Crítica do conhecimento teórico e fundamentação moral em Kant
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- Teresa Esteves Teves
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1 72 Crítica do conhecimento teórico e fundamentação moral em Kant João Emiliano Fortaleza de Aquino I Filosofia crítica e metafísica Ao Fábio, com amor. A metafísica, tal como Kant a entende, 1 não teria logrado, até a modernidade, constituir-se num conhecimento seguro. O problema da metafísica, segundo ele, é que ela, até então, partia da idéia clássica de que o conhecimento teórico deveria regular-se pelos objetos e estes deveriam, ao mesmo tempo, ser conhecidos a priori. 2 A alteração proposta por Kant é a de, inversamente ao estabelecido pela tradição, partir do ponto de vista de 1. Isto é, como um conhecimento especulativo da razão inteiramente isolado que através de simples conceitos [...] se eleva completamente acima do ensinamento da experiência (Kant, I. Crítica da razão pura [1781]. Trad. bras. Valério Rohden et al. São Paulo: Abril Cultural, 1983, [Prefácio à segunda edição], p. 11). Em outros termos, o conhecimento metafísico deve ser um conhecimento [...] que vai além da experiência. Portanto, não lhe serve de fundamento nem a experiência externa, que é a fonte da física propriamente dita, nem a experiência interna, que constitui o fundamento da psicologia empírica (Kant, Prolegômenos a toda metafísica futura que queira apresentar-se como ciência [1783]. Trad. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 24) 2. Entenda-se aqui a concepção clássica do conhecimento como correspondência ou adequação do pensamento à coisa (ou ente). que os objetos é que são regulados pela nossa faculdade de conhecimento. Deste modo, a contradição ali encontrada se resolveria aqui pela afirmação do caráter necessariamente a priori de todo conhecimento conceitual, necessário e universal. 3 Daí a questão fundamental a que a filosofia, inicialmente, deve responder: quais são as condições de possibilidade de nosso conhecimento? Ou ainda: como é possível que as coisas se tornem objeto de nossa experiência e de nosso conhecimento? No encaminhamento que Kant dará a essa questão, ela assume a forma definitiva da pergunta pelo que torna possíveis os juízos sintéticos a priori 4. Essa questão, fundamental para toda a filoso- 3. Kant, a esse respeito, explica que enfrentou o seguinte problema intuído por David Hume, e que nem este ou qualquer outro havia resolvido: o de se o conceito de causa [...] era concebido pela razão a priori e se, deste modo, possuía uma verdade interna independente de toda a experiência e, por conseguinte, uma utilidade mais ampla, que não se limita simplesmente aos objetos da experiência [...]. Chegou, por fim, à conclusão de que os conceitos de causa e efeito não derivam da experiência [...], mas do entendimento puro (Kant, Prolegômenos..., p. 16 e 18, respectivamente). 4. Entende-se, assim, que o próprio das sentenças científicas não é serem meros desdobramentos de predicados a partir de um sujeito que, conceitualmente, já lhes contém (juízos analíticos, todos a priori); ao contrário, resultam de uma experiência, cuja condição de possibilidade são os conceitos puros a priori do entendimento. Daí por que tais conceitos puros a priori, precisamente enquanto condições de possibilidade da experiência, dela não se originam. A experiência, neste sentido, é compreendida por Kant como o processo no qual as representações sensíveis intuídas pela nossa faculdade da sensibilidade a priori são pensadas (determinadas) pelo entendimento, recebendo assim, de seus conceitos puros a priori, a necessidade e a universalidade de que (enquanto sensíveis) carecem. A experiência sintetiza, assim, a forma univer-
