corresponde à forma como aqueles que cresceram no meio desse projecto familiar a concebem. Para estes, a empresa familiar é tanto um investimento simbólico como económico. É, sobretudo, um projecto colectivo do qual as pessoas fazem parte mas que nenhuma detém na totalidade. Os exemplos das famílias com que trabalhei mostram que, em muitos casos, o peso e a importância deste projecto colectivo é tão forte que faz com que os afins sejam integrados de uma forma eficaz nas suas múltiplas dimensões, abdicando com frequência das suas anteriores carreiras para se dedicarem integralmente a este projecto em que são integrados pela afinidade.

242 241 Casamentos e descendentes 5. Divórcios: de como as práticas sociais não correspondem aos modelos culturais Um olhar atento sobre os diversos mapas genealógicos destas famílias permitenos constatar uma grande frequência de divórcios, não apenas nas gerações mais recentes, como é tendência geral da sociedade portuguesa e das sociedades urbanas ocidentais 97, mas também nas gerações mais antigas. Quadro 19 Número de divórcios nas grandes famílias número de casamentos número de divórcios percentagem de divórcios Família Espírito Santo ,4 Família D Orey ,7 Família Vaz Guedes Família Pinto Basto Família Santos ,1 Família Mendes Godinho ,2 Família Queiroz Pereira ,3 97 Para compreender o aumento das taxas de divórcio nos últimos trinta anos é preciso perceber um vasto conjunto de transformações sociais: mudanças nas práticas e concepções da vida familiar, transformações na forma de conceber o casamento, as escolhas individuais e as práticas sexuais, o estatuto social das mulheres e a sua entrada massiva no mercado de trabalho (cf. Torres 1996). Uma das razões pelas quais o divórcio se tornou mais frequente decorre de transformações na própria forma de encarar o casamento. Afastando-se dos antigos critérios de segurança e continuidade das relações familiares, na actual concepção da conjugalidade a escolha do cônjuge valoriza os critérios amorosos e a satisfação pessoal. Mas, mais do que isto, esta nova concepção torna esses critérios os fundamentos da relação. Assim, esta só durará enquanto se mantiver compensadora para quem nela está envolvida (cf. Strathern 1997 e Giddens 1994).

243 242 Casamentos e descendentes A surpresa suscitada por um primeiro olhar sobre o grande número de divórcios nestas famílias exige uma análise detalhada. De acordo com os dados fornecidos por Anália Torres no seu trabalho sobre o divórcio em Portugal, o número de divórcios posterior à aprovação da lei do divórcio pelo governo republicano em 1910 não é muito expressivo, quando comparado com o de outros países com legislação próxima da nossa. Os protagonistas dos poucos casos de divórcio nesta época pertenciam, essencialmente, a grupos bem definidos da população portuguesa que tinham uma ocupação profissional que supunha escolaridades altas. Trata-se sobretudo dos sectores intermédios, mais escolarizados e sem grandes problemas económicos, das zonas urbanas, pertencentes a grupos profissionais como o dos comerciantes, a administração pública e os profissionais liberais (Torres 1996: 33). No entanto, depois deste sinal de defesa da liberdade de escolha dos cidadãos, dado pela I República, a lei do divórcio volta a ser alterada pelo Estado Novo, de acordo com os valores e os modelos de família que se pretendiam veicular e impor como modelo à sociedade portuguesa. O ideal da família harmoniosa, do casamento como um sacramento que une duas pessoas para toda a vida é o que justifica a imposição legal da indissolubilidade dos casamentos católicos decorrente da assinatura da Concordata entre o Estado português e a Santa Sé, em Da Concordata decorre um modelo legal específico de organização familiar que é reactualizado em 1966 com a aprovação do novo Código Civil. Porém, este diploma, em vez de modernizar a legislação de acordo com as exigências sociais dos tempos modernos, restringe ainda mais o divórcio, ao acrescentar o impedimento aos que se casavam apenas pelo Registo Civil de se divorciarem directamente por mútuo consentimento, possibilidade que se mantinha em vigor desde a I República. Só em 27 de Maio de 1975 é publicado um Decreto Lei que legaliza o divórcio por mútuo consentimento, mesmo para os 98 Criam-se assim dois regimes matrimoniais, adequando cada um deles à forma de celebração do casamento. Para os que queriam quebrar os laços restava apenas a possibilidade da separação judicial de pessoas e bens que, não dissolvendo o casamento, eliminava alguns deveres dos cônjuges, como o da coabitação.

