O USO DE NÓS E A GENTE, EM FUNÇÃO DE SUJEITO, NA COMUNIDADE RURAL DE PIABAS

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1 O USO DE NÓS E A GENTE, EM FUNÇÃO DE SUJEITO, NA COMUNIDADE RURAL DE PIABAS Adilma Sampaio 1 Lucélia Lima Lopes RESUMO Os objetivos deste artigo consistem na observação da variação, no português brasileiro, dos pronomes de primeira pessoa, nós e a gente, em posição de sujeito, identificando tanto os fatores sociais, quanto os ambientes linguísticos que os condicionam na fala da comunidade rural de Anselino da Fonseca (Piabas). Foram usados como princípios metodológicos a Sociolinguística Laboviana, cujos resultados culminaram na constatação de uma variação linguística, com mudança em curso, da forma tradicional nós para a inovadora a gente. Dentre os fatores extralinguísticos, considerou-se irrelevante o quesito gênero, já que nessa comunidade não houve diferenças sensíveis abstraídas na coleta de dados. Por outro lado, o fator idade se fez influente na pesquisa, pois o contraste de realização entre os falantes de nível 1 e nível 3 é notável, havendo uma tendência entre os jovens para o uso de a gente e entre os idosos prevalece o uso de nós. Quanto aos fatores linguísticos observados, é perceptível uma transformação diacrônica do uso de nós para a gente. PALAVRAS-CHAVE: A gente; Nós; Variação ABSTRACT The objectives of this paper are the observation of changes in Brazilian Portuguese, the first-person pronouns, nós and a gente in position of subject, identifying both the social factors, as the environments that affect language spoken in the rural community of the Anselin Fonseca (Piabas). Were used as the methodological principles Sociolinguistics Laboviana, whose results led to the finding of a linguistic change, with change in course, the traditional way nós for to the innovative way. Among the extralinguistic factors, it is irrelevant the gender question, since this community was not oblivious differences in data collection. Moreover, the age factor was influential in the research, because the contrast between the speakers to achieve level 1 and level 3 is remarkable, there is a trend among young people for the use of a gente prevails among the elderly and the use of nós. As for linguistic factors observed, is a noticeable transformation of the diachronic use of nós for a gente. KEYWORDS: People; We; Variation. INTRODUÇÃO Piabas é um pequeno povoado que faz parte da zona rural de Anselino da Fonseca ou Caem, antigo povoado de Jacobina. Fundada em fins do século XIX, Caem está localizada no sertão baiano (zona do semi-árido), no Piemonte da Chapada Diamantina, a 336 km de Salvador. Trata-se de uma região cuja migração de homens em idade ativa é intensa, nos períodos de seca, permanecendo na comunidade, basicamente crianças, mulheres e velhos. 1 Pós-graduandas em Estudos Linguísticos, na Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS.

2 Neste artigo, foram confrontadas as falas das diferentes gerações e gêneros dessa comunidade, em busca da identificação de fatores linguísticos que tendem a favorecer ou desfavorecer o uso da variante a gente, diagnosticando os motivos da alternância da variável dependente nós e a gente. A partir de uma visão de que toda língua é passível a mudanças, procuramos verificar como os falantes da comunidade de Piabas se comportam diante do uso dos pronomes nós e a gente, a fim de perceber se o pronome nós está perdendo lugar para o uso inovador a gente. REFERENCIAL TEÓRICO A língua é um instrumento de comunicação oral imprescindível na interação entre os falantes de uma mesma comunidade, pois proporciona a convivência social, sendo, portanto, um bem comum a todos. Considerando-se que cada grupo de pessoas compartilha traços linguísticos que lhes são peculiares e os distingue dos demais grupos de falantes, ao longo dos anos, surgem diversas variantes influenciadas tanto por aspectos linguísticos, quanto pelo contexto no qual os falantes estão inseridos. Como afirma Tarallo (1986, p.8), [...] variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade [...]. Portanto, não se pode afirmar que uma variante é melhor ou mais importante do que outra. Assim, muitos pesquisadores se propuseram a estudar os processos de mudança ocorridos no português brasileiro (PB), baseados em fatores históricos que marcam diferentes contatos linguísticos, políticos e sociais. Dessa forma, torna-se clara a definição de língua heterogênea, plural e polarizada, segundo definições de Mattos e Silva (1999) já que se consideram diferentes épocas e diferentes povos que mantiveram contatos linguísticos com os nativos. Em vários períodos da colonização, tivemos a imigração de povos com diversas culturas, línguas e costumes, o que refletiu nas inúmeras variedades linguísticas da atualidade. Logo, parece imaturo afirmar que os falantes de todo o Brasil realizam-se a partir de uma única forma linguistica: a língua portuguesa. Segundo Cunha e Cintra (1985) é impossível [...] querermos manter a quimera de uma norma purista no conturbado e interligado mundo que nos tocou viver. Dessa forma, as variações que ocorrem nas línguas são resultados de uma constante mudança intrínseca no próprio código linguístico, provenientes da

