Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
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- Agustina Aquino Varejão
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1 SEMPRE [i], ÀS VEZES <E>, ÀS VEZES <I>: HETEROGENEIDADE NA ESCRITA DAS VOGAIS RESUMO Marilia Costa REIS 1 Neste artigo trataremos a respeito da convenção ortografia e das hipóteses dos escreventes a respeito desta convenção que resultem em erros ortográficos, partindo da concepção da heterogeneidade da escrita, proposta por Corrêa (2004). A heterogeneidade da escrita pode ser verificada também na ortografia, quando observados os princípios utilizados para o seu estabelecimento: os fonético-fonológicos e os etimológicos. Esta heterogeneidade no estabelecimento de uma convenção ortográfica gera uma não-biunivocidade entre grafema e fonema, de modo que um grafema pode representar vários fonemas ou um mesmo fonema pode ser representado por vários grafemas ou dígrafos. Esta não-biunivocidade pode ser observada também com relação à escrita das vogais. Neste trabalho, estarão em destaque os contextos em que as vogais /e/ e /i/ têm a mesma realização fonética [i], mas que são ortograficamente escritos com <E> ou com <I>. Os dados analisados neste trabalho confirmam que os contextos não-biunívocos tendem a gerar dúvidas aos escreventes e apontam para o fato de que as hipóteses dos escreventes acerca da grafia dessas vogais, ainda que, algumas vezes, resultem em erros em relação à ortografia, demonstram não um desconhecimento da convenção, mas podem, contrariamente, demonstrar seu conhecimento e sua apropriação. PALAVRAS-CHAVE: escrita, ortografia, vogais, letramento, Ensino Fundamental Introdução Neste artigo, apresentamos os resultados de uma pesquisa (em andamento) que tem por objetivo contribuir com os estudos de escrita sobre a relação entre oralidade e letramento. Essa relação, conforme propõe Corrêa (2004), não deve ser vista como 1 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos. Rua Cristóvão Colombo, 2365, , São José do Rio Preto-SP, Brasil, mariliamcr@gmail.com / Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP, Proc. 2008/ ). 128
2 influência de uma oralidade na escrita, mas como uma relação que constitui heterogeneamente a escrita, com contribuições dos imaginários sociais construídos no interior das práticas em que estão inseridas a oralidade e a escrita. De modo particular, partindo da concepção de heterogeneidade da escrita de Corrêa (2004), trataremos neste trabalho a respeito da convenção ortográfica e das hipóteses a respeito desta convenção que possivelmente estejam motivando os escreventes a fazerem os chamados erros ortográficos, quando as vogais /e, i/ em certos contextos fonológicos têm a mesma realização fonética [i], mas devem ser grafadas com a letra <E> ou com a letra <I>, em posição pretônica na palavra. A heterogeneidade da ortografia A ortografia nasce, segundo Cagliari (1999), de uma espécie de escrita fonética, que consiste em representar os sons da fala, exatamente como eles foram pronunciados (p. 29). Segundo o autor, a escrita alfabética surgiu como um princípio acrofônico, em que as letras recebiam os nomes de acordo com o som que representavam na escrita. No entanto, os usuários deste sistema esbarraram no problema da variação lingüística, tornando-se necessária a criação de uma ortografia, ou seja, uma única forma de grafar as palavras de uma língua. (CAGLIARI, 1999, p.29, 30). Apesar de cada palavra ter apenas uma grafia, na fala continuou a ter variação, não havendo, portanto, uma representação direta da fala pela escrita. De acordo com Scliar- Cabral (2003), na ortografia, 129