244 243 Casamentos e descendentes casamentos católicos, após a renegociação com a Santa Sé do texto da Concordata. A frequência dos divórcios nestas grandes famílias empresariais num período anterior a 1975 altura em que se legalizou de novo o divórcio em Portugal reveste-se de um interesse particular por duas ordens de factores. Por um lado, porque o divórcio é, claramente, uma prática que contraria os valores tradicionais que estes indivíduos atribuem à família. Por outro, porque a frequência desta prática tem repercussões no desenvolvimento do grupo empresarial que a família constitui. Ao longo deste capítulo mostrei que as alianças matrimoniais constituem uma importante base de estabelecimento e/ou consolidação de relações entre as famílias da elite lisboeta ao longo deste século. Resultando em grande medida de laços anteriores de solidariedade, os casamentos selam ligações futuras entre famílias, e não exclusivamente entre os cônjuges. Quebrar estas ligações não é, portanto, um assunto estritamente individual, pois terá repercussões mais vastas ao nível da totalidade do universo familiar. Todavia, estas rupturas matrimoniais têm, também, implicações ao nível da estabilidade, organização e desenvolvimento do grupo económico familiar. Vejamos, de novo, um exemplo. A separação de J da sua primeira mulher, (Marquesa da Y), para se juntar com VC, com quem viria mais tarde a casar, teve implicações directas no posterior percurso de desenvolvimento do Banco Espírito Santo. Fora J quem, em 1920, transformaria em banco a casa bancária fundada por seu pai. As excelentes capacidades de gestão deste homem fizeram com que, em pouco tempo, o Banco Espírito Santo se tornasse numa instituição bem cotada na praça financeira lisboeta e se colocasse entre as três mais importantes instituições bancárias portuguesas. J foi o impulsionador da expansão territorial do Banco Espírito Santo através de uma intensa política de abertura de filiais por todo o país e é também a ele que se deve o forte investimento na vertente seguradora do grupo, com a compra e expansão da Companhia de Seguros Tranquilidade.

245 244 Casamentos e descendentes Em 1932, J separou-se da sua mulher, um episódio que foi muito mal visto socialmente na época, tendo também sido muito criticado no seio da sua própria família. Os ideias da moral católica, que guiavam a família e a maioria da sociedade portuguesa da época, não permitiam aceitar a dissolução de laços sacramentados pela Igreja. Tal dissolução fazia perigar a tradição, os bons costumes e a ordem familiar conservadora, defendida pela elite católica. Mas, para além disso, a dissolução do seu casamento teve importantes implicações nos destinos do grupo. Depois da separação, J foi viver para Paris com a sua nova mulher, tendo abdicado da presidência do Banco Espírito Santo, que foi então ocupada pelo seu irmão R. As implicações desta decisão pessoal nos destinos do grupo económico familiar não se resumiram à mudança das chefias e à precoce passagem do seu irmão para a presidência do banco. Como já referi anteriormente, elas fizeram-se sentir na produção de sucessores nesse ramo da família. O afastamento do convívio diário entre J e os seus filhos foi, no meu entender, um dos factores que contribuiu para que estes nunca tivessem assumido posições de clara liderança dentro do Grupo, apesar de ocuparem lugares importantes. Como vimos, o projecto de vida familiar e empresarial destes indivíduos assenta num ideal de continuidade e os divórcios impõem uma ruptura num sistema de relações que é suposto continuar. De facto, o casamento estabelece um conjunto de condições e relações que se enquadram numa lógica de reprodução social, onde os ideais da continuidade são mais valorizados que as lógicas do rompimento. No âmbito das grandes famílias empresariais, o divórcio surge como uma opção individual que entra em rota de colisão com as estratégias familiares. Ele implica, portanto, uma ruptura cujas consequências se estendem a todo o sistema. Todavia, os potenciais problemas dos divórcios são mais amplos que aqueles que decorrem da própria ruptura, pois o divórcio não quebra apenas a aliança e no caso de haver crianças nem esses laços quebra. O divórcio estabelece novas alianças com elementos potencialmente ainda mais estranhos à família.

246 245 Casamentos e descendentes O caso de T mostra como o divórcio não promove necessariamente uma quebra nos laços de relacionamento entre as pessoas. O pai de T pertence a uma das grandes famílias empresariais que analisei e apesar de os pais estarem separados já há muito tempo sempre foi a sua mãe quem lhe contou as histórias da família do pai e do grupo económico que aquela detém. De acordo com T, a mãe fazia-o para dar continuidade à mística que envolve a família e o grupo. É a minha mãe que insiste no meu envolvimento e no do meu irmão nessa mística porque o pai, apesar de trabalhar numa empresa do grupo, não gosta nada de ter de o fazer e não quer saber de nada do grupo. Ele tem um bar e um restaurante em Lisboa e é disso que ele gosta (T). Devido à separação dos pais, T e o irmão só vão às casas da família em ocasiões especiais, nomeadamente quando a tia (irmã do pai) que vive no Porto ou os tios do Brasil (irmão do pai) vêm a Lisboa, porque o pai não gosta muito de lá ir sem ter uma boa razão para o fazer. No entanto, e seguindo de novo o depoimento de T, mesmo estando a viver com a minha mãe, ela nunca deixou que nós nos afastássemos da família do pai. Nem o avô deixaria. Ele gostava muito da minha mãe e, mesmo depois do divórcio, continuou a estar muitas vezes com ela (T). Como este caso mostra, mesmo após a separação da unidade conjugal, os laços entre os elementos das famílias anteriormente unidas continuam a existir e a ter um papel importante, sobretudo quando estão em causa elementos familiares tão importantes e valiosos para a constituição da identidade social dos indivíduos. A frequência de divórcios entre estas famílias colide com as concepções morais do catolicismo e com o ideal aristocrático de continuidade defendido pelos seus membros. Entre a concepção da família e do casamento que defendem os valores e ideais que atribuem a essa união sagrada e as suas práticas e opções reais há, frequentemente, deslizes e incoerências. Estas revelam que a utilização que é feita dos valores nas práticas nem sempre é coerente com o modelo moral