3 multiplicidade de falantes envolvidos no processo de comunicação; o que explica a complexidade existente na relidade sociolinguística do Brasil. O estudo da variante a gente tem-se realizado em diversas comunidades do Brasil, tanto na fala culta, quanto na fala rural ou até mesmo popular. Todas essas análises visam à constatação ou não de uma mudança linguística, que marca, na oralidade, um crescente uso da expressão a gente, na referência ao sujeito, em consonância a uma diminuição no uso de nós. Pressupõe-se que o substantivo gente, devido à sua semelhança semântica, tenha se integrado ao sistema pronominal competindo com nós. Segundo Monteiro (1994, p. 146), a re-estruturação do paradigma pronominal no PB pode ser proveniente de uma possível redução do sistema de conjugação verbal; sendo que algumas mudanças se fazem completas, a exemplo da extinção de vós em contraponto ao você(s); e outras ainda estão em fase de desenvolvimento, como é o caso de a gente, em vez de nós, referindo-se à primeira pessoa do plural. Omena (1986) revela em seus estudos que a escolaridade é um fator externo muito influente no processo de mudança pelo qual o quadro de pronomes do PB está passando; e constata, também, que a variável idade aponta para uma predominância da ocorrência de a gente entre os jovens. Quanto ao fator sexo, os dados aparecem concomitantes em ambos os sexos. Considerando os dados dos estudos de Omena (1986), apresentaremos os resultados da nossa pesquisa, a fim de estabelecer relações com os mesmos. METODOLOGIA Com base na metodologia da Teoria da Variação Linguística, o presente artigo utilizou a amostra constituída por doze inquéritos gravados na região rural de Anselino da Fonseca (Piabas), entre final de 1994 e meados de 1996, feitos no comércio, como denominam os moradores de lá, e nos arredores, tais como Peral e fazendas próximas. Inicialmente, foi feito o levantamento de todas as ocorrências do uso de nós e a gente, em posição de sujeito, referentes à primeira pessoa do plural, buscando fatores relevantes do processo variável estudado. Os fatores linguísticos observados estão relacionados ao uso implícito ou explícito dos pronomes em questão bem como à concordância de nós/ a gente no que se refere aos traços de gênero e número. Em

4 seguida, foi feita a codificação, tendo como suporte o programa estático-matemático VARBRUL. Como os informantes têm no máximo quatro anos de escolarização os inf. 01 e 04 têm 3ª e 4ª séries primárias respectivamente, enquanto que todos os demais ou são totalmente analfabetos ou estão no grupo comumente caracterizado como analfabetos funcionais (aquelas pessoas que apenas desenham o próprio nome) a escolaridade não foi analisada enquanto fator extralinguístico, estando inseridas nesse grupo apenas as questões relativas à faixa etária dos falantes e ao gênero. ANÁLISE DE DADOS Entre os falantes no Brasil, a alternância nas formas nós e a gente enquanto representação de sujeito é de uso comum, como se pode perceber plenamente a partir da análise de dados abaixo. Os fatores linguísticos observados resumem-se à concordância verbal e à presença explícita ou implícita dos pronomes nós e a gente nas orações. Quanto aos fatores sociais, por se tratarem de informantes analfabetos ou semianalfabetos, focalizase somente a faixa etária e o gênero. Assim, observaremos, a partir da análise dos dados, quais desses fatores mais influenciam no uso da variante a gente. O gráfico 1 representa a incidência total do uso de nós e a gente, pelos representantes da comunidade rural de Piabas. Nota-se, aqui, uma maior utilização de a gente, enquanto pronome pessoal do caso reto, em relação ao tradicional nós. Observe: Gráfico 1: Nós e a gente na comunidade rural de Piabas

5 Pode-se, então, considerar que existe um processo de variação linguística, que permite o uso maior da variante a gente, cuja incidência chega a 62% das realizações de nós e a gente, com aparente mudança em curso, mas não consolidada, já que existe quase 40% de uso do pronome nós entre os representantes da comunidade de Piabas. Os gráficos 2 e 3 representam, respectivamente, os fatores sociais analisados, gênero e idade, que foram analisados, a fim de se verificar se o fenômeno de substituição de nós por a gente é um processo de variação estável ou de mudança linguística. Gráfico 2: Nós e a gente segundo o fator social gênero Como se pode observar, existe um equilíbrio nas ocorrências de nós e a gente entre os falantes de sexos opostos. O uso de a gente entre os homens representa-se em 63,6% e para as mulheres em 62%, não havendo uma diferença sensível entre o sexo masculino e o sexo feminino. Pode-se concluir, pois, que o fator sexo não representa um requisito significante no uso da variante. Gráfico 3: Nós e a gente segundo a faixa etária do falante

