RELIGIÃO E LAICIDADE: A PRESENÇA DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS

Transcrição

1 Anais do V Congresso da ANPTECRE Religião, Direitos Humanos e Laicidade ISSN: Licenciado sob uma Licença Creative Commons RELIGIÃO E LAICIDADE: A PRESENÇA DE SÍMBOLOS RELIGIOSOS EM ESPAÇOS PÚBLICOS Clemildo Anacleto da Silva Doutor em Ciências da Religião. Centro Universitário Metodista IPA de Porto Alegre clemildo_anaclet@uol.com.br ST 09- TRADIÇÕES RELIGIOSAS, ESPAÇOS PÚBLICOS E POLÍTICAS Resumo: Esse projeto teve como objetivo analisar a compatibilidade entre laicidade e a presença de símbolos religiosos em espaços públicos aberto, ou seja, espaços não institucionais (praças, parques, calçadas, rodovias, praias e outros). Visa entender se a população toma essa questão como um problema ou se encara esta realidade com naturalidade. Busca aprofundar o conceito de laicidade. Verifica se a presença de símbolos religiosos em espaços públicos significa privilégio que o Estado concede a determinados grupos e se essa relação interfere na compreensão do conceito de Estado laico. A pesquisa contribuirá para compreender a relação entre Estado e religião. Procurará desvendar se de fato esse é um problema que tem preocupado o povo ou se o povo enxerga a presença do símbolo religioso com normalidade. Contribuirá para pensar maneiras que visem diminuir a intolerância e a discriminação e encontrar formas que tenham como objetivo promover a inclusão e o respeito à diversidade. A metodologia se limitará a dois instrumentos: pesquisa bibliográfica e entrevistas. As entrevistas serão realizadas com pessoas que estiverem próximas aos símbolos religiosos expostos em locais públicos da cidade de Porto Alegre, como parques e ruas, com o objetivo de conhecer a opinião do povo a respeito da presença do símbolo religioso nesse espaço, bem como sua concordância ou não com a retirada desse símbolo. Os resultados parciais indicaram que há poucos símbolos religiosos em espaços públicos abertos na cidade de Porto Alegre, mas os que há são de presença ostensiva. Mostrou também que a maioria dos entrevistados aceita a presença dos símbolos e que a religião do entrevistado não influenciou na decisão de rejeitar um símbolo. Palavras-chave: Laicidade, Secularização, Símbolos Religiosos.

2 Introdução Essa pesquisa teve como preocupação saber a opinião das pessoas acerca da presença de símbolos religiosos no espaço público. No Brasil, os símbolos religiosos estão presentes em quase todos os espaços públicos fechados e abertos. Denomino espaços públicos fechados as instituições ou prédios públicos que prestam serviço à população. Classifico como espaços públicos abertos as ruas, praças, parques, calçadas, praias, rios e outros. A pesquisa delimitou sua área à cidade de Porto Alegre. No Brasil ainda não tivemos sérias discussões a respeito da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. O caso mais emblemático, portanto, aconteceu no Rio Grande do Sul. Em 2012 o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça desse estado, votou pela retirada de símbolos religiosos do espaço público do judiciário. Porém, basta andar por qualquer cidade no Brasil, principalmente no interior, para verificarmos que o espaço público está eivado de símbolos religiosos. Uma das motivações para realização dessa pesquisa foi a preocupação em aprofundar a questão acima e a constatação de que a relação entre Estado e laicidade ainda não é muito clara para a população. Com base nisso é que a pesquisa se propôs a analisar a compatibilidade entre laicidade e a presença de símbolos religiosos em espaços públicos. Sendo assim, além desse objetivo geral a pesquisa buscou estudar o conceito de laicidade e suas implicações na sociedade brasileira atual, bem como procurou entender qual a opinião da população acerca da presença de símbolos religiosos em espaços públicos. A partir desses objetivos a pesquisa se empenhou em resolver o seguinte problema: a presença de símbolos religiosos em espaço público interfere na compreensão e implementação de um estado laico? Justificativa A pesquisa sobre esse assunto se torna relevante porque pode contribuir para compreender a relação entre Estado e religião. A religião tem uma força de influência muito grande na sociedade brasileira, principalmente as vertentes ligadas ao cristianismo. O cristianismo, como religião historicamente hegemônica, continua exercendo poder no que se refere a discussão sobre valores e práticas