247 246 Casamentos e descendentes que se constrói como ideal. A norma e o ideal cultural não são rígidos e não são necessariamente aplicados nas práticas sociais quotidianas dos indivíduos que os defendem. Num capítulo anterior, discuti esta questão a propósito do facto de o ideal de separação de famílias e negócios não se traduzir nas práticas de gestão das empresas familiares. Devemos, então, pensar estes ideais de organização das relações sociais, como a separação entre trabalho e família e a indissolubilidade dos casamentos, como disposições culturais que se usam estrategicamente, de acordo com a maneira que se considera mais adequada a cada situação. Assim, elas podem ser, e são, manipuladas da maneira que parece mais adequada aos interessados. É por isso que há tantos divórcios num universo familiar e social onde tal prática contraria claramente os valores e ideias religiosos e morais que praticamente todos aceitam. E é por esta razão que os parentes são sócios e trabalham juntos num projecto económico familiar num contexto onde trabalho e família são universos e valores que, em princípio deveriam estar cuidadosamente separados. Esta manipulação do valores ideais permitir-me-á explicar, nos Capítulos VI e VII, outros elementos relacionais centrais para o êxito e a continuidade destas grandes famílias.

248 CAPÍTULO VI HOMENS DE NEGÓCIOS E GESTORAS FAMILIARES

249 1. Produzir diferenças num sistema igualitário: distinções de género entre a elite lisboeta No âmbito destas grandes famílias de Lisboa, homens e mulheres têm uma participação substancialmente diferente nas empresas familiares que possuem em comum. Os negócios são, claramente, assuntos de homens. Paralelamente, a família é assumida como assunto de mulheres. Na sua maioria, as mulheres destas famílias de elite não trabalham nas empresas: dedicam-se à casa, à família e às relações familiares. Pelo seu lado, os homens os responsáveis pelas empresas estão afastados das decisões relativas à gestão diária do universo de acção familiar. A separação entre o tipo de participação de uns e outras neste projecto colectivo é, em grande medida, resultado dos ideais e valores que estas famílias defendem sobre a sua própria organização. Ora, como tenho vindo a mostrar, estas têm uma ênfase simbólica marcadamente agnática. Estando maioritariamente arredadas de uma participação activa na vida profissional das empresas, as mulheres desempenham um papel fundamental na manutenção das relações familiares o que, como veremos, é também central para a continuidade do projecto familiar. Através de uma permanente e hábil articulação entre relações familiares e relações empresariais, que uns e outras desempenham preferencialmente, homens e mulheres colaboram num projecto que é, afinal, o mesmo. Em termos ideais e simbólicos, a associação dos homens aos negócios e das mulheres à família continua a ser algo bastante valorizado, sobretudo no âmbito das gerações controlante e declinante. Na geração ascendente verifica-se, todavia, uma tendência para uma utilização mediada desse ideal que esbate essa separação, abrindo, a pouco e pouco, espaço para a participação das mulheres na vida das suas empresas. Assim, encontramos um número significativo de casos de

250 250 Homens de negócios e gestoras familiares mulheres a trabalhar nas empresas, revelando as alterações históricas no conteúdo da categoria social de mulher no âmbito destas grandes famílias. É, portanto, necessário ter em conta que, independentemente do ideal cultural veiculado em cada contexto social, não podemos pensar as categorias de género como homogéneas na sua composição ou historicamente imutáveis. Efectivamente, outras categorias como a idade, o estatuto social, o poder económico, o grupo social de pertença, o local de residência e o momento histórico da sua existência, por exemplo, promovem enormes diferenças entre pessoas do mesmo género. 99 Ser homem e mulher nestas famílias ligadas a grandes empresas e pertencentes a este grupo de estatuto não é o mesmo que ser homem ou mulher noutro grupo de estatuto. Da mesma maneira, não podemos deixar de ter em conta que os conteúdos culturais das categorias sociais estão em permanente transformação, reformulando-se através da acção social dos sujeitos que os usam e ao longo do tempo. Assim, ser homem e mulher nestas famílias, hoje em dia, não é a mesma coisa que tê-lo sido em meados deste século ou nos anos setenta. A diferente participação na vida familiar e profissional que encontrei entre homens e mulheres destas famílias verifica-se na maioria dos contextos sociais de elite (cf. Abner Cohen 1981, Ostrander 1984, Mcdonogh 1986, Marcus e Hall 1992, Douglass 1992, e Lave sd). Em todos os trabalhos etnográficos sobre elites, antropólogos, sociólogos e historiadores têm encontrado uma divisão relativamente mais rígida na diferenciação de categorias de género que afasta as mulheres do mundo do trabalho profissional. A ligação quase exclusiva das mulheres às actividades domésticas e familiares está, todavia, longe de ser um valor específico deste grupo de estatuto. 99 Sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Ana Nunes de Almeida (1985) sobre mulheres do Norte residentes em bairros clandestinos nos subúrbios de Lisboa, que trabalhavam às escondidas dos maridos para ajudar a sustentar a casa. Para não porem em causa o bom desempenho da tarefa dos seus homens, enquanto sustentadores da família, afirmam sistematicamente que não trabalham; Antónia Lima (1992) sobre a valorização simbólica atribuída na Madragoa às varinas que fazem um trabalho duro, e com características associadas à masculinidade; e de Miguel Vale de Almeida (1995) sobre a produção da masculinidade no contexto de uma vila alentejana.