3 uma ou mais letras (os grafemas) representam fonemas e alguns de seus alofones (variantes de um mesmo fonema), que resultam nas unidades que distinguem o significado na escrita (a segunda articulação). Deve-se notar, contudo, que um outro princípio diferente também ocorre: o etimológico. (p. 38) (grifo nosso) Constata-se, portanto, que a ortografia manteve seu princípio fonéticofonológico, verificado na invenção da escrita; no entanto, foi acrescentado a ele também o etimológico. O princípio etimológico, diferentemente do princípio fonéticofonológico, não estabelece relação com a fala, mas com relações de forma e sentido entre as línguas, tornando as motivações para a escrita de uma dada língua independentes das características dos enunciados falados. Neste sentido, partindo da concepção de heterogeneidade da escrita, alertamos, junto com Corrêa (2004), para uma heterogeneidade que, sendo constitutiva da própria língua, afeta também a noção de norma e, em particular, de norma escrita culta. (p. XXIV). Segundo o autor, a heterogeneidade da escrita se dá por contribuições de registros escritos de um imaginário da escrita, que circula por três eixos: 1) a escrita em sua suposta gênese, como correspondente ao oral; 2) a escrita como código escrito institucionalizado, como modo autônomo de representação da oralidade e 3) a escrita em relação ao já falado/escrito, o diálogo que a escrita mantém com textos já lidos ou ouvidos. 130
4 A heterogeneidade da ortografia se dá, portanto, desde a sua constituição porque são de duas naturezas os princípios que a orientam. Cada princípio pode ser considerado como registro de um dos eixos do imaginário social da escrita. No caso do princípio fonético-fonológico, que prevê uma relação mais direta com a oralidade, ao estabelecer relação entre grafema e fonema, podemos identificar registros do primeiro eixo de circulação imaginária da escrita. No caso do princípio etimológico, por sua não relação com a oralidade e por se tratar de registro característico da escrita, podemos identificar registros do segundo eixo, na medida em que há uma escolha (convencionalizada) em se registrar certas características da história da língua e não outras. Esta heterogeneidade no estabelecimento de uma convenção ortográfica gera, portanto, uma não-biunivocidade entre grafema e fonema, de modo que, como apontado por Scliar-Cabral (2003), um grafema pode representar vários fonemas ou um mesmo fonema pode ser representado por vários grafemas ou dígrafos. Esta não-biunivocidade pode ser observada, por exemplo, com relação à escrita das vogais. Os grafemas <I> e <U> recebem seus nomes a partir dos sons que representam: as vogais altas /i, u/, respectivamente. Os <E> e <O>, também recebem seus nomes a partir dos sons que geralmente representam na escrita, no entanto, para essas letras há duas possibilidades de representação na sílaba tônica: as vogais médias-altas /e, o/ (como em dedo e doce ), e as vogais médias-baixas /E, O/ (como em reta e roda ). De acordo com a região do Brasil, seus falantes as denominarão por uma ou por outra possibilidade de representação, de modo geral, na região sul, terão seus nomes a partir das vogais médias-altas e, na região norte, como vogais médias-baixas. Esta não-biunicidade se 131
5 acentua quando a sílaba em que ocorrerem for pretônica, de modo que os grafemas <E> e <O> também poderão representar as vogais altas [i, u], respectivamente. O fato lingüístico relevante a ser observado é que as vogais médias-altas /e, o/, em posição pretônica, podem ter diferentes realizações fonéticas, de acordo com a variedade falada em diferentes regiões do Brasil. A realização fonética dessas vogais pode ser semelhante a uma das vogais altas [i, u], respectivamente, caracterizando o fenômeno de alçamento, verificado em praticamente todas as regiões brasileiras 2, ou como uma das vogais média-baixas [E, O], respectivamente, caracterizando o fenômeno abaixamento, 3 verificado no norte e nordeste, principalmente. Neste trabalho, interessanos tecer considerações sobre a relação entre os enunciados falados e escritos levandose em conta especificamente a vogal média-alta /e/, em posição pretônica, por ser nesta posição passível de sofrer o processo fonológico de alçamento, um fenômeno observado na variedade