3 comportamentais. Esse poder que, principalmente, o cristianismo exerce sobre a sociedade também está relacionado ao número de adeptos que estão sob a sua influência. No último censo de 2010, realizado pelo IBGE, constatou-se que 86% da população se declarou cristã. Estão incluídas nesse número, católicos e protestantes. Isso demonstra também o poder político que os grupos religiosos podem exercer na sociedade. Uma das formas de demonstrar sua hegemonia e controle do espaço diz respeito a presença constante de símbolos religiosos em lugares públicos. Historicamente essa presença tem explicação no processo de colonização. No entanto, nos dias atuais, não somente símbolos cristãos têm ocupado os espaços públicos. Já se percebe, embora ainda com menos frequência, a presença de símbolos religiosos relacionados a outras experiências religiosas como umbanda, candomblé, judaísmo e budismo. A presença de símbolos religiosos em espaço público é uma maneira de delimitar ou marcar território. Muitas vezes essa presença vem associada à privilégios. Uma vez que o Estado brasileiro se declara laico, ou seja, não tem uma orientação religiosa, ele deve garantir, portanto, o direito de pluralidade e diversidade religiosa, de maneira que não haja privilégio nessa relação com o Estado. A relevância dessa pesquisa se dá também porque procuraremos desvendar se de fato esse é um problema que tem preocupado o povo. Recentemente, no Brasil, se estabeleceu uma discussão quando se ventilou a possibilidade da retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos. Nessa discussão ficou claro que a sociedade está dividida quanto ao assunto. Ficou evidente também que há no imaginário popular a ideia que se trata de uma perseguição religiosa ou uma tentativa de banir a religião da sociedade. Verificou-se também que uma parte da população entende que, devido ao Estado ser laico, os símbolos religiosos não deveriam estar presentes nos espaços públicos. No entanto, percebe-se que a sociedade hegemonicamente cristã, não consegue enxergar essa discussão como problema. Existe uma naturalização desta realidade. Em todo caso, foi possível perceber, através destes debates e posicionamentos que a população não tem uma ideia clara do que seja laicidade. Portanto, essa pesquisa pretende contribuir com a discussão e esclarecimento a respeito do conceito de laicidade. Para tanto, será importante que se indague: A

4 presença de símbolos religiosos em espaços públicos traz algum constrangimento à população? A população tem consciência que o espaço público não deveria ser ocupado por símbolos religiosos ou ela é indiferente a essa questão? Os cristãos, pelo fato de serem maioria, enxergam com normalidade a presença dos símbolos em espaço público aberto? Por último, a pesquisa poderá contribuir para pensar maneiras que visem diminuir a intolerância, discriminação e formas que tenham como objetivo promover a inclusão. Nesse caso específico será importante verificar se o Ensino Religioso contribui no combate à intolerância e se exerce um papel de inclusão. Discutir a laicidade é também procurar entender e dar resposta para presença do Ensino Religioso na escola pública. Além disso, será necessário indagar: Há espaço para o Ensino Religioso num Estado laico? Metodologia A pesquisa se valeu de dois instrumentos metodológicos A primeira etapa constou de análise bibliográfica, reflexão sobre a fundamentação teórica e discussão de conceitos acerca da laicidade, secularização, símbolos religiosos e intolerância religiosa. A segunda etapa constou de entrevistas. As entrevistas foram realizadas com pessoas que estavam próximas ao símbolo religioso localizado na cidade de Porto Alegre. Foram entrevistadas um total de 30 pessoas, 10 em cada símbolo. Os símbolos escolhidos foram os seguintes: Uma imagem de Buda localizada no Parque da Redenção; Imagem de Oxum localizada as margens do rio Guaíba, bairro de Ipanema e um Candelabro erguido em uma praça no bairro Bom fim. Houve a preocupação de que os símbolos também representassem a diversidade das experiências religiosas. O principal objetivo com as entrevistas foi o de verificar de que forma o entrevistado(a) se posicionava em relação aquele símbolo. Importou saber qual a interpretação que o entrevistado(a) fez a respeito da presença do símbolo religioso no espaço público bem como sua aprovação ou não acerca da presença daquele símbolo naquele espaço. Discussão A discussão em princípio se restringiu ao conceito de laicidade, visto que a pesquisa buscou estabelecer a relação entre a presença do símbolo religioso e a