251 Homens de negócios e gestoras familiares 251 Até há bem pouco tempo, esse princípio era reencontrável um pouco por toda a sociedade ocidental. Só no final do século XIX e nos princípios do século XX se iniciam, em Inglaterra e nos Estados Unidos da América, os primeiros movimentos de reivindicação da participação das mulheres na vida política e da igualdade de direitos entre homens e mulheres. Inicialmente, estes movimentos circunscreveram-se a franjas muito restritas da sociedade. Só a partir da década de sessenta tiveram uma adesão mais generalizada. Em Portugal, a expressão e o impacto destes movimentos foi, até muito tarde particularmente reduzida, sobretudo devido ao modelo de sociedade defendido e imposto pelo Estado Novo. 100 A divisão do trabalho por géneros, que define os homens como os provedores do sustento da família e as mulheres como as responsáveis pelas tarefas do lar, determina a conceptualização dicotómica da sociedade e inscreve as mulheres no espaço privado, do familiar, do emocional e do natural os laços genealógicos e os homens no espaço público, do trabalho, da racionalidade, do interesse. A separação espacial, física e temporal da permanência dos indivíduos nestes dois mundos, concebidos como separados, contribuiu para consolidar as imagens culturais construídas socialmente sobre trabalho e família e que decalcam a sexização destas dimensões da vida social família e trabalho para as representações que se atribuem a cada uma destas categorias sociais de género. 101 As primeiras e mais eficazes críticas à separação das esferas do trabalho e da família surgiram a propósito da construção das categorias sociais de género e, sobretudo, no quadro dos chamados "estudos feministas" que mostram a relação entre ambas, chamando a atenção para o facto de os padrões e os tipos de trabalho desempenhados pelas mulheres terem sido sempre fortemente influenciados pela posição que estas ocupam no seio da família e pelos papéis que 100 As já referidas organizações para a educação moral, cívica e cristã das mulheres portuguesas como boas mães entre as quais se destacam a OMEN e a MFP e as limitações das mulheres casadas ao exercício de determinadas profissões são disso um exemplo evidente (cf. Capítulo IV). 101 A afirmação de ramos disciplinares como a sociologia da família e a sociologia do trabalho tiveram também um papel decisivo no reforço da separação destas categorias com base em conteúdos sexuais.

252 252 Homens de negócios e gestoras familiares lhes são culturalmente atribuídos (cf. Yanagisako e Collier 1991 e Holiday e Ram 1993). Sylvia Yanagisako e Jane Collier, num volume onde lançam as bases de uma nova era de estudos, em que parentesco e género constituem um domínio único de reflexão, defendem que o primeiro objectivo a ultrapassar é a falsa dicotomia analítica entre os domínios "doméstico" e "político-jurídico" proposto por Meyer Fortes, e retomado por Parsons, na divisão que promove entre família e trabalho (cf. Yanagisako e Collier 1991). As críticas em relação ao próprio conceito de trabalho são fundamentais para perceber melhor as implicações deste problema na compreensão do contexto social que analiso. As definições de trabalho são, frequentemente, demasiado economicistas. Isto é: só se considera trabalho o conjunto de actividades profissionais cujo desempenho é recompensado com um salário, excluindo todo o tipo de actividades não remuneradas. Entre estas, encontramos tanto o desempenho das tarefas domésticas razão pela qual a grande maioria das mulheres que não exercem nenhuma profissão dizem que não trabalham como as actividades de solidariedade social, ou de beneficência, desenvolvidas, em particular, pelas mulheres destas grandes famílias. 102 O que está em causa é, 102 Um exemplo dos efeitos do processo de imposição de conteúdos culturais das categorias sociais de género, em Portugal, é dado por Sally Cole, no seu trabalho sobre uma aldeia de pescadores do Norte do país (1994). Na segunda metade dos anos sessenta, verificou-se uma entrada massiva de mulheres no mundo do trabalho fabril, abandonando o sector da pesca, onde até então concentravam as suas actividades diárias. Este movimento provocou inúmeras alterações na organização social da comunidade, nas suas unidades domésticas e no próprio conteúdo ideológico da categoria de género feminino. Apesar de, em termos reais, se basear numa perda de poder e autonomia por parte das mulheres, ao nível da sua participação na casa e na comunidade, e de acarretar para elas uma dupla jornada de trabalho até aí inexistente, esta mudança profissional significou, em termos simbólicos, um aumento do estatuto da mulher. Paradoxalmente, as mulheres que trabalham na fábrica definem-se como donas de casa, o que as coloca, em termos conceptuais, em igualdade com as mulheres da burguesia rural da região. A clara descoincidência entre a realidade (um duplo dia de trabalho assalariado e doméstico de umas e a dedicação exclusiva aos trabalhos domésticos de outras) e as categorias sociais ideologicamente construídas que aqui se verificam, revela-nos a importância das representações sociais na valorização e classificação da acção dos sujeitos. Até meados dos anos sessenta, as mulheres de Vila da Praia definiam-se como trabalhadeiras e tinham uma grande autonomia e poder de decisão e gestão no âmbito da sua unidade doméstica. A importância do seu estatuto no contexto da comunidade de pescadores era considerável e este era valorizado pelo trabalho que desenvolviam. Ao entrarem para o contexto industrial, as mulheres de Vila da Praia

