AVANÇOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE INCLUSIVA

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1 AVANÇOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE INCLUSIVA

2 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Presidente da Sociedade Mineira de Cultura Dom Walmor Oliveira de Azevedo Grão-chanceler Dom Walmor Oliveira de Azevedo Reitor Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães Vice-reitora Profª Patrícia Bernardes Pró-reitor de Extensão Prof. Wanderley Chieppe Felippe

3 AVANÇOS E DESAFIOS NA CONSTRUÇÃO DE UMA SOCIEDADE INCLUSIVA ORGANIZADORA Rosa Maria Corrêa Sociedade Inclusiva / PROEX / PUC Minas Belo Horizonte 2009

4 Ficha Catalográfica Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais A946 Avanços e desafios na construção de uma sociedade inclusiva / Rosa Maria Corrêa, organizadora. - Belo Horizonte : Sociedade Inclusiva/PUC-MG, p. : il. Bibliografia. 1. Integração social. 2. Acessibilidade. 3. Inclusão digital. 4. Direitos Fundamentais. 5. Educação inclusiva. I. Corrêa, Rosa Maria. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pró-reitoria de Extensão. Sociedade Inclusiva. III. Título. CDU: 376 FICHA TÉCNICA Organizadora Rosa Maria Corrêa Revisão final Antônio Libério Neves Projeto gráfico da capa Secretaria de Comunicação da PUC Minas Produção gráfica Segrac Editora e Gráfica Limitada 1ª edição: 2009 Reprodução parcial ou total permitida, desde que citada a fonte

5 SUMÁRIO APRESENTAÇÂO Alessandra Sampaio Chacham Rosa Maria Corrêa...7 PARTE I Inclusão Social: Reflexões Teóricas e Conceituais 1. DIREITOS FUNDAMENTAIS, ESTADO SOCIAL, SOCIEDADE INCLUSIVA Jorge Miranda INCLUSÃO, DIREITO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: CONCEITO E FORMA JURÍDICA DE INCLUSÃO Alexandre Travessoni Gomes SOCIEDADE INCLUSIVA E PSICANÁLISE: DO PARA TODOS AO CADA UM Ilka Franco Ferrari Maria José Gontijo Salum A INCLUSÃO DA CULTURA E A CULTURA DA INCLUSÃO José Márcio Barros MEIO AMBIENTE E INCLUSÃO SOCIAL: UM PARADOXO? Yasmine Antonini Eneida M. Eskinazi Sant Anna Geraldo Mendes dos Santos POR QUE AGIR CONTRA SEUS PRÓPRIOS INTERESSES? Jose Luiz Quadros de Magalhães...69 PARTE II Inclusão Social: Avanços e Desafios no Cotidiano 7. ULTRAPASSAR BARREIRAS E AVANÇAR NAINCLUSÃO ESCOLAR Maria Tereza Eglér Mantoan UMA ABORDAGEM HOLÍSTICA NA PRÁTICA DO DESIGN UNIVERSAL Marcelo Pinto Guimarães TECNOLOGIA PARA REABILITAÇÃO Marcos Pinotti Danilo Alves Pinto Nagem Claysson Bruno Santos Vimieiro Breno Gontijo do Nascimento Daniel Neves Rocha Kátia Vanessa Pinto Menezes...105

6 10. OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DIGITAL: ACESSO, CAPACITAÇÃO E ATITUDE Augusto Dutra Galery AS POTENCIALIDADES DA ECONOMIA SOLIDÁRIA: PRÁTICAS DAS UNIVERSIDADES Sonia Maria Rocha Heckert PROGRAMAS DE INSERÇÃO DE JOVENS NO MERCADO DE TRABALHO: O OLHAR EMPRESARIAL Dener Chaves Antonio Carvalho Neto PARTE III Inclusão Social, Gênero e Raça: Questões Específicas 13. GÊNERO E RAÇA NO BRASIL: IMPASSES E AVANÇOS Rosana Heringer INCLUSÃO, EXCLUSÃO E RAÇA: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E SOCIEDADE José Tiago dos Reis Filho MULHER NEGRA E A INCLUSÃO NOS DIREITOS SOCIAIS Alzira Rufino PERFIS DE AUTONOMIA E VULNERABILIDADE NA JUVENTUDE: DIFERENTES ASPECTOS DA EXCLUSÃO SOCIAL Alessandra Sampaio Chacham Ana Laura Lobato Lucas Wan Der Maas...185

7 7 APRESENTAÇÃO Alessandra Sampaio Chacham 1 Rosa Maria Corrêa 2 Na década de noventa, alguns professores da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), preocupados com a formação de educadores que atuavam em escolas especiais, pensaram, inicialmente, em promover um encontro em que se discutisse a prática educacional dessas escolas. Mas logo viram que essa era uma questão complexa, que exigiria discutir também a acessibilidade, a saúde, o trabalho, a tecnologia, a arte e o direito. Assim, acabaram por organizar, em outubro de 1999, o I Seminário Internacional Sociedade Inclusiva. O primeiro seminário, intitulado apenas como Sociedade Inclusiva, trouxe vários pesquisadores de outros países como Suécia, Chile, Inglaterra, Estados Unidos e de vários estados brasileiros, para discutir como uma sociedade poderia organizar-se a fim de ser inclusiva. Naquele seminário, propôs-se a criação do Fórum Permanente Sociedade Inclusiva, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão (PROEX) da PUC Minas. Mais tarde, a Sociedade Inclusiva: rede de inclusão social foi reconhecida pelo Conselho Universitário (CONSUNI), pela resolução nº 02/2005. A princípio, o Núcleo Sociedade Inclusiva, composto por professores e alunos de vários cursos da Universidade, inspirado na Declaração dos Direitos Humanos de 1948, da Organização das Nações Unidas (ONU), deteve-se em discutir o acesso aos direitos das pessoas com deficiência. Em um segundo momento, o Núcleo passou a discutir o acesso dos grupos de negros e índios e, mais recentemente, o de grupos que, por questões de gênero e orientação sexual, são discriminados e excluídos dos direitos fundamentais. A discussão de exclusões direcionadas a outros grupos também integra os seminários realizados a cada dois anos. O Núcleo tem como princípios conceber uma sociedade inclusiva como aquela em que todas as pessoas, independentemente do sexo, idade, crença, etnia, raça, orientação sexual ou deficiência sejam, necessariamente, reconhecidas como cidadãs e a todas sejam facultados os direitos econômicos, sociais, civis e culturais, eliminando quaisquer formas de discriminação 1 Doutora em Demografia e professora na PUC Minas. 2 Doutora em Educação e professora na PUC Minas.

8 8 e segregação; primar por uma sociedade aberta e acessível a todos os grupos, que encoraje a participação e aprecie a diversidade e as experiências humanas; compreender a atividade extensionista voltada para a inclusão social como uma das formas de expressão do compromisso social da Universidade e de tornar público o conhecimento produzido por ela; entender a prática de extensão como interdisciplinar e transdisciplinar, associada ao ensino e à pesquisa e realizar parcerias de cooperação interinstitucional. Desde o seu surgimento, o Núcleo desenvolveu várias ações de debate e promoção dos direitos de grupos historicamente excluídos dos direitos fundamentais. A ampliação dessas ações em seminários internacionais merece destaque por reunir pessoas com diferentes olhares para a discussão e promoção de produção científica e sobre a temática sociedade inclusiva. No primeiro seminário, buscou-se conceituar a expressão Sociedade Inclusiva, porém houve muitas dificuldades em encontrar pessoas no Brasil para debater o tema. No segundo seminário, em 2001, a discussão foi ampliada, incluindo-se a temática da globalização, do meio ambiente e da responsabilidade empresarial, dando-se destaque à questão da inclusão racial. No terceiro seminário, intitulado Ações Inclusivas de Sucesso, realizado em maio de 2004, muitos trabalhos foram inscritos, mostrando que a discussão havia provocado mudanças na sociedade. No quarto seminário, realizado em outubro de 2006, propôs-se avaliar os impasses e avanços das propostas e das ações inclusivas devido ao acúmulo de experiências debatidas nos seminários anteriores e que exigiam uma reflexão mais apurada. No quinto seminário, realizado em outubro de 2008, foi discutida a questão das diferenças de pessoas e de grupos, e a da sustentabilidade, um paradoxo na sociedade contemporânea. Outra ação do Sociedade Inclusiva envolve a mobilização de instituições civis e públicas para a discussão e a divulgação da legislação brasileira sobre direitos de pessoas com deficiência, étnico-raciais, sexuais e idosas, que estimularam a elaboração de livros e cartilhas referentes a esses direitos. Em 2002, foi realizado o Diagnóstico da Educação Inclusiva no Ensino Fundamental de Belo Horizonte (MG) e Contagem (MG), que apontou a necessidade de investimento do Núcleo na formação continuada dos professores. Desde então, são promovidos cursos de extensão, especialização e palestras para educadores, com o objetivo de auxiliá-los a refletir sobre as práticas educativas e como encontrar estratégias de ensino-aprendizagem menos excludentes. Já em 2007, foi elaborado o Diagnóstico da Inclusão das Pessoas com Deficiência no Mercado de Trabalho nos municípios de Contagem e de Belo Horizonte, para subsidiar os

9 9 cursos do Programa de Capacitação para Pessoas com Deficiência 3 e propor diretrizes para a elaboração de políticas públicas. Foi criado em 2008 o Projeto Direito à Diferença, com o objetivo de unificar as ações promovidas pelo Núcleo e levar para as escolas, públicas e privadas, e outras instituições sociais, a discussão sobre os desafios do convívio com o outro, entendido como alguém que é diferente de mim e que tem os mesmos direitos que eu. Inicialmente, os membros do Núcleo organizavam-se em eixos temáticos, para promover pesquisas, eventos, programas e projetos, inclusive, assessorar os projetos criados pelos cursos de graduação da PUC Minas. Esses eixos Acessibilidade, Direitos Humanos e Cidadania, Educação Inclusiva, Inclusão pela Arte e Cultura, Trabalho e Inclusão; Inclusão Racial, Saúde e Inclusão e Tecnologia para Inclusão foram organizados com base nos direitos e nos princípios explicitados na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, e na Constituição Federal Brasileira, de Atualmente, o Núcleo organiza-se em três eixos: Étnico e Racial; Gênero e Orientação Sexual, e Necessidades Especiais. Essa nova organização temática tem como objetivo ressaltar as pessoas ou grupos que, historicamente, vêm sofrendo discriminação e exclusão dos direitos fundamentais 4. Na história do Núcleo, Avanços e Desafios na Construção de uma Sociedade Inclusiva é o primeiro livro, entre outros tipos de publicações. Compõe este livro a produção resultante do balanço das políticas e das ações da sociedade, para assegurar os direitos sociais, que foram discutidas no IV Seminário Sociedade Inclusiva: impasses e avanços. Na Parte 1, Inclusão Social: reflexões teóricas e conceituais, são apresentados seis artigos que, utilizando-se de variados enfoques, levantam e refletem acerca de questões relacionadas, tanto à noção, quanto às possibilidades de inclusão social. No primeiro capítulo, Jorge Miranda apresenta uma reflexão sobre o processo histórico de desenvolvimento dos direitos humanos e o papel do Estado na garantia desses direitos, com ênfase no impacto do 3 O Programa de Capacitação para Pessoas com Deficiência, desde 2003, vem capacitando pessoas com deficiência, com mais de 16 anos, em cursos de informática básica, auxiliar administrativo, massagem terapêutica, telemarketing, vivência de formação profissional, e promovendo a inserção no mercado de trabalho. 4 Direitos fundamentais são direitos essenciais à pessoa humana, definidos na constituição de um Estado, contextualizados histórica, política, cultural, econômica e socialmente. Assim, os direitos fundamentais são direitos humanos constitucionalizados, gozando de proteção jurídica no âmbito estatal, reservando-se o emprego da expressão direitos humanos para as convenções e declarações internacionais, que desfrutam de proteção supra-estatal (JAYME, 2005, p.11).

10 10 neoliberalismo no Estado Social, que o articulista advoga como o único capaz de garantir os direitos sociais necessários a uma sociedade verdadeiramente inclusiva. No segundo capítulo, Travessoni argumenta que a persistência da desigualdade social dificultaria a fruição de Direitos Fundamentais e a inclusão social. De forma breve, o autor apresenta o conceito de Direitos Fundamentais e sua relação com o conceito de Direitos Humanos, define inclusão e exclusão, e discute as formas e instrumentos, com os quais o Estado pode conseguir tal inclusão. Ao questionar o marco individualista, sobre o qual se assenta a noção de Direitos Humanos nas democracias modernas, no terceiro capítulo, Ferrari e Salum apresentam uma longa reflexão sobre as relações entre direito individual e coletivo, e as relações entre indivíduos e sociedade na contemporaneidade. Para tanto, as autoras partem de contribuições de clássicos da Psicanálise, nesse processo, e argumentam a favor da importância da abordagem psicanalítica no processo de inclusão social, com base em exemplos de atuação de psicólogos com menores infratores, nas possibilidades de inclusão de cada indivíduo, a partir de suas diferenças. No quarto capítulo dessa seção, Barros inicia seu artigo com uma discussão dos significados e da relação, que ele classifica como paradoxal, entre cultura e inclusão. Buscando explicitar a complexidade dessa relação, tanto no campo das ideias, quanto na arena de nossas práticas, Barros avança rumo a uma proposta de práxis inclusiva, menos compensatória e altruísta e mais comprometida com as diferenças, com a dignidade humana e a democracia, em contraponto a uma noção de inclusão mais encaminhada para o exercício da filantropia, da compaixão e da beneficência. No quinto capítulo, Antonini, Sant Anna e Santos argumentam que, na América Latina, o crescimento da população, a pobreza, a desigualdade e a exclusão social resultam no aumento da pressão sobre os espaços naturais e sobre os recursos naturais. Os autores discutem essa relação nos processos de favelização; de gerenciamento dos recursos hídricos da Amazônia; educação ambiental e na sociodiversidade. No sexto e último capítulo dessa seção, Magalhães se pergunta como explicar que o poder, em suas variadas formas, tem levado milhões de pessoas a defender interesses que não os seus, porém, muitas vezes, são contra os seus interesses. Magalhães argumenta, fundamentado em teóricos diversos, que o capitalismo de mercado é uma grande religião, que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada, na qual o fetiche do consumo escravizaria o consumidor, tanto pela incapacidade em profanar o bem consumido quanto pela incapacidade de enxergar o processo em que se vê mergulhado até a cabeça. Na Parte 2, Inclusão Social: avanços e desafios no cotidiano, são apresentados outros seis capítulos que discutem diferentes tipos de experiências com práticas inclusivas. Mantoan,

11 11 no primeiro texto, discute como ultrapassar barreiras e avançar na inclusão escolar, enfatizando as questões envolvidas na formação do professor que, entre a teoria e a prática, é quem tem de dar conta do aluno na sala de aula e lhe garantir o direito à aprendizagem e o respeito às diferenças. No segundo capítulo, Guimarães propõe uma abordagem holística da prática do design universal, com a justificativa que essa prática teria um efeito mais complexo para a compreensão da acessibilidade para todos, do que o previsto nos instrumentos legais e normativos. Para ele, sem essa abordagem, é provável que os resultados sejam inadequados e estejam distantes dos objetivos de desenvolvimento de uma sociedade inclusiva. Pinotti e outros, no terceiro capítulo, apresentam o trabalho do Laboratório de Bioengenharia da Universidade Federal de Minas Gerais, que atua, desde 1999, no desenvolvimento de tecnologias para a área de saúde. Nesse artigo, os autores descrevem as diferentes ações realizadas no laboratório, voltadas para a Engenharia de Reabilitação, entre elas, a tecnologia dos músculos artificiais pneumáticos; a órtese de quadril, com músculos artificiais pneumáticos; a órtese funcional de mão e o telefone acessível. No capítulo quatro, Galery discute os desafios da inclusão digital, com foco nos problemas relacionados ao acesso, capacitação e à atitude do homem diante da tecnologia. Galery inicia seu artigo, apresentando os conceitos de inclusão e de exclusão digital e outros pontos relacionados à utilização desses conceitos para, depois, tecer considerações sobre as principais questões relacionadas ao acesso à tecnologia, à capacitação para o uso da tecnologia e à atitude diante da tecnologia. No capítulo cinco, Heckert discute as potencialidades da economia solidária, a partir de práticas oriundas das universidades e apresenta políticas públicas de economia solidária que buscam a inclusão social, pela geração do trabalho emancipado. O foco da discussão é a experiência das incubadoras universitárias como prática inclusiva que, com o apoio do Ministério do Trabalho, expandiram-se por diferentes universidades. Heckert conclui suas considerações, afirmando que, por meio da incubagem, diversos grupos foram apoiados, em um processo de formação que vai do surgimento à consolidação de um empreendimento e conquista de autonomia pelo grupo. No capítulo seis, Chaves e Neto apresentam uma discussão, de olhar empresarial, sobre os programas de inserção de jovens no mercado de trabalho. Para tanto, partem da reconstrução da trajetória histórica do desemprego juvenil, para discutir as políticas públicas, que focam a questão e analisar o programa Bolsa-Emprego da Prefeitura Municipal de Betim,

12 12 subsidiados pelos resultados de uma pesquisa realizada com os empresários, que participaram desse programa, naquele município. Finalmente, na Parte 3, Inclusão Social, Gênero e Raça, questões específicas são apresentadas em quatro artigos. No primeiro, Gênero e Raça no Brasil: Impasses e Avanços, Heringer reflete sobre a questão da diversidade racial e de gênero no Brasil, na perspectiva de que a discriminação é uma violação dos Direitos Humanos e que enfrentar o racismo é fundamental para a garantia da inclusão social no país. A autora apresenta diferentes pontos de vista para pensar questões relativas à promoção da igualdade e valorização da diversidade, no campo das políticas públicas. Heringer trabalha com diferentes temas, passando pela educação infantil, a construção de uma proposta curricular antirracista de educação, o ensino da história e da cultura afrobrasileiras nas escolas, a promoção de atividades culturais para jovens negros e políticas voltadas para a questão racial e de gênero. No segundo artigo, Inclusão, exclusão e raça: uma articulação entre psicanálise e sociedade, o psicanalista Reis Filho discute sua experiência de homem negro, que trabalha há muitos anos com a escuta de pacientes, muitos deles negros, sobre suas vivências com o racismo e a exclusão social. Nesse artigo, o autor reflete sobre as possíveis consequências de políticas de ação afirmativa e sobre as possibilidades de atuação da psicanálise, na superação de preconceitos, para promoção de uma sociedade menos racista e mais inclusiva. No terceiro artigo dessa seção, Alzira Rufino discute a situação da mulher negra e sua inclusão nos Direitos Sociais, a partir de sua experiência como fundadora de uma ONG voltada para a defesa dos direitos da mulher, com foco no combate à violência doméstica e ao racismo. Chacham, Lobato e Van der Mass analisam, no último artigo dessa seção, gênero, raça e classe como diferentes dimensões da exclusão social da juventude, a partir dos resultados de uma pesquisa realizada, em 2005, com mulheres jovens residentes em uma favela de Belo Horizonte. Para a análise, os autores utilizaram o método estatístico Grade of Membership (GoM), que permitiu construir perfis das jovens em relação aos atributos demográficos, comportamento sexual e reprodutivo, arranjos familiares e grau de autonomia em cada uma de suas diferentes dimensões. A todos que participaram, direta ou indiretamente, da realização deste livro, nossos agradecimentos e, dos leitores, esperamos que apreciem os textos.

13 13 PARTE I Inclusão Social: Reflexões Teóricas e Conceituais

14 14 Direitos Fundamentais, Estado Social, Sociedade Inclusiva Jorge Miranda 5 Em um resumo da evolução dos Direitos Fundamentais, indicam-se, corretamente, três ou quatro gerações: a dos direitos de liberdade; a dos direitos sociais; a dos direitos ao ambiente e à autodeterminação, aos recursos naturais e ao desenvolvimento; e, ainda, a dos direitos relativos à bioética, à engenharia genética, à informática e a outras utilizações das modernas tecnologias. Conquanto essa maneira de ver possa ajudar a apreender os diferentes momentos históricos de aparecimento dos direitos, o termo geração, geração de direitos, afigura-se enganador por sugerir uma sucessão de categorias de direitos, umas substituindo-se às outras quando, pelo contrário, o que se verifica em Estado Social de Direito é um enriquecimento crescente em resposta às novas exigências das pessoas e das sociedades. Nem se trata de um mero somatório, mas sim de uma interpenetração mútua, com a conseqüente necessidade de harmonia e concordância prática. Os direitos vindos de certa época recebem o influxo dos novos direitos, tal como estes não podem deixar de ser entendidos em conjugação com os anteriormente consagrados: algumas liberdades e o direito de propriedade não têm hoje o mesmo alcance do que no século XIX, e os direitos sociais adquirem um sentido diverso, consoante aos outros direitos garantidos pelas Constituições. Tampouco as pretensas gerações correspondem a direitos com estruturas contrapostas: um caso paradigmático é o do direito à intimidade ou à privacidade, só plenamente consagrado no século XX. E há direitos inseridos numa geração que ostentam uma estrutura extremamente complexa: é o caso do direito ao ambiente. Finalmente, direitos como os direitos à autodeterminação, aos recursos naturais e ao desenvolvimento sequer entram no âmbito dos Direitos Fundamentais, porque pertencem a outra área a dos direitos dos povos. Nos séculos XVIII e XIX, dir-se-ia existir uma concepção de Direitos Fundamentais, a liberal. Não obstante às críticas legitimistas, socialistas, católicas era o liberalismo (então, cumulativamente, filosófico, político e econômico) que prevalecia em todas as constituições e declarações; e, não obstante à pluralidade de escolas jurídicas jus naturalista, positivista, 5 Professor catedrático da Universidade de Lisboa e da Universidade Católica Portuguesa.

15 15 histórica era a ele que se reportavam, de uma maneira ou de outra, as interpretações da liberdade individual. A situação muda no século XX: não tanto por desagregação ou dissociação das três vertentes liberais (em especial por o liberalismo político deixar de se fundar, necessariamente, no liberalismo filosófico) quanto por todas as grandes correntes religiosas, culturais, filosóficas, ideológicas, políticas interessarem-se pelos direitos do homem e quase todas afirmarem-se empenhadas na sua promoção e na sua realização. O tema dos direitos do homem cessou de ser, no nosso tempo, uma exclusiva aspiração liberal. Assiste-se, por conseguinte, a um fenômeno de universalização dos direitos do homem, não sem paralelo com o fenômeno da universalização da Constituição, e que, como este, se acompanha da multiplicidade ou da plurivocidade de entendimentos porque a uniformidade das técnicas não determina a unidade das culturas e das concepções políticas. Pode-se antever uma civilização do universal também no domínio dos direitos do homem equivalente ao ideal comum a atingir, de que fala a Declaração Universal pelo menos, por agora, afiguram-se irredutíveis as sensibilidades e as valorações (com base religiosa ou não) que se atinjam patamares e convergências de garantia e de efetivação. Independentemente das divergências em nível de formulações, teoricamente e fundamentações, ressaltam-se algumas tendências comuns: A diversificação do catálogo, muito para lá das declarações clássicas; A irradiação para todos os ramos de Direito; A acentuação da dimensão objetiva, perscrutando-se, por detrás dos direitos, princípios básicos do ordenamento; A consideração do homem situado, traduzida na relevância dos grupos e das pessoas coletivas e na conexão com garantias institucionais; O reconhecimento da complexidade de estrutura de muitos dos direitos, designadamente dos de liberdade; A dimensão plural e poligonal das relações jurídicas; A produção de efeitos não só verticais (frente ao Estado) mas também horizontais (em relação aos particulares); A dimensão participativa e procedimental, levando a falar em status activus processualis (HÄBERLE); A idéia de aplicabilidade imediata quanto aos direitos de liberdade;

16 16 A interferência não apenas do legislador, mas também da Administração na concretização e na efetivação dos direitos; O desenvolvimento dos meios de garantir e a sua ligação aos sistemas de fiscalização da legalidade e da constitucionalidade. Tal como o conceito de Constituição, o conceito de Direitos Fundamentais surge indissociável da idéia de Direito Liberal. Daí que se carregue nas duas características identificadoras da ordem liberal: a postura individualista abstrata de (no dizer de Radbruch) um indivíduo sem individualidade ; e o primado da liberdade, da segurança e da propriedade, complementadas pela resistência à opressão. Apesar de todos os direitos serem ou deverem ser (por coerência) direitos de todos, alguns (máxime o sufrágio) são, no século XIX, denegados aos cidadãos que não apresentam determinados requisitos econômicos; outros (v.g., a propriedade) aproveitam, sobretudo, os que pertençam a certa classe; e outros ainda (o direito de associação, em particular, de associação sindical), não sem dificuldade, são alcançados. Contrapostos aos direitos de liberdade são, nesse século e no século XX, reivindicados (sobretudo, por movimentos de trabalhadores) e sucessivamente obtidos, direitos econômicos, sociais e culturais direitos econômicos para garantia da dignidade do trabalho, direitos sociais, como segurança na necessidade, e direitos culturais, como exigência de acesso à educação e à cultura e, em último termo, de transformação da condição operária. Nenhuma constituição posterior à Primeira Guerra Mundial deixa de outorgá-los, com maior ou menor ênfase e extensão. Sabe-se, porém, que são diversas muito mais diversas de que os do Estado Liberal as configurações do Estado Social. Os antagonismos ideológicos, os desníveis de estágios de desenvolvimento e as diferenças de culturas e de práticas sociais não só subjazem aos contrastes de tipos constitucionais como explicam realizações e resultados variáveis de país para país. A bifurcação assim aberta dos direitos fundamentais encontra-se, de uma maneira ou de outra, em quase todas as constituições feitas após a Primeira Guerra Mundial ou, pelo menos, na legislação ordinária de quase todos os países; e em nível internacional, mostra-se patente nos dois: Pacto de Direitos Civis e Políticos ou na Convenção Européia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e na Carta Social Européia. Mas a doutrina vê a distinção em termos muito diferentes, consoante às premissas teóricas e ao enquadramento político-constitucional de que parte.

17 17 Não faltam autores que somente tomem como direitos fundamentais os direitos de liberdade e que relegem os direitos sociais para a zona das imposições dirigidas ao legislador ou para a das garantias institucionais. Assim como há aqueles que não admitem verdadeiras liberdades à margem da consecução dos fatores de exercícios só propiciados pela realização dos direitos sociais. Na óptica do Estado social de Direito (inconfundível com a dos Estados marxista-leninistas ou com a dos Estados corporativos, fascistizantes ou fascistas) o dualismo é imposto pela experiência: sejam quais forem as interpretações ou subsunções conceituais, não pode negar-se a uns e outros direitos a natureza de direitos fundamentais. Para o Estado Social de Direito, a liberdade possível e, portanto, necessária do presente não pode sacrificar-se em troca de quaisquer metas, por justas que sejam, a alcançar no futuro. Há que se criar condições de liberdade de liberdade de fato, e não só jurídica; mas a sua criação e a sua difusão somente têm sentido em regime de liberdade, porque a liberdade (tal como a igualdade) é indivisível. A diminuição da liberdade civil ou política de alguns (ainda quando socialmente minoritários), para outros (ainda quando socialmente maioritários) acederem a novos direitos, redundaria em redução da liberdade de todos. O resultado almejado há de ser uma liberdade igual para todos, construída a partir da correção das desigualdades e não por meio de uma igualdade sem liberdade; sujeita às balizas matérias e procedimentais da Constituição e susceptível, em sistema político pluralista, às modulações que derivem da vontade popular expressa pelo voto. Nos direitos de liberdade, parte-se da ideia de que as pessoas, só por o serem ou por terem certas qualidades ou por estarem em certas situações ou inseridas em certos grupos ou formações sociais, exijam respeito e proteção por parte do Estado e dos demais poderes. Nos direitos sociais, parte-se da verificação da existência de desigualdades e de situações de necessidade umas derivadas das condições físicas e mentais das próprias pessoas, outras derivadas de condicionalismos exógenos (econômicos, sociais, geográficos etc.) e da vontade de vencê-las para estabelecer uma relação solidária entre todos os membros da mesma comunidade política. A existência das pessoas é afetada tanto por uns como por outros direitos. Mas em planos diversos: com os direitos, liberdades e garantias, é a sua esfera de autodeterminação e expansão que fica assegurada; com os direitos sociais, é o desenvolvimento de todas as suas potencialidades que se pretende alcançar. Com os primeiros, é a vida imediata que se defende do arbítrio do poder; com os segundos, é a esperança em uma vida melhor que se afirma. Com uns, é a liberdade atual que se garante; com outros, é uma liberdade mais ampla e efetiva que se começa a realizar.

