C R I M E D E A B U S O D E C O N F I A N Ç A F I S C A L E I V A N Ã O E N T R E G U E ( U N I F O R M I Z A Ç Ã O D E J U R I S P R U D Ê N C I A )
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- Olívia Leveck Jardim
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1 i N º 4 6 / 1 5 C R I M E D E A B U S O D E C O N F I A N Ç A F I S C A L E I V A N Ã O E N T R E G U E ( U N I F O R M I Z A Ç Ã O D E J U R I S P R U D Ê N C I A ) I. INTRODUÇÃO O Supremo Tribunal de Justiça foi convocado a pronunciar-se sobre a necessidade, ou não, do prévio recebimento do imposto sobre o valor acrescentado (IVA) deduzido enquanto elemento constitutivo do tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal previsto (Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2015, em 29 de Abril de 2015, publicado em 2 de Junho). TAX & BUSINESS A decisão do Supremo Tribunal de Justiça justificou-se pela oposição de acórdãos existentes sobre a mesma questão de direito, proferidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 15 de Maio de 2014 e 21 de Novembro de A presente Informação destina-se a ser distribuída entre Clientes e Colegas e a informação nela contida é prestada de forma geral e abstracta. Não deve servir de base para qualquer tomada de decisão sem assistência profissional qualificada e dirigida ao caso concreto. O conteúdo desta Informação não pode ser reproduzido, no seu todo ou em parte, sem a expressa autorização do editor. Caso deseje obter esclarecimentos adicionais sobre este assunto contacte. *** Esta Informação é enviada nos termos dos artigos 22.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 7/2004, de 7 de Janeiro, relativa ao envio de correio electrónico não solicitado. Caso pretenda ser removido da nossa base de dados e evitar futuras comunicações semelhantes, por favor envie um com Remover para o endereço newsletter@rffadvogados.com. O litígio jurisprudencial em causa concretizase no facto de um acórdão considerar que, para efeitos do preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), o recebimento da prestação tributária é pressuposto essencial, enquanto o outro adoptou a solução contrária, decidindo que o elemento recebimento não consta do tipo incriminador. 01 Best Lawyers - "Tax Lawyer of the Year" 2014 Legal 500 Band 1 Tax Portuguese Law Firm 2013 International Tax Review "Best European Newcomer" (shortlisted) 2013 Chambers & Partners Band 1 RFF Leading Individual 2013 Who s Who Legal RFF Corporate Tax Adviser of the Year 2013 IBFD Tax Correspondents Portugal, Angola and Mozambique
2 A importância desta decisão reporta-se, essencialmente, ao facto de a Administração tributária, a espaços, entender que o pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível assim que decorra o prazo para o efeito, tenha ou não o IVA sido recebido do cliente. Veio, assim, o Supremo Tribunal de Justiça pôr termo à discussão, entendendo que o recebimento da prestação tributária é um pressuposto do crime de abuso de confiança fiscal. II. OS FACTOS A razão que subjaz à tipificação do crime de abuso de confiança fiscal (previsto no RGIT), reside no facto de o agente ficar investido na posição de fiel depositário e não entregar as quantias recebidas. O delito em causa pressupõe, assim, uma relação em que convergem, normalmente, três entidades: (i) o Estado (Administração fiscal), titular do crédito do imposto; (ii) o contribuinte originário propriamente dito, que é o sujeito substituído (cliente); (iii) um terceiro, o substituto e único sujeito em posição de cometer o crime (o devedor do imposto). Em suma, o crime de abuso de confiança fiscal visa punir a apropriação, indevida, do imposto recebido por parte do substituto tributário. Assim, sempre que este deva proceder à entrega do IVA, e não o fizer, estará em causa uma omissão que é, na sua génese, punível. Ora, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça teve como objecto a fixação de jurisprudência, atendendo à divergência entre as soluções proferidas em dois Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, relativamente à recepção/ recebimento da prestação tributária como elemento do crime de abuso de confiança fiscal. Com efeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em 15 de Maio de 2014, julgou que o recebimento não é elemento típico deste crime, sob pena de fragilizar a lógica e respectivas garantias, inerentes ao sistema fiscal, em geral, e à cobrança de IVA, em particular. O IVA devido à Administração tributária implica uma relação dinâmica entre IVA cobrado aos clientes e o IVA pago pelo contribuinte aos seus fornecedores. Existindo situações em que o IVA liquidado não seja recebido até à data do seu pagamento, elas coexistem com situações em que o contribuinte também não pagou IVA aos seus fornecedores. E tal como declara IVA liquidado aos seus clientes, mas não recebido, também abate nesse deve o haver dos montantes do IVA que os seus fornecedores lhe liquidaram e que ainda não pagou. Consequentemente, admitir que o recebimento da prestação tributária seja pressuposto essencial do crime, é promover a ocorrência das realidades anteriormente referidas, em prejuízo das obrigações assumidas perante a Administração tributária e, bem assim, da respectiva receita, obstando a concretização da ideia de redistribuição de 02