253 Homens de negócios e gestoras familiares 253 portanto, o facto de essa definição de trabalho que é em si mesmo uma palavra polissémica não permitir dar conta do empenho, investimento e, efectivamente, do trabalho desenvolvido pelas pessoas que exercem estas actividades, em particular, as actividades das mulheres das famílias estudadas. Associado ao enviezamento que a utilização do conceito de trabalho promove na análise das actividades realizadas pelas mulheres destas famílias, devemos também ter em linha de conta os valores culturais através dos quais se definem as categorias sociais de género. Na verdade, a valorização do ideal agnático destas famílias empresariais, que defende que os homens da família devem ser os sucessores nos principais lugares de gestão das empresas, origina algumas tensões no âmbito do universo familiar, na medida em que a lei portuguesa estabelece um tratamento igualitário entre homens e mulheres no que respeita às transmissões intergeracionais. Assim, para agir de acordo com o ideal de transmissão varonil nas empresas, as gerações controlante e declinante deveriam transmitir um património familiar diferenciado a homens e mulheres das gerações ascendentes. Porém, eles têm de garantir, simultaneamente, que ambos recebem um património material de igual valor económico. No entanto, não devemos circunscrever a reflexão a uma análise das diferenças dos patrimónios que homens e mulheres recebem em termos quantitativos. A forma como estas famílias conjugam as exigências legais e os seus ideais de continuidade familiar, de modo a que só os homens se tornem sucessores na liderança da empresa, leva a que as gerações controlante e declinante consigam diferenciar os membros da geração ascendente. Tal diferenciação é feita com base em transmissões patrimoniais distintas em termos culturais e educacionais, mas equivalentes em termos económicos. Como defendi anteriormente, só o facto de ocupar posições de destaque nas empresas já faz os adoptam as categorias ideológicas adscritas ao sistema ideológico vigente do Estado Novo a mulher como dona de casa e mãe e percepcionam a troca de uma autonomia de facto por uma dependência construída como um aumento de estatuto que as equipara às donas de casa. Este exemplo remete-nos, de novo, para as implicações ideológicas, empiricamente enraizadas, do conceito de trabalho como algo que se refere exclusivamente ao exercício de actividades remuneradas.

254 254 Homens de negócios e gestoras familiares homens mais ricos e mais poderosos que as mulheres, mesmo que estas tenham recebido o mesmo capital que os primeiros. Ao contrário destes, as mulheres não gerem o seu poder accionista nas empresas, pelo que também não têm condições para o aumentar. Este é o mais significativo factor de distinção entre homens e mulheres, pois é aquele que permite e aumenta a assimetria de poder entre ambos, separando as suas esferas de acção social. Uma parte significativa das diferenças entre as heranças que recebem os homens e as mulheres destas grandes famílias resulta, sobretudo, dos processos através dos quais uns e outras se constituem como pessoas processos esses que são claramente influenciados por uma grande variedade de bens e capitais não materiais, transmitidos no âmbito da cumplicidade familiar do relacionamento intergeracional. Isto é, a transmissão entre gerações dos bens que adquirem mais peso na distinção entre os membros da geração ascendente ocorre em vida dos seus progenitores e não depois da sua morte. 103 De entre estes bens é de destacar a educação dos mais novos. Num contexto social que assenta em valores e expectativas diferentes para homens e mulheres, a educação de rapazes e raparigas é orientada de forma diferenciada, o que tem óbvias consequências na forma como uns e outras se constituem como pessoas (cf. Capítulo II). Estas diferenças verificam-se, por um lado, no âmbito da educação informal : o ambiente familiar e social em que as crianças crescem e se formam como pessoas, incorporando os valores, gostos, regras e relações de intersubjectividade que predominam na comunidade a que pertencem. Por outro 103 Num trabalho de investigação sobre formas de herança na sociedade inglesa contemporânea, Janet Finch mostra que, num momento histórico em que a esperança de vida dos indivíduos é muito elevada, não é esperável que as heranças patrimoniais que se possam receber por morte dos pais tenham muita influência na alteração das condições de vida daqueles que as recebem (cf. Finch 1996). Seguindo esta mesma linha de argumentação, George Marcus salienta a importância das transmissões inter vivos na formação dos membros mais jovens das famílias da elite americana, na sua diferenciação dos outros membros da sua geração (Marcus sd). Esta questão pode, também, ser ilustrada através do caso dos camponeses do Alto Minho, em que as mulheres, aquelas que tomam conta dos pais na velhice, herdam os bens de maior peso identitário e valor representacional, pois são elas que ficam com as casas. O peso das transmissões inter vivos levadas a cabo no âmbito da convivência diária ao longo da vida familiar são aqui decisivos para a consolidação de uma identidade familiar nos homens (João Pina Cabral 1989).