18 18 Liberdade e libertação não se separam, pois se entrecruzam e completam-se. A unidade da pessoa não pode ver-se truncada em razão de direitos destinados a servi-la. A unidade do sistema jurídico impõe a harmonização constante dos direitos da mesma pessoa e de todas as pessoas. Isso mesmo pode se comprovar, considerando a estrutura dos direitos e das normas constitucionais, nas quais constam. Com efeito: a) Direitos, liberdades e garantias não são o mesmo que direitos naturais. Direitos sociais não são o mesmo que direitos civis (em certa acepção) ou direitos outorgados pelo Estado. Não está aqui em causa senão uma análise de situações jurídicas ativas de Direito positivo, mas, se assim não fosse, por certo seria incorreto não qualificar como tais o direito ao trabalho ou o direito à segurança social. b) Direitos, liberdades e garantias tampouco são o mesmo que direitos individuais, nem direitos sociais são o mesmo que direitos institucionais ou coletivos. Entre os direitos fundamentais institucionais contam-se algumas liberdades (v.g., a das confissões religiosas e a das associações) e, de resto, os direitos sociais apresentam-se, de ordinário, como de titularidade individual (poucos direitos serão mais individuais que o direito ao trabalho ou o direito ao ensino). c) É corrente identificar direitos de liberdade com direitos negativos e direitos sociais com direitos positivos. A contraposição, todavia, só pode ser feita em termos radicais. d) Por um lado, perante a atitude do Estado, vem a ser de simples abstenção. Postulam-se condições de segurança em que possa ser exercida uma ordem objetiva a criar ou a preservar a ordem pública em sentido escrito ou, mais amplamente, a ordem constitucional democrática. E o Estado é civilmente responsável pelas violações dos direitos e deve tutela, civil e penal, contra violações provindas de quaisquer cidadãos. Mais ainda: quanto a algumas liberdades, exigem-se prestações positivas ou ajudas materiais, sem as quais se frustra o seu exercício por todos os cidadãos e todos os grupos. Assim, a liberdade de imprensa implica assegurar pela lei os meios necessários à salvaguarda da sua independência perante os poderes político e econômico e a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião nos meios de comunicação social do setor público. Com a liberdade de propaganda eleitoral, associada à igualdade das diversas candidaturas e à imparcialidade das entidades públicas. e) Pode e deve-se falar, sim, numa atitude geral de respeito, resultante do reconhecimento da liberdade da pessoa conforme sua personalidade e de reger a sua vida e os

19 19 seus interesses. Esse respeito pode converter-se em abstenções ou em ações do Estado e das demais entidades públicas ao serviço da realização da pessoa, individual ou institucionalmente considerada mas nunca em substituição da ação ou da livre decisão da pessoa, nunca a ponto de o Estado penetrar na sua personalidade e afetar o seu ser. E é fundamentalmente nesse sentido de respeito e preservação da personalidade e da capacidade de ação das pessoas que se justifica ainda dizer que os direitos, liberdades e garantias no seu conjunto ou, pelo menos, as diferentes liberdades se salvaguardarão ou se efetivarão tanto mais quanto menos for a intervenção do Estado, ao passo que os direitos sociais poderão ser tanto mais efetivados quanto maior ela vier a ser. f) Uma atitude geral de respeito obriga tanto as entidades públicas como, ainda, em certos casos e em certas condições defini-las vem a ser um dos mais difíceis problemas do Direito Constitucional contemporâneo, as entidades privadas. Porque o respeito da liberdade de todos os membros da comunidade política tem que ver não somente com as entidades públicas como também com todos esses membros, uns perante os outros, pelo menos quando haja relações de desigualdade ou de dependência. Importa que uns respeitem a personalidade dos outros para que possam todos conviver. g) Por outro lado, algo de semelhante se verifica, de resto, no domínio dos direitos sociais. Embora esses tenham como sujeitos passivos principalmente o Estado e outras entidades públicas, também não são indiferentes a entidades privadas; também requerem (ou chegam a exigir) uma colaboração por parte dos particulares. Chamados à tarefa da sua efetivação são o Estado e a sociedade. h) Existe uma instância participativa nos Direitos Sociais fundada, ainda e sempre, no respeito da personalidade: porque se cura de prestar bens e serviços à pessoa, não apenas é preciso contar com o seu livre acolhimento como ainda é mais vantajoso pedir-lhe que, por si ou integrada em grupos, contribua para a sua própria promoção. Daí, estruturas e, por vezes, inclusive, direitos de participação. i) Tal como nas liberdades se recorda uma vertente positiva, também nos Direitos Sociais se encontra, pois, uma dimensão negativa. As prestações que lhes correspondem não podem se impor às pessoas, salvo quando envolvam deveres e, mesmo aqui, com certos limites (v.g., tratamentos médicos ou frequência de escolas). Quando a Constituição institui formas de participação, não pode ser impedido o seu desenvolvimento. É vedado ao poder público restringir o acesso aos Direitos Sociais constitucional ou legalmente garantidos, por meio de medidas arbitrárias e, evidentemente, lesar os bens ou os interesses que lhes correspondem (v.g., o ambiente ou o patrimônio cultural).

20 20 j) A interconexão de liberdades e direitos sociais afigura-se óbvia, seja no processo histórico da sua formulação ou no momento atual de exercício e efetivação. A liberdade sindical e o direito à greve constituem instrumentos de defesa dos direitos dos trabalhadores. Há garantias ao serviço de Direitos Sociais: assim, o direito à segurança no emprego em relação ao direito ao trabalho, e, em geral, também funcionam como tais certos direitos específicos de participação. Em contrapartida, a efetivação dos Direitos Sociais propicia a realização das liberdades ou de certas liberdades: assegurar, por exemplo, o ensino básico universal, obrigatório e gratuito, ou a educação permanente, é para que todos possam usufruir da liberdade de aprender e da liberdade de criação cultural. Finalmente, não faltam casos de harmonização: por exemplo, o direito ao trabalho não pode ser efetivado com privação da liberdade de profissão. Os últimos 25 anos foram, contudo, atravessados por situações de crise e pela afirmação de um modelo alternativo; situações de crise derivadas do peso dos aparelhos burocráticos nascidos à sua sombra, de custos financeiros dificilmente suportáveis, de conjunturas de recessão econômica e de quebra de competitividade em face de países com menor proteção social; afirmação de correntes neoliberais e monetaristas triunfantes (ou aparentemente triunfantes) frente às correntes keynesianas. E, efetivamente, as circunstâncias e também os princípios de equidade social exigem a superação do assistencialismo. Exigem a distinção entre necessidade e bens essenciais e universais e as restantes necessidades, fazendo com que as respectivas prestações sejam pagas por todos quantos as puderem pagar e até onde puderem pagar. Exigem a abertura à colaboração da sociedade civil. Exigem ainda mudança de mentalidades, diminuindo os egoísmos corporativos, e impulsionando, pelo contrário, formas de democracia participativa. No entanto, o modelo neoliberal tampouco oferece solução satisfatória. Assim como a experiência dos anos 50, 60 e 70 mostrou, o papel integrador produzido pelos esforços de efetivação de Direitos Sociais, também agora só o Estado Social permite dar resposta a fenômenos novos de exclusão e propiciar o acolhimento dos milhões de imigrantes que buscam um pouco mais de bem-estar nos países ocidentais. E apenas o Estado Social é compatível com a preservação do meio ambiente, com uma política de desenvolvimento sustentável e com a solidariedade entre gerações. Uma coisa é, pois, a atualização, a adaptação ou a reforma do modelo; outra coisa, a sua abolição. Uma coisa é a correspondência mais com regulação econômica e social do que com intervenção direta do Estado; outra coisa, o retorno a um laissez-faire, que, à escala da globalização, traria imensos custos humanos. Uma coisa é a eventual passagem a uma nova

21 21 fase (que algumas apelidam de Estado pós-social), outra coisa a sujeição a uma pura lógica economicista sem horizontes de esperança e de solidariedade. Tudo isso, naturalmente, no âmbito da democracia representativa, aberta e pluralista, em que, sem prejuízo do seu conteúdo essencial e da garantia jurisdicional, as normas constitucionais sobre direitos econômicos, sociais e culturais podem receber concretizações diversas (mas não retrocesso), consoante as legítimas opções das sucessivas maiorias parlamentares. Assim, espera-se conduzir para uma sociedade inclusiva, uma sociedade de todos e para todos.

22 22 Inclusão, Direito e Direitos Fundamentais: conceito e formas jurídicas de inclusão 1 Alexandre Travessoni Gomes 2 Apesar de a igualdade se mostrar formalmente garantida nas declarações de direitos das constituições ocidentais, inclusive a brasileira, de modo geral, ela não se efetiva com a eficácia que as sociedades ocidentais gostariam de contar. Embora o problema pareça restrito aos países antes chamados subdesenvolvidos, hoje denominados emergentes, ele vem se mostrando presente também nas nações chamadas industrializadas ou ricas, como os Estados Unidos e os países da União Europeia. 3 A desigualdade apresenta vários aspectos e efeitos. Pretende-se aqui abordar um deles: a fruição de Direitos Fundamentais. Vamos tratar da desigualdade na fruição dos Direitos Fundamentais e sua relação com os conceitos de inclusão e exclusão. Será visto, (1) primeiramente, de forma breve, o conceito de Direitos Fundamentais e de sua relação com o conceito de Direitos Humanos. (2) Procuraremos definir inclusão e exclusão, usando como base a ideia de fruição de Direitos Fundamentais. Apresentaremos, então, (3) os motivos que podem levar as pessoas a quererem a inclusão, sejam elas incluídas ou excluídas. Vamos descrever (4) a forma de Estado que pode conseguir tal inclusão e, por fim, (5) tratar dos instrumentos que o Estado pode utilizar. 1. DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS Há várias conceituações de Direitos Humanos. Pérez Luño, por exemplo, os define como um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, que devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos nos planos nacional e internacional (PÉREZ LUÑO, 1999, 48). 1 Conferência proferida em 20/10/2006, no IV Seminário Internacional da Sociedade Inclusiva da PUC Minas. 2 Professor Adjunto na Faculdade de Direito da UFMG e na Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas. 3 Embora nesses países a desigualdade afete sobretudo os imigrantes, seus efeitos são sentidos em parcela cada vez mais significativa dos próprios cidadãos nativos.

23 23 Embora essa definição envolva problemas que, por questões metodológicas, não serão abordados aqui, ela pode ser útil para trilhar o caminho que se pretende, a saber, tratar da inclusão do ponto de vista da efetividade dos Direitos Fundamentais. 4 No momento de seu surgimento, no Estado Liberal, os Direitos Humanos eram considerados Direitos Naturais. Foram, então, positivados nas primeiras declarações de Direito. Embora a identificação das causas dessas declarações seja polêmica, pode-se dizer que as principais foram o pensamento jusnaturalista, que ganha força com a idéia revolucionária e, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos, a tradição inglesa de cartas, restringindo os poderes reais. A positivação dos Direitos Humanos começa na ex-colônia inglesa da Virgínia (1776), continua na Declaração Francesa (1789) e, posteriormente, aparece na Declaração norteamericana, em forma de emenda à Constituição (1791). Em seguida, os Direitos Humanos passam, de modo gradativo, a integrar praticamente todas as constituições europeias e de outros países ocidentais, como o Brasil que, em sua primeira constituição, fez constar uma declaração. 5 Já se tornou clássica a distinção doutrinária entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. Aqueles seriam direitos inatos do ser humano; estes seriam os Direitos Humanos que foram positivados. Portanto, os Direitos Humanos independeriam da positivação, enquanto os Direitos Fundamentais não. Antes de entrar nas considerações sobre a eficácia, que tornarão possível um conceito jurídico de exclusão, é oportuno discordar dessa distinção, sobretudo no plano teórico, embora se possa aceitar sua validade no plano histórico. Para isso, far-se-á uma breve abordagem da teoria dos Direitos Humanos. Salgado afirma que há três momentos pelos quais passam os Direitos Humanos, a saber: (a) a consciência desses direitos em determinadas condições históricas; (b) a positivação e (c) a eficácia (SALGADO, 1996, 16). (a) Em primeiro lugar, os Direitos Humanos surgem em nossa consciência. Surgem como valores, como desejos. Surgem como algo que queremos realizar. Nesse momento, para os jusnaturalistas, os Direitos Humanos estão ainda no plano do Direito Natural. 4 Tratar dessa polêmica seria desviariar do tema. Será tratada brevemente a distinção entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. Para uma crítica mais detalhada dos conceitos de Direitos Humanos e Direitos Fundamentais cf. O Direito Penal e os Direitos Fundamentais, de nossa autoria, no prelo. 5 Na Constituição Imperial os Direitos, então nomeados Civis e Políticos, aparecem não no início, mas no último título da Constituição.

24 24 (b) O segundo momento consiste na declaração formal desses direitos: eles são postos em declarações (figurem estas ou não em uma constituição), saindo do plano valorativo e entrando no plano normativo. Como se viu acima, a doutrina majoritária afirma que, quando os Direitos Humanos são positivados, quer dizer, postos em uma declaração, eles também se transformam em Direitos Fundamentais. Não é de se concordar com essa distinção, sobretudo no plano teórico, pois ela pode induzir ao erro de pensar que o caráter fundamental dos referidos direitos se adquire com a positivação, o que pode ser verdade, de um ponto de vista histórico, sobretudo se considera serem eles Fundamentais por estarem na lei fundamental (Grundgesetz), i.e., na Constituição, mas não faz sentido do ponto de vista teórico. Vejamos. Se os Direitos Humanos tornaram-se Fundamentais por terem sido positivados, quer dizer, por terem se inserido nas constituições, seu conceito depende meramente da vontade de determinado legislador histórico. A nosso ver, a característica de essência dos Direitos Humanos (antes mesmo de sua positivação) é justamente a de serem Direitos Fundamentais. Do contrário, todos os direitos subjetivos poderiam se considerar Direitos Humanos, por tratar-se de direitos subjetivos de uma pessoa. Aquilo que define os Direitos Fundamentais é justamente o fato de fundamentarem os demais direitos, isto é, de constituírem a base ou fundamento dos demais direitos inerentes a um ser humano 6, antes mesmo de terem sido positivados. De outro modo, como já dissemos, todo direito subjetivo poderia se considerar um Direito Humano. Entende-se, portanto, que a expressão Direitos Fundamentais compõe melhor aquilo que a doutrina vem denominando Direitos Humanos. No entanto, como o uso já consagrou outras expressões e como o objetivo aqui não é tratar diretamente dessa questão, usaremos Direitos Humanos para os Direitos ainda não positivados e Direitos Fundamentais para os direitos positivados. Como já ressaltamos acima, a positivação dos Direitos Humanos deu-se, pela primeira vez, mediante a consagração nas declarações e constituições contemporâneas ao Iluminismo. 7 Os direitos dessa primeira geração são negativos, em outras palavras, direitos que implicam a não-interferência ou interferência mínima do direito nas relações sociais de diversas naturezas, ampliando o espectro das condutas não regulamentadas pelo direito ou, como preferem alguns, regulamentadas negativamente pelo direito. Na segunda geração aparecem os Direitos Sociais, que pretendiam dar um mínimo de conteúdo à igualdade e liberdade 6 Embora alguns possam ser atribuídos a todas as pessoas de direito. 7 Não desconsideramos o fato de os Direitos Humanos apresentarem uma história anterior, que passa por fatos históricos (como as declarações inglesas) bem anteriores ao Iluminismo, bem como por teorias que já previam a dignidade do ser humano como algo que deveria ser respeitado.

25 25 formais consagradas pelos direitos da primeira geração. Constituem direitos da segunda geração, por exemplo, os Direitos do Trabalhador. Hoje se fala em uma terceira geração, 8 que seria aquela típica não mais do Estado Social, mas de um Estado Democrático de Direito. A nosso ver, os modelos de Estado e suas respectivas gerações de Direitos precisam ser vistos de forma sistemática. O Estado Social é Liberal, quer dizer, incorpora os Direitos do Estado Liberal, mas os reformula, de modo que os direitos da primeira geração acham-se nele presentes, mas interpretados de um novo modo. Do mesmo modo, o Estado Democrático de Direito incorpora os Direitos da segunda geração direitos esses que já haviam incorporado os da primeira geração interpretando-os, porém, de um novo modo, coerente com a ideia atual de democracia. 9 (c) O terceiro momento é o da eficácia. 10 Os Direitos Humanos já positivados, então Direitos Fundamentais, passam a ser fruídos por seus destinatários. Embora a Ciência do Direito sempre enfatize a necessidade da passagem do segundo momento o da garantia formal desses direitos, para o terceiro momento, ela pouco trabalhou as formas pelas quais se poderia chegar a essa eficácia. Apesar de compreensível essa lacuna, quando se considera o caráter dogmático-normativo da Ciência do Direito, deve-se lembrar de que a finalidade do Direito se processa no âmbito da facticidade. No Brasil, embora tenhamos uma Constituição que positiva os Direitos Humanos, transformando-os, na terminologia clássica já mencionada acima, em Direitos Fundamentais, sua positivação não se viu seguida da eficácia. Isso mostra-se especialmente importante quando se considera que a positivação não constitui, no Brasil, fato recente. As constituições brasileiras, desde a primeira, garantiram formalmente os direitos da geração correspondente ao modelo de Estado então consagrado. A Constituição Imperial e a Constituição Republicana consagraram os Direitos Individuais; a Constituição de 1934 consagrou, pela primeira vez, os Direitos Sociais; e a Constituição de 1988 implantou um novo modelo de Estado, o Estado Democrático de Direito, que trouxe consigo uma nova geração de direitos, como já mencionado acima. Mas, apesar da positivação, grande parcela da população brasileira, talvez a maioria, não frui esses direitos em medida sequer mínima, quanto mais razoável. Portanto, embora não existam diferenças significativas entre a atual Declaração de Direitos Brasileira, contida na 8 Alguns autores falam em mais gerações. 9 Esse conceito de democracia será abordado abaixo, na perspectiva de Pettit. 10 Usamos o termo eficácia no sentido de realização concreta dos Direitos Fundamentais.

26 26 Constituição e as declarações contidas nas constituições europeias, o nível de eficácia dos direitos por elas prescritos é muito diferente. 2. A FRUIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO CHAVE PARA UM CONCEITO JURÍDICO DE EXCLUSÃO Do ponto de vista jurídico, inclusão e exclusão podem ser definidas com base no grau de eficácia dos Direitos Fundamentais, isto é, com base no exercício ou não de Direitos Fundamentais em certo grau. Consideramos incluídas as pessoas que fruem, em um grau razoável, os Direitos Fundamentais. São as pessoas que exercem de fato o direito à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho e à renda. Consideramos excluídas as pessoas que não fruem em grau razoável os Direitos Fundamentais; aquelas que não exercem de fato os direitos mencionados acima ou, pelo menos, não exercem alguns deles em grau razoável. 11 Se essas definições são razoáveis, podemos, então, concluir que a maioria dos brasileiros é excluída. Naturalmente, estou considerando verdadeira uma premissa comumente aceita: a de que a grande maioria da população brasileira não exerce de fato, em grau aceitável, seus Direitos Fundamentais. Constatada essa realidade, pergunta-se: como pode o Direito atuar na efetivação desses Direitos Fundamentais? A resposta a essa pergunta não é fácil, sobretudo porque se, por um lado, é consenso que deve haver maior eficácia dos Direitos Fundamentais, por outro, os instrumentos necessários para se chegar a ela não são bem estudados e, quando isso ocorre, não há acordo sobre quais são os mais eficazes. Só para citar um exemplo, consideremos a polêmica que vêm causando as ações afirmativas no Brasil, como o projeto de lei que prevê a criação de quotas nas instituições públicas de ensino superior e nos cursos técnicos públicos. Não pretendemos responder definitivamente à pergunta acima, e sim apenas sugerir, em termos gerais, os instrumentos jurídicos que podem levar à maior eficácia dos Direitos Fundamentais. Usar-se-á a teoria republicanista de Pettit (PETTIT, 2007 e PETTIT, 1999), que fala em uma democracia contestatória. Essa teoria pode se configurar de grande valia para estudar os referidos instrumentos, desde que, em virtude das peculiares condições sociais brasileiras, ela seja adequada à nossa realidade. Antes de mostrar os meios para se alcançar a 11 É impossível no âmbito deste ensaio determinar teoricamente em que grau exato uma pessoa precisa estar fruindo seus Direitos Fundamentais para que seja considerada incluída. Pode-se aqui apenas notar que, se considerados todos os Direitos Fundamentais, há fruição em medida razoável da maioria deles, a pessoa pode ser considerada incluída.

27 27 inclusão, é preciso verificar se esta, de fato, constitui um fim a se perseguir É o que passamos a fazer. 3. OS MOTIVOS QUE PODEM LEVAR AS PESSOAS A QUEREREM A INCLUSÃO Antes de indagar os motivos de alguém querer a inclusão, é preciso indagar quem é esse sujeito que promoverá a inclusão. Três opções aparecem: (i) as pessoas excluídas incluirão a si próprias; (ii) os incluídos incluirão os excluídos ou (iii) ambos (incluídos e excluídos) deverão procurar incluir. A nosso ver, a terceira opção é a mais razoável, como passamos a demonstrar. (i) Começaremos pela análise do excluído como sujeito que inclui. Por que quer o excluído se incluir? Ou, antes disso, quer ele realmente se incluir? A resposta é simples. Partimos do pressuposto de que exercer Direitos Fundamentais é algo desejado por todos. Tomamos como base aqui a longa história de lutas sociais, algumas sangrentas, pela declaração e efetivação dos Direitos Humanos. Se exercer esses direitos constitui algo que a humanidade de modo geral vem buscando, então o excluído, integrante da humanidade, quer se incluir. Não é necessário provar que exercer Direitos Fundamentais consista em algo bom, embora acreditemos nisso. A menos que o ser humano em geral seja masoquista, a menos que existisse e ainda exista um masoquismo coletivo, os Direitos Fundamentais representam algo bom. Se existisse tal masoquismo, ter-se-ia concluir que exercer os Direitos Fundamentais é algo ruim, mas, ainda assim, exercê-los continuaria sendo algo extremamente desejado, pois, nesse caso, a humanidade seria masoquista. Portanto nossa suposição não se baseia em uma especial concepção do que seja o homem, mas em uma constatação fática. (ii) Quanto ao incluído como sujeito que inclui, poder-se-ia indagar: por que a pessoa já incluída desejaria a inclusão do excluído? Poderíamos partir do ponto de vista de uma teoria individualista e dizer que quem está incluído, em um mundo caracterizado por um egoísmo extremo, não desejará incluir ninguém, pois sua situação de incluído em nada muda com a inclusão do outro. No entanto, vemos dois tipos de razão para que o incluído deseje incluir o excluído. A primeira razão é moral. Pelo fato de o excluído ser uma pessoa, quer dizer, um fim em si mesmo, temos que reconhecer sua personalidade, que ele é um sujeito, e não tratálo, portanto, somente como instrumento para minha satisfação (KANT, 1995, 69). A racionalidade moral impede que eu pergunte o que ganho incluindo, pois, nesse caso, o outro e, consequentemente, sua inclusão, representam mero meio para satisfazer um fim. Ora, para

28 28 que possa me reconhecer como pessoa, tenho que reconhecer o outro. Essa é uma razão moral que sustenta a premissa de que, para eu ser um sujeito de direito, tenho que reconhecer o outro também como sujeito de direito. Poder-se-ia dizer que essa concepção é excessivamente idealista e não mostra, portanto, qualquer relevância prática. Contra essa objeção, duas respostas podem ser apresentadas. Por um lado, podemos refutá-la, dizendo que a uma teoria moral (e lembremos que a razão aqui é moral) não só se dá o direito como também se exige ser idealista, pois sem o idealismo não poderia jamais haver uma idéia reguladora. 12 Por outro lado, poderíamos concordar com a objeção e então apresentar outro tipo de razão. Embora acreditemos que a razão moral represente um motivo válido, vamos considerar também a segunda opção. Caso a razão moral não se mostre suficiente, pode se apresentar um segundo tipo de razão, que é estratégica. Incluir o excluído significa uma estratégia para que quem já se acha incluído continue nessa condição. Por quê? Porque, caso não se combata a exclusão, sobretudo se considerarmos seu grau e o número de pessoas que afeta, ela chegará a um nível que impedirá que os incluídos exerçam de fato seus direitos (inclusive Direitos Fundamentais). Ora, se aquele que não exerce Direitos Fundamentais é excluído, então o incluído passaria a ser excluído! Se, portanto, não houver inclusão, em breve a maior renda do incluído não será relevante para fins do exercício de Direitos Fundamentais. Sua renda propiciará a ele e aos seus, por exemplo, uma boa escola, uma boa moradia, saúde, mas ele e os seus não terão segurança (podemos dizer que já não têm!), e, portanto, não poderão exercer esses direitos ou os exercerão de forma limitada, ou seja, em um grau muito menor. Poderíamos objetar que os incluídos não seriam de fato excluídos, pois continuariam usufruindo maior renda, o que é relevante para o conceito de exclusão. Essa objeção não faria sentido algum, pois o conceito de exclusão que apresentamos é jurídico, não econômico. Embora não neguemos a relação entre a renda e o exercício de Direitos Fundamentais, ela não representa seu componente único. Portanto, nada impediria falar em duas espécies de excluídos: excluídos ricos e excluídos pobres. Ambos, porém, seriam juridicamente excluídos. Partindo do mesmo pressuposto adotado acima, a saber, que todo ser humano quer exercer Direitos Fundamentais, seja isso algo bom ou não, podemos, então, concluir que o incluído, para manter sua posição, tem que desejar a inclusão do excluído! 12 O termo ideia reguladora é aqui usado no sentido normativo. Com isso, não queremos dizer que ideias existam, ou seja, que elas estão no plano ontológico ou que elas existam per se. O conceito de ideia aqui adotado é, como o conceito kantiano de ideia, um conceito metodológico. Isso significa que, para nós, assim como para Kant, as ideias não existem per se, sendo, portanto, oriundas da razão.

29 29 (iii) Em síntese, podemos concluir que a inclusão deve ser procurada tanto pelo excluído quanto pelo incluído. 4. A FORMA DE ESTADO QUE INCLUI O tópico acima mostra que querer a inclusão representa um interesse comum de incluídos e excluídos, mesmo que alguns deles não o admitam. Segundo Pettit, um interesse comum é um interesse que pode ser sustentado cooperativamente. Interesse sustentado cooperativamente é aquele segundo o qual todas as pessoas que entrarem em um debate público podem prover sem constrangimento como questão relevante a ser levada em consideração (PETTIT, 2007, 217). Partindo do pressuposto, então, de que a inclusão representa um interesse comum, e partindo do pressuposto de que a democracia, em sentido republicano, pode se definir como o regime que efetiva as políticas públicas e as ações de governo apenas e à medida que elas derivem daquele interesse comum (cf. PETTIT, 2007, ), surge a questão: como fazer isso? Podemos pensar, ainda com base em Pettit, nas formas de alcançar essa efetivação. Pettit afirma que, em um Estado republicano, é necessária uma forma de contestação para que sejam efetivados apenas os interesses comuns das pessoas (PETTIT, 2007, 227). Pettit defende essas formas de contestação porque, em seu entendimento, a dimensão autoral da democracia é insuficiente. Entende-se por dimensão autoral aquela em que podemos nos ver, mesmo indiretamente, como autores das leis, das decisões e das políticas públicas que nos vinculam (PETTIT, 2007, ). Sabemos que o sistema democrático, em sua dimensão meramente autoral, tem seus problemas. Os representantes eleitos, muitas vezes, não representam de fato os representados. Aliás, um dos grandes problemas da democracia representativa talvez resida nesse abismo, que precisa ser estreitado entre a vontade dos representantes e a vontade dos representados. Muitas vezes, os representantes representam apenas formalmente os representados porque, na prática, eles podem representar interesses não comuns, isto é, o representante que se elege em nome de interesses comuns pode, quando do exercício do mandato, se deixar mover por outros interesses que não aqueles pelos quais foi originalmente eleito. 13 Essa dimensão 13 Poder-se-ia objetar contra isso que nenhum representante se elege em nome de interesses comuns, mas na verdade em nome de interesses de um grupo, por exemplo, operários, empresários ou servidores públicos. Mas isso não invalida nossa constatação, pois, se assim for, basta dizer que o representante que se elege para defender os interesses comuns dos operários, dos empresários ou dos servidores públicos, depois de eleito pode se deixar mover por outros interesses que não os interesses comuns da classe que representa.