dos escreventes que produziram os textos que tomamos como corpus de nossa investigação. De um modo geral, o fenômeno de alçamento tem sido estudado por sua aplicação variável, uma vez que as vogais médias-altas em posição pretônica, de uma palavra, ora são alçadas, ora não são alçadas. Desse fato, resulta que, nesse contexto de sílaba pretônica em variedades faladas no sul do Brasil, o grafema <E>, por exemplo, poderá representar ora a vogal [e] e ora a vogal [i], caracterizando, portanto, esta nãobiunivocidade entre grafemas e fonemas. O fenômeno de alçamento, no entanto, em 2 O alçamento foi verificado por Viegas (1987), em Minas Gerais; Silva (1991), na Bahia; Bisol (1981) e Schwindt (2002), no Rio Grande do Sul;e Silveira (2008) e Carmo (2009), em São José do Rio Preto (SP), região na qual residem os escreventes dos textos de nossa pesquisa. 3 O abaixamento foi verificado, por exemplo, por Célia (2004), na região de Nova Venécia (ES). 132
6 alguns contextos, pode ter aplicação praticamente categórica 4, tendo a vogal /e/ a realização fonética quase sempre semelhante a [i]. Nestes contextos, o grafema <E> representará predominantemente a vogal [i], som que, pelo princípio acrofônico, seria representado por <I>. A ortografia, no entanto, mantém a escrita em <E> para essas palavras. Neste sentido, podemos dizer que o segundo eixo de circulação imaginária da escrita, observado na ortografia, se dá também nessa escolha pelo grafema <E> para esses contextos, verificando-se, assim, o caráter autônomo da escrita em relação à fala. Considerando os contextos fonológicos indicados das palavras abaixo listadas e o fato de haver a aplicação praticamente categórica do fenômeno alçamento da vogal média /e/, em posição pretônica, vislumbra-se que as letras <E> e <I> representarão o mesmo som na escrita. Contexto A Grafemas <E> ou <I> seguidos de um dos grafemas <N, M, S, X> em sílabas pretônicas. Exemplos: empolgada, inteiro. Realização: [i]mpolgada, [i]nteiro. Contexto B Grafemas <E> ou <I> nas sílabas pretônicas des ou dis. Exemplos: desligado e distante. Realização: d[i]sligado e d[i]stante. Contexto C Grafemas <E> ou <I> em posição de hiato. 5 Exemplos: beata e criado. Realização: b[i]ata e cr[i]ado. 4 São três os contextos: 1) vogal /e/ seguida de /N/ ou /S/, constatado por Naro (1973); 2) vogal /e/ ou /o/ em contexto de hiato, segundo Bisol (1981), foi notado desde o século XVI, por Fernão de Oliveira (1536); 3) prefixo des- (ou palavras com a mesma estrutura), verificado por Cavinato, Renck e Morette (2008). Na variedade de São José do Rio Preto (SP), exemplos desses três contextos são, respectivamente: (1) [i]mpresa, [i]scada ; (2) t[i]atro, m[u]eda ; (3) d[i]semprego, d[i]sanimado, d[i]scobriu. 5 No caso do contexto C, consideramos somente quando as vogais <E> ou <I> fossem seguidas de uma vogal tônica, para que fosse levados em conta os mesmos contextos dos exemplos cad[i]ado e t[u]alha apresentados por Bisol (1981). 133
7 Partimos da hipótese, em nossa pesquisa, que esses contextos tendem a gerar dúvidas ortográficas para os escreventes, uma vez que, apesar de, na fala, a realização fonética ser a mesma, na escrita, a convenção ortográfica seleciona ora <E>, ora <I>. Abaixo, apresenta-se uma figura da escrita da palavra enfermeira (palavra com o contexto A anteriormente definido), em que se observam os grafemas <E> e <I>, além de rasura, para representar um mesmo som [i], que é grafado com <E>. Trata-se do rascunho utilizado pelo escrevente para chegar ao texto final, quando grafa essa palavra segundo as convenções ortográficas: enfermeira. Figura 1 O objetivo deste artigo será, portanto, a partir da consideração da heterogeneidade da ortografia, observar as hipóteses de estudantes de quinta série do Ensino Fundamental 6 a respeito de como se dão as relações entre enunciados falados e escritos. Esta observação será feita por meio dos empregos não-convencionais de <E> e <I>, nos contextos específicos acima definidos. 6 O corpus utilizado neste artigo é formado por 682 textos, escritos por 121 sujeitos, alunos de cinco quintas séries de uma escola estadual de São José do Rio Preto. Todos os textos foram produzidos em sala de aula, em atividades realizadas de Abril a Novembro de 2008; dirigidas por integrantes do projeto de extensão universitária (PROEX/UNESP), coordenado pelas Profas Dras. Luciani Tenani e Sanderléia Longhin-Tomasi (IBILCE/UNESP). 134