255 Homens de negócios e gestoras familiares 255 lado, elas encontram-se também ao nível da educação formal : baseado na selecção de escolas cujos projectos educativos e de formação moral sejam considerados adequados para a família. Assim, educar jovens raparigas nos valores culturais que associam homens aos negócios e mulheres à família é de central importância para este grupo de estatuto, pois constituirá a base sobre a qual uns e outros aceitarão os papéis que se espera que desempenhem no projecto colectivo do grupo familiar. Excluir as mulheres da possibilidade de aceder a uma participação activa nas empresas é, portanto, uma das formas mais eficazes de reproduzir a diferenciação entre grupos de género no âmbito destas famílias. De entre os vários bens e símbolos que as gerações mais novas recebem dos seus familiares, a herança mais importante é aquela que liga à propriedade a autoridade sobre a empresa. Ou seja, aquela que permite estar integrado na vida activa das empresas e ocupar os seus lugares de topo. Isto é, se um grupo de irmãos recebe uma herança de participações na empresa quantitativamente igual, mas uns estão ligados à sua gestão e outros não, estes últimos terão menos probabilidade de reproduzir e aumentar o património familiar que herdaram que os primeiros. Quanto mais sucesso tiver a empresa mais renderão as acções de ambos. Mas, com o êxito da firma maiores serão, também, os salários, regalias e investimentos daqueles que nela trabalham. Por seu lado, os outros apenas recebem os rendimentos da sua participação herdada. No fim da vida os filhos de uns e outros receberão consequentemente heranças muito desiguais. Os filhos dos primeiros receberão o capital herdado inicialmente mais todo o que o seu pai acumulou enquanto gestor de sucesso das empresas. Os filhos dos últimos receberam o capital inicial e apenas os lucros dele. Em suma, a herança, que é um acontecimento sincrónico, pode ser quantitativamente igualitária, mas as formas diversas como se produz têm efeitos altamente diferenciadores a nível dos processos de sucessão, que são diacrónicos. Por outro lado, não podemos esquecer que, como referi anteriormente, há formas absolutamente legais de promover distinções quantitativas entre o que cada herdeiro recebe. A utilização da quota disponível é uma estratégia possível

256 256 Homens de negócios e gestoras familiares para beneficiar uns em detrimento de outros. Este foi o caso de R, que deixou todas as acções aos netos, saltando a geração das filhas. Assim, os netos a partir dos vinte e um anos começaram a receber os dividendos das acções. Mi, uma das suas netas contou-me que foi com esse dinheiro que pode não trabalhar até 1974, estando já casada e com quatro filhos pequenos. Viviam com esta renda e com o ordenado do marido que trabalhava numa empresa do grupo económico da família, que tinha como presidente do conselho de administração o pai de Mi. JoMa utilizou outra estratégia de diferenciação. Em detrimento das filhas, JoMa alienou uma valiosa propriedade imobiliária à empresa, gerida e detida maioritariamente pelos seus filhos varões. Assim, ao excluir a propriedade do acervo dos seus bens pessoais, JoMa reduziu significativamente a herança a que teriam direito as suas filhas, promovendo, de uma forma absolutamente legal, uma desigualdade significativa entre os seus herdeiros varões e femininos. Em resultado do investimento numa educação diferenciada, a distinção de percursos de vida e de actividades quotidianas entre homens e mulheres destas grandes famílias é muito óbvia desde a infância. Tal foi-me recorrentemente revelado nas entrevistas que realizei durante o trabalho de campo. Um tema frequentemente abordado pelas mulheres era a forma como, quando eram novas, ajudavam as suas mães ou avós a organizar chás ou jantares importantes, aprendendo, assim, que loiças usar em cada momento, que toalha é mais apropriada para a ocasião ou onde se devem sentar as pessoas à mesa. A centralidade que os temas sobre a vida da família e dos seus membros ocupam nas conversas destas mulheres está relacionada com a importância que essa dimensão tem nas suas vidas. 104 Por esta razão, os meus esforços para conduzir as conversas com as senhoras destas grandes famílias para a vida das empresas de que são accionistas foram, na maior parte das vezes, desviados de 104 A propósito desta questão, vale a pena deixar claro que o facto de eu ser mulher fez de mim um interlocutor aceitável para falar sobre coisas de família, pois recolher genealogias e histórias de família é visto como uma actividade própria de uma mulher. Tendo contribuído para legitimar o meu interesse sobre o tema, creio que o facto de eu ser mulher foi, também, importante para a relativa facilidade com que estabeleci contactos com as mulheres das diversas famílias e para ter conseguido falar com elas sobre esta dimensão tão importante das suas vidas.