30 30 eleitoral da democracia, embora necessária, é insuficiente. Eleições periódicas fazem-se, portanto, necessárias, mas não bastam, pois localizam-se no plano da democracia autoral. Não basta eleger um representante, se os interesses que ele efetiva quando toma suas decisões podem não ser interesses comuns. Por causa dessa insuficiência do modelo meramente eleitoral, que é autoral, Pettit defende uma democracia contestatória. Não basta que sejamos, mesmo formalmente, autores das leis, das políticas públicas e das decisões que nos vinculam. É necessário possuir algumas formas de controle da atividade de nossos representantes, sobretudo dos detentores de mandatos no Executivo e no Legislativo mas também, e hoje cada vez mais, dos membros do Poder Judiciário. 5. FORMAS DE INCLUSÃO Se tomarmos as formas de controle a que se refere Pettit e as associarmos aos Direitos Fundamentais, podemos concluir que elas são formas de inclusão, à medida que, como vimos, a efetivação dos Direitos Fundamentais represente um interesse comum. Segundo Pettit, essas formas de controle, por ele denominadas formas de contestação, podem se dividir em três: (i) recursos procedimentais, (ii) recursos consultivos e (iii) recursos apelativos (PETTIT, 2007, ). (i) A primeira forma, recursos procedimentais envolve processos já garantidos formalmente nas democracias ocidentais. São processos como a separação de poderes e a observância ao Estado de Direito (PETTIT, 2007, 233). Tais processos, embora necessários, são insuficientes, pois podem ser objetos dos mesmos problemas da dimensão autoral: efetivar os interesses apenas de um grupo, em detrimento do interesse comum. Portanto, mesmo que haja uma separação efetiva entre os poderes, assim como uma observância às regras do devido processo legal no Estado de Direito, isso ainda resulta insuficiente. (ii) Vem, então, a segunda forma de contestação: recursos consultivos. Essa forma determina que as autoridades devam consultar a sociedade civil quando da tomada de decisões, sejam elas administrativas ou legislativas (PETTIT, 2007, ). Essa consulta pode se fazer por meio de comitês, debates, consultas públicas. Não nos referimos aqui apenas a consultas plebiscitárias ou por referendo, de difícil efetivação prática. Referimo-nos também e sobretudo àquelas consultas que existem, por exemplo, (a) quando se realiza uma audiência para se debater o orçamento participativo de um município, (b) quando se realiza uma audiência com a comunidade para saber se uma hidrelétrica se instalará em determinado local ou (c) quando se criam comitês que contam não só com a participação da comunidade

31 31 científica, que fornece subsídio técnico para a decisão, mas também com a participação dos interessados. Essas formas de consulta garantem que o interesse comum seja efetivado, em maior medida pelas políticas públicas e implementado pelos governos. (iii) A terceira forma de contestação, os recursos apelativos, é usada quando as políticas públicas ou as tomadas de decisão que já foram, ou estão sendo realizadas, não vêm efetivando os interesses comuns, tornando-se necessária, assim, uma forma de apelo. Segundo Pettit, as democracias permitem que cidadãos comuns desafiem aqueles que se acham no governo, por exemplo, apelando ao Parlamento, para que este investigue determinada ação governamental (PETTIT, 2007, 236). Essa dimensão mostra-se essencialmente ligada ao Direito, à medida que se realiza também por meio do controle jurisdicional das políticas públicas e tomadas de decisão. Daremos ênfase, aqui, ao Direito como forma de viabilizar essa forma de contestação. Em uma democracia contestatória a sociedade civil pode provocar o Poder Judiciário, a fim de garantir a legitimidade das políticas públicas e tomadas de decisão em geral. Como já ressaltamos no início, os Direitos Fundamentais, que são a chave para o conceito jurídico de inclusão, encontram-se formalmente garantidos nas declarações positivas (no caso do Brasil, na Constituição), mas infelizmente não surtem, em muitos casos, eficácia social. Como tornar eficazes esses Direitos Fundamentais por intermédio da forma apelativa? Políticas públicas que violam a Constituição podem ser entendidas como aquelas que não efetivam o interesse comum e podem ser vetadas a partir das diversas formas de controle de Constitucionalidade. Embora o controle jurisdicional de constitucionalidade da administração precise ainda muito avançar, o controle de constitucionalidade das leis já constitui um primeiro passo, pois a administração aplica a lei. Uma política pública ou tomada de decisão deve estar respaldada pela lei. É, porém, necessário reconhecer que apurar se determinada política pública viola ou não a Constituição não é coisa muito simples. Tomemos como exemplo as políticas econômicas. Alguns economistas dizem que nossa atual política econômica não é adequada, mas outros dizem que sim. Para saber se determinada política econômica viola ou não a Constituição seria necessário exigir dos órgãos jurisdicionais um conhecimento que eles não têm, um conhecimento auxiliar como, no caso de políticas econômicas, o conhecimento econômico. Em outros casos, seriam necessários conhecimentos das Ciências Sociais, de Ciência Política ou mesmo de determinadas Ciências da Natureza (quando se acham

32 32 envolvidas, por exemplo, questões técnicas em decisões de impacto ambiental). 14 Para evidenciar a dificuldade do controle dessas políticas, tomaremos como exemplo a polêmica questão da taxa de juros. Poder-se-ia afirmar que a política econômica atual é inconstitucional porque não efetiva os Direitos Fundamentais na maior medida possível e no menor tempo possível. Ela não o faz devido à taxa de juros, que é alta demais 15 e vem caindo em velocidade mais lenta do que poderia e deveria. Quem defendesse essa afirmativa poderia adicionar que uma política econômica constitucional seria aquela que estabelecesse uma taxa de juros menor, uma vez que, dessa forma, se efetivariam mais rapidamente os Direitos Fundamentais para um número maior de pessoas. Mas esse argumento é problemático à medida que a constitucionalidade ou não da política econômica depende de um conhecimento extremamente técnico e, muitas vezes, subjetivo. Poder-se-ia dizer, contra o argumento acima, que, no momento atual, uma economia com taxa de juros menor poderia causar um efeito oposto ao desejado, gerando, no final, mais pobreza e, consequentemente, menor possibilidade de fruição de Direitos Fundamentais. Se nem mesmo no âmbito específico da comunidade científica econômica há acordo a respeito de questões como esta, como pode ela constituir objeto de um controle de constitucionalidade? O controle de constitucionalidade de políticas públicas pode depender, portanto, de um conhecimento auxiliar. Por certo, seria possível dizer que ao Poder Judiciário permite-se valer do assessoramento de cientistas, como acontece com a perícia técnica nos procedimentos jurisdicionais ordinários. Mas, assim como nos procedimentos ordinários, os peritos podem discordar, também em um controle como o que analisamos, os cientistas podem discordar, e caberia ao juiz decidir. Outra dificuldade de um controle jurisdicional da constitucionalidade das políticas públicas é que o Poder Judiciário só age quando provocado e um controle concentrado com legitimidade ativa universal seja inviável na prática. Por isso um sistema de controle difuso pode resultar mais interessante, mas então juízes de todas as instâncias teriam que enfrentar o problema acima descrito. Portanto, embora o controle não só da constitucionalidade, mas também da legalidade das ações da administração constitua importante forma de exercício de democracia apelativa, ele apresenta dificuldades que precisam ser enfrentadas. 14 Por exemplo, para instalar uma usina hidrelétrica em determinado local ou para criar uma política que determine se o Brasil deve investir mais em usinas hidrelétricas, termelétricas ou nucleares, faz-se necessário um conhecimento técnico muito grande. 15 No período entre a primeira versão deste trabalho e sua publicação, houve uma sensível queda na taxa de juros no Brasil. O exemplo toma como base a situação da época da primeira versão.

33 33 Para que os instrumentos apelativos cumpram a finalidade democrática, torna-se preciso que a sociedade civil atue: a responsabilidade não recai só no poder público, mas também nos cidadãos, individual ou coletivamente organizados. Torna-se necessário, pois, que além dos elementos de democracia autoral, que, como vimos, constituem os elementos formais, como eleições periódicas e garantia do Estado de Direito, existam elementos contestatórios, como as formas procedimentais, consultivas e apelativas de democracia. Ampliar as formas apelativas e torná-las eficazes configura um desafio posto à nossa sociedade. Poderíamos começar revendo a dificuldade que existe em obter o provimento jurisdicional. O Direito e a Democracia são instituições construídas por homens, em outras palavras, obras humanas que só fazem sentido à medida que têm por fim o homem. Um Estado em que o Poder Judiciário poder garantidor último de direitos, devido à morosidade e à burocracia excessivas, não efetiva em mínima medida o direito quando violado, não é digno de receber o nome de Democrático de Direito. Se a inclusão é, como pensamos, interesse de todos, um Estado que ponha verdadeiramente em prática formas apelativas de Democracia constitui, mais que um interesse comum, uma necessidade para a afirmação democrática. Enquanto não contarmos com isso, em medida mínima, não poderemos encher o peito e dizer que vivemos realmente em um Estado Democrático de Direito.

34 34 REFERÊNCIAS KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintanela. Lisboa: edições 70, PÉREZ LUÑO, Antonio E. Derechos Humanos, Estado de derecho y Constitucion. 5. ed. Madrid:Tecnos, PETTIT, Phillip. Republicanism: a Theory of Freedom and Government. Oxford: Oxford University Press, Teoria da Liberdade. Tradução: Renato Sérgio Pubo Maciel. Coordenação e supervisão: Luiz Moreira. Belo Horizonte; Del Rey, SALGADO, Joaquim Carlos. Os Direitos Fundamentais. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, , pp

35 35 Sociedade Inclusiva e psicanálise: do para todos ao cada um Ilka Franco Ferrari 1 Maria José Gontijo Salum 2 Uma das Cartilhas da Inclusão, que se encontra on-line 3, esclarece que a sociedade que é inclusiva tem como objetivo principal oferecer oportunidades iguais para que cada pessoa seja autônoma e autodeterminada. Trata-se de uma sociedade que é democrática, reconhecendo todos os seres humanos como livres, iguais e com direito a exercer sua cidadania. Sociedade fraterna, na qual o respeito à dignidade de todos se evidencia e há o estímulo à participação de cada um, reconhecendo o potencial de todo cidadão, no apreço às diferentes experiências humanas. Para tanto, considera-se necessário haver esforço coletivo dos sujeitos que dialogam em busca do respeito, da liberdade e da igualdade. Esses princípios, como decidimos chamá-los, podem ser objeto de estudo e discussões, a partir de diferentes campos de conhecimento, principalmente por incluírem categorias como sociedade, igualdade, liberdade, direito, cidadania, fraternidade, democracia, sujeito, sobre as quais estudiosos podem divergir. Eles trazem a evidência de que na sociedade algo se põe à margem e necessita ser lembrado pelos cidadãos, sujeitos, homens, termos utilizados na cartilha. Construídos pelos caminhos da universalização dos Direitos Humanos, iniciada no pós-guerra do século XX, mais especificamente em 1948, de certa forma, declaram que a humanidade, em sociedade, segrega algo que precisa ser incluído para que se evite o pior. Esses princípios mostram, ainda, certas implicações da universalização dos Direitos Humanos: eles deixam de ser competência exclusiva da jurisdição doméstica dos Estados, que se comprometem, diante da comunidade internacional, a observar, garantir e implementar os direitos consagrados nos textos por eles subscritos. Ressalta-se também que os povos e cidadãos obtêm a legitimação para lutar por seus próprios direitos para além dos limites geopolíticos de cada Estado, ou seja, prevalece uma exigência humanitária de se proteger a pessoa humana como tal, para além das fronteiras do país de que é nacional (GONÇALVES, 1998). 1 Doutora em Programa de Clínica y Aplicaciones Del Psicoanális. Professora adjunta da PUC Minas. 2 Doutora em Teoria Psicanalítica. Professora Assistente III da PUC Minas. 3 Acessada no site dia 20 de junho de Nela há a seguinte observação: Reproduzida, com adaptações e atualizações, mediante autorização, da Cartilha da Inclusão editada pela PUC Minas, site: elaborada por Andréa Godoy et al, novembro de 2000.

36 36 Os princípios situam-se, desse modo, também dentro do debate do direito a ter direitos, questão insistente para a filósofa Hannah Arendt, que discutia a modernidade como mundo no qual os próprios homens são descartáveis. Lugar de homens que não podiam estar à vontade nem sentir-se em casa, facilmente marginalizados, tornando o direito a ter direitos um tema da vida internacional (ARENDET, 1951/1997). Nesse cenário dedicado a lançar luz sobre uma sociedade que é inclusiva, vale a pena, então, repousar o foco no processo de segregação que lhe é inerente e fertiliza seu solo. 1. ESTAREM SEPARADOS, JUNTOS: DIFICULDADE HUMANA Miller, no seminário O outro que não existe e seus comitês de ética (2005), diz que a liberdade dos modernos é o individualismo, é considerar que a sociedade não deve ter fins coletivos (p.51), diferentemente da liberdade dos antigos que acentuava a comunidade e os fins coletivos. O processo segregatório faz parte do universo humano e não passa despercebida aos estudiosos da cultura. Ele faz parte da dificuldade de viver em uma fraternidade discreta, que supõe a capacidade de estarem separados, juntos (FERRARI, 2004). Freud (1930/1969) ensinou, como muito se repete, que sempre haverá mal-estar na humanidade, não importa a época, porque sempre haverá a impossibilidade dos homens no controle do corpo, da natureza e, principalmente, dos laços sociais. Não se pode esquecer que sua concepção de homem comporta a pulsão de morte e a agressividade. Como lembra Cevasco (1994), em Freud, o homem é um porco-espinho simpático ou um lobo feroz, muito longe de ter a capacidade de amar o próximo como a si mesmo. Em Lacan, isso não é diferente. Ambos, portanto, sempre se preocuparam com as formas que os sujeitos encontram para viver juntos, portando diferenças intransponíveis. Jamais desconsideraram, como às vezes se ouve, o que Miller (2005) vem chamando de realidade social, a ponto de Lacan, enfático, dizer que o praticante que não considera a subjetividade da época, no horizonte de sua ação, deve desistir de praticar a psicanálise (LACAN, 1953/1998:322). No seminário O outro que não existe e seus comitês de ética (2005), Miller comenta que utiliza a expressão construção da realidade social, no contexto psicanalítico, numa referência direta ao que se discute, na atualidade da filosofia norte-americana, por meio do livro The Construction of Social Reality, do filósofo anglo-americano John Searle, representante da filosofia analítica, uma das principais correntes de reflexão no mundo atual. Com certa ironia, marca que aquilo que tem sido considerado uma novidade para os filósofos analíticos, ou seja, a construção da realidade social, já era assunto de Freud e está bem claro

37 37 em Lacan. Em ambos, há a presença de uma realidade social que é construída, transindividual e que se impõe ao sujeito. Exemplo disso pode ser visto nos textos freudianos sobre a cultura, para aqueles que apresentam dificuldade de situá-los em seus textos clínicos. Em Lacan, desde o início, o social é colocado em questão, até mesmo porque Freud havia deixado as trilhas de Durkheim, nas quais as instâncias culturais dominam as naturais e as relações sociais constituem uma ordem original de realidades. Um bom exemplo são as formalizações sobre o Outro, situado no lugar da palavra, da linguagem, da cultura, do institucional, do discurso universal, até falando do inconsciente como transindividual, ou seja, como discurso do Outro. Ao não desconsiderarem a subjetividade da época, deixaram contribuições valiosas sobre a ciência como uma inovação importante, mas favorecedora de problemas à humanidade, já que o mundo estruturado por ela é regido pela razão, que segrega, aliena o sujeito. No texto originado da correspondência entre Freud e Einstein, favorecida pela Liga das Nações, antecessora da Organização das Nações Unidas (FREUD, /1974), essa questão é ressaltada por Einstein. Na Proposição de 9 de outubro de 1967 (LACAN, 2003, p.263), texto importante no marco lacaniano, Lacan recorda aos psicanalistas que uma das faticidades que encontrariam na prática dizia respeito aos efeitos de segregação, pois os processos de segregação se desenvolveriam como consequência dos remanejamentos dos grupos sociais pela ciência e da universalização que ela ali produz. Era um estudioso atento ao enfraquecimento ou desaparecimento das figuras tradicionais do Outro, ao surgimento da falta de referenciais simbólicos, que culminaria nos significantes forjados para a atualidade, segundo Vieira: Pós-modernidade de Lyotard, Hipermodernidade de Lipovetsky e Modernidade líquida de Bauman (VIEIRA, 2004, p.73). Não é incorreto dizer, portanto, que esses psicanalistas que fizeram escola se preocuparam com a política também em outra dimensão que a política do inconsciente, do sintoma. Lacan, por exemplo, chegou a pensar que o discurso analítico seria uma saída para o discurso capitalista. Duas observações fazem-se importantes neste instante: ressalta-se que ele não pensou que o discurso analítico acabasse com o capitalismo e também tinha claro que há social na clínica do particular, porque não há sujeito que não esteja implicado em formações discursivas. 2. POLÍTICA, CAPITALISMO E SEGREGAÇÃO

38 38 O surgimento das políticas sociais a partir das quais, atualmente, temos trabalhado, só pode ser formulado no contexto da tentativa de construção de uma sociedade de direitos. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, como já se disse, é um marco nessa busca. A declaração está relacionada ao surgimento das sociedades democráticas modernas, sociedades cujo princípio organizador da ordem política é o fundamento da liberdade. Dessa forma, a solução democrática acaba por se constituir em um problema, ao estabelecer suas bases na liberdade. Isso se deve à indeterminação presente nesse fundamento, segundo Rosanvallon (1998). Em consequência da liberdade, a democracia acaba por se mostrar sujeita à abertura e tensão constantes. Esse novo cenário, o da liberdade, é bastante distinto das sociedades tradicionais, nas quais havia um princípio soberano que dava sentido à vida e à existência. Nas democracias, ao contrário, as condições de vida não se acham previamente definidas o sentido não está dado por uma tradição ou pela imposição de uma autoridade. A dificuldade da democracia é constituir um campo, que Rosanvallon (1998) denomina de político, no qual vigore a ideia de que existe uma sociedade para os membros nela inseridos. Para ele, é necessário um trabalho político para que um agrupamento humano adquira a característica de um campo político, quer dizer, de uma sociedade. Esse trabalho é sempre litigioso, já que nele se elaboram as regras que dão corpo à vida em uma comunidade. Isso quer dizer que o político é o poder e a lei; por isso, nas sociedades democráticas, a discussão política deveria assumir maior prevalência. Essa concepção mostra-se de acordo com a psicanálise, tal como adverte Jacques Alain-Miller (2004), tendo em vista que o laço social entre os homens é sempre um laço de domínio de um sobre outro. E daí a preferência de Lacan, como esclarece Miller, pela expressão laços sociais, ao invés de a sociedade. Rosanvallon (2002) é um dos pensadores que consideram que a globalização econômica modificou o espaço da democracia. Com o advento da economia de mercado, torna-se cada dia mais difícil instituir um campo político. Para ele, haveria uma dissolução do político na contemporaneidade. Essa dissolução pode ser apreendida a partir da análise de várias formas de tentativa de recomposição de uma soberania, conforme se vê acontecer atualmente nos movimentos fundamentalistas. Foi exatamente nesse contexto de perda das determinações que nasceu a discussão sobre os direitos do homem. Eles podem ser vistos como uma proteção necessária contra a falta de garantias do mundo moderno. A Declaração Universal dos Direitos do Homem foi fundamentada em três premissas: direitos humanos, democracia e paz. Tais premissas estão, necessariamente, intricadas umas

39 39 nas outras. O sociólogo Marcel Gauchet (2002) concorda que a declaração dos direitos é consequência do sistema democrático: ela é um triunfo das democracias. Mas acrescenta que proteger os direitos é insuficiente. Segundo ele, os direitos humanos, tal como os conhecemos hoje, não definem um campo político. Há, para ele, uma diferença entre instituir uma política dos direitos e protegê-los. Fazer a passagem da proteção um acordo para uma política de direitos representa um grande desafio, segundo ele. Cevasco (1994), psicanalista de orientação lacaniana, ao discutir efeitos de segregação na sociedade atual, em um momento se pergunta o que é a política. Antes de tudo, conclui, a política é um fenômeno de linguagem que precipita a identificação dos sujeitos no social, construindo sujeitos estandardizados. Nesse sentido, ela tem uma função pacificadora, socializadora, pois aglomera os semelhantes, funda uma coexistência e constitui, para os sujeitos, uma realidade que é transindividual, assegurando a permanência do mundo. A coletivização, conforme lembra Tizio (1994), supõe mesmo conjuntos reunidos sob identificação, ou seja, a partir de um traço, espécie de relação parte/todo a definir o ser. Mas, se o discurso político pacifica, continua Cevasco (1994), ele se singulariza por uma guerra contra o semelhante. Ao fabricar um Outro que pode garantir a identidade, ao homogeneizar, segrega. Com Lacan, vimos claro como o discurso capitalista permite a articulação entre a lógica do para todos, estabelecida pela ciência, forçando a exceção de alguns, presente em expressões como outra raça, outra classe social, outra religião, outro sexo etc. Tais exceções constituem os efeitos de segregação variáveis, indo de fenômenos relativos à repartição dos bens oferecidos no mercado à intolerância frente a modos de vida diferentes. A diversidade da cultura, por exemplo, quando não desaparece ou se esfuma, com a globalização do mundo, transforma-se em nacionalismo identitário intolerante que desemboca nos estragos da purificação étnica e condena as minorias numerosas à deportação, à violação e ao exílio (CEVASCO, 1994, p.67). Lacan não hesitou em escrever como o capitalismo debilita os laços de solidariedade e favorecem uma solidão dos sujeitos. Talvez por isso se torne tão importante lembrar-lhes que é preciso haver esforço coletivo no diálogo em busca do respeito, da liberdade e da igualdade, tal como propõe os princípios da cartilha de inclusão mencionada no início deste texto. Não parece estranho, assim, que sejam fomentados campos propícios ao desenvolvimento das políticas de ação social para gerir os excessos, os desvios do gozo, ou seja, da satisfação pulsional, como diria Lacan, objetivando cuidar e, principalmente, prevenir riscos de perda ou estragos nos vínculos entre os cidadãos, em nome da felicidade e até da

40 40 liberdade humana. Nesse momento, vale retornar a Arendt, que acreditava na liberdade do homem. Para ela, os homens não precisam apenas da companhia dos outros para exercer sua liberdade. Eles precisam de um espaço comum, politicamente organizado, para manifestar suas capacidades, pois a liberdade política se expressa num mundo no qual a pluralidade é parte essencial e produto da ação contínua dos homens, (BIGNOTTO, 2001, p.118), o que é impossível, por exemplo, no totalitarismo. O mundo da política não pode ser confundido com o terreno da intersubjetividade. O milagre da liberdade, para ela, reside no poder de começar e, se cada homem vem a um mundo que já existia e vai continuar depois de sua morte, diz Bignotto citando Arendt, ele mesmo é um novo começo. Há, nessa autora, a capacidade humana de agir e criar nova realidade social. A psicanálise também crê em uma realidade que é transindividual, conforme já se escreveu, bem como na possibilidade da ação humana e em seu poder criador. Seus praticantes estão por ai, em diferentes cantos, não recuando diante das novas demandas institucionais, culturais. Faz tempo que isso já não é mais um simples sonho freudiano. Sua incidência na política, no entanto, depende do desejo que promove a pura diferença, diferentemente do desejo da ciência e do político. De acordo com o que fala Cevasco (1994, p.69), a psicanálise busca sair da coletivização do gozo para romper o círculo vicioso do capitalismo, que faz de toda mais valia um imperativo de gozo e todo mais de gozo um imperativo de mais valia. Como faz isso? Os itens desenvolvidos a seguir tratam de esclarecer essa ação. 3. A AÇÃO DOS PSICANALISTAS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS A inserção dos psicanalistas nos diversos contextos das políticas públicas não constitui, propriamente, uma novidade, ela já acontece há alguns anos no Brasil. A possibilidade de fazer operar o discurso psicanalítico no campo social traz alguns problemas e várias questões. Principalmente porque, a partir dessa experiência, vemos que alguns pressupostos considerados clássicos, como o tempo e o chamado setting analítico, têm se modificado. A princípio, pode causar estranheza os psicanalistas se preocuparem com as políticas públicas orientadas para os direitos sociais. No entanto, faz algum tempo que os psicanalistas de orientação lacaniana têm saído dos consultórios e estendido a ação da psicanálise na cidade. O trabalho da psicanálise no campo social vem sendo desenvolvido em distintos locais e contextos, e as transformações no espaço público e sua reflexão no campo social tem sido

41 41 pauta de encontros e debates entre psicanalistas. Temas como violência e criminalidade vêm despertando seus interesses, e a psicanálise tem sido chamada a intervir nestes campos, não somente a partir de sua clínica do caso a caso, mas formulando uma ação que visa a considerar, não as classificações que segregam, mas a possibilidade de aparecimento de um sujeito responsável e com direitos. Essa abertura para operar o discurso psicanalítico em outros contextos tem trazido grandes contribuições à psicanálise, suscitando novas questões e pontos de impasse. Um bom exemplo disso é a aplicação da psicanálise nas políticas criminais, sua ação, não somente na perspectiva da clínica com aqueles que se encontram às voltas com a justiça por terem praticado atos infracionais, mas também na contribuição que tem oferecido para se criar uma política criminal que leve em consideração a possibilidade de acolher um sujeito responsável e, por conseguinte, com possibilidade de estabelecer laços sociais. Trata-se de um acolhimento que leva em conta os direitos de cada um, sem repetir as políticas planejadas e executadas nessas áreas, que acabam segregando e excluindo. Pensar em programas e projetos que trabalhem na perspectiva da inclusão de autores de ato infracional é algo novo. Tradicionalmente, o infrator sempre foi visto como um forada-lei, devendo ser excluído do campo social. Desde a Antiguidade se tem notícia de que foi a lei uma obrigação a encarregada de barrar os excessos dos homens e impor limites à convivência. Pensar uma política para os autores de atos infracionais que leve em conta os direitos representa um desafio. Tanto Freud quanto Lacan se interessaram pela interlocução entre o direito e a psicanálise. No entanto, há diferenças entre os dois na maneira de abordá-la. Freud, apesar de vislumbrar a prática psicanalítica no campo jurídico, não chegou a formalizar as coordenadas para que isso se efetivasse. Ele recorreu, em diversos momentos de sua obra, ao campo do direito, principalmente, no que diz respeito aos delitos, já que ele outorgava, como causa da lei, os crimes de parricídio e incesto. Lacan, por sua vez, nos indicou alguns caminhos para que o discurso psicanalítico pudesse operar no campo jurídico. 4. PSICANÁLISE, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS CRIMINAIS: NOVOS MODOS DE PRATICAR SEM SEGREGAR Nas sociedades democráticas, o poder judiciário tem a função de dirimir os conflitos entre os homens. Há poucos séculos, no mundo ocidental, a justiça passou a ser a encarregada de estabelecer os limites para manter a ordem pública e ela o faz por intermédio da lei. O

42 42 Direito Penal classifica o que é proibido, tipificando-o como crime, e quem o comete se sujeita à punição prevista pelo Estado. Entre as formas de punição que existem, o aprisionamento, a exclusão da liberdade, tem sido a mais utilizada. A prisão foi um dispositivo criado para o cumprimento da pena de reclusão. Ao ser idealizada no século XVIII por Jeremy Bentham, objetivava não somente punir os infratores da lei penal, mas também prevenir novos crimes por meio do exemplo. Era esse o ideal de Bentham (1787/2000). O Direito Penal foi instituído considerando a existência de um indivíduo dotado de razão, que poderia responder por seus atos e, por isso, poderia imputar-lhe uma pena. Todos os que cometem crimes podem ser penalizados, salvo algumas exceções. Entre elas, encontram-se os portadores de doença mental, considerados inimputáveis pela justiça, além dos menores de 18 anos, que recebem as medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Eles não vão para as prisões, mas têm recebido o mesmo tratamento segregatório. Os adolescentes, na maior parte do Brasil, ainda são enviados para internação, seja em unidades específicas para eles ou até mesmo em estabelecimentos carcerários, e os loucos para os manicômios judiciais. As exceções à legislação colocam na cena jurídica outros saberes que não os tradicionais, o que vem contribuindo para a formulação de políticas que levam em conta outros modos de responsabilização, que não a punição mediante a perda da liberdade. Em meio a essa situação, além de outras disciplinas, a psicanálise, cada vez mais, tem sido chamada a operar neste campo, antes destinado somente aos operadores do direito e à polícia, e que se fazia cumprir nas instituições prisionais preconizadas por Bentham. Em Belo Horizonte, alguns psicanalistas vêm se dedicando, não somente à aplicação da psicanálise no contexto jurídico, mas ainda participando da construção de políticas públicas e execução de programas que visem o tratamento da violência e do crime nos mais diversos espaços: penitenciárias, cumprimento de medidas socioeducativas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, projetos comunitários, acompanhamento de medidas judiciais para pacientes psicóticos infratores, programas para usuários de drogas, cumprimento de penas alternativas, entre outras. Por isso, vale precisar qual o encaminhamento que a psicanálise de orientação lacaniana tem adotado nesses espaços, ou seja, um pouco do que já é possível formalizar a partir do trabalho de praticantes nessas situações. Em todos esses espaços, tem-se em vista a possibilidade de o sujeito ser responsabilizado, de responder, do seu modo, pelo ato. Se for verdade que a psicanálise

43 43 mantém o preceito da exigência universal de que o sujeito seja responsável, é também verdade que essa responsabilidade pode tornar-se possível de vários modos, considerando as particularidades de cada um. A cada um, uma medida será possível. Cabe a nós construirmos ficções jurídicas que tornem possível ao sujeito aparecer, desviando-nos do caminho tradicional da classificação, segregação e exclusão. A um sujeito adolescente que comete um ato infracional, por exemplo, várias medidas são possíveis: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e, somente como último recurso, a internação. A um portador de sofrimento mental que passa ao ato, não o isolamento imposto pelo manicômio e a mordaça, mas a possibilidade de que venha a responder por seu ato utilizando-se dos recursos que a cidade dispõe para que ele possa, em liberdade, conviver e estabelecer laços no campo social. A inserção da psicanálise nos projetos e programas que trabalham com adolescentes que cometeram infrações constata uma ação do psicanalista no contexto social e jurídico. É importante salientar que a possibilidade de a psicanálise se inserir neste campo, que há algum tempo cabia somente às instâncias de controle, deve ser creditada, no Brasil, às possibilidades abertas pelo ECA, a partir de O Brasil assinara o acordo internacional para a promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes, mas não havia implantado uma política para a infância e a adolescência que levasse em consideração esses mesmos direitos. A legislação existente era discriminatória e segregativa, um Código de Menores de 1927, reformulado em Em suas duas versões, encontram-se no código expressões que demonstram o objetivo de controle social a partir da repressão de crianças e adolescentes que, para seus autores, representavam um perigo para a sociedade e que, portanto, deveriam ser afastadas do convívio social. Em 1990, no contexto do processo de democratização do Estado brasileiro e seguindo a Constituição do país, aprovada em 1988, surgiu uma nova legislação para as crianças e adolescentes, o já mencionado ECA. Seu objetivo, entre outros, era modificar a concepção que as leis anteriores tinham sobre a criança e o adolescente. Seu desafio, no que diz respeito aos atos infracionais cometidos por adolescentes, consiste na implantação de uma política de direitos para estes. Acompanhando a evolução da criminologia, observa-se que cada época delimita o que é o perigo, além de serem adotadas medidas preventivas e punitivas, em relação a quem porta suas marcas. Toda civilização se ordena em torno de certos ideais e as leis jurídicas produzidas pela cultura significam tentativas de unir e regular os laços sociais. Sobrevivem

44 44 ainda em nossos dias os mitos que derivam das concepções ontológicas da chamada delinquência juvenil. Essas concepções entendem o delito como um ente natural, como parte constitutiva de uma suposta natureza humana. Lacan (1950/1998), ao contrário, trouxe uma concepção social do delito, na qual cada sistema de justiça constrói um tipo de infrator. Como já foi dito, ao adolescente que cometeu uma infração, o ECA prevê as medidas socioeducativas. No lugar da privação da liberdade como a única medida frente ao que escapa à lei, outras medidas são possíveis. A responsabilidade pela implantação de cada uma das medidas é compartilhada por distintas esferas de poder, a Advertência e Obrigação de Reparar o Dano são executadas pelo Juizado da Infância e da Juventude; as medidas de Prestação de Serviços à Comunidade e Liberdade Assistida, pelo município; e a Semiliberdade e Internação, pelo Estado. Em torno de nove anos, Belo Horizonte iniciou a implantação do Programa de Liberdade Assistida e, mais recentemente, o Programa de Prestação de Serviços à Comunidade 4. Nesses programas, busca-se operar caso a caso, acompanhando o adolescente na construção possível de outro laço com o social, que não a infração à lei. Portanto, a ação da psicanálise, com os adolescentes às voltas com atos infracionais, orienta-se em direção a projetos e programas em que seja possível uma abordagem da lei, na qual o sujeito possa aparecer e não uma imposição cega do cumprimento de uma lei. Ou seja, busca promover uma política orientada pelo sintoma do adolescente, como no caso de Alexandre, 5 em medida socioeducativa de Liberdade Assistida, devido ao ato infracional de furto. Revoltado em ter que cumprir a medida, Alexandre dizia: Nasci na maloca e vou morrer na maloca. Tudo que aprendi foi morando na rua. Ele vivia nas ruas com sua mãe, o companheiro desta e sua irmã. Sua mãe era viciada em crack e, numa briga, foi morta pelo companheiro. Antes de ser morta, ela estava para ganhar uma casa da Prefeitura de Belo Horizonte. Com a morte da mãe, ele e a irmã perderam o direito à casa, por serem menores de idade. Encaminhados para morarem com uma tia, eles voltaram para as ruas. Alexandre que, inicialmente, se dizia invisível, aos poucos vai contando sua história, como ele mesmo diz, e reconstruindo sua vida sem o auxílio da caridade, seja da tia, seja da prefeitura. Passa a morar 4 Inicialmente, o Programa de Liberdade Assistida foi coordenado por Cristiane Barreto e, desde o início de 2007, Márcia Mezêncio é a coordenadora. Ambas são psicanalistas, membros da Escola Brasileira de Psicanálise Minas Gerais. No Programa de Prestação de Serviços à Comunidade, implantado mais recentemente, sua coordenadora, Lívia Boareto, parte da orientação da psicanálise no acompanhamento dos adolescentes. 5 Atendido por Carla Capanema, técnica do Programa de Liberdade Assistida da Prefeitura de Belo Horizonte e membro correspondente da seção Minas Gerais da Escola Brasileira de Psicanálise. Este caso foi apresentado no 3º Encontro Americano de Psicanálise no relatório Da norma jurídica à exceção à regra, uma torção, do singular ao universal, elaborado por Maria José Gontijo Salum e Fernanda Otoni de Barros, em Belo Horizonte, agosto de 2007.