8 Os dados No item anterior, apresentamos três contextos em que as letras <E> e <I> quase sempre corresponderão ao mesmo som na fala. Selecionamos, portanto, para análise, todas as palavras do corpus com aqueles contextos. Foram excluídos de nossos dados palavras que, apesar de haver os contextos selecionados, se encontravam em três situações, a saber: 1) Palavras que podem ser classificadas como um nome próprio. Esse conjunto de palavras foi excluído porque os nomes próprios não têm uma forma ortográfica, havendo a possibilidade de mais de uma grafia; 2) Palavras cujas grafias não favoreceram a identificação de uma dada vogal como sendo <E> ou <I>. A dificuldade em atribuir uma categorização gráfica é um aspecto importante a ser observado, uma vez que se tratam de textos manuscritos. Neste trabalho, a opção por excluí-los visa a garantir uma certa homogeneidade dos dados que compõem o corpus desta reflexão. No entanto, não desconsideremos esses dados para uma possível análise qualitativa futuramente. 3) Palavras que pertencem a classes gramaticais distintas de substantivos, adjetivos e verbos. Palavras classificadas como conjunções, preposições, numerais, etc., foram excluídas do corpus deste trabalho por terem comportamento fonético- 135
9 fonológico distinto das demais classes de palavras, notadamente no que diz respeito à aplicação de processos fonológicos. 7 Com relação à grafia das vogais nos contextos selecionados, fizemos um levantamento quantitativo com relação aos empregos convencionais e nãoconvencionais dessas vogais de um modo geral e em cada contexto separadamente. Os empregos não-convencionais são importantes para este trabalho, na medida em que podem revelar certas hipóteses desses escreventes. Os empregos convencionais dos grafemas <E> e <I>, por outro lado, podem nos indicar a medida da apropriação da convenção por parte dos escreventes e a freqüência dessas palavras com esses contextos na escrita. Além disso, é importante investigar, de modo particular, a relação entre os empregos convencionais e os não-convencionais, por indicar quais os contextos de maior dúvida e quais os contextos em que há maior apropriação da convenção por parte dos escreventes. Com relação aos dados em que a grafia dos escreventes não condiz com a prevista pela convenção, foram inicialmente classificados, conforme propõe Cagliari (1998), em duas categorias: (1) transcrição fonética para escrita em <I> onde a ortografia convencionou <E>; (2) hipercorreção para escrita em <E> onde a ortografia convencionou <I>. Enfatizamos que nos valemos dessa denominação como um recurso metodológico na execução de nossa investigação, pois não a assumimos em nosso trabalho. Partimos da hipótese que o escrevente quando opta ora por <I> e ora por <E> não se baseia, respectivamente, nos seus conhecimentos a respeito da sua fala e da 7 Uma discussão a respeito dessa distinção entre classes de palavras, do ponto de vista fonológico, pode ser encontrada em Lee (1995). 136