257 Homens de negócios e gestoras familiares 257 forma hábil para outras direcções. A vida das empresas faz parte de um mundo do qual estão arredadas e sobre o qual não queriam conversar comigo. Algo de paralelo ocorre nas conversas com os homens, cujas entrevistas se centraram, quase exclusivamente, em torno de assuntos relacionados com a história da empresa, estando ausentes as questões sobre a família. O facto de durante as entrevistas os homens falarem preferencialmente da história da empresa e de as mulheres dedicarem mais tempo a falar sobre questões familiares é, em si mesmo, algo que revela as expectativas que este grupo social investe numa e outra categoria de género. 105 Devemos, pois analisar com cuidado a afirmação que os negócios são uma coisa de homens e as mulheres nada têm que ver com a empresa. Os meus interlocutores masculinos e femininos falavam predominantemente sobre determinados temas. Tal não tem que ver, exclusivamente, com o facto de não os conhecerem. Na verdade, por várias vezes pude verificar que estas mulheres sabiam contar a história da empresa, pelo menos dos seus momentos mais importantes, tão bem como os homens: Da mesma forma, verifiquei várias vezes que estes sabiam, tão bem quanto as primeiras contar os episódios fulcrais da história da sua família. Tanto as mulheres como os homens com quem falei mostram deter um amplo conjunto de conhecimentos sobre o universo de acção da categoria de género ao qual não pertencem. Contudo, nem umas nem outros se mostravam dispostos a falar sobre esse assunto. Esta situação significa que estamos perante algo muito mais relevante que um conjunto de saberes específico a cada categoria de género e que tem que ver com a constituição da pessoa como um todo. O que está ausente em cada um deles é a disposição para agir sobre esse saber específico. Fazê-lo significaria pôr em causa a sua própria identidade social. Uma senhora a falar sobre assuntos da empresa iria contra a forma ideal como a agencialidade quotidiana das mulheres deve expressar e simbolizar a sua identidade social. Da 105 O próprio local onde decorrem os encontros ilustrava bem esta diferença, reificando-a. As entrevistas com os homens foram sempre realizadas nas empresas ou em restaurantes. As entrevistas com as mulheres tiveram lugar nas suas próprias casas, num ambiente familiar mais íntimo.

258 258 Homens de negócios e gestoras familiares mesma forma, os homens não poderiam falar sobre organização de jantares, toalhas e receitas, sem pôr em causa as suas formas mais essenciais de ser pessoa social. Os tema falados e os assuntos silenciados mostram, portanto, que estamos perante diferenças que correspondem à legitimação de conhecimentos e práticas específicas, que dão azo à constituição de pessoas diferentes que terão disposições para distintos tipos de agencialidade. As diferenças que encontramos entre homens e mulheres destas grandes famílias empresariais não estão, portanto, nos saberes que cada um detém. Elas encontram-se, sobretudo, na forma como as diferentes naturezas destes sujeitos sociais fundamentam práticas distintas que criam saberes corporizados embodied associados a categorias de género. É por essa razão que rapazes e raparigas são, desde pequenos, tratados de forma diferente, pois os seus familiares estão empenhados em que eles venham a desempenhar papéis diferentes nos destinos das suas famílias e das suas empresas. Se trabalhar na empresa é o primeiro passo para poder, eventualmente, chegar a posições de liderança na empresa familiar, excluir as mulheres da possibilidade de o fazer através dos processos pelos quais se constituirão como pessoas é a forma mais eficaz de garantir que elas não serão potenciais sucessores na liderança das empresas. O caso de N é ilustrativo desta questão. Numa entrevista em que falávamos sobre esta questão, N afirmou: Este é um país de machistas, pelo que o meu contributo para o Grupo é exclusivamente como relações públicas, e apenas a um nível informal. O pai adorava-me e como eu era a filha mais próxima dele, preparou-me para lhe suceder, de tal maneira que, em Paris, obrigava-me a assistir às conversas que tinha com os banqueiros com quem trabalhava. Eu não percebia nada mas fiquei a conhecer toda a gente, o que foi muito útil a seguir ao 25 de Abril (N). Esta afirmação de N ilustra claramente o argumento que tenho vindo a defender. Efectivamente, se num primeiro momento se destaca a tentativa feita pelo pai de N para contrariar a expectativa de uma vida marcadamente familiar para a sua filha, um segundo olhar sobre este depoimento mostra que, mesmo