45 45 em uma baia 6, em um depósito de papéis, e recusa a oferta de ir para um abrigo, dizendo não ser um menino de rua. Ele conclui que tem uma profissão, é catador de papéis. Para Alexandre, o ato ilegal o levou a ter oportunidades que nunca teria, segundo suas próprias palavras. Trouxe oportunidades de ter carteira de identidade, de voltar para a escola, de poder conversar... Alexandre se responsabilizou pelo ato infracional a partir de sua posição de sujeito, com deveres, mas também com direitos. Podemos também, a partir do fragmento de um caso de um sujeito psicótico que se encontra às voltas com a justiça, exemplificar como é possível, a partir da psicanálise, a responsabilização em sujeitos psicóticos que cometeram crimes. O Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ), do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, segue a psicanálise de orientação lacaniana na condução de seus casos e em sua concepção. Foi concebido e é coordenado pela psicanalista Fernanda Otoni de Barros e busca, na condução dos casos, a responsabilização em liberdade, já que foi construído como uma nova ficção jurídica em substituição aos manicômios judiciários. O caso 7 a que nos referimos diz respeito a Carlos, como o chamaremos, um portador de sofrimento mental, considerado um delinquente de alta periculosidade. Aparecia nos jornais de sua cidade como estuprador e tinha vários processos por atentado violento ao pudor, roubo e furto. Não subjetivava nenhum desses atos como seus. Segundo ele, isso tudo foi inventado para prejudicá-lo. Logo no início dos atendimentos, Carlos pede a sua psicóloga que lhe arrume um emprego. Ao lhe ser perguntado o motivo de querer um emprego, ele explica que era para ter acesso a uma mulher solteira. Se ela o ajudasse, seria recompensada, poderia ficar com o primeiro salário dele. Explica que faz essa oferta porque sabe que nada é de graça, que para se obter algo é preciso pagar. Por isso, Nívea intervém dizendo que ele tem razão, que ela está ali por ser funcionária do Tribunal de Justiça, que paga a ela por seu trabalho. Ele sorri e diz que a doutora havia entendido e essa intervenção marca a entrada do PAI-PJ no caso. Posteriormente, relata à psicóloga que herdou a inteligência poética de Carlos Drummond de Andrade e sua tratadora, como ele a chama, acolhe essa sua invenção delirante. Carlos lhe dita cartas para que escreva e, a partir de suas cartas, estabelece com ela laços que lhe possibilita contar-lhe um sonho no qual ela lhe diz: Vou colocar seu nome aí, mas você não pode cometer nenhum erro. Ao escutar este relato a psicóloga lhe pergunta: erros? Isso 6 Cubículo onde ficava seu carrinho no depósito de papéis e onde ele separava os papéis que catava na rua. 7 Caso acompanhado por Nívia Pimentel Teixeira, do setor de psicologia do PAI-PJ, cujo extrato foi publicado na revista digital Assephallus, no artigo Invenção e responsabilidade na psicanálise aplicada ao judidiário, de autoria de Maria José Gontijo Salum.

46 46 faz com que ele comece a relatar seus atos infracionais e a assegurar que, se o juiz permitisse sua saída, ele não cometeria mais erros. A responsabilidade pelos atos tornou-se possível, a partir desse acompanhamento ou, como ele anuncia, desse tratamento. De início, Carlos ditava cartas para sua tratadora, pedia que ela escrevesse assinatura e assinava. Essas cartas eram, em geral, pedidos de emprego e de objetos diversos. Dizia que não poderia escrever, pois cometeria muitos erros. Depois do relato do sonho, ele próprio passa a escrever as cartas e começa a pagar sua tratadora com poesia. Ele solicita uma audiência com o juiz, diz que quer ser ouvido, quer conversar, quer saber, como ele próprio diz, a significação de seu juízo. A equipe do PAI PJ acolheu a solicitação, prontificando-se a marcar a audiência. Esses dois fragmentos e outros que poderiam ser mencionados podem demonstrar que, na relação do campo jurídico com a psicanálise, é possível buscar uma política de direitos, que é inclusiva, desde que se leve em conta a inclusão de cada solução particular e não, como sempre se fez, promover uma segregação em massa nos presídios, na Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (FEBEM) e manicômios. Uma política que, buscando promover a responsabilização para todos, esteja advertida de que nem todos são iguais perante a lei e cada um se apresenta e responde a ela de forma particular.

47 47 REFERÊNCIAS ARENDET, H. (1951).As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo:Cia. Das Letras, CEVASCO, R. Una inquietud contemporánea: efectos de segregación. Freudiana, Barcelona, n.11, p.64-70,1994. BENTHAM, J. (1787) O panoptico ou a casa de inspenção. Em O panoptico, Belo Horizonte: Autêntica editora, 2000, p BIGNOTTO, N. (2001). Totalitarismo e liberdade no pensamento de Hannah Arendet. Em Hanna Arendt, diálogos, reflexões, memórias, Belo Horizonte: Editora UFMG, p FERRARI, I.F. Trauma e segregação. Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p , FREUD, S. Totem e tabu (1912). Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud (ESB). Vol. XIII. Rio de Janeiro: Imago Editora, O Mal-estar na civilização (1930). ESB. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago Editora, Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). ESB. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago Editora, Por que a guerra? (1933) ESB. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora, GONÇALVES, L.M.D. A Declaração Universal dos Direitos Humanos e os sujeitos de direitos. Uma tentativa de manutenção do pacto civilizatório. Opção Lacaniana, São Paulo, n.22, p.91-95, ago GAUCHET, M. La démocratie contre elle-même. Paris: Éditions Gallimard, 2002 LACAN, J. Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia. (1950). Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. Em Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. Le Séminaire livre X: L angoisse. ( ). Paris: Éditions du Seuil (1953/1998) Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Em Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. p.322. MILLER, J. A «Un Effort de Poésie». Cours d orientation lacanienne: 13 leçon, 19 mars Photocopie. MILLER, J.A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005.

48 48 ROSANVALLON, P. Le peuple introuvable. Paris: Éditions Gallimard, SALUM, M.J.G. Invenção e responsabilidade na psicanálise aplicada ao judiciário. asephallus Revista digital do Núcleo Sephora de Pesquisa sobre o Moderno e Contemporâneo. Edição 01, novembro de TIZIO, H. Individualismo e colectivización. Freudiana, Barcelona, n.12, p.18-22, VIEIRA, M.A. A (hiper)modernidade lacaniana. Latusa, Rio de Janeiro, n.9, p.69-82, 2004.

49 49 A Inclusão da Cultura e a Cultura da Inclusão 1 José Márcio Barros 2 1. ALGUNS PRESSUPOSTOS Os termos aqui relacionados, cultura e inclusão, têm uma dupla e paradoxal relação. Explicitar a complexidade dessa relação, tanto no campo das ideias quanto na arena de nossas práticas, parece constituir-se em condição necessária e urgente para que se possa avançar rumo a uma práxis inclusiva menos compensatória e altruísta e mais comprometida com as diferenças, com a dignidade humana e a democracia. A inclusão, mais que um problema de moral positivista que nos encaminharia para o exercício da filantropia, compaixão e beneficência, constitui-se como uma questão ética, política e de educação. O substantivo práxis é aqui utilizado de forma proposital e não apenas retórica. Refere-se à maneira como, para além da crítica meramente conceitual, o desafio parece ser o de construir um novo sujeito e um novo mundo. Ação e reflexão que se refundam de forma processual e dinâmica. Aqui está o centro de minha reflexão. No campo das ideias, relacionar cultura e inclusão não é tarefa tão fácil quanto se pode imaginar. Exige um delicado cuidado epistemológico, capaz de evitar que a força da retórica culturalista e assistencialista simplifique a questão, tomando uma como decorrência natural da outra. No campo das práticas sociais, da mesma forma, parece não ser suficiente a declaração bem intencionada de ideais inclusivos. A inclusão não se realiza plenamente na espontaneidade de fazeres piedosos e muito menos pela ação mágica da consciência subjetiva de seus modernos agentes. Mais que subjetiva, a experiência da inclusão é política. Mais que direitos provisórios, a inclusão deve constituir um padrão cultural. Entretanto, a relação entre cultura e inclusão é marcada pela complexidade e paradoxalidade, nos termos em que Edgard Morin as define, motivo pelo qual, para além de uma adesão e engajamento, há necessidade de cuidado e crítica. Nomeio dessa forma o problema: a relação entre cultura e inclusão não está isenta e ausente dos riscos redutores das 1 Conferência de abertura do Seminário Perspectivas de Inclusão pela Arte e Cultura, realizado pela Pró-reitoria de Extensão - Sociedade Inclusiva Núcleo de Inclusão pela Arte e Cultura em 15/05/ Antropólogo, doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUC Minas.

50 50 perspectivas antropocêntricas e etnocêntricas. Tanto o antropocentrismo, perspectiva que atribui ao ser humano centralidade, uma espécie de eixo em torno do qual tudo se situa e é explicitado, quanto o etnocentrismo, perspectiva que coloca determinado modelo cultural de humanidade em centralidade e que, assim fazendo, transforma as diferenças em desigualdades, inscrevem o paradoxo da inclusão exclusiva e da exclusão inclusiva. Aliás, etimologicamente, inclusão é tanto participação quanto prisão. Por cultura, pode-se entender todo o processo de aprendizagem decorrente da vida em sociedade. Cultura é aquilo que nos permite ir além de nossa natureza biológica, fundando uma natureza efetivamente humana. A experiência cultural é a experiência de constituição do sujeito social que transcende e transforma o dado natural e inaugura a experiência cultural. Cultura é, portanto, algo construído no tear de nossas relações sociais, por meio das práticas de cultivo como as artes e a educação, mas também a partir da busca pela sobrevivência e produção. Aqui, a condição humana só é possível na e por meio da cultura. Ou, em outras palavras, é possível afirmar que ninguém está fora da cultura, ao custo de, se assim estiver, perder sua condição humana. Mas falar de cultura é também apontar para um processo e um estado de pertencimento a um conjunto de valores e práticas que oferecem sentido e identidade. A cultura tanto nos inclui na genérica condição humana quanto nos faz pertencer a um grupo, a um lugar, nos faz pertencer a determinada matriz de referenciais simbólicos. Aqui, encontramos a primeira dimensão da paradoxalidade apontada anteriormente. Há tanto um caráter inclusivo inerente à cultura quanto uma dimensão exclusiva que a caracteriza. Por meio da cultura, vivencia-se a experiência inclusiva de fazer parte de algo que nos é maior e anterior, a condição humana. Mas também, na cultura, surge a perigosa experiência de nos antagonizarmos à natureza a partir de um antropocentrismo autodestruidor. Nessa dimensão, se a cultura nos oferece uma natureza humana específica, nos coloca em risco de disrupção com a natureza de nosso corpo e do ambiente. Há aqui um complexo desafio a ser enfrentado. A perspectiva antropocêntrica apresenta um grave risco faz com que quanto mais humanos nos tenhamos, mais nos ausentemos de nossa natureza biológica e mais nos distanciemos de uma visão ecossistêmica. A cultura é uma experiência de fratura e destruição da natureza. A cultura faz com que o ser humano se ausente de sua natureza e agrida a natureza de seu ambiente. Há, portanto, uma sutil, urgente e permanente necessidade de vigilância quanto ao que chamamos, invocamos e realizamos sob a denominação de cultura.

51 51 Se tudo que é humano é cultural, nem tudo que a cultura realiza é portador de humanidade, porque rompe com a natureza e, por vezes, a nega. Mas por meio da cultura vive-se, também, o pertencimento a um conjunto de símbolos, de normas, de ritos e mitos que nos oferecem a experiência da alteridade, ou seja, a experiência do contraste, da diferença e da distinção. A cultura constrói identidades que são sempre contrastivas e potencialmente excludentes. A mesma experiência que permite ao sujeito localizar-se espaço-temporalmente e construir referências inclusivas de pertencimento a um modo de ver, pensar e estar no mundo, transforma o outro, o diferente, em desigualdade. Aqui, o etnocentrismo tanto inclui, no próprio, quanto exclui o alheio. Aqui, o risco é o de negar as diferenças ou o de transformá-la em desigualdades. Mais uma vez, a inclusão e a exclusão se mostram perigosamente próximas. Aquilo que me inclui me faz pertencer, mas também me aprisiona. A cultura que me inclui também produz a exclusão do outro. Cultura e inclusão são realidades paradoxais. Reforçam-se tanto quanto se fragilizam, afirmam tanto quanto se negam. E nesse redemoinho complexo e contraditório, desenvolvese, de forma hábil e cínica, retóricas e práticas que, incluindo de forma exclusiva ou excluindo de forma inclusiva, impedem que se aponte com firmeza e crítica para o nó do problema. Não sabemos incluir porque não sabemos operar com a natureza e as diferenças. Delas nos apropriamos de forma antropocêntrica e etnocêntrica, e assim negamos a natureza e naturalizamos a cultura. Por isso, se, por um lado, depredamos os ecossistemas dos quais dependemos tanto, por outro, tanto negamos nossa natureza submetendo-a a padrões culturais quanto tornamos naturais determinados padrões culturais. Incluímo-nos ao custo de uma perigosa exclusão. Excluímo-nos numa sutil aparência de inclusão. Superar a perspectiva antropocêntrica e etnocêntrica que fundam a aparente experiência inclusiva representa um desafio sutil e delicado. Por isso o título, A Inclusão da Cultura e a Cultura da Inclusão. A Inclusão da experiência cultural no enfrentamento prático-teórico da exclusão é condição para a construção de uma (contra) cultura da inclusão. Muito além da utilização de padrões e modelos artísticos e estéticos para a sensibilização e a subjetivação da sociedade para um altruísmo condescendente, que inclui pela superfície, mas mantém a desigualdade, trata-se de construir deliberadamente (de forma política e pedagógica) uma cultura da inclusão que não negue a natureza e as diferenças.

52 52 Não há inclusão sem uma cultura da inclusão, entendida não apenas como engajamento de artistas em campanhas de sensibilização, mas como a construção sensível de um modelo de se ver, pensar e viver a natureza das diferenças, tanto quanto as diferenças da natureza. A cultura define, classifica, constrói fronteiras e abismos. Evidenciar as contradições e desvelar seus sentidos é pré-requisito para a emergência de outra práxis inclusiva. Uma inclusão que não se alimente da exclusão. Uma inclusão que seja pertencimento, mas não aprisionamento. Uma inclusão que politize as diferenças e inaugure uma plataforma e uma agenda de transformação. 2. UMA POLÍTICA DE INCLUSÃO CULTURAL? A EXPERIÊNCIA DO MINC Em 2003, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, com o objetivo de iniciar o diálogo para a construção de uma política pública de cultura voltada à diversidade e às minorias. Em seu projeto original, a SID trabalhou ancorada no reconhecimento da cultura como um direito, a promoção e proteção da diversidade cultural como uma necessidade universal que possibilita a busca da solidariedade entre os povos, a consciência da unidade do gênero humano e o desenvolvimento da cooperação e intercâmbio entre as culturas. Os primeiros quatro anos de existência serviram para buscar a concretização de três ordens de atividades políticas e estratégicas: a participação do Estado brasileiro no debate internacional sobre a diversidade cultural, de maneira mais explícita e direta; o debate com instituições e ONGs sobre a diversidade cultural no contexto da cultura brasileira; e a construção de políticas específicas voltadas às diversas formas de expressão dessa diversidade. Em todos esses níveis de atuação, a questão da inclusão sempre esteve presente. Segundo o titular da Secretaria, Sergio Mamberti 3, o final do século XX coloca em revisão os conceitos de cultura e identidade, forçando a emergência de políticas públicas específicas, destinadas a realizar correções históricas fundamentais ligadas ao reconhecimento de situações específicas como as derivadas: 3 Ver no site.

53 53 de distinções de classe ou do mundo do trabalho; de situações de gênero ou orientação sexual; de direitos a partir da situação etária, como os idosos, jovens e crianças; de desigualdades derivadas da situação étnica. Entretanto, mais que o reconhecimento da diversidade como constituinte do patrimônio cultural da humanidade e da sociedade brasileira, o desafio revela-se maior e mais difícil: como traduzi-la em ações concretas de política pública? Como, para além do reconhecimento da diversidade, pode-se instituir a pluralidade como princípio e prática de inclusão? Em seu parágrafo segundo, intitulado Da diversidade cultural ao pluralismo cultural, a Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural estabelece de forma clara e objetiva a relação entre o reconhecimento antropológico das diferenças e sua tradução em ações políticas: Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social, a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvimento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública. 4 É dessa forma que acredito fazer sentido o conjunto de ações da Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural. Ao eleger ações específicas voltadas para as culturas populares, a atuação com as culturas indígenas, tratadas no plural, a aproximação com a cultura cigana, com a área da Saúde Mental, o movimento Hip Hop e o seguimento GLTB, o poder público traz para o interior das decisões sobre a cultura o problema da diversidade cultural, traduzida como pluralidade e inclusão. As parcerias com a UNE e com o Movimento dos Sem Terra complementam um conjunto de interlocuções que visam trazer à cena aqueles segmentos e realidades que, reconhecidos do ponto de vista acadêmico e cultural, não tinham existência concreta no plano das políticas públicas. Seminários nacionais de políticas públicas para as culturas populares, oficinas regionais e editais de fomento às manifestações culturais 4 UNESCO, 2001

54 54 ligadas aos seguimentos minoritários da sociedade brasileira foram as estratégias implementadas pela instituição visando produzir a inclusão cultural. Tomar esse quadro como suficiente para a efetiva inclusão cultural dos excluídos historicamente seria ingênuo. Mas é preciso reconhecer que ninguém inclui o outro por benevolência ou tolerância passiva. A melhor forma de inclusão é o exercício político da convivência, especialmente aquela que se tece tanto no cotidiano do trabalho quanto nas instâncias mais estruturantes. Não se reconhecerá a cultura das minorias como parte integrante da diversidade cultural brasileira se os sujeitos e seus interlocutores não ocuparem seus lugares no cenário político. Da mesma forma, não haverá possibilidade de uma cultura da inclusão, sem que recursos financeiros sejam destinados às ações específicas. Mas tudo isso restará como excepcionalidade e alternativa se não enfrentarmos a ambiguidade da experiência cultural inclusão e exclusão como duas faces da mesma moeda. Tal ambiguidade tratada na primeira parte deste texto somada à particularidade da cultura brasileira, na qual a dissimulação dos preconceitos é marca e tradição, oferece o quadro de complexidade do desafio de pensar a inclusão da cultura e a cultura da inclusão. Assim, para além da obrigatoriedade do ensino de história da África, como reza a Lei Federal /03, para além das medidas implantadas até aqui pelo Ministério da Cultura, a ampliação do campo político para a discussão e implementação de ações que traduzam a multiculturalidade em pluralismo cultural se faz necessária e urgente. Nesse sentido, especial atenção aos meios de comunicação, prioritariamente o rádio e a TV digital, bem como o espaço da educação formal e informal, constitui, com espaços prioritários para a ampliação das ações, visando efetivamente à concretização de uma experiência cultural inclusiva.

55 55 REFERÊNCIAS BARROS, José Márcio. Diversidade Cultural e desenvolvimento humano, BH, 2006, PUC Minas. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989 KLIKSBERG, Bernardo. Falácias e mitos do Desenvolvimento Social. Cap. 4 São Paulo: Cortez; Brasília: Unesco, 2001 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: Um conceito antropológico. 11 ed. Rio de Janeiro: J.Z.E, 1996 MAMBERT, Sergio. Políticas Públicas: Cultura e Diversidade. Pronunciamento do Secretário Sérgio na IV conferência de Educação e Cultura na Câmara dos Deputados. MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. Direito Culturais e Políticas para a Cultura, 20004, mimeo MOISÉS, José Álvaro. Diversidade Cultural e Desenvolvimento nas Américas. Texto preparado por solicitação do Programa de Cultura da Organização dos Estados Americanos OEA MORIN, Edgard, Educação e Complexidade Os sete saberes e outros ensaios, SP, Editora Cortez, 2005 REY, Gérman. Cultura y Desarrollo Humano: Unas relaciones que se transladan disponible em : UNESCO, Convenção sobre a proteção e a promoção da diversidade da expressões culturais, 2005

56 56 Meio ambiente e inclusão social: um paradoxo? Yasmine Antonini 1 Eneida M. Eskinazi Sant Anna Geraldo Mendes dos Santos 2 1. INTRODUÇÃO (LEGISLAÇÃO, MARCO CONCEITUAL, ETC.) A questão ambiental se viu restrita ao movimento ambientalista durante muito tempo. A partir de 1992, quando da conferência Rio 1992, tornou-se tema obrigatório e do interesse de diferentes grupos, povos e classes sociais. Nos dias de hoje, mesmo com todo o avanço tecnológico e com os constantes alertas de experiências anteriores, mostram-se inúmeros os casos de degradação ambiental geradores de exclusão social. Em Minas Gerais, por exemplo, a rápida degradação da porção de Mata Atlântica gerou, ao longo da bacia do Rio Doce, um quadro socioambiental com óbvia exclusão social, expressa por fortes processos migratórios. O despertar da preocupação com preservação da natureza deve-se, principalmente, à crise socioambiental sem precedentes que atinge o planeta. O movimento ambientalista responde, nas últimas décadas, pela construção de novos valores que questionam as formas tradicionais de pensar a economia, a sociedade e a natureza. Destaca, entre eles, a noção de cuidado e proteção ao meio ambiente, em face do modelo capitalista implantado desde o século XIX. Coloca em xeque a noção de progresso, o papel da ciência, o impacto tecnológico e a ousadia humana perante outras espécies vivas. O ambientalismo questiona as formas de dominação e exclusão social, buscando novas formas de organização do trabalho contrárias a interesses predatórios. Chama atenção, ainda, para o fato de que as velhas contradições sociais refletem-se nos padrões de apropriação e consumo dos recursos naturais. A Lei 9.795, de 25 de abril de 1999, que dispõe sobre a educação ambiental e constitui a política nacional de educação ambiental, entre outras providências, expressa no art.1º: entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências 1 Doutora em Ecologia. Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto. 2 Doutorando em Biologia de Água Doce e Pesca Interior. Pesquisador Titular III do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, INPA.

57 57 voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade. A legislação ambiental nacional torna explícitas duas vertentes filosóficas ambientais: o naturocentrismo e o socioambientalismo. O naturocentrismo, vertente mais antiga e radical, defende a preservação da natureza com o distanciamento do homem, definido como elemento destruidor do meio ambiente natural. Por sua vez, o socioambientalismo, recém-integrado à sociedade, defende a preservação do meio ambiente de forma sustentável e com a interação da sociedade nos processos de busca da qualidade de vida. Isso se deve ao fato de que o meio ambiente constitui um bem coletivo e sinaliza-se necessária uma visão abrangente da cidadania, configurada em responsabilidades compartilhadas e difundidas nos meios de informação, na política, na sociedade e na economia. 2. O QUE SERIA EXCLUSÃO SOCIAL NO CONTEXTO AMBIENTAL? Na América Latina, a pobreza, em especial a pobreza crítica, vem se agravando em números absolutos, pois as reformas econômicas, em especial as microeconômicas, não vêm surtindo os frutos esperados; muito menos nas zonas rurais afastadas, onde frequentemente se inserem as áreas protegidas ou Unidades de Conservação (UCs) do continente. Isso se deve, em grande medida, à situação de abusiva falta de equidade social, particularmente agudas no Brasil, onde a distância entre ricos e pobres cresce de maneira desmedida. De acordo com Dourojeanni & Pádua (2001), entre o crescimento da população, a pobreza, a desigualdade, a exclusão social e a degradação ambiental existe uma relação grandemente complexa, tornando difícil reconhecer a causa do efeito. No entanto, o resultado é sempre igual: aumento da pressão sobre os espaços naturais, sobre os recursos naturais e, de um modo ou de outro, também sobre as UCs. Ainda de acordo com esses autores, a demografia e a pobreza se somam à redução da capacidade dos governos para implantar a ordem que as leis demandem. Leis que, de outra parte, se tornam cada vez mais permissivas. 3. O PAPEL DAS CIDADES NA RESOLUÇÃO DO CAOS Verificam-se, no dia-a-dia, muitos exemplos de empobrecimento e exclusão social, e mesmo da sucumbência de comunidades pela deterioração do meio ambiente, devido ao

58 58 manejo inadequado dos recursos naturais. Essa, no entanto, não é uma característica das civilizações modernas, pois muitas civilizações antigas, tidas como exuberantes e modernas, se viram forçadas a deixar suas terras ou mesmo sucumbiram ante o manejo inadequado de seus recursos naturais (DIAMOND, 2005). No Brasil, as cidades se acham no centro da problemática ambiental, a qual se articula também com o quadro de exclusão social que vem se aprofundando nas últimas décadas. A ausência de uma política habitacional traz como resposta a ocupação de áreas ambientalmente frágeis, como é o caso da beira dos córregos, encostas íngremes, várzeas inundáveis e áreas de proteção dos mananciais, que constituem a única alternativa para os excluídos do mercado residencial formal. Embora cada cidade mostre sua singularidade, do ponto de vista histórico, paisagístico e mesmo sociocultural, há duas vertentes de problemas nas áreas urbanas que merecem ser comentadas: uma é a proliferação de automóveis, que vem comprometendo todo o espaço público antes reservado ao povo; a outra, em parte decorrente daquela, é a falta de investimentos em habitação popular e, por consequência, a favelização. Esta consiste na invasão de áreas públicas e privadas e na sua ocupação desordenada, sem nenhum planejamento técnico, à revelia das licenças governamentais e até do bom senso em termos de disposição de ruas, praças e áreas de serviços básicos. A urbanização sem planejamento faz com que grande parcela da população, geralmente a parcela mais pobre, busque áreas inabitadas nos arredores das grandes cidades. Áreas vulneráveis, de morros e margens de córregos, normalmente são ocupadas pela população mais carente. Tais áreas, antes parte da paisagem natural, se tornam áreas de risco. As pessoas que as ocupam, tentam se livrar de um fator de exclusão social representado pela falta de moradia ou de renda para pagar aluguel, mas mergulham em outra condição de exclusão, pois se transformam em agentes de degradação ambiental. Com a retirada da vegetação, os morros deixam de reter a água das chuvas. Esse fenômeno é potencializado pela introdução do asfalto em praças, ruas e avenidas, o que acaba impermeabilizando os solos. Em função disso, as águas das chuvas se deslocam com maior velocidade e forte poder de erosão, cavando novos terrenos e não raro derrubando casas e carreando toda sorte de material para os corpos d água ou para as partes mais baixas, onde também os problemas sanitários acabam se agravando. Esse é um dos exemplos clássicos de como pobreza e meio ambiente podem se integrar, de forma que a mazela ambiental se confunde com a social. Não há como dissociar