10 sua escrita, mas utiliza-se, nas duas opções, de todo o conhecimento que têm a respeito das práticas sociais envolvendo essas modalidades. Entendemos, portanto, essas escolhas, como registro dos imaginários sociais da escrita construídos no interior dessas práticas. Observando a escolha por <E> ou por <I>, de um modo geral, sem considerar se esse emprego segue ou não a convenção ortográfica, obtivemos o seguinte gráfico: <i> 24% <e> 76% Figura 2 - Gráfico referente ao registro de cada vogal A partir deste gráfico, podemos observar uma tendência com relação à escolha por <E> nos contextos selecionados, embora, pelo princípio acrofônico, essa vogal fosse escrita preferencialmente com <I>, nos contextos analisados. Esses primeiros resultados gerais apontam para o fato de os escreventes saberem que escrever não é transcrever a fala, ou seja, que a ortografia não é baseada somente no princípio acrofônico, de modo que o nome de uma dada letra nem sempre fará referência ao som por ela representado. No que diz respeito à relação entre os erros e acertos, em relação à convenção ortográfica, obtivemos os resultados apresentados na Tabela 1, onde se especifica o total de ocorrências de palavras e, entre colchetes angulados, a letra que foi empregada nessas ocorrências. 137
11 Tabela 1- Erros e acertos em todos os contextos Ortografia <E> <I> Erros 53 <I> 42 <E> Acertos 1920 <E> 576 <I> Erros/Total 2,68 % (53/1973) 6, 79 % (42/618) Com relação às palavras cuja ortografia prevê o emprego de <E>, os alunos erraram por transcrição fonética empregando <I> para <E> em um total de 2,68% dos dados, enquanto que para as palavras em que a ortografia prevê <I>, os alunos erraram por hipercorreção empregando <E> para <I> em um total de 6,79% dos dados. Esses resultados mostram, primeiramente, que esses escreventes que estão, de um modo geral, em seu quinto ano de escolarização, já apropriaram grande parte da convenção para as vogais nos contextos selecionados. Além disso, as palavras com ortografia em <I> parecem ser as que mais sugerem dificuldades para os escreventes, de modo que, em nossos dados, foi encontrado um percentual maior de erros desses casos. Outra importante consideração a ser feita com relação à Tabela 1, diz respeito ao total de palavras ortograficamente escritas com <E> e com <I>. Na nossa análise, esse número pode indicar a preferência da convenção na escrita das palavras mais recorrentes, revelando uma preferência da ortografia pela escrita de <E>, em vez de <I> nestes contextos. De um modo geral, podemos dizer que, nestes contextos, os erros dos escreventes seguem essa tendência da convenção, de modo que os erros pela escrita de <E>, quando previsto <I>, são maiores percentualmente. 138
12 Cada caso é um caso Como foi dito anteriormente, os três contextos selecionados se referem a posições em que o sistema de escrita prevê duas possibilidades de escolha entre os grafemas <E> ou <I>, mas que, na variedade falada pelos escreventes desses textos, há praticamente uma única possibilidade, a pronúncia [i], devido à aplicação praticamente categórica de alçamento de /e/ nesses contextos. No entanto, a análise separada de cada contexto fonológico nos possibilitou observar certas características da convenção e dos erros ortográficos, não possíveis de serem vistas com todos os contextos juntos. Começando pelo contexto A, ou seja, quando <E> ou <I> é seguido de <N>, <M>, <S> ou <X>, em uma sílaba pretônica, encontramos a mesma tendência observada nos dados de um modo geral: um percentual maior de palavras grafadas com <E> do que com <I>, como pode ser observado na Tabela 2, abaixo. Tabela 2 - Erros e acertos para o contexto A Ortografia <E> + <M, N, S, X> <I> + <M, N, S, X> Erros 28 <I> 27 <E> Acertos 1782 <E> 191 <I> Erros/Total 1,54% (28/1810) 14,13% (27/218) No mesmo sentido, vão os tipos de erros: um percentual maior de erros por hipercorreção (14,13%) do que por transcrição fonética (1,54%). A análise desse contexto corrobora a análise feita para os dados de um modo geral, na medida em que os erros dos escreventes indiciam o conhecimento da convenção, preferindo, em suas 139
13 escolhas, a grafia com <E> para a vogal da sílaba pretônica. Além do número alto de ocorrências de palavras com sílaba pretônica cuja vogal é grafada com <E> (no total, foram 1813 ocorrências), faz-se interessante observar, em um dos textos do corpus (Figura 3, abaixo), o quanto esse contexto é recorrentemente grafado corretamente na escrita dos alunos. Figura 3 Como podemos constatar, há no texto acima seis palavras com o contexto ora analisado. Essas ocorrências permitem observar duas tendências: a que os erros seguem 140