2 ÉTICA E METAFÍSICA fia, deve constituir, no entanto, apenas a primeira parte do esforço filosófico a sua parte crítica enquanto delimitação das possibilidades teóricas da razão e, portanto, como fundamentação daquela parte que, afinal, lhe é essencial: a parte doutrinal. A filosofia, neste sentido, deve ser antes de tudo uma filosofia transcendental, o que quer dizer: uma filosofia que antes de perguntar-se pelos objetos, pergunta-se pelas condições em que eles são constituídos. 5 Ora, mas o conhecimento a priori do objeto experienciável constitui apenas a primeira parte e não a essencial da Metafísica. 6 O que a caracteriza essencialmente e constitui seu fim último é, como já vimos, o conhecimento a priori de objetos não possíveis de nos serem dados em alguma experiência. No entanto, o conhecimento [teórico] a priori de nossa razão [...] só se refere a fenômenos, deixando ao contrário a coisa em si mesma de lado como coisa real para si, mas não conhecida por sal e necessária dos conceitos puros a priori do entendimento com o material sensível recebido pela sensibilidade. 5. Denomino transcendental todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos na medida em que este deve ser possível a priori (Kant, Crítica da Razão Pura, [Introdução], p. 33). 6. A Metafísica, além dos conceitos da natureza, que encontram sempre a sua aplicação na experiência, tem a ver com conceitos puros da razão, que nunca são dados numa experiência qualquer possível, por conseguinte, com conceitos cuja realidade objetiva...e com afirmações cuja verdade ou falsidade não pode ser confirmada ou revelada por nenhuma experiência; além disso, esta parte da metafísica é justamente aquela que constitui o seu essencial, para a qual tudo o mais é apenas meio... (Kant, Prolegômenos..., p. 110). nós (portanto, não para nós). 7 O em si que condiciona todo fenômeno é o incondicionado, condição última de todo fenômeno, e que, enquanto tal, não nos é dado como objeto dos sentidos e, portanto, também não na experiência. Daí que seja uma contradição pensar o nosso conhecimento dos objetos como regulado pelas coisas em si, já que elas não podem ser experencializadas. Mas não há qualquer contradição em pensarmos que os objetos de nossos conhecimentos limitados à esfera fenomênica nos são dados segundo nosso próprio modo de conhecer. O incondicionado pode ser pensado e mais ainda: deve ser pensado, pois, como argumenta Kant, do contrário seguir-se-ia a proposição absurda de haver fenômeno sem que houvesse algo aparecendo 8, mas não teoricamente conhecido. Conclusão fundamental dessa delimitação é que o supra-sensível não pode ser objeto de nossa faculdade teórica, mas apenas da faculdade prática (isto é, moral). O que Kant busca nos demonstrar é que se não fizermos uma distinção entre fenômeno e noumeno, todas as coisas em geral só poderiam ser pensadas pela causalidade natural, o que nos levaria à contradição se pensássemos uma causalidade livre (isto é, uma causalidade que não se insere numa série causal a partir de causas anteriores, mas, ao contrário, inicia a partir de si mesmo uma nova série causal). Daí que, nesta perspectiva, os objetos dos 7. Kant, Crítica da razão pura, p. 13, itálicos meus. 8. Ibidem, p. 16. Aqui cabe, mais uma vez, lembrar que fenômeno em alemão (Phänomen), tanto quanto em português, deriva do phainômenon grego, particípio presente singular neutro do verbo phaíno, aparecer, estar à vista, estar à luz.