59 59 pobreza das questões ambientais, podendo-se dizer, de maneira triste e constrangedora, que a pobreza é, ao mesmo tempo, vítima e agente da degradação ambiental. Em alguns casos, invadidos como se fora campo de batalha, mas geralmente de modo quase despretensioso, os espaços invadidos logo se transformam em áreas centrais das cidades. Daí advém novos problemas, decorrentes de um processo de urbanização incompatível com uma infraestrutura desejável para as cidades, como, por exemplo, a falta ou deficiência no tráfego de automóveis, na circulação de mercadorias e no bom atendimento às demandas dos próprios moradores por serviços públicos de saúde, transporte, limpeza, segurança pública e outros. Naturalmente, tais ocorrências acabam por potencializar ainda mais os problemas urbanos e onerar ainda mais os custos sociais. Ou seja, se em determinado momento, a favelização pode se apresentar como uma válvula de escape para a falta de moradia e outras mazelas, ela acaba gerando outros focos de problemas e novas tensões sociais, num círculo vicioso e de solução cada vez mais complicada. Um exemplo típico são as cidades do Norte do país, que se expandem de modo vertiginoso nas proximidades das florestas, margens de igarapés, baixadas e encostas de morros. Nelas, a favelização se torna um fenômeno comum. O poder público, então, passou a gastar somas fabulosas de recursos para tentar solucionar os problemas decorrentes, especialmente a poluição e a assoreamento dos igarapés e a falta de infraestrutura que acaba por prejudicar todos os habitantes da cidade e também seus visitantes. Talvez mais que no campo, a vida nas cidades espelha de maneira clara e contundente o lastimável quadro do subdesenvolvimento brasileiro. Por se tratar de uma área muito confinada e com grande aglomeração humana, os problemas ambientais e sociais das zonas urbanas acabam se imbricando de tal maneira que se torna praticamente impossível diferenciá-los. Assim, pode-se dizer que eles têm o mesmo conteúdo ou essência, diferindo apenas na forma em que se apresentam. Apesar de todos os problemas enfrentados nas grandes cidades, as pessoas do meio rural ainda preferem deixar o campo. O Brasil viveu um grande êxodo, sem que as cidades se mostrassem preparadas para tal evento. O progresso advindo do aumento populacional nas cidades resultou em padrões de crescimento precários que afetaram sobremaneira os processos naturais. Em partes do Brasil, o excessivo, rápido e desordenado uso dos recursos naturais trouxe lucro e progresso no curto prazo, juntamente com danos ambientais. Com seu consumo exacerbado e sempre exigindo cada vez mais, recursos naturais para ampliar suas fontes de bem-estar, além de negócios e renda, os ricos acabam por contribuir fortemente para o drama da favelização, do desequilíbrio e da poluição ambiental

60 60 das cidades e do campo. Desse modo, tanto a pobreza como a riqueza, quando mal administradas e perante a falta de conscientização coletiva, acabam por se imbricarem para agravar o processo da perda de qualidade do ambiente e da exclusão social. Nesse caso, uma acaba sendo vítima da outra. 4. ÁGUA PARA TODOS SAÚDE, CIDADANIA E INCLUSÃO SOCIAL A água constitui um elemento central na vida dos cidadãos e das cidades. Sua disponibilidade e qualidade sempre foram determinantes para o sucesso e desenvolvimento socioeconômico dos povos. A complexidade envolvida na gestão e uso sustentável desse recurso confronta sociedade e estudiosos em um gigantesco desafio de conciliar sua preservação com uso em escala crescente. Além de sua importância ambiental, à água incorpora ainda uma inquietante questão do ponto de vista social: o acesso à água de boa qualidade configura-se, atualmente, um reflexo da condição econômica. Trata-se de um paradoxo, visto que a água é vital para a saúde e o desenvolvimento socioeconômico dos povos. Menos de 2% da água disponível no mundo é o volume de água doce e menos de 0,001% dela, em forma de rios e lagos, acha-se diretamente disponível para consumo. Essa acessibilidade limitada continua sendo uma questão central na gestão de tal recurso, mas não se vê considerada quando se verifica o histórico de impactos a que estão submetidos os ecossistemas aquáticos. A degradação ambiental promovida pelo homem é de tamanha magnitude que afeta não apenas os depósitos superficiais, mas também as reservas subterrâneas de água, com graves consequências previstas para o futuro. Neste cenário complexo, a apropriação diferenciada da água por segmentos sociais economicamente favorecidos agrava os riscos de escassez, reforça o desperdício do recurso e ressalta ainda mais os mecanismos de exclusão social. Segundo dados do IBGE, cerca de 100 milhões de brasileiros não têm acesso à rede de esgotamento sanitário e quase 1/3 da população brasileira é privada do acesso à água tratada. Esses dados explicam os impressionantes indicadores de doenças de veiculação hídrica no país, registrando-se, em pleno século XXI, a ocorrência maciça de doenças crônicas, como malária, diarréia, cólera, leptospirose, hepatite, dengue, dermatites e muitas outras. Em alguns países da África, a privação ao saneamento básico assume contornos dramáticos, ao impedir que mulheres frequentem as escolas, onde não existem instalações sanitárias adequadas. Essa realidade contribui para a perpetuação de um ciclo histórico de submissão, falta de

61 61 oportunidades e analfabetismo entre aquelas que são as principais responsáveis pela educação familiar e gerenciamento doméstico. Não muito distante dessa realidade, o Nordeste brasileiro também perpetua um ciclo de subdesenvolvimento claramente associado à restrição no acesso à água potável. As estimativas globais de exclusão social em função do acesso à água também são impressionantes. Mais de um bilhão de pessoas no mundo não têm acesso à água de boa qualidade e grande parte desse percentual concentra-se em países subdesenvolvidos e/ou em desenvolvimento. Anualmente, mais de 10 milhões de pessoas morrem em todo o mundo, em decorrência de doenças relacionadas à ingestão de água contaminada e à falta de saneamento, sendo que 50% dessas vítimas são crianças abaixo de cinco anos de idade (CANDESSUS et al., 2005). Some-se a esse quadro o crescente problema da eutroficação das águas, que limita seu uso para abastecimento e dessedentação animal, pela presença de microalgas tóxicas. A morte escandalosa de 71 pessoas por toxinas de microalgas em Caruaru, Pernambuco, configura um registro perturbador do aspecto social associado à questão da água no Brasil: pessoas procuraram a saúde em uma clínica de hemodiálise, mas encontraram a morte na água inadequada ao uso hospitalar. Os múltiplos usos associados à água também dificultam o estabelecimento de prioridades e democratização em seu uso, já que reproduzem os interesses heterogêneos de diferentes segmentos sociais que precisam ser harmonizados. Uma das estratégias gerenciais adotadas para reduzir o desperdício e programar o uso parcimonioso da água é a política da cobrança pelo seu uso. Polêmico e discutível, esse mecanismo de gestão tem sido implementado em várias cidades latino-americanas, embora os efeitos exclusivos, associados a esse mecanismo de gerenciamento, mostram-se preocupantes. Inevitavelmente, o acesso à água potável se traduz em cidadania e inclusão social. O conjunto de atividades que regulam sua gestão não pode ser regulado pela ótica exclusiva das leis de mercado, pois comprometeria substancialmente o forte componente social implícito em sua estruturação. Populações sem acesso à água de boa qualidade e saneamento são expostas a doenças, ambientes sem estética e má qualidade de vida. Definir o valor de um recurso vital à manutenção da vida, ao bem-estar humano e ao desenvolvimento econômico das sociedades é um desafio ímpar aos envolvidos na gestão de recursos hídricos, ao corpo legislativo na elaboração de políticas públicas e à sociedade em geral. Desafio maior ainda consiste em equalizar o valor econômico da água ao seu valor social.

62 62 Talvez nenhum outro recurso natural possa associar tão explicitamente o direito à cidadania e à dignidade como a água: esse bem determinante em todo o processo de nossa história, da cultura, de formas de viver e do cotidiano. Envolver a inclusão social em seu gerenciamento é uma questão capital para assegurar uma sociedade mais justa e economicamente mais homogênea e harmônica, no uso e conservação desse recurso precioso. 5. MEIO AMBIENTE E INCLUSÃO SOCIAL NA AMAZÔNIA Embora as questões relativas ao meio ambiente e à exclusão social perpassem as sociedades de todo o mundo, elas são mais focadas nos países subdesenvolvidos e, de modo especial, na Amazônia. Em maior parte, isso se deve à grandeza dessa região, às suas imensas riquezas biológicas, minerais e étnicas, e o que o fato representa como estratégia para o Brasil e o mundo. Por outro lado, isso se deve também aos graves problemas ambientais que a região vem enfrentando, como o desmatamento, a extinção de espécies e a produção de gases do efeito estufa. Por essas razões, abordar-se-á o caso amazônico, por considerá-lo emblemático da situação brasileira e de vários outros países em idêntica situação. Para uma abordagem mais adequada desse tema, algumas características estruturantes da natureza amazônica precisam ser lembradas, pois é a partir delas que todo projeto ou plano de inclusão social e de preservação ambiental deve se basear, caso se tenha em mente um desenvolvimento essencialmente sustentável. Tais características dizem respeito à biodiversidade, representada pelos elementos da floresta e das águas. A floresta amazônica é a maior do mundo, ocupando uma área de aproximadamente 5,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 3,2 milhões situam-se em território brasileiro, equivalente a 27% de todas as florestas tropicais remanescentes no planeta. O rio Amazonas, junto com milhares de rios, igarapés e lagos, forma uma enorme rede de cursos d água que irrigam uma área de, aproximadamente, sete milhões de quilômetros quadrados, constituindo-se na maior bacia hidrográfica do mundo. Esta se estende por oito países da América do Sul, sendo que sua maior porção se localiza no Brasil, representando mais da metade de seu território. Esse sistema aquático lança no Atlântico cerca de 20% de toda a água doce que entra nos oceanos do mundo. Tamanha é a importância do ambiente aquático, que a região é denominada de pátria das águas. A floresta e os rios são extremamente ricos em número de espécies, porém muito heterogêneos, do ponto de vista biogeográfico. Isso significa que, apesar da aparente

63 63 semelhança, muitos grupos da fauna e da flora encontram-se limitados a certas áreas. Nesse caso, generalizações simplistas, focadas apenas no número de espécies animal ou vegetal, no tamanho de áreas ou na quantidade de corpos d'água têm pouco significado. Além disso, tal heterogeneidade dificulta planos de exploração da biodiversidade, já que as peculiaridades variam bastante entre as distintas séries espaciais e temporais. A heterogeneidade de uma biota é normalmente tratada como biodiversidade. Tanto uma como outra expressam a diversidade da vida em todas as suas formas e estilos, incluindo os seres menores como os genes, vírus, bactérias e fungos até os mais conspícuos e, às vezes, gigantescos, como certas espécies de plantas e animais. Em temos absolutos de espécies, não há dúvida de que a Amazônia é a mais diversificada região do planeta, daí dizer-se que ela apresenta uma megadiversidade. Disso resulta que essa região será a mais afetada, quantitativa e qualitativamente, caso o ritmo de conversão e destruição de seus ecossistemas venha a aumentar ou mesmo mantenha-se nos níveis atuais. Afinal, a cada ano, 10 a 20 mil quilômetros quadrados de florestas exuberantes são queimados para dar lugar àquilo que normalmente se chama de progresso (Ref.). Outro aspecto importante, relacionado com a diversidade e a complexidade da Amazônia, consiste no fato de a floresta ser capaz de influenciar e, ao mesmo tempo, ser influenciada pelas condições climáticas. Cerca da metade das chuvas que caem sobre a região retornam para a atmosfera por meio do processo de evapotranspiração, o que acaba favorecendo a formação de novas chuvas que recaem sobre a região e fora dela, especialmente no Centro-oeste brasileiro. A variação das chuvas também apresenta decisiva influência sobre os ciclos de subida e descida das águas dos rios e igarapés, permitindo uma simbiose constante entre os ambientes terrestre e aquático. Isso significa que a floresta, o clima e as águas se acham intrinsecamente relacionados e mutuamente dependentes. Significa também que a redução da cobertura vegetal, pelo desmatamento, deverá repercutir de maneira significativa e até irreversível sobre o ciclo hidrológico e a vida dos organismos que nela vivem e dela dependem. Aqui está, portanto, uma das questões-chave para o perfeito entendimento da proposta colocada nesta análise, ou seja, como promover a inclusão social, preservando o fantástico patrimônio biológico amazônico. Seria isso efetivamente viável, no contexto do processo desenvolvimentista caracterizado na sociedade brasileira, tradicionalmente espoliadora dos recursos da terra e mantenedora da exclusão? Para tentar responder ou refletir sobre tais

64 64 questões, seria conveniente uma rápida abordagem sobre alguns aspectos socioeconômicos, ao lado dos aspectos ambientais, acima mencionados. Já é de domínio público o fato de que o Brasil vem sendo vítima de um violento processo de conversão e destruição dos ambientes naturais. Ele se caracteriza pelo avanço da fronteira agrícola e da pecuária, a partir da região Sul-sudeste e em direção ao Norte, patrocinado pelos planos governamentais, em nome do desenvolvimento e da integração nacional. Durante muitas décadas esse processo esteve estacionado na região Sul-sudeste, depois deslocou para as áreas abertas ou encapoeiradas do Centro-oeste e daí tem avançado vertiginosamente em direção à floresta amazônica, sobretudo a partir da abertura das estradas BR 163 (Santarém/Cuiabá), BR/364 (Cuiabá/ Porto Velho/Rio Branco) e BR 319 (Porto Velho/Manaus). A partir dessas frentes de penetração, muitas outras estradas secundárias foram abertas, formando uma malha viária em forma de costela de peixe. Por conta disso, acelerouse o processo de expansão, caracterizado inicialmente pela retirada seletiva da madeira, depois pelo desmatamento generalizado, formação de pastagens e criação de gado, e mais tarde pela monocultura de soja, milho e outros cereais. Nos últimos anos, vêm ocorrendo inúmeras iniciativas voltadas para o plantio em larga escala de cana, para produção de agrocombustíveis, contando com o apoio decisivo do governo e de maciços investimentos de empresas transnacionais. A expansão dessa fronteira agrícola vem se processando em escala assustadora. Sua marca mais evidente é a transformação de madeira em cinza e fumaça, a partir de milhares de queimadas que se estendem pela periferia da porção-sul da Amazônia, na forma do famoso arco-de-fogo. A escala também é assustadora pelo fato de que a grande maioria das áreas queimadas tem apenas duas alternativas inconsequentes: serem abandonadas depois de pequena produção de subsistência ou destinarem-se à grande produção de grãos para alimentar porcos, galinhas e cavalos dos países ricos. No caso da atual onda da cana, talvez surja uma terceira alternativa, mas essa certamente não muito distinta das demais: será, provavelmente, destinada à produção de combustível para alimentar a frota de automóveis que já entopem as cidades e podem ser adquiridos com incentivos generosos das empresas e do governo. Além da destruição inconsequente e irresponsável da floresta, sua queima representa 70% das emanações de gás carbônico produzidas pelo Brasil, sendo esse gás o principal responsável pelo efeito estufa mal que vem se acumulando ao longo dos anos e já começa a dar sinais de destruição desenfreada, colocando em risco até mesmo a sobrevivência humana. É evidente que isso já esteja provocando profundas incertezas e até medo entre a população,

65 65 os agentes econômicos e os sistemas de governo. Mantida essa tendência, o futuro da humanidade poderá ficar bastante comprometido, apesar da atual e generalizada confiança nas tecnociências. Ao lado das ameaças protagonizadas pela destruição das florestas e das mudanças do clima, há que considerar também as mudanças que vêm acontecendo em decorrência das pressões políticas e socioeconômicas, tendo como sintomas mais aguçados a ocupação ilegal das terras indígenas e a famigerada cobiça internacional. Outros elementos complicadores do processo de inclusão social e preservação do meio ambiente na Amazônia são os desacertos das políticas públicas traçadas para a região. Destacam-se, entre essas, o incentivo fiscal para empresas danosas ao meio ambiente e aos interesses das culturas tradicionais, a oficialização do desmatamento como instrumento de posse da terra, a deficiência ou mesmo a absoluta falta de planejamento para um desenvolvimento centrado nas potencialidades regionais e a evasão de divisas pela biopirataria e subsídios insensatos. Tem-se enfatizado o ambiente selvagem e rural, mas é preciso lembrar que na Amazônia existem cerca de vinte milhões de brasileiros, mais da metade deles vivendo na zona urbana. Evidentemente, a inclusão social e a preservação ambiental também devem ser vistas sob esse prisma, ou seja, a partir da perspectiva do que vem ocorrendo nas cidades de grande, médio e pequeno porte. Quanto ao ambiente urbano, o quadro não difere muito do que ocorre na zona rural: seu meio ambiente vem sendo degradado de maneira impiedosa e as desigualdades sociais continuam cada vez mais fortes. Exemplos óbvios são o desmatamento das matas ciliares, a poluição dos igarapés e do lençol freático e a ocupação desordenada do espaço físico. Com base em tais evidências, pode-se concluir que o cenário futuro da Amazônia se mostra confuso e inseguro. Dessa maneira, para que essa perspectiva seja revertida, é preciso medidas radicais e urgentes. Quais são essas medidas é outra grande questão, porém elas só ocorrerão mediante a efetiva participação dos governantes e a conscientização do povo. Evidentemente, não há soluções fáceis nem de origem personalística para os graves problemas ambientais e sociais da Amazônia e do restante do Brasil. Assim, ao invés de indicá-las nominalmente, é preferível invocar os princípios em que se fundamentam. Em síntese, estes dizem respeito à ciência e à educação ambiental, incluindo nesta a conscientização coletiva. Quanto à abordagem científica, torna-se vital que a região passe por um amplo processo de zoneamento ecológico e socioeconômico, como forma de se orientar o processo

66 66 de ocupação, determinando-se as áreas prioritárias ou potencialmente adequadas para as distintas atividades humanas ou mesmo simples preservação. Uma boa medida para isso seria a realização, em toda a Amazônia brasileira, de um amplo programa de levantamento das aptidões dos solos, das potencialidades bioecológicas e das frentes de ocupação humana, de modo semelhante ao que foi feito com o RADAM, na década de 70. Os sofisticados recursos tecnológicos hoje disponíveis, sobretudo nas áreas de sensoriamento remoto, poderiam servir bem a essa tarefa. É evidente que a abordagem científica não deve constituir-se apenas numa instância para quantificação de séries de dados sobre produção, potencialidades e atividades desenvolvidas nas diferentes escalas de espaço e tempo. Tampouco, num álibi ou justificação técnica para implantação dos projetos oficiais e oficiosos. Ao contrário, ela deve constituir-se numa instância competente e eficaz para criar e direcionar as ações governamentais e privadas, fundamentais para a implementação do processo de desenvolvimento autossustentável da região. A abordagem científica não pode adotar a degenerada visão do homem como ser superior e solitário, a interpretar a natureza como um baú de bens a serem utilizados, mas um lar a ser cuidado e compartilhado entre todas as raças e todos os seres, mesmo se considerados inferiores nas escalas taxonômicas. Isso significa que, embora disponha de todos os seres do planeta para sua sobrevivência e desenvolvimento, o homem deve tratá-los com a dignidade e respeito que merecem. Quanto à educação ambiental, talvez por constituir-se em tema relativamente novo no contexto amazônico e mesmo brasileiro, é oportuno tecer alguns comentários sobre seu conceito e abrangência. Trata-se do processo de incorporação do componente ambiental no processo de ensino e aprendizagem. Ela diz respeito à estruturação de uma pedagogia moderna, centrada no senso de cidadania plena e na incorporação dos valores ambientais nos sistemas econômicos. Ela também estabelece um vínculo novo entre a humanidade e a natureza, uma nova razão preocupada em manter as condições necessárias para a sobrevivência de muitas espécies ameaçadas, inclusive a própria espécie humana. É fácil perceber que a educação ambiental faz parte dos movimentos populares em defesa dos recursos naturais de que dependem. Faz parte também da própria economia de mercado, já que a exaustão dos recursos naturais e a perda da qualidade ambiental também acabam por afetá-la, mais cedo ou mais tarde. Portanto, num contexto mais geral e sistêmico, a educação ambiental pode ser vista como um sistema de filosofia globalizadora de valores científicos, políticos e éticos, em prol da sociodiversidade. Nesse sentido, a educação

67 67 ambiental deve se primar por uma postura dialógica, democrática e solidária, e que vise resgatar a dignidade e os legítimos direitos do homem em usufruir um ambiente saudável. Por abrigar em seu ideário a efetivação de uma sociedade planetária solidária, talvez seja a educação ambiental uma das poucas, senão a única instância capaz de contrapor-se aos princípios equivocados que vêm norteando a educação formal há séculos. Embora útil em muitos aspectos e ainda bastante valorizada, a educação formal tem pecado pelo servilismo aos interesses capitalistas, inspirados nas ideias de egoísmo, competição, competitividade, acumulação e abuso dos bens. Nessa lógica, o homem deve ser o dono do mundo. Num sistema como esse, o ser humano não passa de um sujeito consumista e para o qual o processo educativo só tem fundamento se estiver aparelhado e voltado para a fama, a eficiência econômica e a rentabilidade financeira. Por outro lado, a educação ambiental parece alicerçar-se nas ideias de cooperação, colaboração e uso compartilhado dos bens, já que esses se enquadram num complexo sistêmico, do qual o homem não é tido como dono, mas partícipe do mundo. Mesmo constituindo-se num processo educacional revolucionário e inovador em seus princípios, este não deve ser visto como fim em si mesmo, mas um instrumento de apoio e promoção social, inspirador do altruismo e orientador da sociedade na busca incessante de um caminho seguro e de um destino feliz para todos. Se não todos, ao menos a maioria. Antes de concluir esse raciocínio, seriam convenientes algumas considerações sobre o sentido de meio ambiente e inclusão social, já que são termos básicos do título desta resenha. Talvez mais que à ciência, esses termos se vêem associados a uma representação social, pois não apresentam a coerência e a universalidade típicas dos enunciados científicos e, não raro, são utilizados de modo impróprio, fora do devido contexto. O meio ambiente não é apenas o conjunto de elementos físicos, biológicos, geográficos que nos cercam, mas igualmente os elementos socioculturais, cognitivos e racionais do homem. Ou seja, trata-se de uma unidade, um todo indissociável e em interação permanente; um sistema funcional e harmônico que os gregos clássicos denominavam de Physis. Inclusão social é uma contraposição moderna a uma situação crônica de exclusão em que a grande maioria das pessoas vive sem possibilidades de acesso a certos bens da natureza e das riquezas e comodidades produzidas pelas próprias sociedades de que fazem parte. Daqui se conclui que meio ambiente e sociedade constituem instâncias que se sobrepõem, se imbricam e se complementam. É na interface de ambas que o homem realiza suas ações e sonha.

68 68 Nesse sentido, a inclusão social só se efetivará em um meio ambiente saudável e uma educação ambiental que a integre. Essa integração se faz em todos os níveis e campos, mas convém aqui destacar o conhecimento científico, a educação integral, o senso de cidadania e os valores éticos. Esses são os instrumentos que a sociedade em geral e cada pessoa em particular devem colocar em ação com vistas à melhoria das condições do meio ambiente e da inclusão social. Sem esse objetivo utópico, mas sinalizador para toda a humanidade, os instrumentos disponíveis para o homem se tornam estéreis, perdem seu sentido e deixam de atender à sua principal finalidade, qual seja, a construção de uma sociedade verdadeiramente digna, solidária, sustentável.

69 69 Por que agir contra seus próprios interesses? Ou, como explicar que o poder, em suas variadas formas, tem levado milhões de pessoas a defenderem interesses que não os seus e muitas vezes são contra os seus? Jose Luiz Quadros de Magalhães 1 Quais são os reais jogos de poder que se escondem atrás das representações do mundo contemporâneo? A representação do mundo é fundamental para a manutenção das relações sociais, desde as comunidades primitivas até os nossos dias complexos. Representar é significar. Não utilizo aqui o termo como representação política, mas representação como reprodução do que se pensa; como reprodução do mundo que se vê e se interpreta e, logo, como atribuição de significado às coisas. Representação é exibir ou encenar. A representação pode, portanto, ajudar a compreender as relações de poder ou pode ajudar a encobri-las. O poder do Estado necessita da representação para ser exercido e, neste caso, a representação sempre mostra algo que não é, algumas vezes do que deveria ser, mas, em geral, propositalmente, o que não é. Representação pode, de um lado, ao distorcer a aparência, revelar o que se esconde atrás desta 2 e, de outra forma, encobrir os reais jogos de poder, os reais interesses e as reais relações de poder. 1 Doutor em Direito. Professor do Mestrado da Universidade Presidente Antônio Carlos, UNIPAC. 2 Carlo Ginsburg menciona o estranhamento e o distanciamento como mecanismos que permitem enxergar o real escondido pelas representações. No estranhamento, a arte ao distorcer a imagem do real revela as relações reais escondidas pela imagem. A pompa do poder, os discursos políticos, a cobertura da mídia e sua pretensa isenção, encobrem a falibilidade e a insegurança do humano no poder. A oratória e sua forma escondem a ausência de conteúdo ou um conteúdo que significa o oposto do que diz significar. A isenção da mídia encobre a distorção dos fatos, a manipulação da opinião. Isso nos leva a pensar por que exércitos de pessoas ontem e hoje defendem bravamente interesses que não só não são os seus, como são contra os seus. O melhor exemplo é dos cães de guarda do sistema, sempre tão explorados pelo próprio sistema: mais ou menos como o policial que dá a vida para proteger a propriedade do latifundiário. A ordem que ele pensa defender não é a sua ordem. A ordem que ele pensa defender é contra ele, seus filhos, seus pais, sua mulher e seus sonhos. Ler GISNSBURG, Carlo. Olhos de madeira, editora Companhia das Letras, São Paulo, 2001.

70 70 Várias são as formas de dominação. Tem poder quem domina os processos de construção dos significados dos significantes 3. Tem poder quem é capaz de tornar as coisas naturais, a automatização das coisas engole tudo, coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra 4. Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação a que se refere Ginsburg. A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há por que pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o roteiro previamente escrito e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza, não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza. A dominação passa pela simplificação das coisas: o bem e o mal; darth vader e lucky skywalker; a democracia e o fundamentalismo; o capitalismo e o comunismo. Duas técnicas comuns neste processo de dominação são: a nomeação de grupos, criando identidades ou identificações, e a explicação de uma situação complexa por meio de um fato particular real. O problema não é que o fato particular seja real o problema consiste na explicação de algo 3 Os significantes são os símbolos. Exemplo: a palavra liberdade é um significante composto de signos diversos. A combinação das letras LIBERDADE resulta na palavra que ganha sentido ou significados diferentes em diferentes épocas e lugares. O texto não existe se não for lido e, a partir do momento que é lido, são atribuidos sentidos aos seus significantes. É impossível não interpretar e interpretar significa atribuir sentido o que, por sua vez, significa jogar toda uma carga de valores, de pré-compreensões que pertencem a uma cultura específica, e mesmo a pessoas específicas. 4 GINSBURG, Carlo. Olhos de Madeira, ob.cit. p.16. Nessa página, Gisnsburg cita Chklovski, que diz o seguinte a respeito do estranhamento: Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a que tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância.

71 71 complexo com um exemplo particular que mostra uma pequena parte do todo que ele quer explicar. Comum assistir a esse tipo de geração de preconceito na mídia, diariamente. Um exemplo comum diz respeito à recorrente crítica ao estado de bem-estar social: o estado de bem-estar social tem uma história longa e complexa, que apresentou e apresenta fundamentos, objetivos e resultados diferentes em momentos da história diferentes e em culturas e países diferentes. Entretanto, é comum ouvirmos, inclusive de intelectuais, que o Estado social é assistencialista (ou pior, clientelista) e logo gera pessoas preguiçosas que não querem trabalhar. O processo ideológico distorce a realidade e cria certezas construidas sobre fatos pontuais que procuram explicar uma situação complexa. O elemento de dominação presente procura construir certezas na opinião pública, uma vez que a afirmação vem acompanhada de um fato real que a pessoa pode constatar e a televisão o faz ao trazer a imagem. Portanto, a partir de uma situação que efetivamente ocorre, mas de longe não pode ser utilizada para explicar a complexidade do tema estado de bem-estar social, quem detém a mídia constrói certezas e as certezas são o caminho curto para o preconceito. Quanto mais certezas as pessoas tiverem, quanto mais preconceituosas forem as pessoas, mas facilmente elas serão manipuladas por quem detém o poder de criar essas verdades. A certeza é inimiga da liberdade de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do dialogo. Quem detém o poder de construir os significados de palavras como liberdade, igualdade, democracia, quem detém o poder de criar os preconceitos e de representar a realidade a seu modo, tem a possibilidade de dominar e de manter a dominação. Entretanto, esse poder não é intocável. A dominação tem limites e esses limites não são ficções cinematográficas. Esse poder encoberto pela representação distorcida (propositalmente distorcida) 5 funda-se em ideologias, em mentiras. 6 A grande mentira em que estamos mergulhados é a 5 Importante lembrar que não negamos a condição autopoiética da vida. Somos seres interpretativos. Tudo é interpretação e a interpretação é condicionada por toda condição humana. A representação distorcida com o objetivo de manipulação é feita com esse objetivo. Estamos aqui falando de honestidade nas comunicações. Honestidade dos argumentos utilizados no diálogo democrático. A representação distorcida que encobre os jogos de poder é desonesta. O objetivo é dominar, enganar e não dialogar. 6...a ideologia oculta o caráter contraditório do padrão essencial oculto, concentrando o foco na maneira pela qual as relações econômicas aparecem superficialmente. Esse mundo de aparências constituído pela esfera de circulação não só gera formas econômicas de ideologia, como também é um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem, onde reinam a liberdade e igualdade. (O Capital I, cap. VI) Sob este aspecto, o mercado é também a fonte da ideologia política burguesa: a igualdade e a liberdade são, assim, não apenas aperfeiçoadas na troca baseada em valores de troca, como também a troca dos valores de troca é a base produtiva real de toda igualdade e liberdade. (Crundise, Capítulo sobre o capital) Mas é claro que a ideologia burguesa da liberdade e da igualdade oculta o que ocorre sob o processo superficial de troca, onde essa aparente igualdade e liberdade individuais desaparecem e revelam-se como desigualdade e falta de liberdade. (Dicionário de pensamento marxista, editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar editor, Rio de Janeiro, 2001, pág.184).