14 em relação à norma; e a que o aluno segue em seu próprio texto. No texto acima, todas as palavras com o contexto em análise a saber: está, enteira, encontrou, estava, encontrou, estava foram grafadas com <E> (tendência da norma e tendência do aluno em grafar a vogal pretônica nesse contexto com <E>). No entanto, na palavra enteira, a escolha por <E> resultou em um erro ortográfico. Nota-se que a realização fonética dessa palavra sempre será [i]nteira. Portanto, a escolha por <E> não foi motivada na realização fonética da vogal pretônica /i/. Constata-se, dessa forma, que os chamados erros ortográficos não são motivados, exclusivamente, por uma tentativa dos escreventes em se representar os enunciados falados pela escrita. O segundo contexto considerado, o contexto B, se refere às palavras cuja sílaba inicial pretônica é des ou dis. Inicialmente, cabe observar que grande parte das palavras escritas com des em posição pretônica diz respeito às palavras constituídas pelo prefixo des-, o que faz com que essa forma seja bastante recorrente. No texto apresentado a seguir (Figura 4), verificam-se duas ocorrências dessa forma des : desispero e despistou. 141
15 Figura 4 Destaca-se do texto acima que o escrevente erra a grafia de uma das vogais da palavra desespero, mas não a da vogal na forma des. Poderíamos dizer que o erro deste aluno, na escrita de <I> para <E>, em desispero, se dá por transcrição fonética, porém, se fosse por simples transcrição fonética, a seqüência des, nesta ocorrência, também seria escrita com <I>, uma vez que a pronúncia é a mesma para as duas vogais pretônicas: d[i]s[i]spero. No entanto, este dado aponta para o (re)conhecimento da forma gráfica do prefixo des, dando indícios da apropriação, por parte do escrevente, da preferência da convenção pela grafia em <E> para esse prefixo, embora haja uma 142
16 tendência para sua realização fonética com a vogal [i]. Na tabela abaixo, dados quantitativos para o contexto em discussão corroboram as hipóteses explicativas ora esboçadas. Tabela 3 - Erros e acertos para o contexto B Ortografia des dis Erros 12 <I> 07 <E> Acertos 86 <E> 14 <I> Erros/Total 12,24% (12/98) 33,33% (7/21) Assim como o contexto anteriormente analisado, este contexto apresenta resultados que seguem as tendências apresentadas para todos os contextos de um modo geral: a) a tendência da ortografia em grafar tais contextos com <E>; b) a tendência em haver mais erros, percentualmente, por hipercorreção (33,33%) que por transcrição fonética (12,24%). Destaca-se que, para este contexto em relação ao anteriormente tratado, o número e o percentual de erros foi ainda maior, tendo destaque o percentual de erros do tipo hipercorreção com 33,33%, em relação ao total de palavras que deveriam ser escritas com <I>. Até este ponto, os resultados apresentados para cada contexto separadamente mostram as tendências observadas de um modo geral. No entanto, o contexto C, isto é, o contexto em que o hiato é objeto de estudo, apresenta os resultados distintos em relação aos demais, conforme pode ser observado na Tabela 4, abaixo. Tabela 4 - Erros e acertos para o contexto C Ortografia <E> + V (hiato) <I> + V (hiato) 143
17 Erros 12 <I> 8 <E> Acertos 52 <E> 371 <I> Erros/Total 18,75% (12/64) 2,11% (8/379) Como pode ser observado na Tabela 4, no contexto em que há a vogal média /e/ ou a vogal alta /i/ em hiato, diferentemente dos outros dois contextos que consideramos, predominam, tanto numericamente, quanto percentualmente, os erros do tipo transcrição fonética (18,75%), ou seja, escrita de <I> para ortografia em <E>. Além disso, há um percentual maior de palavras com ortografia em <I>, que em <E>, o que também diferencia este contexto dos demais. Miranda (2008) analisou esses mesmos tipos erros ortográficos em escrita inicial de crianças. Segundo a autora, este tipo de erro