3 ÉTICA E METAFÍSICA sentidos são pensados pelo princípio da causalidade natural (mecanismo), conhecidos teoricamente e não-livres, pois precisamente determinados numa série causal; já as coisas em si, que iniciam uma série causal, podem ser pensadas mas não conhecidas teoricamente como livres. Nesta perspectiva, a metafísica possível, segundo Kant, deve dar conta da aplicação da razão simplesmente a si mesma e [d]o pretenso conhecimento objetivo que decorreria imediatamente da razão incubando os seus próprios conceitos, sem que para isso ter necessidade da mediação da experiência (ou que em geral aí possa chegar através dela). 9 Esses conceitos da razão, cuja determinação se dá inteiramente independente de toda experiência possível, se distinguem inteiramente dos conceitos puros do entendimento. Segundo explicita, assim como o entendimento precisa das categorias para a experiência, de igual modo a razão contém em si o princípio das idéias. 10 As idéias, enquanto conceitos da razão (puros, a priori e não experimentáveis), são princípios regulativos da ação moral e se situam, portanto, na esfera das faculdade prática (e não teórica) dos indivíduos. Deste modo, as três grandes questões metafísicas que, para Kant, são a existência de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade 11 não podem ser objetos do conheci- 9. Kant, Prolegômenos..., p Ibidem, p. 111, itálicos meus. 11. Essa é a versão kantiana dos três objetos da metafísica especial (assim denominada por Spinoza na Parte II de seus Pensamentos metafísicos, apêndice dos Princípios da filosofia cartesiana [1663]), tal como se encontram tematizados por Descartes em suas Meditações [1641], a saber, Deus, alma e mundo. mento teórico, pois desses objetos não podemos ter qualquer experiência; eles têm, portanto, para Kant, uma dimensão prática (moral). O que isto, no entanto, quer dizer? É o que cabe, agora, explicitar, recorrendo à Fundamentação da Metafísica dos Costumes e, por fim, à Crítica da Razão Prática. II Leis da natureza e leis da liberdade Para Kant, tudo na natureza age segundo leis; só os seres racionais agem segundo uma representação da lei, isto é, possuem vontade. Com efeito, a vontade é definida por Kant como a faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de leis. 12 Com esta definição, no entanto, não temos ainda o conceito de vontade livre (liberdade), pois, como parece claro, ainda se está por saber que leis se devem representar na determinação de nossa ação para que esta seja livre, isto é, decorra de nossa livre vontade. Disto decorre a distinção, que é essencial ao pensamento kantiano, entre leis da natureza e leis da liberdade Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes [1785]. Trad. port. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, p Neste passo, a compreensão de duas classes de distinções estabelecidas por Kant é fundamental. Num primeiro nível, que diz respeito à própria divisão fundamental do sistema filosófico entre filosofia teórica e filosofia prática, temos a distinção entre conceitos da natureza (os conceitos puros a priori do entendimento, formas a priori de todo conhecimento teórico possível, cujos objetos são os fenômenos, isto é, os objetos dos sentidos) e os conceitos da liberdade (as idéias ou conceitos puros da razão, enquanto princípios regulativos da ação, cujos objetos, segundo Kant observa, não podem ser dados em nenhuma experiência : a determina-
4 ÉTICA E METAFÍSICA Daí que Kant apresente, primeiramente sob a forma negativa, o conceito de liberdade como sendo a propriedade daquela vontade que não é determinada por causas estranhas; positivamente, isto significa que a vontade livre é aquela que se normatiza pela representação da lei que ela mesma se deu. Assim, vontade livre é, para Kant, autonomia, autolegislação. Assim, o que seria próprio aos seres racionais é o fato de serem dotados de uma vontade livre, isto é, de uma vontade que determina a sua ação por uma representação de leis que eles mesmos, enquanto seres racionais, legislam. 14 ção prática da vontade pela razão). Dessa distinção decorre necessariamente uma segunda: entre as ações tecno-práticas (cujo objeto é fenômeno e, como tal, se assenta em imperativos decorrentes do conhecimento teórico da natureza) e as ações práticomorais (cujo fundamento a priori são os conceitos da liberdade). Teoria e práxis em Kant estão, portanto, necessariamente separados, sendo tal separação condição para que haja a liberdade no nível práxico. Em Aristóteles, esta distinção aparece entre a teoria, enquanto contemplação do eterno, na qual os homens se comparam aos deuses, e práxis, enquanto ação no âmbito éticopolítico, no qual os homens relacionam-se com seus iguais; em Kant a teoria é pensada como conhecimento teórico dos fenômenos, em cujas exigências encontra-se a de intuição sensível, e a práxis é pensada como uso dos princípios supra-sensíveis da ação (trata-se, assim, de um conhecimento prático suprasensível). 