72 72 mentira do mercado, da liberdade econômica, fundada numa naturalização da economia, como se esta não fosse uma ciência social, mas uma ciência exata. A matematização da economia sustenta a insanidade vigente. A força da ideologia se mostra quando ela é capaz de fazer com que as pessoas, pacificamente, concordem com o assalto privado aos seus bolsos. É impressionante a incapacidade de reação contra o sistema financeiro que furta do trabalhador, diariamente, sem que este esboce alguma reação. A falta de reação pode se justificar pela incapacidade de perceber a ação ou da aceitação da ação como algo natural. Tudo isso encontra fundamento em uma grande capacidade de geração de representações nas quais as pessoas passam a viver. Viver artificialmente em um mundo que não existe: matrix. Se as pessoas acreditam que a história acabou, que chegamos a um sistema social, constitucional e econômico para o qual não existe alternativa, pois ele é natural, não há saída. Para essas pessoas, a alternativa que está gritando em seus ouvidos não é ouvida, a alternativa que está em seu campo de visão não é percebida pela retina. Se a economia não é mais percebida como ciência social, se o status de suas conclusões passa para o campo da ciência exata, logo a economia não pode mais ser regulada pelo Estado, pelo Direito, pela democracia. Não posso mudar uma equação física ou matemática com uma lei. De nada vai adiantar. A matematização da economia é a grande mentira contemporânea. Se a economia é uma questão de natureza, se a economia não é história, quem pode decidir sobre a economia são os sábios e jamais o povo. Isso ajuda a entender, por exemplo, como um governo que se pretendia de esquerda adota uma política econômica conservadora de direita. Essa é a ideologia que sustenta um mundo governado pelo desejo cego de poder, dinheiro e sexo. A razão não manda no mundo, jamais mandou. O desejo conduz o ser humano. O problema não é o desejo comandar. O problema é que não são os nossos desejos que comandam, mas os desejos de poucos que nos fazem acreditar que seus desejos são os nossos desejos. 7 7 Algumas palavras problemáticas apareceram no texto: ideologia e desejo. Palavras cheias de sentidos diversos, localizadas no tempo e no espaço. A palavra ideologia aparece no sentido marxista: Duas vertentes do pensamento filosófico crítico influenciaram diretamente o conceito de ideologia de Marx e de Engels: de um lado, a crítica à religião desenvolvida pelo materialismo francês e por Feuerbach e, de outro, a crítica da epistemologia tradicional e a revalorização da atividade do sujeito realizada pela filosofia alemã da consciência (ver idealismo) e, particularmente, por Hegel. Não obstante, enquanto essas críticas não conseguiram relacionar as distorções religiosas ou metafísicas com condições sociais específicas, a crítica de Marx e Engels procura mostrar a existência de um elo necessário entre formas invertida de consciência e a existência material dos homens. É essa relação que o conceito de ideologia expressa, referindo-se a uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais (ver contradição) e as oculta. Em consequência disso, desde o início, a noção de ideologia apresenta uma clara conotação negativa e critica. (Dicionário de pensamento marxista, editado por Tom Bottomore, editora Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 2001, p.184).

73 73 A despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada para o poder econômico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek, a luta pela hegemonia ideológico-política é por consequência a luta pela apropriação dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que transcendendo as clivagens políticas 8. Uma expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a expressão Direitos Humanos. Os Direitos Humanos são históricos e, logo, políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo, pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural, o que é natureza humana. Se os Direitos Humanos não são históricos, mas são direitos naturais, quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direitos? Se afirmamos os Direitos Humanos como históricos, estamos reconhecendo que nós somos autores da história e, logo, o conteúdo desses direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto em que todos possam fazer parte. Ao contrário, se afirmamos esses direitos como naturais, fazemos o que fazem com a economia agora. Retiramos os Direitos Humanos do livre uso democrático e o transferimos para outro. Esse outro dirá o que é natural. Quem diz o que é natural? Deus? Os sábios? Os filósofos? A natureza? Neste pequeno ensaio, vamos buscar enxergar, por detrás das representações ideológicas do mundo que encobrem o real jogo de poder, os reais interesses escondidos pelos discursos e quais os mecanismos são utilizados para a dominação. Principalmente, entender como legiões de pessoas são levadas a agir contra si mesmas e como os cães de guarda do sistema agem contra eles próprios e tudo o que eles dizem proteger. 1. PROFANAÇÃO O pensador Giorgio Agamben 9 faz uma importante reflexão a respeito da construção das representações e da apropriação dos significados: o que o autor chama de sacralização, como mecanismo de subtração do livre uso das pessoas, as palavras e seus significados; coisas e seus usos; pessoas e sua significação histórica. O autor começa por explicar o mecanismo de sacralização na Antiguidade. As coisas consagradas aos deuses são subtraídas do uso comum, do uso livre das pessoas. Há uma subtração do livre uso e do comércio das pessoas. A subtração do livre uso representa uma forma de poder e de dominação. Assim, consagrar significa retirar do domínio do direito humano, constituindo sacrilégio violar a indisponibilidade da coisa consagrada. Ao contrário, profanar significa restituir ao livre uso das pessoas. A coisa restituída é pura, profana, liberada dos nomes sagrados e, logo, livre para ser usada por todos. O seu uso e significado não estão 8 ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en faveur de l intolérance. Climats, 2004, Paris, p.18. Interessante não apenas ler esse livro, como a obra desse fascinante pensador esloveno. Vários de seus livros já foram traduzidos e publicados no Brasil: Bem-vindo ao deserto do real e As portas da revolução são duas obras importantes. 9 AGAMBEM, Giorgio. Profanation, Paris, 2005, Editora Payot et Rivages. As reflexões e interpretações livres desenvolvidas neste tópico são todas a partir do texto do filósofio Giorgio Agambem.

74 74 condicionados a um uso especifico, separado, das pessoas. A coisa restituída ao livre uso é pura, no sentido de que não carrega significados aprisionados, sacralizados. Concebendo a sacralização como subtração do uso livre e comum, a função da religião é de separação. A religião, para o autor, não vem de religare, religar, mas de relegere, que significa uma atitude de escrúpulo e atenção que deve presidir nossas relações com os deuses; a hesitação inquietante (ato de relire), que deve ser observada para respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une os homens aos deuses, mas sim aquilo que quer mantê-los separados. A religião não é religião sem separação. O que marca a passagem do profano ao sagrado é o sacrifício. O processo de sacralização ocorre com a junção do rito com o mito. É pelo rito, que simboliza um mito, que o profano se transforma em sagrado. Os sacrifícios são rituais minuciosos, nos quais ocorre a passagem para outra esfera, a esfera separada. Um ritual sacraliza e pode devolver ou restituir a coisa (ideia, palavra, objeto, pessoa) à esfera anterior. Uma forma simples de restituir a coisa separada ao livre uso é o toque humano no sagrado. Esse contágio pode restituir o sagrado ao profano. A função de separação, de consagração, ocorre nas sociedades contemporâneas em diversas esferas, nas quais o recurso ao mito, juntamente com rito, cumpre uma função de separação, de retirada de coisas, ideias, palavras e pessoas do livre uso, da livre reflexão, da livre interlocução, criando reconhecimentos sem possibilidade de diálogo. A religião como separação, como sacralização, há muito invadiu a política, a economia e as relações de poder na sociedade moderna. O capitalismo de mercado é uma grande religião que se afirma com a sacralização do mercado e da propriedade privada. As discussões que ocorrem na esfera econômica são encerradas com o recurso ao mito para impor uma ideia sacralizada a toda a população. No espaço religioso do capitalismo, não há espaço para a racionalidade discursiva, pois qualquer tentativa de questionar o sagrado constitui sacrilégio. Não há razão e sim emoção no espaço sacralizado das discussões de política econômica. Por isso os proprietários reagem com raiva à tentativa de diálogo, pois, para eles, esse diálogo significa um sacrilégio, questiona coisas e conceitos sacralizados há muito tempo. Esse recurso está presente no poder do Estado e em rituais diários do poder: a posse de um juiz, de um presidente, a formatura, a ordenação de padres e outros rituais mágicos transformam as pessoas em poucos minutos, separando a pessoa de antes do ritual para uma nova pessoa após o ritual. Isso ganha tanta força, no mundo contemporâneo, que várias pessoas que frequentam um curso superior hoje não pretendem adquirir conhecimentos: o processo de passagem por um curso não é para adquirir conhecimentos, mas para cumprir créditos (até a linguagem é econômica) para, no final, passar pelo rito que o transformará de maneira mágica em uma nova pessoa. O objetivo é o rito, a certificação da passagem por meio do diploma e não a aquisição do conhecimento. O espaço universitário vem sendo transformado pela religião capitalista em algo mágico, onde o conhecimento a ser adquirido no decorrer de um processo que deveria ser transformador perde importância em relação ao rito (a formatura) e ao mito (o diploma). Como resistir à perda da liberdade? Como resistir à sacralização das relações sociais, econômicas e logo à perda da possibilidade de fazer diferente, de fazer livremente o uso das coisas, das palavras, das ideias? Como se opor à subtração das coisas ao livre uso? Como se opor à sacralização de parte importante de nosso mundo, de nossa vida? A palavra que Agambem usa para significar essa possibilidade de libertação é negligência que pode permitir a profanação da coisa sacralizada.

75 75 Não é uma atitude de incredulidade e indiferença que ameaça o sagrado, isso pode até fortalecê-lo. Tampouco o confronto direto. O que ameaça o sagrado é uma atitude de negligência. Negligência entendida como uma atitude, uma conduta simultaneamente livre e distraída perante as coisas e seus usos. Não é ignorar a coisa 10 sacralizada, mas prestar atenção na coisa sem considerar o mito que sustenta sua sacralização. Negligência, nesse caso, significa desligar-se das normas para o uso. Adotar um novo uso descompromissado de sua finalidade sagrada, ou seja, de sua função de separar. Logo, profanar significa liberar a possibilidade de uma forma particular de negligência que ignora a separação, ou antes, que faz uso particular da coisa. A passagem do sagrado para o profano pode corresponder a uma reutilização. Muitos jogos infantis (jogo de roda; balão; brincadeiras de roda) derivam de ritos, de cerimônias para a sacralização, como uma cerimônia de casamento. Os jogos de sorte, de dados, derivam das práticas dos oráculos. Esses ritos separados de seus mitos ganharam um livre uso para as crianças. O poder do ato sagrado é a consagração do mito (a história) e o rito que o reproduz. O jogo (negligência) desfaz essa ligação. O rito sem o mito vira jogo, é devolvido ao livre uso das pessoas. O mito sem o rito perde o caráter sagrado, vira uma história. Importante lembrar que negligência não significa falta de atenção. Uma criança, quando joga, tem toda a atenção no jogo. Ela apenas negligencia o uso sagrado ou o mito que fundamenta o rito. A criança negligencia a proibição. Devemos dessacralizar a economia, o direito, a política, devolvendo essas esferas ao livre uso do povo; construir novos usos livres. Numa época em que a dessacralização é fundamental diante da dimensão que a sacralização tomou, as pessoas, em meio ao desespero, buscam um retorno ao sagrado em tudo. O jogo como profanação, como uso livre, mostra-se hoje decadente. As pessoas parecem incapazes de jogar e isso se demonstra com a proliferação de jogos prontos, sacralizados, com regras herméticas, nos quais os novos usos se apresentam quase impossíveis ou invisíveis. Os jogos televisados como grandes espetáculos de massa acompanham a profissionalização e a mitificação dos jogadores (os ídolos). A secularização dos processos de sacralização que dominam as sociedades contemporâneas permite que as forças de separação permaneçam intactas, sendo apenas mudadas de lugar. A profanação de maneira diferente neutraliza a força que subtrai o livre uso, neutraliza a força do que é profanado. Trata-se de duas operações políticas: a primeira mantém e garante o poder por meio da junção do mito e o rito agora em outro espaço; a segunda desativa os dispositivos do poder: separa o rito do mito, permitindo o livre uso. O capitalismo é mostrado por vários autores como um espaço de secularização dos processos de sacralização. Max Weber mostra o capitalismo como secularização da fé protestante. Benjamin demonstra que o capitalismo se constitui em um fenômeno religioso que se desenvolve de forma parasitária a partir do cristianismo. Para Giorgio Agambem, o capitalismo reúne três fortes características religiosas específicas: a) É uma religião do culto, mais do que qualquer outra. No capitalismo, tudo tem sentido relacionado ao culto e não em relação a um dogma ou ideia. O culto ao consumo; o culto à beleza; à velocidade; ao corpo; ao sexo etc. b) É um culto permanente, sem trégua e sem perdão. Os dias de festas e de férias não interrompem o culto, mas, ao contrário, o reforça. 10 Coisa aqui significa ideias, objetos, pessoas, palavras, animais, ritos, danças etc.

76 76 c) O culto do capitalismo não é consagrado à redenção ou à expiação da falta, uma vez que é o culto da falta. O capitalismo precisa da falta para sobreviver. O capitalismo cria a falta para então supri-la com um novo objeto de consumo. Assim que esse objeto é consumido, outra falta aparece para ser suprida. O capitalismo talvez seja o único caso de um culto que, ao expiar a falta, mais a torna universal. O capitalismo, por ser o culto, não da redenção e sim da falta, não da esperança, mas do desespero, faz com que esse capitalismo religioso não tenha como finalidade a transformação do mundo, mas sim sua destruição. Existe, no capitalismo, um processo incessante de separação única e multiforme. Cada coisa é separada de si mesma, não importando a dimensão sagrado/profano ou divino/humano. Ocorre uma profanação absoluta, sem nenhum resíduo que coincida com uma consagração vazia e integral. Ou seja, o capitalismo profana as ideias, objetos, nomes não para permitir o livre uso, mas para ressacralizar imediatamente. Um automóvel não é mais um objeto usado para o transporte, mas é um objeto de desejo que oferece para quem compra status poder, velocidade, emoção, reconhecimento. O consumidor em geral não compra o bem que pode transportá-lo da casa para o trabalho e do trabalho para casa ou para qualquer outro lugar. O que o consumidor compra não pode ser apropriado, pois o que é consumível é inapropriável. O consumidor compra o status, o reconhecimento, a ilusão de poder, a velocidade, e isso não pode ser apropriado, desaparecendo à medida que é consumido. Tratase de um fetiche incessante. Ao conferir um novo uso a ser consumido, qualquer uso durável se torna impossível: essa é a esfera do consumismo. Na lógica da sociedade de consumo, a profanação torna-se quase impossível, pois o que se usa não é o uso inicial do objeto, mas o novo uso dado pelo capitalista. Logo, o que se consome se extingue e desaparece e, portanto, não lhe pode ser dado novo uso. Não há possibilidade de liberdade dentro desse sistema. O novo uso, o da liberdade, exige enxergarmos esse processo de aprisionamento da lógica capitalista consumista. O consumo pode ser visto como uso puro que leva à destruição da coisa consumida. O consumo é, portanto, a negação do uso, uma vez que há a negação do uso que pressupõe que a substância da coisa fique intacta. No consumo, a coisa desaparece no momento do uso. A propriedade é uma esfera de separação; um dispositivo que desloca o livre uso das coisas para uma esfera separada, que se converte, no Estado moderno, em direito. Entretanto, o que é consumido não pode ser apropriado. Os consumidores são infelizes nas sociedades de massa, não apenas porque consomem objetos que incorporam uma não-aptidão para o uso, mas também, sobretudo, porque eles acreditam exercer sobre essas coisas consumidas o seu direito de propriedade. Isso é insuportável e torna o consumo interminável. Como não me aproprio do que consumi tenho que consumir de novo e para alimentar a ilusão de apropriação. Essa escravidão ocorre pela incapacidade de profanar o bem consumido e pela incapacidade de enxergar o processo em que o consumidor se vê mergulhado até a cabeça. 2. MATRIX: O REAL EXISTE O real existe. O mundo ocidental vem se reencontrando com seu passado, quando oriente e ocidente, materialismo e espiritualismo, não eram cuidadosamente separados. Em um desses reencontros, a ideia de autopoiesis como essencial à vida é retomada. Um desses reencontros está na obra de dois biólogos chilenos,

77 ciência. 12 Estudando a aparelho ótico de seres vivos 13, os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça 77 Humberto Maturana e Francisco Varela, que, após experiências com a visão de animais, reconstroem o conceito de autopoiesis como condição de qualquer ser vivo. Um pressuposto fático, e não apenas teórico, é a condição de, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos, necessariamente, enquanto seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos, e essa condição se manifesta também nos sistemas sociais. Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela 11, trouxeram uma importante reflexão, que, a partir da compreensão da vida na biologia, resgatam a ideia de autorreferência, que se aplica à toda a para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo. A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos. Ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado. O fato é que, entre nós e o mundo existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma dessas lentes. Assim, para percebermos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas não é capaz de perceber outras, ou, por vezes, nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores. Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas, e, cada vez, mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo. De outra forma, quando nos sentimos felizes ou quando tomamos drogas, como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e os fatos que queremos 11 MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do Chile, No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: Nosotros tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada, donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de humanos. Prosseguindo, os autores afirmam escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da certeza, com o qual é impossível o dialógo: Pues bien, todo este libro puede ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la tentación de la certitumbre. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.5 13 Nas páginas 8 e 9 do livro, os autores propõem aos leitores experiências visuais e nos demonstram facilmente como nossa visão pode nos enganar, revelando o que não existe e não revelando o que está lá. Nas várias experiências com a visão das cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma cor. Mostrando no livro dois círculos cinza impressos com a mesma cor, mas em fundo diferente; o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente rosado. Ao final nos fazem uma afirmativa contundente, mas importante, para tudo que dizemos aqui: el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de como estamos constituídos para verlo. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, ob.cit.p.8

78 78 perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos passa a ser influenciada por essa condição química. A cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez que cada observador é um mundo, um sistema autorreferencial, formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos. Assim, podemos dizer que outra lente, que nos permite traduzir e interpretar o mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo, acha-se condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos. Novas lentes colocam-se entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revelam um mundo, escondem outros. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre, cinquenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que, em determinado momento do tempo, possamos compartilhar conceitos, que dificilmente são universalizáveis. Somos seres autopoiéticos (autorreferenciais e autorreprodutivos) e não há como fugir desse fato. Entre nós e o que está fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo. A linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que, quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado. Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado 14. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia. Importante lembrar que o reconhecimento da relatividade do conhecimento não exclui a existência do real. O real existe além da matrix. O real é relativo e histórico, mas, ao mesmo tempo, é diferente da mentira que busca propositalmente encobrir o real, é diferente de um mundo construído pelo outro com o propósito de encobrir algo. Nesse sentido, a matrix é real como algo que encobre propositalmente a possibilidade de intervir na história ou provoca intervenções que não intencionalmente levem ao caminho oposto do desejado. O que chamamos de real são as relações que se constroem no mundo da vida como possibilidade de diálogo e intervenção na história não manipulada pelo outro. O real não busca estrategicamente encobrir os jogos de poder, o real é a revelação dos jogos de poder. A mentira se opôs ao real ou a uma verdade historicamente construída. Se assistirmos a um assassinato em uma praça, podemos encontrar nesse fato o real, as verdades e as mentiras, 14 Verificar ainda o seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

79 79 assim como o encobrimento proposital do real. Assim, o real cru está no corpo inerte, na ausência de vida, na morte de uma pessoa. As verdades que se constroem nas cabeças das testemunhas não são únicas, uma vez que são interpretações da morte que ocorreu e da pessoa que morreu. As mentiras intencionais distorceram propositalmente os fatos para manipulá-los segundo interesses diversos. O encobrimento do real foi feito, posteriormente, com a notícia não divulgada, a arma do crime adulterada e provas forjadas. O encobrimento não é uma simples mentira que altera o fato ou exagera o fato. O encobrimento tem uma finalidade estratégica. Com esse exemplo podemos dizer de um real, de um encobrimento, de verdades históricas e de mentiras históricas. Matrix parte dessa compreensão e propõe algo assustador. E se nossa autorreferência não pertencer mais a nós mesmos, mas alguém, externo, construir nossos limites de compreensão, nossas verdades? A partir desse universo, o filme nos incita a outra reflexão: à medida que outro constrói, propositalmente, mentiras que se transformam em verdades, estamos impossibilitados de perceber o real. Esse manipulador externo de nosso mundo usurpa nossa liberdade. A partir do momento em que a matrix cria um mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que não enxerguemos o real, podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. A tentação relativista da compreensão da autopoiesis pode encontrar um limite real. O real se constitui nas relações de interpretação e de comunicação fundadas em uma base de honestidade, de compromisso de busca de uma comunicação que parta de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção proposital da mentira com fins de manipulação, de dominação e de pacificação pela completa alienação das condições reais de vida, das reais relações de poder. Alguém, propositalmente, me faz acreditar em suas mentiras como sendo verdades; nas relações falsamente construídas como sendo reais. A matrix é real. A manipulação da opinião pública, a distorção proposital do real, a fabricação de notícias e de fatos que encobrem os fatos, a criação de fatos falsos está presente. Assistimos a golpes midiáticos como a tentativa de golpe contra o governo constitucional de Hugo Chaves, na qual a mídia fabricou fatos, notícias, medos. Assistimos ao golpe midiático nos EUA com a eleição de Bush e a sustentação de um estado de exceção mantido pela geração diária do medo pela grande mídia. A matrix está ai, mas seus limites são claros na reação popular ao golpe na Venezuela. A matrix está aí, mas seus limites existem e a resistência à manipulação do real conseguiu vencer as eleições é certo que de forma apertada, na Itália, em abril de O interessante do filme é que as agressões no mundo da matrix são reais. Talvez o único real no mundo da matrix. Uma agressão física virtual causa feridas reais. Daí que a fuga do real, na matrix, não garante segurança e retira liberdade. A verdade posta no filme está na conexão do eu com o real. Esse eu que interpreta o mundo. Na matrix, não há verdade, pois não há conexão entre o eu e o real. O real foi subtraído da experiência de vida. A pessoa vive uma representação criada por outro.

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81 81 PARTE II Inclusão Social: Avanços e Desafios no Cotidiano

82 82 Ultrapassar Barreiras e Avançar na Inclusão Escolar Maria Teresa Eglér Mantoan 1 Gostaria de falar um pouco sobre meu percurso com relação à formação de professores e à inclusão, porque estão muito imbricados. Temos avanços e impasses e acho que este é um bom momento para falar sobre isso, num fórum de educação inclusiva. A questão da inclusão está relacionada a questões muito mais anteriores, ligadas ao que a escola pode oferecer como formação para todos os alunos. Nós formamos professores em função de uma ideia que temos do que a escola pode oferecer. Ambiente restritivo ou ambiente desafiador? Se nós temos bem claro o que queremos na escola, podemos pensar nessa formação. Acho que essa questão é pouco discutida. Tenho participado de algumas reuniões, na minha faculdade, sobre as diretrizes do curso de Pedagogia, e fala-se muito pouco sobre isso. Se imaginarmos esse ambiente como restritivo, teremos uma posição na formação dos professores; se como desafiador, teremos outra, portanto, tudo muda. Vejo que essa discussão tem a ver com um projeto pedagógico, muito mais da faculdade do que, propriamente, até com as próprias diretrizes. Tenho tentado isso com muita dificuldade. Sinto-me muito marginal no meio acadêmico, porque, quando levo uma discussão como essa, por exemplo, para a Semana da Pedagogia, na Unicamp, as pessoas me olham: Mas isso tem a ver com a inclusão? Isso tem a ver com formação de professor?. E eu acho que isso é central. Então, prefiro fazer, às vezes, as minhas reflexões em outros locais, mas, sem termos alguma definição quanto a esse ambiente, é meio difícil pensar na formação do professor. A inclusão, apesar do esforço que temos feito durante todo esse tempo, ainda tem muita dificuldade de romper a ideia de que a escola, como ambiente desafiador, necessita urgentemente de entender das diferenças, porque são as diferenças que estabelecem os desafios, rompem o restritivo, o ambiente predefinido, determinado, seriado de maneira a envolver, a agrupar de forma homogênea as crianças. Discute-se sobre a formação dos professores: se a questão é formar o bacharel ou o licenciado... A questão é formar o educador, dentro de uma perspectiva que poderia ser discutida, tendo em vista a restritividade dos ambientes, que envolve avaliação restritiva, 1 Pedagoga, doutora pela Universidade Estadual de Campinas, professora da Universidade Estadual de Campinas e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade (LEPED)

83 83 planejamento restritivo, currículo restritivo, tudo bem fechadinho, bem preparadinho para aquele grupo, bem direcionado para tudo. Como formar professores para ambientes desafiadores de ensino e de aprendizagem? Onde? O ingrediente fundamental é o reconhecimento e a valorização das diferenças. Acho que essa é uma questão central na discussão de formação de professor seja continuada ou inicial; seja de nível básico ou nível superior. Trabalho na Unicamp, em um projeto de acessibilidade ao ensino superior. Vejo que são muito mais fáceis de entender, por exemplo, as diferenças no ensino superior do que no ensino básico, porque os professores do ensino superior não são especialistas nas deficiências. Um dos grandes problemas que eu vejo hoje, trazidos pela inclusão, é a discussão sobre a formação dos professores: eles teriam que aprender tudo sobre deficiência? Eu vejo especializações em educação inclusiva para o nível básico, nas quais os professores comuns vão para aprender como é que se ensina ao deficiente mental, ao deficiente físico, ao deficiente auditivo uma coisa maluca! Tivemos um avanço no sentido de entender que a educação é um direito de todos, que é um direito do aluno e que não podemos diferenciar pela deficiência ou qualquer outra diferença, porque ninguém sabe e isso é um dilema quando mostrar o que temos de igual e quando mostrar o que temos de diferente. Tanto que o professor Boaventura Sousa Santos lançou aquela máxima de que podemos e devemos exigir o direito à igualdade, quando a diferença nos inferioriza, e exigir o direito da diferença, quando a igualdade nos descaracteriza. Diante de uma máxima como essa, mostrar a diferença ou mostrar a igualdade é andar no fio da navalha. E andar no fio da navalha é formar professores para uma educação para todos, porque, se nós tivermos clareza de que esses meninos têm uma deficiência ou uma diferença qualquer, nós teremos que garantir que suas especificidades sejam reconhecidas e que eles tenham na escola condição de serem atendidos nas suas necessidades, em função dessas diferenças. É aí que começa o nó. Levar a universidade da formação inicial a pensar nas diferenças em sala de aula é uma coisa muito difícil, porque o aluno continua a ser, para a universidade, aquele ser ideal, que é fruto do que a teoria nos mostrou a respeito dos seres humanos. Aí começa a influência dessas teorias na definição do aluno, na definição do ensino, na definição da aprendizagem. Mas quem é esse aluno? Esse aluno não existe. Quem é esse sujeito que não existe? Os professores têm nas mãos seres que não se repetem. Não existe uma fórmula, não existe um jeito de formar nem mesmo na educação para pessoas ditas sem deficiência ou sem qualquer diferença mais expressiva. Não existe um jeito de formar a partir de uma metodologia, como se pensava antes, de um método.

84 84 A inclusão trouxe essa questão de uma maneira muito forte para dentro da escola, e a universidade sabe muito pouco a esse respeito. A ideia de incluir uma disciplina na formação inicial, a Educação Inclusiva, é uma das coisas mais absurdas que eu já vi na minha vida. Não é por aí. É toda uma concepção que terá de ser mudada e levará tempo, e a universidade já deveria ter pensado nisso. As discussões em torno do curso de Pedagogia giram em torno de se vai ter bacharelado ou se vai ter licenciatura; que é perigoso abrir brecha para tantas especializações, se vão acabar as habilitações. Na verdade, a questão não é assim tão estrutural é muito mais conceitual e passa pela definição de que ambiente queremos para a educação das nossas crianças e dos nossos jovens. Decorrentes disso tudo, vêm duas questões. A primeira é a do professor comum que diz: Ah, não estou preparado para receber aluno que não caiba no meu modelo. A outra é a do professor especializado, que agora diz uma outra coisa: Mas eu não estou preparado para o atendimento educacional especializado. Por quê? Porque, na realidade, ele nunca foi preparado para nada. Ele é um professor comum que fica ensinando Língua Portuguesa, Matemática, História, Geografia para menino com dificuldade quando não é considerado professor que dá reforço, que dá apoio. Sala de recurso é entendida hoje, ainda, como aquele lugar em que vão os meninos que têm dificuldades de aprendizagem, misturados com os meninos que têm deficiência. E quando perguntamos a um professor especializado o que é atendimento educacional especializado, ele diz assim: Ah, aquele negócio da cartilha? (uma cartilha que mostra que na Constituição isso está claro), Ah isso daí a gente não fez, não. A gente não está preparado, não. Os cursos que a gente fez não são para isso ; E os cursos que vocês estão fazendo durante todos esses anos? Também. Eles não estão dando conta de diferenciar o que é educação especial, depois desse entendimento novo do que é o atendimento educacional especializado. Então, misturam atendimento clínico com atendimento educacional; atendimento educacional escolar com reforço. É verdadeiramente uma confusão muito grande e a formação continuada não está dando conta. A formação em nível de pós-graduação lato sensu não dá conta e a formação inicial também não. Estamos elaborando a política nacional de educação especial e a formação do professor de educação especial é um dos quesitos. É dificílimo discutir esse tema, porque nem mesmo os constituintes do grupo que está estudando essa política chegam a um consenso nem diria um consenso a entender bem qual é o espírito do atendimento educacional

85 85 especializado. Ora, se eu não entendi, como posso ensinar? Como posso pensar num jeito de ensinar? Estamos num impasse diante da inclusão. Acho essa discussão salutar, em muitos sentidos, porque nunca se pensou em nada disso. Todo mundo estava deitado em berço esplêndido. Entendiam que a educação especial sozinha daria conta dos problemas das escolas, seja das deficiências ou das dificuldades. A escola comum estava tranquila, mandando todos que tivessem dificuldades para a escola especial, sem nenhum critério, e a formação correndo solta. Há vários cursos de formação dos professores, que não resolvem o problema, porque, de um lado, os professores querem soluções; de outro, os formadores não têm nem as perguntas, uma vez que elas não estão muito claras. Muito pouco ainda podemos fazer com relação à formação inicial. A universidade anda com o peso do passo do elefante, mas no passinho da formiga. É muito difícil sair do lugar. As questões que preocupam passam muitíssimo ao longe, nem paralelamente às questões da inclusão, tanto na licenciatura como bacharelado. Predominam as questões teóricas, e a integração entre teoria e prática é muito difícil nas universidades, haja vista os estágios supervisionados, que são deixados para o fim do curso. A educação especial, embora haja o avanço de ela hoje ter uma interpretação diferente, ainda está presente na universidade como corpo de conhecimento, com a qual ninguém sabe o que fazer, porque mais está servindo para gerar cursos de educação inclusiva do que cursos de formação de professores para atender às deficiências. Os avanços estão ocorrendo muito mais no interior da escola do que fora delas, porque os meninos estão lá. Sem eles, nada aconteceria. É a própria experiência com as diferenças que está nos dando condições de pensar nesse ambiente desafiador, de fazer com que eles prossigam sua escolaridade no ambiente comum. Por mais que a formação continuada tenha ideias de fazer currículo adaptado, avaliação adaptada, grupo adaptado para fazer as atividades na sala de aula, tudo isso não está resolvendo o problema. Não podemos determinar qual é o currículo ideal para uma criança; qual é a atividade que ela terá condição de fazer; e como, diante da inclusão, podemos dizer que uma avaliação pode ser diferente para meninos com deficiência ou sem deficiência. Penso que o atendimento educacional especializado, acima de tudo, deve ser desenvolvido por professores que já tiveram em sua formação uma ideia do que é trabalhar com as diferenças, não em uma disciplina, mas em todo um entendimento da educação, a partir da ideia de um ambiente desafiador de ensino e de aprendizagem.