5 percepção de laicidade do entrevistado no que diz respeito aos seus argumentos para justificar a retirada ou permanência do símbolo religioso. Nesse sentido, foi muito importante ter bem claro o que se entende por laicidade. Assim sendo, percebe-se que a simples separação entre Igreja e Estado, expressa na Constituição Federal, não garante a laicidade; apenas caracteriza que o Estado não adotou uma religião oficial, sendo assim, abre a oportunidade para que outros grupos religiosos se estabeleçam e reivindiquem tratamento igualitário. Pensando assim, o Estado deve garantir, portanto, o direito de pluralidade e diversidade religiosa, de maneira que não haja privilégio de um grupo sobre o outro nessa relação com o Estado. A laicidade se apresenta como uma forma de garantir a diversidade e a pluralidade. No entanto, cabe aqui uma indagação: e se em uma sociedade qualquer não existir pluralidade nem diversidade, significa que não há necessidade de um Estado laico? Ou seja, se em uma determinada sociedade somente existe uma experiência religiosa ou um grupo majoritário ou hegemônico, justifica-se não colocar a laicidade em prática? Não. Porque a cidadania não pode estar atrelada a uma convicção pessoal, resultado de uma escolha individual, fundamentado em revelação divina dogmática. Nessa linha, observa-se que a laicidade estatal não promove, portanto, uma convicção entre outras, mas sim a condição primeira da coexistência entre todas as convicções no espaço público. (MINISTÉRIO, 2014, p.37). O grupo religioso se constitui em mais um que procurará interferir na sociedade por meio de argumentos. No entanto, foi a partir do momento que o Estado se encontrou desonerado de qualquer função espiritual concernente ao sagrado que a ideia de laicidade pôde ganhar espaço. (ZARKA, 2013, p.75) Porém, laicidade não significa necessariamente ausência de religião. É inegável a influência da religião na história e cultura dos povos. O não-confessionalismo não significa a obliteração da memória nacional da dimensão religiosa, realizada pelo Estado, em nome da liberdade ou secularismo. (GREGG, 2013, p.24). Muitas vezes a laicidade é compreendida, principalmente pelos grupos religiosos mais conservadores, como uma medida sorrateira conduzida pelo Estado para livrar as pessoas da influência da religião. A laicidade é uma forma de garantir a neutralidade do Estado em relação à religião e vice-versa. Visto que há um risco de que a união entre o

6 Estado e a religião tende a destruir o Estado e a degradar a religião. (VITALE; SCHEMPP citado por MINISTÉRIO, 2014, 26). Pensando a partir desse prisma a defesa da laicidade não é algo negativo, visto que defende a independência das religiões frente às interferências do Estado, retirando do Estado a possibilidade de interferir no controle da organização interna dos grupos religiosos. O Estado é, como se costuma dizer (e em princípio), neutro em relação aos grupos, tolerando a todos, e autônomo em seus objetivos. (WALZER, 1999, p.43). Beckford e Demerath (2007, p.724) definem laicidade como regime social no qual as instituições políticas não estão mais legitimadas pelas instituições sagradas ou religiosas, mas pela soberania ou vontade popular. Isto significa que setores da sociedade e da cultura não estão mais sob o domínio das instituições religiosas. De acordo com essa definição, não há intenção em eliminar a religião da sociedade mas em livrar a sociedade do domínio da religião. O Estado é laico quando prescinde da religião, quando já não requer mais a religião como elemento de integração social ou como cimento para a unidade nacional (...). Por isso, o Estado laico surge realmente quando a origem dessa soberania já não é sagrada e sim popular (BLANCARTE citado por ORO, 2011, p.222). Resultados Percebe-se que há poucos símbolos religiosos em espaços públicos abertos na cidade de Porto Alegre. No entanto, os que existem, são símbolos grandiosos e ostensivos. Ou seja, não se trata de uma pequena placa ou um monumento escondido sem nenhuma expressão, pelo contrário, os símbolos são muito visíveis em sua estrutura, isto é, são imagens grandes e posicionadas em locais de muita circulação. A maioria dos entrevistados (90%) aceita a presença do símbolo naquele espaço. Dos que se colocaram contra, apenas um evocou a laicidade do estado como motivo para não presença do símbolo. O restante justificou a não aceitação da presença do símbolo pelo fato de que a religiosidade é algo pessoal, portanto, cada um deve cultuar seus símbolos em seus locais de culto específicos em sua privacidade. Outra entrevistada, alegou que o símbolo maior é Jesus Cristo, por esse motivo, não deveria haver outros símbolos.