14. Como Hegel chama a atenção em suas Preleções de história da filosofia, Kant assume, neste nível mais fundamental e geral da ação moral, a definição de liberdade pensada por Rousseau no âmbito da autolegislação política: a obediência à lei que se estatuiu a si mesmo é a liberdade (Contrato social, I, 8), definição esta que retoma, em certa medida, o sentido grego de autonomia, constitutivo do que os gregos entendiam por política. Como o homem não é apenas racional, mas também um ser da natureza, sua vontade não se determina como seria o caso das vontades santas apenas pela razão, pela lei racional, mas também pelas inclinações, paixões, constrangimentos históricos etc. (conjunto de determinações estrangeiras à razão, que poderíamos agrupar sob a categoria de Natureza ). Daí por que a lei da razão assuma a forma de uma obrigação (Nötigung), um mandamento. Colocar-se a si mesmo frente às determinações de sua razão como a uma obrigação, significa para os homens colocarem-se racionalmente um dever (Sollen). O dever é precisamente o posicionar-se prático como obrigado diante de uma lei, que tem para a consciência moral um caráter objetivo, universal, em distinção das inclinações subjetivas-particulares. O dever, assim, assume para nós a forma de um mandamento, um imperativo categórico, que determina em absoluta necessidade a forma sob a qual se dá o agir livre do homem. Tal forma é: Age segundo uma máxima que possas querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, p. 59. A relação do dever com a lei moral conduz Kant à distinção entre agir de a- cordo com o dever e agir pelo dever. Pelo primeiro termo, diz-se de uma conformidade da ação ao dever, fenomenicamente verificável, na qual permanece incerto o seu móbil: se, de fato, há a adequação da máxima da ação à lei moral ou uma inclinação que, a- penas exteriormente/aparentemente, a ela é conforme. Quando o móbil é a inclinação imediata, a ação não tem nenhum valor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Ao contrário, quando se age não por inclinação ou medo, mas por dever, então a sua máxima tem um conteúdo moral (Ibidem, p. 27 e 28, respectivamente).
5 ÉTICA E METAFÍSICA Antes de explicarmos o significado deste imperativo, é necessário termos em vista que o seu caráter categórico isto é, incondicional e absoluto está intimamente ligado ao seu caráter formal. Segundo a avaliação de Kant, todo sistema moral tinha até então fracassado precisamente pelo seu caráter material, isto é, por ser constituído por leis morais de conteúdos particulares: deves fazer isto, não deves fazer aquilo etc. O caráter material desses sistemas morais, pela própria particularidade de seus conteúdos, leva inevitavelmente a contradições, por um lado, e, por outro, a uma desorientação frente à infinidade de problemas morais que a experiência ética apresenta aos indivíduos. Daí por que, para bem agirmos moralmente, precisamos nos basear não em um sistema de normas morais positivadas, mas de uma forma a priori à qual toda a nossa experiência ética possa ser submetida, um critério da razão com fundamento no qual todos os móbiles da ação possam ser julgados e a ele adequados. Tal critério, sendo formal, deve, portanto, poder ajuizar de modo absoluto todas as máximas (isto é, as determinações subjetivas) de nossa ação. Tal critério, assim exigido, só pode radicar na razão em sua autonomia, isto é, em nossa faculdade de determinar leis práticas (morais) de modo absolutamente a priori e livre de todos os constrangimentos exteriores, sejam eles históricos, naturais, sentimentais etc O conceito de autonomia é central à determinação do fundamento da lei moral, que, segundo Kant, é a liberdade enquanto propriedade da razão; opõe-se, assim, à heteronomia, à causalidade da vontade não fundada na lei moral e, portanto, também não naquilo que a condiciona, que é a liberdade da razão. No dizer de Kant: Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à Neste sentido, o imperativo categórico se distingue radicalmente dos imperativos hipotéticos, na medida em que estes determinam uma ação cujo fim está fora dela, isto é, uma ação que é apenas meio para um fim outro. 