relacionado à escolha entre <E> e <I> teria relação com uma tendência da língua em desfazer o hiato, tornando-o um ditongo. Essa tendência da fonologia da língua parece ter sido apropriada não apenas pelos escreventes em suas hipóteses, mas também pela ortografia, de modo que há um número bem maior de vogais em contexto de hiato escritas ortograficamente com <I>, que com <E>, conforme verificado por meio dos nossos resultados. Com relação a esse contexto, observamos que, embora seja distinto dos demais com relação à preferência, tanto dos erros, quanto da ortografia, pela grafia de <I>, há evidências que também comprovam as interpretações apresentadas para os demais contextos: a de que as hipóteses dos escreventes mostram o conhecimento da convenção ortográfica, na media em que seguem a tendência observada na ortografia. 144
18 Enfim... A análise e discussão de nossos dados nos levaram a observar não uma relação entre as modalidades oral e escrita (evidenciadas por meio dos erros na grafia das vogais pretônicas), mas como se dá de maneira constitutiva essa relação, evidenciando-se, assim, a heterogeneidade constitutiva da escrita, tanto no que diz respeito às hipóteses dos escreventes, quanto no que diz respeito à própria convenção ortográfica. No presente trabalho, observamos apenas a escrita das vogais /e/ e /i/, em posição de sílaba pretônica em três contextos fonológicos bastante semelhantes, cujas realizações fonéticas tendem a ser praticamente idênticas (vogal alta [i]). A ortografia prevê, para a vogal /i/, nos contextos investigados, o grafema <I> e para a vogal /e/, nesses mesmos contextos, o grafema <E>. Com relação à ortografia, retomamos a posição segundo a qual há dois princípios, conforme Scliar (2003): o princípio fonético-fonológico e o princípio etimológico. Com relação ao princípio fonético-fonológico, mostramos que está relacionado com o princípio acrofônico, que caracteriza o sistema de escrita alfabético, segundo o qual cada letra recebe o nome relativo ao som que representa (CAGLIARI, 1999). Neste sentido, nos contextos selecionados, tem-se dois cenários: (i) a vogal é /i/, a pronúncia é [i] e a grafia também é <I>, a ortografia parece seguir o princípio acrofônico; (ii) a vogal é /e/, a pronúncia é quase sempre [i] e a grafia é <E>, a ortografia deixa de representar a fala. Neste sentido, a ortografia se distancia das características dos enunciados orais/falados, escolhendo as formas de representação por outros princípios, como o etimológico, por exemplo. 145
19 Com relação aos imaginários sociais da escrita, propostos por Corrêa (2004), podemos observar o primeiro eixo, quando a ortografia grafa seguindo o princípio acrofônico e o segundo eixo, quando grafa seguindo outros princípios, como o etimológico, por exemplo. Esses princípios são, portanto, registros dos imaginários sociais da escrita, que contribuem não apenas para a heterogeneidade da escrita, como também da ortografia, de modo particular. Os dados analisados neste trabalho embasam uma interpretação de que os escreventes dos textos considerados demonstram ter conhecimento do sistema ortográfico, na medida em que os erros observados evidenciam hipóteses ancoradas nas mesmas tendências das convenções ortográficas em grafar as vogais pretônicas. De um modo geral, a ortografia tende à escolha de <E> na grafia destes contextos, com exceção do contexto de hiato, em que é demonstrada uma preferência por grafar <I>. No mesmo sentido vão as hipóteses desses escreventes, que tendem a escolher <E>, na grafia dos contextos de um modo geral, e <I> na grafia da vogal em contexto de hiato. Concluímos a presente reflexão, ressaltando o fato de as hipóteses dos escreventes, ainda que, algumas vezes, resultem em erros em relação à ortografia, demonstram não um desconhecimento da convenção, mas, contrariamente, seu conhecimento e sua apropriação. Os registros não-convencionais de algumas palavras seguem as características da convenção, indiciando, portanto, um processo de apreensão do sistema ortográfico por parte desses escreventes, que nem sempre escrevem segundo essas mesmas convenções ortográficas. 146