259 Homens de negócios e gestoras familiares 259 quando se tenta alterar essa participação através de uma diferente preparação dos elementos femininos das novas gerações, o ambiente predominantemente masculino do dia-a-dia dos negócios acaba por se sobrepor, condicionando a participação das mulheres. Apesar de deter um conjunto de conhecimentos específicos que lhe permitiriam uma participação activa na vida das empresas, as disposições culturais que definem o seu género de pertença em nada favoreciam a entrada de N nesse universo de acção. Como este caso mostra, a distinção entre percursos sociais de homens e mulheres neste contexto social tem mais a ver com a possibilidade de concretizar determinadas práticas do que com os saberes que as enformam. Tem a ver com um embodiment dos saberes que, essencializando-se nas categorias de género, produz uma diferenciação profunda entre homens e mulheres. Note-se, porém, que uma situação como a de N ocorria, sobretudo, no período a que se reporta esta afirmação: Portugal antes de Mais à frente neste capítulo retomarei esta questão para analisar as alterações verificadas no âmbito destas famílias no período posterior à revolução de A separação de papéis e expectativas entre homens e mulheres corresponde a diferentes conteúdos das categorias de género predominantes nesta comunidade. Estas têm, no entanto, significados diferentes num e outro período. Neste sentido, posso adiantar desde já que o facto de as mulheres destas famílias continuarem, actualmente, a definir a sua identidade e os seus projectos de vida sobretudo por relação à sua família coloca-as, no quadro da sociedade portuguesa, numa situação minoritária, o que, por sua vez, confirma, reproduz e legitima a sua pertença a um grupo de estatuto particular.

260 260 Homens de negócios e gestoras familiares 2. Formar homens como gestores: produzir a liderança As formas de relacionamento familiar que orientam os rapazes para virem a assumir participações activas na vida das empresas são activadas desde muito cedo. Quando o meu pai construiu os depósitos do Porto Brandão, nós [eu e o meu irmão] íamos todos os fins-de-semana com ele visitar a obra. Íamos de barco. Para nós era uma festa. Para ele era uma maneira de nos ter ao pé dele, a ver o crescimento da Sonapa (Pq). A partir dos meus treze anos passava um mês de cada período de férias de Verão a trabalhar na serralharia do estaleiro ou na carpintaria, enquanto durou a obra de construção da barragem de Castelo de Bode (J). Quando éramos pequenos, durante os três meses de férias de Verão, eu e os meus irmãos íamos para África trabalhar nas empresas da família (B). Durante as férias brincávamos nas fábricas e passávamos a vida a fazer patuscadas nas empresas. Estávamos muito envolvidos na vida quotidiana das empresas (ZM). Como mostram estes excertos de entrevistas, os momentos informais de aprendizagem contribuíam de uma forma decisiva para criar laços entre os jovens e as empresas da família, iniciando, assim, o processo através do qual eles serão herdados pela empresa (vide Capítulo III): captados para assegurar a continuidade da organização. A sua inserção progressiva e silenciosa enreda-os quase inevitavelmente, à medida que vão crescendo. As transmissões de qualidades familiares que estimulam as aptidões empresariais são, como podemos ver, accionadas num mundo onde a participação das mulheres é muito reduzida. O progressivo envolvimento dos rapazes na vida das empresas culmina frequentemente com a admissão de muitos deles como trabalhadores, dando início a percursos que conduzirão alguns a lugares de topo da organização e, um

261 Homens de negócios e gestoras familiares 261 deles, à presidência. Tal significa, portanto, que nestas famílias e nestas empresas, nem todos os homens são iguais. Um de entre eles será o líder do grupo económico. No âmbito deste grupo social, verifica-se uma tendência para que o filho mais velho suceda ao seu pai na presidência, o que não é exclusivo de Portugal. A propósito das principais formas de promover a sucessão aos cargos mais importantes das empresas familiares americanas, Gersick afirma o seguinte: Historicamente, as famílias com empresas que têm tradições fortes têm-se apoiado na primogenitura, na hierarquia natural da idade. Na escolha dos líderes da geração seguinte, a primogenitura é o pressuposto mais comum. Isto tem um poderoso efeito nas dinâmicas familiares. Mas a primogenitura é uma regra arbitrária, baseada em valores familiares sobre género e idade (Gersick et al. 1997: 78). Mostrei anteriormente que, em consequência da adopção de um modo aristocrático de organização familiar, os membros destas famílias defendem que o sangue é um critério importante para estabelecer a pertença à família, pela partilha de uma essência comum. E é através desta substância que se adquire o direito a aceder às posições de topo, tanto na família como na empresa. No entanto, este critério de estabelecimento de uma pertença natural ao grupo não é suficiente. Para além deles, outros factores assumem importância, pois apenas alguns dos que partilham a substância conseguirão chegar a posições de liderança. De entre estes factores destacam-se as alianças familiares, o respeito e a confiança que cada pessoa adquire, a formação profissional e a competência que demonstram nas suas actividades empresariais. Para assumir uma posição de liderança na empresa familiar os homens têm de se distinguir entre os seus parentes, que estão igualmente habilitados a ocupar esses lugares por via da sua pertença familiar, através de uma cuidadosa gestão das suas relações pessoais no contexto familiar e, o que é mais importante, pela sua competência profissional. Vejamos como se concretizaram estas transmissões no âmbito das famílias com que trabalhei.

262 262 Homens de negócios e gestoras familiares Quadro 20: Sucessão na presidência das empresas da família Espírito Santo

263 Homens de negócios e gestoras familiares 263

264 264 Homens de negócios e gestoras familiares Quadro 22: Sucessão na presidência das empresas da família Pinto Basto

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