17 Já o imperativo categórico determina um valor moral à ação nela mesma, isto é, como fim em si mesmo e não por poder ser ela um meio para outro fim. Ele se determina de modo absolutamente a priori, diferentemente dos hipotéticos, que são empíricos. O motivo do imperativo categórico não pode ser, portanto, nem mesmo a felicidade, nem mesmo o prazer. A ação moral, fim em si mesma, pode tornar-nos dignos da felicidade, mas não pode mover-se a tendo como objetivo; e pode certamente dá-nos prazer, mas um prazer moral, quando experimentamos nossa própria liberdade de agir por princípios da razão e não por constrangimentos externos de qualquer ordem. O imperativo categórico é, assim, o princípio supremo que, fundado na autonomia da razão e, portanto, qual ela é para si mesma a sua lei (independente dos objetos do querer). Ao contrário, Quando a vontade buscar a lei que deve determiná-la em qualquer outro ponto que não seja a aptidão das suas máximas para a sua própria legislação universal além de si mesma, o resultado é então sempre heteronomia (Ibidem, p. 85 e 85, respectivamente). 17. Os imperativos hipotéticos, segundo Kant, dividem-se em problemáticos e assertórico-práticos. Problemáticos quando seu fim é múltiplo e apenas possível; tais são os imperativos de destreza que nos conduzem às ações de habilidade e se determinam pela representação das leis naturais. Assertórico-práticos, quando seu fim é a felicidade, cujos meios por dependerem do que possa a cada um conduzir à felicidade e das condições externas em que ela pode se realizar são múltiplos exigindo de cada um apenas a prudência. Cf. Kant, op. cit., p
6 ÉTICA E METAFÍSICA em sua liberdade, legitima a ação livre do homem, na medida em que a situa numa esfera universal. Pelo imperativo categórico, expressa-se a exigência racional de que a ação humana, para ser livre, deve determinar-se por uma legislação universal, à qual se deve poder ajustar o conteúdo particular de nosso querer subjetivo (máximas). Mas, já que a ação humana efetiva-se no mundo fenomênico, sensível (natureza, em seu sentido amplo), o imperativo categórico, cuja fórmula foi apresentada acima, pode assumir, portanto, uma segunda forma: Age como se a máxima de tua ação se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza. 18 Ora, se o imperativo categórico for possível, ele o será por ter por base um fim que esteja em si mesmo; tal base, como sabemos, é a razão. Segundo Kant, isto quer dizer: A natureza racional existe em si mesma. 19 Daí que o imperativo categórico, segundo ele, possua ainda uma terceira forma: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio. 20 A universalidade, que a razão exige como fim de toda ação nossa e da qual só a própria razão pode ser fundamento, expressa o fato de que a razão (em nós e nos outros) tem sempre a si mesma (em nós e nos outros) como finalidade. Deste modo, os homens, enquanto racionais, são sempre fim e nunca meios; é isto o que os torna pessoas e os distingue das coisas. 18. Ibidem. 19. Ibidem, p Ibidem. Mas a razão é base para o imperativo categórico porque, em sua autonomia, ela é legisladora. Segundo Kant, o princípio da autolegislação conduz ao conceito de Reino dos Fins. Enquanto ideal da autolegislação universal, o Reino dos Fins diz de um reino (i. é, uma totalidade de vontades racionais) que se funda no princípio de que cada um dos seus membros tenha sempre a si mesmo e aos outros como fim. O ideal moral do Reino dos Fins é possível como mundo de seres racionais que determinam as máximas de suas ações tendo-as sempre como de validade legal universal. O Reino dos Fins é o reino da liberdade, enquanto mundo inteligível no qual todo ser racional se põe a si mesmo como legislador de sua ação, cuja máxima, por conseqüência, tem a forma de uma lei universal, isto é, uma lei válida para cada um e para todos os outros. Assim compreendido, o imperativo assume ainda uma última forma: Age segundo máximas de um membro universalmente legislador em ordem a um reino dos fins somente possível. 21 Essas formas do imperativo categórico relacionam-se essencialmente entre si, enquanto maneiras distintas do mesmo princípio da moralidade. As duas primeiras apresentam o elemento formal da moralidade: a sua universalidade (a exigência de que a máxima da ação tenha a forma de lei universal). A terceira apresenta a matéria ou fim da moralidade: a posição dos seres racionais como finalidade de toda ação moral. A última, como síntese, apresenta a determinação completa de todas as máximas: a sua concordância com a idéia da razão de um reino possível dos fins como um reino da natureza. Kant pode, 21. Ibidem, p. 83.