6 O gráfico 3 está dividido em três faixas etárias, que correspondem a: Faixa etária 1: até 30 anos Faixa etária 2: de 31 anos até 60 anos Faixa etária 3: a partir de 61 anos Como se pode ver, há uma nítida influência do fator idade nesta pesquisa, pois os falantes mais jovens dão preferência para a forma a gente, enquanto os idosos mantém a forma nós. Observa-se uma percentagem de 74,1% de forma a gente entre os falantes de até 30 anos, 63% na faixa etária 2 e apenas 30% entre os falantes com idade acima de 61 anos. A partir desses resultados é possível verificar que esse fenômeno de substituição de nós para a gente é um processo de variação, com provável mudança línguística, que vem ocorrendo, paulatinamente, ao longo dos anos e das gerações, entre os representantes da comunidade de Piabas. Os fatores lingüísticos, por sua vez, são representados pelos gráficos 4 e 5 respectivamente. Gráfico 4: Forma do pronome nós e a gente na forma explícita e implícita

7 No gráfico 4, procurou-se investigar se o uso de nós e a gente acontece de maneira mais explícita ou implícita, na fala dos moradores de Piabas. Percebe-se que o uso de nós aparece de maneira mais implícita, já que a desinência mos permite a fácil identificação do sujeito. Quanto ao a gente, há uma predominância do uso explícito, ficando implícito apenas quando o sujeito é explicitado anteriormente. Ex.: Meus fio, desde moço que eu... a gente apiava e Ø mandava tudo morar em São Paulo. Gráfico 5: Concordância de nós e a gente No quesito concordância, é notória discrepância entre a realização de nós e a gente; este último quase sempre satisfazendo às regras de concordância, enquanto o primeiro realiza-se, predominantemente, sem obedecer a esse fator. Esse resultado representa a aproximação que o nós vem tendo em relação ao a gente, confirmando a ideia de mudança linguística, já que, na maioria das vezes, os falantes preferem concordar o nós da mesma maneira com que utilizam o a gente.

8 CONCLUSÃO Diante das observações feitas, pode-se afirmar que vem acontecendo um processo de mudança linguística do pronome pessoal do caso reto nós para a variante a gente, entre os falantes da comunidade rural de Piabas, na localidade de Anselino da Fonseca ou Caem, como é mais conhecida. Entre os fatores sociais analisados, percebeu-se que a idade é um fator altamente relevante para esse processo de mudança, enquanto o gênero não apresenta dados suficientemente contrastantes que permitam tais observações; havendo, pois, uma concordância com os dados de Omena (1986). Quanto aos fatores linguísticos, observou-se que a presença ou nulidade de nós e de a gente na fala rural assegura para uma mudança linguística, pois marca o sujeito explícito a gente, e apresenta o nós, mesmo implícito, com discrepâncias na concordância. O fator concordância, por sua vez, representa essa transformação diacrônica do uso de nós para a utilização de a gente; já que com o tempo os falantes foram perdendo a concordância de nós, substituindo-a pela flexão verbal característica de a gente. Os resultados obtidos na pesquisa revelaram que das 393 ocorrências de pronome nós e a gente, na posição de sujeito, 149 (38%) são do pronome canônico nós e 244 (62%) do pronome inovador a gente. Com isso, fica evidenciado que a variação ocorrida nas formas nós e a gente também é de uso comum entre falantes de Piabas, e provavelmente, de todo o país. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Norma Lúcia F. de; NOVAIS, Zenaide de O. Amostras da língua falada em Anselino da Fonseca/ Piemonte da Diamantina. Feira de Santana: UEFS, CALLOU, Dinah; BARBOSA, Afrânio; LOPES, Célia. O português do Brasil: polarização sociolinguística. In: CARDOSO, Suzana; MOTA, Jacyra; MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Quinhentos anos de história linguística do Brasil. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, EBGA, CUNHA, Celso. & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, LOPES, Célia Regina dos Santos. Nós e a gente no português falado culto do Brasil. Vol. 14. n. 2. São Paulo: Delta, 1998.

9 MATOS E SILVA, Rosa Virgínia. Uma compreensão histórica do português Brasileiro: velhos problemas revisitados. Salvador: UFBA, Instituto de Letras, Conferência para o Concurso de Professor Titular MONTEIRO, José Lemos. Pronomes pessoais: subsídios para uma Gramática do português do Brasil. Fortaleza: Edições UFC, OMENA, Nelise Pires de. A referência variável da primeira pessoa do discurso no plural. In: NARO, A. et alli. Relatório final de pesquisa: projeto subsídios do projeto censo à educação. Rio de Janeiro: UFRJ, 1986, vol. 2, p TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolinguística. 2.ed. São Paulo: Ática, 1986.