7 Foi possível constatar que a religião da pessoa não influenciou na rejeição ao símbolo. Isto é, esperava-se que um protestante ou mesmo um católico se posicionasse contra uma imagem de Oxum ou quem não fosse budista, rejeitasse o Buda. No entanto, isso não ocorreu. Em apenas um caso, uma evangélica, utilizou a sua tradição religiosa para não aceitar a presença de outro símbolo religioso. Curiosamente essa entrevistada rejeitou o símbolo do Candelabro; símbolo da tradição judaica que é muito próximo e tem bastante relação com a tradição cristã. Os argumentos que os entrevistados utilizaram para justificar a presença do símbolo diz respeito a questões relacionadas ao reconhecimento da diversidade e o direito que todas as tradições têm de manifestar a sua fé. Fica evidente também a ideia de respeito pela outra tradição religiosa. O símbolo demonstra a importância da fé, da espiritualidade, da crença e da devoção. Para esses, os símbolos são expressões visíveis dessas crenças. A presença dos vários símbolos indica uma tolerância e um sentido de democracia no uso do espaço público, visto que outros também são contemplados com seus símbolos. Conclusão A maioria dos entrevistados enxergaram com naturalidade a presença do símbolo religioso no espaço público, que dizer, não consegue perceber isso como um problema. Existe, portanto, uma naturalização desta realidade. O conceito de laicidade que transparece nas entrevistas é um conceito que vai na direção de enxergar o gestor público como garantidor da democracia no que se refere ao direito de todas as religiões se manifestarem. Esse direito não exclui o espaço público, ou seja, a gestão pública contempla a laicidade quando reconhece todas as tradições religiosas como válidas e democraticamente cede o espaço público para que elas possam se manifestar. Nesse sentido, laicidade é vista como uma forma de reconhecimento da diversidade e uma maneira de promover o respeito e igualdade entre os grupos religiosos. Assim sendo, o espaço público pode ser utilizado e destinado a esse fim desde que se garanta o respeito pela diversidade e igualdade nas relações entre os grupos religiosos.

8 Portanto, esse tipo de compreensão compromete o próprio conceito de laicidade e o processo de implementação de um estado laico, visto que, a expressão da experiência ou tradição religiosa é resultado de uma prática privada, porém as pessoas não veem problema na presença dos símbolos nos espaços públicos nem na relação que o gestor público estabelece no sentido de beneficiar os grupos religiosos. REFEREÊNCIAS BECKFORD, James A.; DEMERATH, N.J. The sage handbook of the Sociology of Relligion. London: Sage Publication, GREGG, Samuel. Religious Liberty, the Modern State, and Secularism: Principles and Practice. Berlim: Liberal Institute, MINISTÉRIO PÚBLICO EM DEFESA DO ESTADO LAICO. Conselho Nacional do Ministério Público. Brasília: CNMP, Vol. 1 e 2. ORO, Ari Pedro. A laicidade no Brasil e no Ocidente. Algumas considerações. In: Civitas. Porto Alegre v. 11 n. 2 p maio-ago WALZER, Michael. Da tolerância. São Paulo: Martins Fontes, ZARKA, Yves Charles. Difícil Tolerância. A coexistência de culturas em regimes democráticos. São Leopoldo: Unisinos, 2013.