7 ÉTICA E METAFÍSICA assim, definir a moralidade como sendo a relação das ações com a autonomia da vontade, isto é, com a legislação universal possível por meio de suas máximas. 22 III Leis éticas e leis jurídicas É do fundamento da autonomia da razão que Kant parte para a esfera comum onde se situam as leis da liberdade. Nelas se incluem tanto as leis propriamente éticas, que exigem do agir a consciência interior do dever, quanto as leis jurídicas, que exigem apenas uma conformidade exterior da ação às leis. Na Metafísica dos Costumes Doutrina do Direito, Kant determina assim estes dois tipos de leis da liberdade: Essas leis da liberdade são chamadas de morais, de forma a serem distinguidas das leis naturais ou físicas. Quando se referem somente a ações externas e à sua legitimidade, são chamadas jurídicas. Porém, se, além disso, exigem que as próprias leis sejam os princípios determinantes da ação, então são chamadas de éticas na acepção própria da palavra. E então se diz que a simples conformidade da ação externa com as leis jurídicas constitui a sua legalidade; sua conformidade com as leis morais é sua moralidade. 23 Ricardo Ribeiro Terra propõe uma outra tradução para o último período dessa citação: O acordo com as primeiras [i. é, leis jurídicas] é a legalidade das ações, o acordo com as segundas [i. é, leis 22. Ibidem, p Kant, Doutrina do direito [1797]. Trad. bras. Edson Bini. São Paulo: Ícone, 1993, p éticas] a moralidade. 24 O uso dessa citação no artigo de Terra cumpre a função de manter a idéia de que leis morais, como diz o próprio Kant, são o mesmo que leis da liberdade ; neste sentido, tanto as leis jurídicas quanto as éticas são leis morais, leis da liberdade. A moralidade não se constitui, portanto, das leis morais, como sugere a tradução de E. Bini, mas especificamente das leis éticas, pois estas são morais tanto quanto as leis jurídicas, que constituem a legalidade. Assim, para Kant, as leis morais, enquanto leis da liberdade, que se fundam na autonomia da razão, se dividem em leis éticas e leis jurídicas, às quais correspondem dois campos da ação, respectivamente: a moralidade e a legalidade. Ao primeiro corresponde a Ética, ao segundo o Direito. Esta diferença é, no entanto, formal. O dever é o mesmo; o que os diferencia não é o fundamento, mas sim qual móbil (se interior e ou exterior) está ligado à lei. A esfera do Direito, enquanto corresponde à exigência de que a ação deva situar-se numa determinação universal e racional, não-subjetiva e não-empírica, também se funda na autonomia da razão e pertence, portanto, à esfera da liberdade humana. Dito de outro modo, somente a razão, enquanto legisladora, pode dar forma universal a mandamentos, ainda que estes se apresentem numa relação externa com as máximas das ações individuais, como acontece com as leis jurídicas, e não como móbiles internos das máximas, como é o caso das leis éticas. A ação conforme à lei exterior da liberdade (lei jurídica) 24. Terra, R. R. A distinção entre direito e ética na filosofia kantiana. In: Filosofia Política, nº 4. Campinas, SP: Edunicamp, p. 49, colchetes meus.