20 Referências Bibliográficas BISOL, L. Harmonização vocálica: uma regra variável f. Tese (Doutorado em Língua Portuguesa) Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, CAGLIARI, L. C. Alfabetizando sem o bá-bé-bi bó-bu. São Paulo: Scipione, 1998 CARMO, M. C. As vogais pretônicas dos verbos na fala culta do interior paulista f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista. São José do Rio Preto (SP), CAVINATO, A. P. M.; RENCK, N. R.; MORETTE, T. M. P. Uma análise do comportamento das vogais mediais nos prefixos do português falado no noroeste paulista. São José do Rio Preto, Trabalho não publicado CELIA, G. F. Variação das vogais médias pretônicas no português de Nova Venécia ES f. Dissertação (mestrado) Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, CORRÊA, M. L. G. O modo heterogêneo de constituição da escrita. São Paulo, Martins Fontes, GINZBURG, C. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, LEE, S Morfologia e Fonologia Lexical no Português do Brasil. Tese de Doutorado Dissertação (mestrado) Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, MASSINI-CAGLIARI, G.; CAGLIARI, L. C. Diante das Letras: a escola na alfabetização. Campinas, SP: Mercado de Letras: Associação de Leitura do Brasil ALB; São Paulo: Fapesp, MATOS, J. P. B.; PACHECO, V.; LEITE, C. M. B. Estudos contrastivos dos ambientes fonológicos propiciadores de /E/ > /I/ E /O/ > /U/. In: PACHECO, V. et al (org.) Anais do III Seminário de Pesquisa em Estudos Lingüísticos e do III Seminário de Pesquisa em Análise do Discurso. Vitória da Conquista, BA: Edições Uesb, MIRANDA, Ana Ruth. A grafia das vogais pretônicas em textos da escrita inicial. Trabalho apresentado no XV CONGRESSO INTERNACIONAL DA ALFAL. Montevidéu, de agosto de
21 SCHWINDT, L C. A regra variável de Harmonização Vocálica no RS. In: BISOL, L. & BRESCANCINI, C. (orgs). Fonologia e Variação: Recortes do Português Brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS (p ) SCLIAR-CABRAL, L. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto, SILVA, M. B. Um traço regional na fala culta de Salvador. In: Organon. Porto Alegre, v. 18, p , SILVEIRA, A. A. M. As vogais pretônicas na fala culta do noroeste paulista f. Dissertação (mestrado) Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista. São José do Rio Preto, VIEGAS, M do C. Alçamento das vogais médias pretônicas: uma abordagem sociolingüística. 231f Dissertação (Mestrado em Lingüística). Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Anexo Abaixo quadro com todas ocorrências de erros ortográficos relativos à escrita das vogais nos contextos analisados, encontrados no corpus. Entre colchetes angulados, a grafia escolhida pelo escrevente. Quadro 1 - Ocorrências de erros nos contextos A, B e C Contexto A Contexto B Contexto C <E, I> + <M, N, S, X> <E, I> + V (hiato) des ou dis <I> <E> <I> <E> <I> <E> imbora imbora imbora imbora enclusive encriveu engles engrivel, discansa(r) discobriu dismaiar diperdador descubriu desculsão desfarçadas desparado baliado paciando pasiamos passiando veagem veagem veajar anceoso 148
22 imbora imbora imprego impresas impresas incinou incontrar indendeou (entendeu) indereso infrentarei insina insinar insinar insine intendi intendia interrado intreter isperiência isquisito istadia istatua istátua istoria istrangeiro entereçada enterior enclusive enteiro enventando emploro emportantes enfernizar enferno enteiro enteressante enterrogação enternete emporte (importe) enclusive enteira enterecei envisíveis encrivel encrivel enformatica hestória(?) enfelizmente disculpas dispedindo dispertar discupa disfile disfile dispidir discobri desfarçado desfarçados desparar sortiado sortiado sortiaram paciar sortiado sortiados pentiado tiatro deante anceoso veajar aveão 149
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