3 riqueza e de solidariedade social acolhidas na Constituição. Assim, concluiu-se nesse acórdão que, não sendo o recebimento um elemento do tipo legal do crime em análise, e independentemente de o montante de IVA não ter sido recebido, a omissão da entrega do imposto por parte daquele à Administração tributária consubstancia a prática do crime de abuso de confiança fiscal, de acordo com o disposto no RGIT. Por seu lado, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, em 21 de Novembro de 2013 (processo n.º 22/10.3 IDFUN.L.1) adoptou solução diametralmente oposta, entendendo que o sujeito passivo que liquida e recebe o IVA é considerado fiel depositário da prestação tributária, pressupondo uma relação fiduciária entre a Administração tributária e os agentes económicos. Neste sentido, só existiria omissão e, por conseguinte, a prática do crime de abuso de confiança fiscal, quando o agente recebeu, efectivamente, o IVA e não logrou proceder à sua entrega ao Estado. Neste sentido, considerou o Tribunal que, no caso de a prestação tributária não ser recebida e retida, não há possibilidade de cumprimento da obrigação de entrega e, bem assim, não fica o Contribuinte constituído como fiel depositário. Consequentemente, e não se verificando uma situação de quebra de confiança entre as entidades constitutivas da relação tripartida a que se fez alusão anteriormente, não poderá verificar-se o crime de abuso de confiança fiscal. Admitir o contrário, considerando a omissão de entrega de quantia não recebida um crime, significaria uma, insustentável, violação do princípio da proibição de punição de conduta sem culpa. Destarte, a responsabilidade penal-fiscal não se pode fundamentar no facto de o Contribuinte não assumir o pagamento do imposto com o seu próprio património. Assim, concluiu que, no caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, aquele que, tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto, e esteja por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não o faça no prazo legalmente fixado para tal. Também o Ministério Público, no âmbito deste Acórdão, entendeu que a omissão de entrega à Administração tributária de quantias provenientes de IVA, em relação às quais haja obrigação de liquidação e que tenham sido liquidadas, só preenche o crime de abuso de confiança fiscal se, e só se, o agente as tiver, efectivamente, recebido. Nestes termos, a não entrega, por motivos alheios à vontade do agente, não pode ser punida. III. A DECISÃO Convocado a dirimir o conflito jurisprudencial anteriormente descrito, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu o Acórdão, n.º 8/2015, que aqui nos trás, no âmbito do qual visou colocar termo à discussão sobre se o recebimento 03
4 prévio de prestação tributária, neste caso do IVA, constitui elemento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal. Assim, começa por referir que, no crime de abuso de confiança fiscal, o objecto da omissão é, necessariamente, a prestação tributária, isto é, impostos, taxas e demais tributos fiscais ou parafiscais. No contexto do crime em análise, considerando o Supremo Tribunal de Justiça estar em causa uma relação entre a Administração tributária, o contribuinte originário e o substituto sendo que a primeira é a titular do direito de exigir o cumprimento das obrigações tributárias o contribuinte originário é o sujeito substituído e o substituto é o único que está em posição de cometer o crime pois encontra-se vinculado ao cumprimento da prestação tributária enquanto substituto ou responsável pretende-se, assim, estabelecer uma relação de confiança entre estes, na qual radica a lógica inerente ao IVA e respectivas garantias. Neste sentido, importa ter presente que o substituto assume, por um lado, a qualidade de devedor do Estado pelo valor do tributo que factura aos clientes, e, por outro, a qualidade de credor do Estado pelo imposto suportado nos seus inputs. Note-se que o mecanismo do IVA exige a entrega, não do montante liquidado, mas, sim, do saldo positivo apurado no confronto entre o imposto liquidado recebido ou não e o imposto suportado pelo sujeito passivo. Em face do exposto, e por forma a colocar termo à discussão sobre a necessidade, ou não, do prévio recebimento do IVA deduzido como elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal, o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou a jurisprudência considerando que a omissão de entrega, total ou parcial, à Administração tributária de prestação tributária de valor superior a relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal previsto no artigo 105.º, n.º 1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido. Caso contrário, a atribuição de dignidade penal a uma omissão de entrega de quantia não recebida, e de que o agente não tem disponibilidade, implicaria uma insustentável violação do princípio da proibição de punição de conduta sem culpa. Reforçando tal entendimento, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em causa refere, ainda, que a jurisprudência dos Tribunais Tributários, com largo apoio doutrinário, é uniforme no sentido de que não existe infracção contra-ordenacional relativamente à omissão de entrega ao Estado de IVA liquidado, mas não recebido do adquirente da mercadoria ou beneficiário do serviço, pois essa obrigação não se subsume ao conceito de prestação tributária deduzida, o qual faz depender tal infracção do efectivo pagamento do IVA liquidado em factura pelo cliente. 04
5 Cumpre referir, por fim, que, para tutelar as situações em que não se verificou qualquer recebimento, e para evitar danos de tesouraria, essencialmente, nas pequenas e médias empresas, foi introduzido, pelo Decreto-lei n.º 71/2013, o regime de contabilidade de IVA de caixa, o que permite o diferimento do momento da exigibilidade do imposto para o momento em que o imposto venha a ser pago pelo adquirente de bens e serviços (vide Novo_Regime_da_contabilidade_de_caixa_em _iva.pdf). Lisboa, 10 de Novembro de 2015 Rogério M. Fernandes Ferreira Vânia Codeço Catarina Ribeiro Caldas Gonçalo Grade IV. OS EFEITOS Em face do exposto, entenderam os Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça que só comete o crime de abuso de confiança fiscal, em sede de IVA, o sujeito passivo que tendo, efectivamente, recebido prestação tributária de valor superior a 7.500, a não entregue ao Estado-Administração fiscal. Atendendo ao teor do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em apreço, fica, assim, não só dirimido o conflito jurisprudencial causado por decisões contraditórias do Tribunal da Relação de Lisboa, como, também, se disciplina a interpretação do direito, salvaguardando, para o futuro, a posição dos contribuintes em face de aplicação e condenação no tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, na medida em que esta decisão tem, por força da natureza do tipo de recurso em causa, influencia nas decisões judiciais futuras. 05
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