86 86 Para chegar a isso, algumas coisas temos feito, como, por exemplo, os núcleos temáticos na Universidade de Campinas, que têm mostrado um pouco dessas diferenças no ensinar e no aprender. É muito pouco ainda, porque a formação inicial, verdadeiramente, vai acontecer quando iniciarmos o nosso trabalho dentro da escola. A formação para trabalhar com a inclusão não se esgota no profissional (no atendimento educacional especializado). Não pode ser um clínico, mas não basta ser um professor é imprescindível que o seja. Mas o professor precisa ter conhecimentos muito específicos. Por exemplo, para atender pessoas com deficiência física, precisa conhecer tecnologias assistivas, precisa conhecer os problemas que realmente atingem pessoas que têm determinadas patologias, trabalhando do ponto de vista educacional, ou seja, com o que pode ser desenvolvido. Coisa que a educação especial não faz, porque ela trabalha sempre com essa visão de deficiência e de adaptação e não de dar espaço para o sujeito recriar o conhecimento a partir das suas próprias possibilidades. E é essa a grande dificuldade de formar esse professor, porque, se ele vem da educação comum, não tem capacidade de fazer isso, pois na educação comum aprende a ser um professor para ambientes restritivos. Se ele vem da educação especial, tem só o que sabe de específico sobre uma deficiência, por exemplo, não dá conta também de desenvolver nesse ambiente especializado um trabalho desafiador. Ele já vem carregado, tanto numa formação como na outra, com essa visão de impossibilidade, de deficiência, de catalogação de sujeitos, de universalização, de essencialização, de características. Cada pessoa com deficiência é uma, não existe o deficiente mental, a não ser no livro, o deficiente físico, a não ser no livro. Então, eu penso que a saída seria essa formação inicial e cursos de formação continuada e alguns cursos nos quais pudéssemos exercitar as melhores possibilidades de formar em nível de pós-graduação, em nível superior, profissionais para a educação especial superior. Eu ainda tenho minhas dúvidas com relação a isso, porque acho que a ênfase teria que ser dada sobre a educação, não nesse sentido tão especializado, esses conhecimentos que são típicos do especial por exemplo, saber Braille, saber o que é locomoção e trabalhar com locomoção e mobilidade, saber trabalhar com o ábaco, com os textos digitalizados e os programas, no caso do cego. No caso dos deficientes mentais, trabalhar com esses meninos, não no sentido de ensinar orientação espacial, memória auditiva, treino de atenção, teia, aquele negócio lá do Reuven Feuerstein não é isso. É exercitar a capacidade cognitiva e, principalmente, fazer com que esses sujeitos saibam lidar com o conhecimento, porque eles desaprenderam tudo isso na escola, uma vez que lá aprenderam não foi lidar com o conhecimento: foi serem treinados para mostrar que têm um conhecimento que dá conta de eles conviverem com os

87 87 que não são deficientes. Colocarem-se no lugar de pessoas que, dentro das suas possibilidades, são capazes de aprender, ter metas, no sentido de conhecer alguma coisa. Tenho visto muito isso acontecer em certos trabalhos dos quais tenho participado e colaborado. Neles, a tensão não está em treinar o menino em certas habilidades para ir à escola e prestar mais atenção, ter mais memória, saber ler e escrever melhor. Como tenho visto, instituições se dedicam a ensinar a ler e escrever aos meninos que têm uma deficiência mental, para depois conseguirem ir para a escola. Não é isso que a escola pede, porque, em um ambiente restritivo, é isso que ela quer de todas as crianças, mas, em um ambiente desafiador, a proposta é outra. A educação especial também tem que ter esse lado do ambiente desafiador, que não é esse restringir sem ensinar o menino a ir bem na escola comum. É trabalhar com o que é próprio dessas barreiras que eles têm, dentro dessa perspectiva desafiadora, principalmente no caso da deficiência mental, na qual é imprescindível que esses meninos retomem a sensação de que têm condição de aprender como todos. Precisamos ter consciência de que aprender não é aprender o que o outro quer, mas ir atrás do que o aluno tem interesse em conhecer, dentro da capacidade que ele tem de ir atrás disso e consegui-lo. Resumindo, com relação à formação dos professores, é preciso definir bem que ambiente nós queremos. Se é desafiador ou restritivo. Isso é fundamental para nós pensarmos efetivamente num projeto pedagógico de universidade que queira se dedicar a uma formação de professores, independentemente de diretriz, de não sei o quê, o porquê. Como eu sou marginal não no mau sentido, mas no sentido de caminho, para mim, essas coisas têm muito pouco valor. Em relação à formação continuada, minha dúvida está nisto: que experiência nós temos no atendimento educacional especializado, igual à velha educação especial, para propormos uma formação, seja em nível de graduação ou de pós-graduação? Ou mesmo, como a formação continuada pode nos ajudar no reconhecimento das características dessa formação? Opto ainda por uma formação continuada dos professores que querem se dedicar ao atendimento educacional especializado, entendido não como substitutivo, mas como complementar da formação. Não como um atendimento escolar, mas um atendimento específico, porque eles têm o direito à diferença, quando a igualdade os descaracteriza. Opto para que adquiramos conhecimento, experiência, para podermos pensar numa formação específica para esses educadores e, enquanto isso, que na formação inicial, pelo menos em cada disciplina, se pense sobre as diferenças e sobre os ambientes desafiadores, porque se isso for pensado, nós teremos já caminhado bastante.

88 88 Uma Abordagem Holística na Prática do Design Universal 1. INTRODUÇÃO Marcelo Pinto Guimarães 1 O desenho universal se traduz de uma filosofia sobre a construção de ambientes, espaços e tecnologias de modo que o perfil do usuário seja compreendido em sua diversidade em termos de características físicas, habilidades e experiência pessoal na relação com o ambiente edificado. Tal conceito consta de importantes instrumentos reguladores da prática da acessibilidade no Brasil. De fato, tanto o Decreto Federal 5296, de 2 de dezembro de 2004, quanto as normas técnicas NBR , da Associação Brasileira de Normas Técnicas, apresentam definições específicas sobre o desenho universal como fundamento primordial para a prática da acessibilidade que seja inclusiva, isto é, para todas as pessoas. Como esses instrumentos não dispõem de maior detalhamento sobre os fundamentos e os elementos práticos do desenho universal, é pressuposto por um lado que o conteúdo da legislação e das normas técnicas reflita a compatibilidade de aplicação desse conceito e, por outro lado, que publicações técnicas complementares e a experiência profissional consigam preencher essa lacuna de informação. Contudo, isso não tem ocorrido. Defendemos que somente a abordagem holística pode justificar positivamente a prática do design universal como forma de contextualização do benefício para todos, independentemente da rotulação sobre tipos de deficiência. 2. A DISTINÇÃO ENTRE DESENHO UNIVERSAL E DESIGN UNIVERSAL Desenho universal e não design universal é utilizado nos textos oficiais. Desconsiderando uma simples tradução dos termos da língua inglesa de modo a tratá-los pela língua oficial brasileira, podemos identificar algumas distinções básicas no entendimento entre o desenho universal e o design universal. 1 PhD em Design, North Carolina Sate University. Professor de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais

89 89 Aparentemente, a definição de desenho universal adotada na legislação brasileira se prende ao campo da ergonomia (Steinfeld, 1994), que busca explorar as relações operacionais entre uma pessoa e o meio edificado em que se encontra. Por outro lado, o termo design universal indica uma definição original mais ampla (Mace, 1985), pois se aplica na maneira como soluções de acessibilidade podem alcançar uma ênfase global e distinta de ideias especializadas para grupos isolados de público incomum. Em sua formulação, design universal engloba o processo em que soluções de acessibilidade teriam um apelo para aceitação mercadológica e uma absorção na vida cotidiana de um grande público. Devemos lembrar ainda que design tem vínculo com o termo português desígnio, isto é, decisão a ser adotada numa sequência de tantas escolhas possíveis e compatíveis com o contexto em que o produto do design se destina. O fato dos mecanismos legais e normativos brasileiros documentarem o termo desenho universal ao invés de design universal pode se justificar pela própria natureza operacional dos processos de conformidade legal e normativa, a qual pressupõe elementos palpáveis, concretos e consistentes de referência que são mensuráveis no campo da ergonomia. Assim, torna-se mais aceitável estabelecer objetivos concretos na relação entre pessoa e seu ambiente operacional do que na relação entre pessoa, seu ambiente operacional e o contexto cultural, que vincula a isso os valores, atitudes e emoções. Em suma, o desenho universal se insere no conceito de design universal, o qual devemos utilizar preferencialmente quando nos referirmos à vivência dos usuários no meio construído para acessibilidade. O design universal que se estrutura em princípios generalizantes como processo e produto da acessibilidade ambiental, mas também serve de inspiração como referência máxima de qualidade para inclusão de todos, discreta e onipresente. Mais do que um simples traço fortuito e genial de síntese formalizada pelo profissional, um desenho, o design universal implica em uma manifestação cultural entre profissionais e seu público, que tem como ponto inicial de todo o trabalho, e sempre em primeiro plano, o respeito à diversidade das características e experiências dos usuários pelos ambientes onde atuam. Transpomos, então, o conceito da ergonomia para o da ciência cognitiva como um todo, incluindo-se a base filosófica do construtivismo, no qual a verdade é resultante do compartilhamento de valores e experiências.

90 90 3. A FALTA DE ESPECIFICAÇÃO DETALHADA SOBRE ELEMENTOS DO DESENHO UNIVERSAL: ÔNUS OU BÔNUS? Os instrumentos legais e normativos exigem que todas as soluções devam ser compatíveis com os princípios do desenho universal, mas não exprimem com clareza uma definição desses princípios ou sobre como eles atuam. Essa falta de detalhamento sobre mecanismos de aplicação do desenho universal nos instrumentos legais e normativos é evidente e incômoda para profissionais que os desconheçam por outros meios. Contudo, essa lacuna de informação pode ser considerada mais um benefício do que uma falha em função da natureza do processo de controle da atividade construtiva. Em geral, a rigidez, o controle legal e a padronização normativa cerceiam mais do que incentivam a criatividade do profissional para desenvolver inovações sobre a acessibilidade inclusiva para todos que impliquem numa redefinição das características das edificações (em suas estruturas e sistemas) e do modo operacional de gerenciamento das organizações e entidades. A oportunidade gerada pela especificação difusa está na valorização da postura exploratória dos profissionais em crescer sua experiência e conhecimento que suplantem em profundidade e amplitude as exigências legais e normativas. A falta de mecanismos operacionais para o design universal das leis e normas técnicas não é intencional. Isso se deve talvez à impossibilidade de que sejam definidos mecanismos objetivos e mensuráveis no âmbito legal para a inclusão irrestrita dos diferentes tipos de usuários, a partir da identificação e classificação de cada tipo. A liberalização de iniciativas para consolidação de produtos de acessibilidade no mercado que facilitem a vida de todos, na verdade, só é possível caso seja abolido o raciocínio pela compartimentação do conhecimento em função de especificidades das deficiências dos usuários, como também, o preconceito e os danos que uma ou outra categorização das características dos usuários pode acarretar. Por outro lado, é importante aqui registrarmos certas impropriedades nos termos da legislação e das normas técnicas, as quais definem aspectos contraditórios ao longo dos respectivos conteúdos em exigências que podem prejudicar os processos de inclusão e o design universal. Além disso, a legislação e as normas técnicas apresentam algumas divergências conceituais entre si. O Decreto Federal 5296/2004 é uma síntese de duas leis: a Lei 10048/2000 e 10098/2000, que tratam, respectivamente, do atendimento prestado às pessoas com deficiência e com mobilidade reduzida, e das alterações a serem implantadas no meio

91 91 edificado e nos sistemas de inteligência virtual, de modo que esse público possa ter iguais oportunidades de participação social. Por isso, seu texto se apresenta como uma vasta coletânea de contribuições de origens distintas e até discrepantes. Em processo semelhante, se originou a versão atual das normas NBR Comparativamente às outras versões, essas normas compreendem um grande número de especificações detalhadas sobre formas de sinalização, por exemplo, e um número menor e superficial de especificações sobre elementos de uma rota acessível para edificações a partir da via pública. Como o Decreto Federal indica o consenso de certos valores culturais, podemos reconhecer que alguns tópicos de seu conteúdo têm uma referência política mais do que técnica. Tal é o caso da categorização do público-alvo em pessoas com deficiência em diferentes grupos distintos e reconhecíveis por critérios médicos. Tal categorização das pessoas em grupos minoritários segundo uma deficiência motora, visual, auditiva, mental ou múltipla é incompatível com o conceito de design universal. Assim, por exemplo, uma pessoa não será considerada como um indivíduo com deficiência auditiva caso apresente níveis de audição com perda de 41 decibéis ou mais em determinada frequência. Mais precisamente, uma pessoa com perda de audição de 40 decibéis pode deixar de obter benefícios sociais legalmente concedidos a outros cuja sensibilidade auditiva esteja distante em apenas um ou dois decibéis da marca legal de referência. As normas NBR não chegam a estabelecer tal categorização de usuários, muito embora apresentem alguns tópicos contrários ao objetivo de inclusão previsto no conceito de design universal. As citadas normas técnicas determinam, por exemplo, a destinação de áreas de uso prioritário, exclusivo e específico para certo percentual de usuários que utilizem cadeiras de rodas em estacionamentos, auditórios ou sanitários. Em outro caso, determinam que a utilização de certos aparelhos mecânicos para a acessibilidade como escadas e esteiras rolantes seja possível mediante o controle do equipamento feito por outras pessoas ou funcionários especificamente treinados. Tal exigência contraria os princípios de autonomia e independência visando a efetiva inclusão tanto no Decreto Federal quanto nas normas técnicas. Podemos notar que, em certos trechos desses dois documentos, não houve o devido cuidado editorial de modo que fossem evitados conflitos lógicos e ideológicos entre o escopo das exigências e os objetivos a que devem atender. Algumas dessas discrepâncias conceituais existem porque esses instrumentos legais e normativos não aplicam uma visão global e coerente do conceito de design universal. De fato, mesmo argumentando contra a

92 92 discriminação, fazem uso da discriminação compensatória como estratégia para a promoção de uma acessibilidade assistida. De fato, se há uma lógica de afirmação positiva e compensatória em relação às desvantagens sociais para uma ou outra categoria arbitrária, uma deficiência, essa lógica é incoerente com a prática de se estabelecerem benefícios abrangentes para todos, sem exclusão. Como a acessibilidade para todos pressupõe o uso do meio edificado sem discriminação pela deficiência, podemos concluir que as medidas legais e normativas não devem e não podem ser o único meio para se atingir o desenho universal e muito menos o design universal. Por isso, é benéfico o fato de que tanto a legislação quanto as normas técnicas definam e vinculem a prática do desenho universal como essência de todas as demais exigências que mencionam, sem contudo, explicitarem claramente como isso pode ocorrer. Desse modo, o vazio de informação específica de como o design universal pode ser obtido torna o entendimento, o discernimento e a adoção efetiva de soluções frente à natural complexidade do conceito para a competente prática profissional além e acima do controle regulador legal e normativo. De outra forma, tanto a legislação quanto as normas técnicas podem se transformar em instrumentos de omissão, de opressão e de perpetuação do estigma sobre o valor social de uma pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida. 4. A ACESSIBILIDADE PARA TODOS DEPENDE DE ATITUDE E POSICIONAMENTO SOCIAL INCLUSIVOS Pode-se afirmar que o trabalho acerca da implantação da acessibilidade no Brasil tem evoluído muito. Afinal, dispomos de uma coletânea de leis e normas sobre o assunto incomparavelmente superior à de muitos países. Contudo, quando nos deparamos com um espaço que está compatível com a legislação e com as normas de acessibilidade devemos ainda nos perguntar para quem este espaço está acessível... Ao fazermos isso, estamos negando os objetivos que são próprios da essência do conceito sobre acessibilidade para todos. É necessário para nós termos um novo tipo de atitude, contudo, que reverta a realidade vivenciada por todos, não só de uns poucos. Uma pessoa que, por suas características ou habilidades incomuns, viva excluída pode ser, por exemplo, a única moradora de sua casa que foi construída de modo específico para sua acessibilidade.

93 93 Por morar sozinha num lar acessível às suas condições, mas situado em um local de difícil acesso como um todo, aquela pessoa está completamente isolada de seus vizinhos. Leva um ritmo de vida que, de certa forma, não está vinculado ao dos outros moradores. Enquanto isso, esses outros moradores continuam subindo e descendo pelas escadas, passando por vãos estreitos ou saltando sobre pisos irregulares, estão alheios à própria dificuldade em que o meio edificado possa incutir nelas mesmas por certos estágios da vida. Dificuldades com o ambiente edificado representam o dia-a-dia de muitos excluídos, que vivem tão próximos e tão sós. Nesse exemplo, podemos perceber que aquela pessoa vive excluída, como também estão excluídos dela todos os outros que não podem conviver com ela e assim aprender e compartilhar diferentes experiências de vida. De fato, essa visão discriminatória da acessibilidade, a partir da referência de um mundo inacessível que parece natural e comum a todos, precisa mudar. Na ideia atual de um estereótipo existente sobre acessibilidade, fica muito claro pensar em onde está o local acessível para um certo quem que é distinto de todos os outros ambientes. Devemos, porém, considerar até que ponto esse espaço criado é realmente acessível, não só àquele indivíduo identificável pelo símbolo da cadeira de rodas (o símbolo internacional de acesso), mas por todos os que eventualmente precisem fazer uso de tal espaço, em qualquer fase de sua vida. Quantos de nós estaremos presos dentro de casa quando atingir uma idade mais avançada? Inclusão não é só teoria, mas prática: resultante de práticas inclusivas. Nesse processo, mais do que uma palavra politicamente correta (como antes foram os termos: integração, normalização...), temos que nos referir ao processo de construção de uma sociedade inclusiva, na qual as diferenças das pessoas sejam reconhecidas como algo natural e valorizado. Práticas inclusivas significam abrir oportunidades iguais, trabalhar em um espaço que seja comum e compartilhado. A questão que fica é saber se conseguiremos colocar as práticas inclusivas em evidência para nossas vidas. De fato, temos de trabalhar para reduzir os conflitos ao invés de escondê-los. Devemos ser capazes de nos reconhecermos, um na pele do outro e, mesmo assim, de nos sentirmos felizes porque ambos estão bem o eu e o outro. Por práticas inclusivas, temos de reverter tal imagem da vantagem incondicional de uns sobre outros. Devemos ter em mente que, melhor do que sair ganhando sempre é ganhar sem riscos, pois tudo foi dividido justamente. Não é nem mesmo o fato de ganhar que importa e, sim, de se estar envolvido na construção de algo em conjunto que é bom para todos. A prática inclusiva é o processo de valorizar um indivíduo para que a riqueza por sua diversidade seja também a riqueza do grupo.

94 94 Quando começamos a pensar na diferença que nos separa como pessoas, talvez o processo de preparação para que sempre possamos incluir habilidades distintas em nosso meio fique mais forte como um elo que nos prende, ao invés de simplesmente rotularmos tais diferenças. Rotular significa termos de identificar quem é e quem não é, de modo que alguma pessoa possa ser contemplada com alguma vantagem. As práticas inclusivas não existem onde são feitos rótulos como referência de justiça. Não podemos falar de inclusão de... pessoas com deficiência ou do idoso, porque a partir do momento em que fizermos isso, já estaremos segregando. Segregar significa caracterizar, definir, separar. Temos de falar de inclusão como sendo um processo de todos para todos. Tudo isso serve de base para reflexões sobre uma nova definição do público-alvo beneficiário do design universal. Com o Decreto Federal 5296/2004 e com a NBR 9050/2004, pela primeira contemplamos ideias que sirvam não apenas para as pessoas agrupadas em rótulos de categorias de deficiência, mas para as pessoas que tenham sua mobilidade reduzida, tais como mulheres grávidas, idosos e acidentados. Com isso, finalmente, parte da população com graves problemas transitórios começou a fazer parte do público beneficiário. A noção de deficiência desvinculada do problema geral de mobilidade reflete a noção de estereótipo. Quando começarmos a olhar esses problemas de maneira global, sem querer caracterizá-los isoladamente e vendo um em relação direta com os outros, estaremos contemplando como o design universal pode ser praticado. 5. LÓGICA LINEAR E LÓGICA HOLÍSTICA Muitas vezes, as pessoas procuram soluções que sejam práticas, deixando de dar atenção a certos pensamentos por considerá-los abstrações e, portanto, opostos a alguma coisa mais perceptível, palpável e familiar. Podemos aqui nos remeter àquela forma de raciocínio pela categorização das coisas e pela referência aos seus rótulos ao invés de seus conteúdos, pois, assim, as pessoas podem conversar dentro de parâmetros de uma linguagem comum: os rótulos. É como se tivéssemos de fragmentar os problemas como peças de um quebra-cabeça para que, lidando com seus pedacinhos, conseguíssemos ver uma solução para ser aplicada num dado momento, a todo e qualquer momento. Esse tipo de pensamento, em nosso mundo ocidental, ocorre por uma lógica linear, cartesiana, plana. Todos os dias, definimo-nos pelo pensamento linear a partir da exclusão,

95 95 que nos delimita num universo fragmentado. Afirmando-nos como sendo parte de algo, buscamos justificativas na negação de seu oposto. Ao pensarmos de maneira linear, concordamos de modo inequívoco e de extrema clareza que o branco é, antes de tudo, o nãopreto. Pelos rigores da lei, uma coisa pode ser aceita como certa, quando ela é primordialmente uma coisa não-errada. É uma lógica que tem apenas uma sequência, como se o tempo houvesse se iniciado em um passado remoto e, com ele, como se estivéssemos caminhando inexoravelmente para um futuro em que temos depositado nossas esperanças. Uma vez atingido esse futuro, a realidade de então não poderá ser de outra maneira do que aquela vislumbrada inicialmente. Podemos até imaginar que esse futuro da sequência linear será melhor do que o presente, pois estamos resolvendo os problemas aos pouquinhos e, dessa forma, em um grande somatório de soluções. O que nos espera sempre é que o melhor ainda esteja por vir. Essa tal lógica linear de progresso em que estamos descrevendo, deve perder ênfase em nosso raciocínio para o design universal por ser muito estreita e limitada. O alto custo de agirmos assim se acumula pela necessidade de esperarmos por muito tempo para conseguirmos gozar dos benefícios de modo compartilhado. É como se estivéssemos comprando a vida à prestação e só pudéssemos vivenciá-la após quitar cada parte dessa dívida. Viveríamos, então, pelo reflexo de um espelho retrovisor, que nos mostra o que perdemos por termos encarado o todo de frente. Em uma abordagem holística, os custos são grandes: custo de atenção, de envolvimento, de comprometimento... Há também custos materiais em função da energia que deverá ser despendida para realizarmos algo dessa magnitude. Uma coisa, porém, é certa: uma vez que todos estejam engajados nisso, o benefício virá de modo mais amplo. Soluções de efeito mais consolidado e eficaz dependem de que consideremos como importantes medidas discretas, sutis, mas coerentes, de modo contínuo e cíclico com o contexto, alinhando às múltiplas influências de diferentes fatores. Ao adotarmos uma lógica holística, teremos a justaposição de pontos de vistas que contemplam lógicas lineares, transformando-as em uma única perspectiva multidimensional. Então, a lógica holística se prende, basicamente, em contexto, em consenso e em conhecimento. É no contexto que está a riqueza de toda a complexidade, de modo a torná-la simples. A visão global das coisas é necessária para conseguirmos definir o contexto em que ocorrem. Uma solução pode ser muito boa em determinado contexto, mas pode não ser em outro. Assim, não adianta tentar ver as coisas pouco a pouco se não tivermos uma visão do todo. O problema de não se ter uma visão do todo é que não conseguimos perceber as coisas de uma maneira contínua. Se não conseguirmos encarar um determinado problema em toda sua

96 96 complexidade, poderemos, então, dizer que as soluções propostas deixam de ser adequadas ao longo de certo prazo. Temos de buscar o consenso ao ceder de nosso posicionamento linear. Consenso significa respeitar as diferentes perspectivas a partir dos mais vulneráveis, pois, embora possamos ter muitas coisas em comum, cada cabeça, cada indivíduo reinterpreta o mundo de forma peculiar e inovadora. Antes de pensarmos em sair ganhando em alguma coisa, devemos, pois, ganhar algo de modo coletivo. Se conseguirmos obter consenso, todos estarão trabalhando de maneira engajada, usufruindo dos benefícios, por comprometimento de si mesmos e, por mais que as coisas demorem, podem ser realizadas e preservadas por gerações. Finalmente, o conhecimento, mais do que a simples absorção e enlace de informações, garante o respeito aos envolvidos no processo de busca de consenso. O conhecimento enriquece cada uma das pessoas com os esclarecimentos sobre os diferentes pontos de vista que melhor retratam o contexto globalizante. Pelo conhecimento, o estigma cede lugar ao entendimento sobre melhorias possíveis na relação entre pessoa e ambiente construído. Outra consideração possível sobre confrontação entre lógica linear e lógica holística é considerarmos que nossa vida é regrada por leis enquanto valorização cultural do bem comum. Segundo uma lógica linear, enquanto não houver uma lei, nada poderá ser feito, aceito e respeitado por todos como um referencial de valor, de moral, de integridade. Porém, no momento em que essa lei é implantada, fica a questão sobre a dimensão holística de sua prática no cotidiano: no ponto limítrofe em que as pessoas perdem a convicção na base de justiça impressa e imposta por lei. Ou ainda, até o ponto em que as pessoas procuram evitar que seu rigor seja implacável e por isso injusto para certos casos que podem representar até mesmo onde a lei deva evoluir mais A reformulação de comportamentos numa abordagem inclusiva não deve estar presa apenas à legislação, e sim aos valores que justificam essa legislação. As leis são reflexos dos nossos valores. As leis não são exclusivamente criadas como instrumentos de opressão para a conformidade. Alguns estudos defendem (Nisbett, 2003) que a civilização ocidental rejeita o lado multidimensional da vida, enquanto que a civilização oriental trabalha com essa ideia de uma maneira muito mais fácil. Esses estudos sugerem, contudo, que a tendência mundial é a fusão entre as práticas culturais do ocidente e oriente. Sem buscar a distinção dos extremos de valor de uma coisa em detrimento da outra (que é um pensamento segundo a lógica linear), devemos nos conscientizar de que a discussão sobre práticas inclusivas do design universal depende de refletirmos sobre meios de priorizar o pensamento holístico como valor cultural.

97 97 Em outras palavras, devemos nos esforçar em retirar a preponderância do pensamento linear e colocá-lo num plano secundário à visão multidimensional. Isso nos chama a atenção para o fenômeno cíclico de transformação da natureza, da história e da vida como a conhecemos. As pessoas, de uma maneira geral, consideram suas vidas como sendo progressões de eventos ao longo de uma linha. Consideram-na uma linha em ascendência, desde a infância (sendo que muita gente entra em desespero quando contempla que essa linha começa a descer). Isso é uma visão angustiante para nossa permanência neste mundo e também é uma visão equivocada dentro de um ponto de vista holístico. Essa percepção acerca dos ciclos é muito valorizada no pensamento oriental. O aspecto cíclico da vida se manifesta com o renascer em cada dia fato que, muitas vezes, desconsideramos por vivemos absortos em nossa mente. A cada dia, tudo se renova. A cada dia, o sol volta para nos dar sua força, as marés vêm e vão, sobem e descem. Devemos ainda nos lembrar dos ciclos das estações do ano, que, por milhares de anos, serviram como marco cultural de diferentes povos com a relação entre passado, presente e futuro, o terreno, o sagrado e o divino. A vida também é cíclica; e assim é em cada um de nossos estágios de desenvolvimento pessoal. A plenitude da vida é de fato alcançada quando conseguimos passar de um estágio para outro por meio de nossas múltiplas maturidades, sem rótulos ou tipologias de vida. A imagem que melhor se adapta a esse conceito holístico de encarar a vida humana é, então, mais complexa e completa do que o transcorrer do caminho por uma simples linha. De certa forma, o nosso tipo de comprometimento com a sociedade inclusiva também deve ser considerado cíclico. Cíclico no sentido de restaurarmos aquilo que foi deixado para trás como algo novo e transformado e não simplesmente dizermos que algo se preserva porque não se altera (a não alteração como sentido até de estagnação), ou que algo se perdeu porque já não pode ser identificado e interpretado em sua forma primária, original, imutável. Em cada momento de nossas vidas, estamos convivendo com a morte. O conceito de morte dentro de uma visão holística significa o abandonar de um estágio quando estamos preparados para enfrentar outro. A morte, então, não é o fim, mas a preparação para outro estágio que a gente pouco conhece. Ao começarmos a pensar dessa maneira, podemos ver muito mais nosso papel social e político, um papel de não estar presos à nossa existência em si mesma, mas inclusive à existência das gerações que virão. Sob esse ponto de vista cíclico, pensar em design universal, no contexto inclusivo, é um desafio muito mais denso e significativo.

98 98 6. A ABORDAGEM HOLÍSTICA PARA O DESIGN UNIVERSAL EM PRÁTICAS INCLUSIVAS O holismo é a relação do universo em que um todo envolve outros todos e ainda assim é envolvido por outros todos. Num pensamento linear, a ênfase de qualquer compreensão se prende na análise, na quebra de um todo em suas partes constituintes. Ao entendermos cada parte e como se relacionam umas com as outras, podemos efetuar um processo de síntese; isto é, de reconstrução do todo ou até mesmo de todos diferentes do original, construído por partes cujas relações sejam fortes o suficiente para assumir novas formas. Com o holismo, a quebra analítica não existe, como não existe uma parte vazia, desconfigurada de sua identidade, uma vez separada de seu contexto. Assim, ao invés de partes, o universo holístico é composto de hólons organizados em estruturas holárquicas que são esferas abrangentes, nas quais um todo transcende, mas inclui outro todo do qual se mantém, tal como ocorrem as cores do arco-íris (WILBER, 2004). Em uma holarquia, a importância entre as relações horizontal e vertical dos hólons ocorre conforme o contexto, o intuito e a atenção de quem os contempla. Num exemplo de estrutura holárquica, apresentado por Wilber, podemos nos referir à composição da matéria orgânica que é essencialmente holística. Num hólons mais primordial, que se manifesta em todos os outros todos está a luz, a qual é, ao mesmo tempo, indiscriminadamente, onda ou partícula, etérea ou concreta. Outros hólons podem ser identificados numa sequência arbitrária, cuja importância depende do contexto: o átomo, a molécula, o genes, a célula, o organismo... Podemos visualizar elipses que se expandem (figura 1), umas dentro das outras; em que cada uma é um todo, e cada todo se mantém envolvendo outros todos. onda energia partícula átomo molécula genes célula organismo Figura 1 - Exemplo da estrutura holárquica da matéria orgânica

99 99 Podemos considerar, segundo Wilber, que estruturas são padrões estáveis de eventos, e que numa estrutura de holarquia os padrões holísticos podem ser variáveis, dependendo da perspectiva do sujeito que a estuda. Assim, ousemos fazer uma representação metafórica de uma dimensão holística em uma configuração de ondas em elipses, considerando que uma elipse é um círculo contemplado numa perspectiva lateral. Transpondo essa ideia para aplicações do design universal, podemos examinar, a seguir, interrelações entre cinco diferentes dimensões cujas naturezas holísticas podem se interagir. Sempre com todos envolvendo outros todos, nos permitindo uma visão mais ampla, para a composição da sociedade inclusiva: holarquias no contexto da ordem lógica; holarquias no contexto de identidade pessoal pelos vínculos sociais; holarquias no contexto da ação sobre o espaço ambiental; holarquias no contexto do poder do indivíduo no meio em que atua; holarquias no contexto da prática do design inclusivo. Representando as estruturas e dimensões holárquicas citadas por meio de uma tabela simples, e considerando-as em níveis de profundidade aproximada, podemos vislumbrar a seguinte configuração em paralelo. Tal paralelismo é contextual e existe aqui para vislumbrarmos com maior clareza a relação holística entre design universal, acessibilidade e as exigências de normas técnicas. Tabela 1 Relações entre holarquias para a consolidação da sociedade inclusiva conceito, ideia, impulso fato ou expressão mecanismo modelo rede sistema corpo, mente, espírito indivíduo tribo família comunidade população autonomia, independência, espontaneidade privacidade acessibilidade liberdade solidariedade iguais oportunidades espaço cognitivo psíquico espaço pessoal espaço funcional espaço cultural espaço social espaço edificado tecnologia assistiva, exclusiva design adaptado design adaptável design em normas técnicas design adequado design universal

100 100 Devemos visualizar essa tabela como um todo holístico (no qual as relações entre os todos representados são multidimensionais). Eis, abaixo, um modo de interpretação: No contexto da ordem lógica, a base primordial de uma holarquia pode ser representada por nossas idéias, por nossos impulsos para fazer algo. O conceito, ideia ou impulso, é como uma energia sem forma que precisa ser moldada pela relação com o contexto exterior (fato ou expressão) e que, por meio do mecanismo, modelo e rede de interconexões com outros conceitos, ideias e impulsos que o antecederam, pode dar sentido ao sistema como um todo. Não poderíamos lidar com a compreensão de um novo sistema se, de fato, não estivéssemos nos familiarizando com um novo conceito. O conceito (que é um todo) se consolida nas mentes como outro todo, enquanto fato ou expressão, que torna a ideia, plausível, e a experiência, compartilhada. Em outra elipse, há o todo definido como mecanismo pelo qual podemos reconhecer tanto a ideia quanto o fato, tomando a dimensão necessária à aplicação operacional em procedimentos. Mecanismos, por sua vez embasam modelos. Os modelos se expandem por meio de redes. Cada rede é por sua própria natureza, outro todo. Quando redes se entrelaçam ao ponto de se justificarem, umas às outras, temos aí o sistema. A holarquia no contexto de identidade pelos vínculos sociais nos revela que uma população não é um amontoado de pessoas, mas um sistema no qual um indivíduo encontra referências de si mesmo. O indivíduo é constituído pelo hólon primordial e indissociável entre corpo, mente e espírito. Cada indivíduo se reflete nas imagens de outros indivíduos afinados com sua identidade própria que forma sua tribo. Cada indivíduo dá força e suporte família, que é um hólons transcendente que define o conceito de lugar. Indivíduos em harmonia reforçam tribos e famílias em paz, que atuam em conjunto com outros hólons, com os quais convivem em comunidade. A população é, por sua vez, um hólons de expansão das comunidades, que se apoiam mutuamente nos contextos locais, regionais e de nação. Vejamos agora como são as coisas na dimensão do indivíduo. Esse é um indivíduo que, ao mesmo tempo, é corpo, mente e espírito, além de ser a base da população. Não podemos pensar em soluções para a população se essas irão desrespeitar o indivíduo. Não podemos pensar em soluções que desrespeitem a relação do indivíduo com sua família. Devemos manter em mente que aqui estamos lidando com um todo dentro do todo indivíduo dentro da sociedade. Na holarquia do contexto da ação sobre o espaço ambiental, a acessibilidade é uma dimensão que surge uma vez satisfeitas autonomia, independência e espontaneidade, que são hólons primordiais indissociáveis, os quais, por sua vez, dão a um indivíduo o controle da

101 101 privacidade. Sem acessibilidade não há liberdade. A liberdade de um indivíduo se restringe ao reconhecimento da liberdade de seu vizinho, senão se transforma em opressão. À liberdade compartilhada chamamos de solidariedade, que resulta, por sua vez, em iguais oportunidades para todos. Todas essas imagens nos fazem refletir sobre o poder que temos dentro de nós mesmos. Trata-se do poder que está no respeito de cada um. Não podemos conceber a ideia de liberdade sem que essa esteja dentro da esfera da solidariedade. Não podemos ser falsos a ponto de pensar em solidariedade se nem ao menos respeitamos a privacidade. Da mesma forma, não podemos conversar sobre oportunidades iguais se noções de autonomia, independência e consistência não estão presentes. Partindo dessas noções, podemos discutir mais aprofundadamente a respeito de uma linha de raciocínio que enfoca sobre o que deve ser a acessibilidade. É a acessibilidade que está acima da autonomia e da independência, mas que tem como objetivo a noção de oportunidades iguais. Talvez, aqui, já estejamos discutindo sociedade inclusiva. Falemos um pouco sobre a questão do espaço. Como é que podemos nos utilizar dele? Não é simplesmente fazendo alterações parciais num espaço edificado ou mesmo propondo novas maneiras de lidar com o social. Essas coisas de nada adiantam se, no fundo, as pessoas não têm contemplado seu espaço pessoal, seu espaço funcional. Não estou me referindo à acessibilidade para pessoas específicas, mas para a população. O espaço construído de países, cidades, edifícios e objetos é um amplo sistema que deve ser concebido com base no design universal, no qual a acessibilidade é um espaço funcional, simplesmente. A liberdade equivale ao maior valor de uma cultura. O espaço social se distingue por solidariedade e preserva o design adequado para uso da comunidade. O design adaptado se restringe às especificidades do indivíduo para funcionar bem, como expressão de seu espaço pessoal. Ao juntarmos todos esses aspectos, chegamos à última dimensão, que é a questão do design universal. Esse tipo de design somente se justifica quando a gente olha em perspectiva múltipla e, assim fazendo, conseguimos ver que precisávamos ter passado pelos erros (ou pelas falhas do que entendemos ser design adaptado) para conseguirmos chegar a um design que sirva a todos. A tecnologia assistiva é uma maneira pessoal e privativa de ver as coisas, assim como podemos pensar em um design exclusivo aquele tipo de design que nos leva às lojas para comprar determinado produto ou artefato. Muitas são as pessoas que buscam pelo design exclusivo, mas são poucas aquelas que estão abertas para um design inclusivo.

102 102 Sete princípios do design universal (Story, 2000) foram publicados pelo Center for Universal Design, nos EUA. São os seguintes: (1) uso equiparável; (2) flexibilidade no uso; (3) uso simples e intuitivo; (4) informação perceptível; (5) tolerância ao erro; (6) pouco esforço físico; (7) tamanho e espaço por aproximação e uso. O sucesso desses princípios em todo o mundo se deve à busca de consenso entre experts para respeitarem pontos comuns em campos do conhecimento sobre as habilidades dos usuários em relação ao meio edificado e ao contexto da atividade. Tais princípios se tornaram consenso porque envolvem o processo histórico de aprimoramento da acessibilidade a ser construída para todos. Se nos detivermos aos princípios (6) e (7), veremos que se relacionam diretamente com procedimentos operacionais dentro de um certo espaço a questão da mobilidade propriamente dita, sendo que essa foi a base conceitual das primeiras normas técnicas americanas. Os princípios (3) e (4) já entram em um outro plano, que é o cognitivo: em que assimilamos e processamos as informações. O princípio (5) lida com variações em função da diversidade do perfil dos usuários ao lidar tanto com os princípios (6) e (7), por um lado, quanto com os princípios (3) e (4), por outro. Os princípios (1) e (2) são fundamentais e globalizantes, pois tratam da questão da equiparação. Essa é aquela questão que pensa a inclusão como sendo uma oportunidade a ser dada para que cada um possa agir da melhor maneira possível. Se juntarmos tudo isso, iremos ver, dentro da noção holística, que esses planos se interagem. Considerando que isso acontece de fato, podemos olhar para todos esses hólons de uma maneira mais organizada. Por exemplo, podemos estabelecer formas de relação entre o design universal como um sistema. Feito isso, podemos pensar que um trabalho, baseado nas normas técnicas de acessibilidade somente forma uma situação que desconsidera o contexto. E, se o contexto é desconsiderado, o máximo que essas normas podem oferecer é um modelo, por certo uma representação distante da realidade. É preciso ver na prática como as coisas funcionam. Podemos pensar, então, que as oportunidades de fato serão iguais somente quando tivermos um espaço universal edificado. Do contrário, não estaremos lidando com a busca dessa igualdade de oportunidades. 7. CONCLUSÃO Design Universal como design permanente de boa qualidade Uma interpretação linear sobre design universal pode ater-se à definição de soluções inovadoras, que possam ser incorporadas por lei ao nosso dia-a-dia, isoladamente. Por elas, aumentamos nosso conhecimento sobre normas técnicas e ampliamos as oportunidades para

103 103 as pessoas. Isso pressupõe que algo possa ser criado ou adicionado lentamente à ordem do dia, substituindo as soluções convencionais já existentes por algo progressivamente melhor. A saída de lógica holística para esse impasse do pensamento linear é assegurar a aplicações do design universal as experiências cíclicas e contextuais das práticas inclusivas, pois o design universal resultará do processo de aprimoramento nas definições dos problemas em cada contexto para prover meios de crescimento das habilidades intrínsecas dos usuários. Antes de colocarmos os princípios do design em prática, devemos primeiramente entendê-los em sua essência. O fato de que esses princípios possam ser contemplados de uma maneira linear não implica que as relações entre eles também devam ser interpretadas dessa maneira. Devemos percebê-los interagindo de forma circular, holística e global. Isso significa que, embora cada um deles tenha sua própria essência, esses princípios somente se manifestam quando têm um vínculo de envolvimento e transcendência, uns com todos os outros. Não devemos, portanto, aplicar rótulos ou discriminação positiva e compensatória para resolver problemas da acessibilidade. Devemos buscar um desenvolvimento cada vez maior e aprofundado do conhecimento holístico para que as soluções possam ser aprimoradas verdadeiramente para todos. REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (2004). NBR 9050 Acessibilidade a Edificações, Mobiliário, Espaços e Equipamentos Urbanos. In >> visitado em 27/06/2007. MACE, R. (1985), Universal Design, Barrier-free Environments for Everyone. Los Angeles, CA: Designers West. NISBETT, R. (2004). The Geography of Thought: How Asians and Westerners Think Differently and Why. New York: Freepress. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA DO BRASIL. Decreto Federal 5296, 02 de dezembro de Publicado no D.O.U, nº 232, sexta-feira, de 03 de dezembro de In >> visitado em 27/06/2007. STEINFELD, E. (1994). Arquitetura Através do Desenho Universal. Simpósio Internacional de Acessibilidade ao Meio Físico SIAMF/Rio - Anais. Brasília: CORDE.

104 104 STORY, M. (2000), Principles of Universal Design. In Universal Design Handbook, edited by E. Ostroff and W. Preiser. New York: McGraw-Hill WILBER, K. (2004) Psicologia Integral: Consciência, Espírito, Psicologia, Terapia. N.R. Eichemberg (trad.). Série Psicologia, Nova Consciência. São Paulo: Editora Pensamento- Cultrix.

105 105 Tecnologias para Reabilitação Marcos Pinotti 1 Danilo Alves Pinto Nagem 2 Claysson Bruno Santos Vimieiro 3 Breno Gontijo do Nascimento 4 Daniel Neves Rocha 5 Kátia Vanessa Pinto Menezes 6 A primeira dificuldade em definir a atuação de um engenheiro nesta área é especificar o nome para tal ação. Muitos a definem como Engenharia de Reabilitação. A área de atuação também pode ser definida como Tecnologia Assistiva ou Ajuda Técnica. A definição ou os nomes empregados podem não significar muito para os usuários, que necessitam de equipamentos, dispositivos ou sistemas para realizar suas tarefas cotidianas de alimentação, higiene pessoal, deslocamento ou lazer. Por outro lado, para quem trabalha no desenvolvimento dessas tecnologias e/ou as vem aplicando, pode ser importante defini-las por área de atuação quando esta atividade for financiada pela sociedade. Como em qualquer país, não há recursos suficientes para prover todos os pacientes com as últimas inovações tecnológicas, em geral muito caras, realiza-se uma priorização das necessidades tratadas como essenciais. Nesse contexto, países com estrutura arquitetônica e historicamente mais sensíveis aos indivíduos com limitações sensoriais ou de movimento têm uma definição mais abrangente de necessidades consideradas essenciais do que a de outros países, especialmente aqueles que não dispõem de recursos para contemplar tais necessidades. No caso de nosso país, há um componente muito positivo. Ações de conscientização e de estudo sobre o tema, como é o caso da Sociedade Inclusiva, expõem à sociedade esses problemas, as limitações e as desigualdades que surgem das deficiências sensoriais e motoras. Como consequência, surge uma justa pressão para que se ampliem as definições das 1 Doutor, Professor do Departamento de Engenharia Mecânica da UFMG 2 Mestre em Engenharia Mecânica, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFMG 3 Doutor em Engenharia Mecânica pela UFMG 4 Mestre em Engenharia Mecânica, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFMG 5 Mestre em Engenharia Mecânica, aluno de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Mecânica da UFMG 6 Doutora em Engenharia Mecânica pela UFMG

106 106 necessidades consideradas essenciais. Muitas vezes, o atendimento desses anseios esbarra na falta de recursos (a tecnologia existe, mas a um alto custo) ou na inexistência da tecnologia adequada à demanda. Existem tecnologias de alto custo (causado por características intrínsecas ou pelos royalties envolvidos), tecnologias difíceis de ser implementadas e as tecnologias não desenvolvidas ou adaptadas ainda. Para se entender o custo envolvido em seu desenvolvimento e aplicação, pode-se dividi-lo em diversos componentes custo de desenvolvimento, custo de propriedade intelectual, custo de obtenção e custo de aplicação da tecnologia. O custo de desenvolvimento relaciona-se a todo, o recurso investido na concepção e testes de conceito da tecnologia, sendo geralmente coberto por órgãos de fomento público ou por pesquisas financiadas pela indústria. Esse custo tenderá a ser alto se envolver o desenvolvimento de todo o arcabouço tecnológico; poderá ser baixo se envolver apenas o incremento de uma tecnologia existente ou adaptação de uma tecnologia utilizada em outra área. O custo de propriedade refere-se à proteção da propriedade industrial/intelectual e ao licenciamento da tecnologia. Uma vez que o valor de uma tecnologia se acha intimamente ligado a sua capacidade de inovação e às barreiras impostas aos concorrentes, o custo de propriedade será alto para os países que não são capazes de produzir inovação, pois terão de adquiri-la a preço de mercado. Quando há inovação tecnológica no próprio país, os custos de propriedade de produtos estrangeiros tendem a ser mais baixos, pois a concorrência faz com que se atinja o equilíbrio entre a remuneração do conhecimento e a inibição da concorrência. O custo de obtenção mostra-se relacionado com as dificuldades de se obter o produto ou dispositivo (processo de fabricação especializado) ou a matéria-prima (material de alto custo agregado). Esse custo será alto se os produtos ou componentes forem importados de países com mão-de-obra mais cara, se utilizarem matéria-prima de alto valor agregado ou se for muito específica, tendendo a ser mais baixo nas situações opostas ou se a produção se der no próprio país. O custo de aplicação refere-se à dificuldade de difusão da tecnologia, por exigências de serviço especializado com distribuição, treinamento, divulgação e manutenção. Também influencia no custo a eventual necessidade de procedimentos adicionais de treinamento especializado e seguro, quando a aplicação inábil da tecnologia possa representar risco à saúde. Portanto, o esforço para a inovação, ou seja, a geração de tecnologia nacional, permite, a um só tempo, a ampliação da possibilidade de atendimento e a redução dos custos.

107 107 Deve-se ter em mente que alta tecnologia não significa alto custo. No Brasil, as ações de inovação, apesar de terem a necessária componente de recuperação do investimento, podem e devem ser implementadas para atender à imensa demanda reprimida. Uma vez que tais tecnologias são necessárias por todo o país, essa característica favorece o empreendedorismo regional, com duplo benefício: geração de emprego e renda, e atendimento à demanda social. Nesse contexto, devem ser incentivadas e apoiadas as ações de fomento à geração de tecnologias que contribuam para melhorar a qualidade de vida das pessoas e sua difusão por todo o país, atraindo interesse de pequenos e médios empreendedores. É nesse panorama que o Laboratório de Bioengenharia da UFMG atua, desde 1999, no desenvolvimento de tecnologias para a área de saúde. Entre as ações realizadas, uma importante parcela se volta para a Engenharia de Reabilitação. Neste capítulo, pretende-se mostrar algumas dessas tecnologias. 1. TECNOLOGIA DOS MÚSCULOS ARTIFICIAIS PNEUMÁTICOS Músculos são estruturas contráteis que, ao serem acionadas, aproximam sua origem à inserção muscular. Em engenharia, a função do músculo é classificada como a de um atuador linear. Diversos mecanismos podem ser utilizados como atuadores lineares e, consequentemente, como músculos artificiais. Destes, um dos mais engenhosos é o músculo artificial pneumático, descrito pela primeira vez por Gaylord (1958). Seu princípio de funcionamento baseia-se no fato de que uma estrutura elástica em forma tubular aumenta seu volume ao ser pressurizada e, como consequência, encurta seu comprimento. A ação de encurtar-se faz com que surja, nesse tubo flexível e elástico, uma força que aproxima suas extremidades. Essa força de contração depende da pressão imposta ao interior do tubo. Para evitar que a estrutura se expanda até o rompimento de suas paredes, o tubo elástico é envolvido por uma malha semielástica que limita o aumento de volume. É possível obter combinações de tubo elástico, malha externa e pressões de alimentação de forma que, ao ser acionado, o dispositivo resultante exiba percentual de redução de comprimento e força de contração compatíveis com um músculo esquelético. Tais combinações são conhecidas como músculos artificiais pneumáticos. A Figura 1 mostra o esquema de funcionamento de um músculo artificial pneumático. A literatura apresenta diferentes versões de músculos pneumáticos, alguns deles disponíveis comercialmente. A grande limitação desses músculos é o seu custo e a pressão necessária para

108 108 iniciar sua operação. Para iniciar o movimento, a maioria dos músculos pneumáticos artificiais necessita de pressões de 2 a 3 kgf/cm². Tais características não são compatíveis com o projeto de uma órtese de quadril atuada por esses músculos, pois o movimento pode ocorrer a pressões mais baixas. Decidiu-se, então, desenvolver uma versão de músculo pneumático que fosse leve e operasse em níveis mais baixos de pressão, porém, que fosse capaz de mimetizar a função dos músculos em órteses de membros inferiores. Figura 1 Esquema de funcionamento de um músculo artificial pneumático. A ação da pressurização do músculo pneumático faz com que haja aumento do seu diâmetro, com consequente encurtamento e geração de força de contração. Fonte: Nagem, As Figuras 2, 3 e 4 mostram a concepção da montagem (Nagem et al., 2002), a aparência final e as curvas de operação de uma das versões do músculo pneumático desenvolvido no Laboratório de Bioengenharia da UFMG.

109 109 Figura 2 Detalhe da montagem de uma extremidade do músculo pneumático. A combinação de materiais e a concepção de montagem permitiram diminuir a pressão de operação, tornando o músculo adequado para uso em órteses de membros inferiores. Fonte: Nagem, Figura 3 Vista do músculo artificial pneumático da UFMG. Fonte: Nagem, Figura 4 Curvas de operação do músculo pneumático de 280mm de comprimento e 17mm de diâmetro em diferentes cargas. Fonte: Nagem, ÓRTESE DE QUADRIL COM MÚSCULOS ARTIFICIAIS PNEUMÁTICOS

110 110 Uma vez desenvolvido o músculo pneumático, foi possível vislumbrar o próximo passo: realizar um movimento articular como consequência do acionamento do músculo artificial. Decidiu-se por aplicar o músculo pneumático a uma órtese para realizar o movimento de flexão do quadril. O desafio era projetar um músculo apto a realizar o movimento, sobrevivendo a milhares de ciclos de operação, dotado de um sistema de ar comprimido, portátil, acionado por controle voluntário do usuário. Os requisitos do projeto foram estabelecidos ao se escolher um caso clínico bem definido: prover uma órtese de quadril para uma paciente com histórico de poliomielite. A execução desse projeto fez emergir uma série de novos desafios que permitiram produzir muitos avanços na área de dispositivos para controle voluntário de órteses (Nascimento, 2005), na área de modelagem biomecânica da marcha em situações diferentes daquelas consideradas fisiológicas (Vimieiro, 2004) e no desenvolvimento de músculos pneumáticos mais eficientes. O trabalho de uma equipe multidisciplinar, composta por engenheiros de diferentes especialidades (mecânicos, eletrônicos e mecatrônicos) e fisioterapeutas, foi fundamental para o sucesso do projeto. A Figura 5 mostra a voluntária desse estudo, portando o que foi chamado de exoesqueleto (Nascimento, 2005). Devido à severidade das sequelas da poliomielite, não foi possível utilizar o acionamento por sinais mioelétricos. Nessa órtese, foi empregado um sensor de intenção de movimento que era sensível à variação angular da articulação do quadril. Ao captar o movimento, acionava o músculo artificial para realizar a flexão do quadril. Figura 5 Paciente com a órtese de quadril durante teste de marcha no Laboratório de Análise de Movimento da UFMG. Fonte: Nascimento, 2005

111 111 A Figura 6 mostra a variação do ângulo da articulação do quadril (no qual o sensor de intenção de movimento estava instalado), em função da posição dos membros inferiores e da configuração assumida pela órtese durante o teste de marcha. É importante notar que a posição ortostática apresenta 35º de flexão, devido às sequelas da poliomielite. Essa figura foi muito inspiradora e precipitou a decisão de não avançar com os testes clínicos até que fosse organizado um modelo biomecânico de menor gasto energético em função do ângulo de flexão do quadril em posições ortostáticas. Tais configurações refletem a realidade clínica e de posse desses resultados, se podem gerar elementos confiáveis para a produção de órteses mais eficientes e que respeitam as limitações de movimento decorrentes das lesões. Esses estudos estão em andamento. FIGURA 6 - Comportamento da articulação do quadril da paciente considerando posição ortostática já apresentando 35 o de flexão. Fonte: Nascimento, ÓRTESE FUNCIONAL DE MÃO Órtese de mão é um dispositivo externo aplicado ou unido à mão e ao pulso para melhorar a sua função, controlando o movimento, fornecendo a sustentação para objetos, corrigindo e impedindo deformidades. Em contraste com órteses funcionais descritas na literatura que se apresentam pesadas, não têm boa estética e, muitas vezes, necessitam do movimento do punho para ser ativadas, desenvolveu-se na UFMG uma órtese funcional capaz de permitir à mão a realização de preensão, independentemente do movimento do punho. Utilizou-se um atuador eletromecânico e tendões artificiais aplicados em uma luva especialmente modificada, com controle voluntário, realizado por meio de sinais mioelétricos.

112 113 ( a ) ( b ) Figura 8 Acionamento da órtese utilizando sinais mioelétricos do bíceps: (a) Ausência de contração muscular; (b) Acionamento da órtese pela contração do bíceps. Fonte: Menezes, Os testes clínicos já foram autorizados e se encontram em andamento. 4. TELEFONE ACESSÍVEL Telefones públicos geralmente são instalados a uma altura padronizada (1,70m), apropriada para uma pessoa adulta de estatura mediana poder manuseá-lo em pé, confortavelmente. É possível encontrar telefones públicos instalados em uma posição mais baixa (1,20m). A Lei nº 2.062, de 17 de junho de 2001, Artigo 2º, dispõe que: Ao menos uma das caixas de Correio e Telefones Públicos, quando houver, deverá ser instalada no máximo a 1,20 metros de altura do piso. A exigência de um telefone em altura diferenciada ao lado dos demais, de altura padronizada, torna dispendiosa a instalação, pois eleva o número de aparelhos num mesmo local. Tendo em vista esse problema e com o propósito de reduzir custos, foi desenvolvido um sistema de regulagem de altura para telefones públicos (Simões et al., 2003). Testes preliminares do telefone acessível demonstraram sua utilidade e durabilidade. O princípio de funcionamento baseia-se na instalação do aparelho telefônico em um sistema de contrapeso, com movimento impedido por meio de uma trava. Essa trava, de fácil acionamento, permite que se libere o movimento do contrapeso, fazendo com que o telefone seja erguido ou abaixado com grande facilidade. Dessa forma, não há necessidade de se instalarem telefones públicos a alturas diferentes. O dispositivo, denominado telefone acessível, cumpre a tarefa de permitir o acesso a qualquer usuário. A Figura 9 mostra um estudo ergonômico do telefone acessível.

113 114 Figura 9 Estudo ergonômico do telefone acessível. A instalação deste dispositivo torna o telefone público acessível a qualquer usuário. 5. COMENTÁRIOS FINAIS O conhecimento científico e o seu método são as bases da tecnologia. Países que são capazes de transformar conhecimento científico em tecnologia têm mais condições de sustentar seu desenvolvimento. Qualquer tecnologia é efêmera sem aplicação. O papel primordial de um engenheiro consiste em ser o elemento de ligação entre o conhecimento científico e a tecnologia e entre tecnologia e sua aplicação. Alta tecnologia não significa, necessariamente, alto custo. Por outro lado, a aplicação de determinada tecnologia acha-se intrinsecamente ligada à sua viabilidade econômica. Dessa forma, o sucesso da aplicação de determinada tecnologia na reabilitação ou no auxílio de pessoas com deficiência será atingido quando precedido de trabalho na transformação de conhecimento científico em tecnologia, no trabalho de tornar essa tecnologia viável economicamente e no trabalho de empreendedores para tornar a tecnologia disponível a um custo razoável. Muitos desafios devem ser vencidos e muitos deles se apresentam como intransponíveis. No entanto, a mensagem deste capítulo é que se atingirá o sucesso ao se acreditar que nada resiste ao trabalho. AGRADECIMENTOS A dedicação e o talento da equipe do Laboratório de Bioengenharia tiveram suporte no fundamental apoio financeiro (recursos e bolsas) da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq), da Coordenadoria de Apoio ao Pessoal de Ensino Superior (CAPES) e do Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas e Médias Empresas (SEBRAE).

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