8 ÉTICA E METAFÍSICA mantém-se ainda, portanto, fundada na autonomia da razão; o fato de que seu móbil é exterior não significa aqui a presença da heteronomia, pois esta, segundo Kant, não pode fundar nenhuma obrigação. Contudo, o ser racional, quando sua vontade é determinada pela razão, faz-se obrigado diante das leis jurídicas, porque nelas reconhece a forma universal, portanto racional, da lei. Segundo bem comenta Terra, a obrigação jurídica, bem como a exigência de coexistência das liberdades segundo uma lei universal, devem basear-se na razão prática. 25 Ora, se o fundamento do Direito é a autonomia (isto é, a faculdade que o homem como ser racional possui de dar-se leis), o que lhe vai ser específico é justamente a normatização da coexistência das diversas liberdades singulares. O tipo de liberdade especificamente jurídica é aquela em que a liberdade de um indivíduo não é impedida pela liberdade do outro; para que as múltiplas liberdades individuais possam se realizar e, ao mesmo tempo, conviver, faz-se necessária uma normatização dessa convivência, segundo leis exteriores da liberdade, o que precisamente conforma o Direito. Daí que Kant formule do seguinte modo a lei universal do Direito : age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos. 26 Deste modo, no pensamento de Kant, encontram-se articuladas a esfera fundante da liberdade moral do homem, onde todo legislar é autônomo, e a esfera específica do jurídico, na qual as liberdades individuais (arbítrios) encontram um princípio normativo de convivência. É por- 25. Terra, op. cit., p Kant, Doutrina do direito, p. 46. que o homem, enquanto ser livre, pode elaborar leis para a sua ação com base na razão (isto é: válida incondicionalmente para todos), que o Direito é possível, enquanto articulador de uma legislação universal mantenedora da convivência dos diversos arbítrios individuais. IV Liberdade e postulados da razão Finalmente, podemos agora concluir a nossa exposição respondendo à seguinte pergunta: como as grandes questões metafísicas Deus, imortalidade da alma e liberdade se relacionam com o problema moral? Para pensar essas três questões metafísicas, uma delas se apresenta, para Kant, como fundamento mesmo de toda a moralidade, que é a liberdade. Da liberdade, podemos ter o conceito não como parte de um conhecimento teórico (isto é, experimentável), mas de um conhecimento prático. Na medida em que o fato da lei moral é por nós imediatamente conhecido pois nos ordena imediatamente e apenas possível enquanto liberdade, analiticamente nós sabemos a realidade da liberdade, ainda que não a possamos teoricamente discernir. Como argumenta Kant, a liberdade é, certamente, a ratio essendi da moral, [...] [e] a lei moral constitui a ratio cognoscendi da liberdade. 27 Pelo conhecimento prático da moral (a ação segundo princípios), nós discernimos a liberdade da razão (ter em si mesma seus princípios) como seu fundamento. Aqui parece ocorrer precisamen- 27. Kant, I. Crítica da razão prática [1788]. Trad. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1989, p. 12.
9 ÉTICA E METAFÍSICA te o mesmo procedimento da analítica transcendental da Crítica da razão pura: se há leis, trata-se de saber o que as torna possíveis. Se mandamentos morais há, se é fato que a razão me ordena imediatamente, independente das condições exteriores, é porque ela é autônoma, portanto livre e autolegisladora. A liberdade, assim, se distingue dos conceitos de Deus e da imortalidade da alma porque é condição de possibilidade da lei moral. Mas esses últimos dois conceitos, ainda que não sejam condição da lei moral, são, no entanto, segundo diz Kant, as condições da aplicação da vontade moralmente determinada ao seu objeto. 28 Isso quer dizer que a consciência moral, no uso de sua liberdade (a moralidade), apesar de não ter nas idéias de Deus e imortalidade da alma o fundamento da lei moral, tem nessas idéias, no entanto, as condições de uso da sua liberdade, isto é, da sua ação moral. A consciência moral postula, para além do exercício da liberdade como seu fundamento, também a existência de Deus e a imortalidade da alma. A consciência moral postula a imortalidade da alma porque a exigida completa adequação da vontade aos imperativos da razão prática não é possível senão num progresso infinito; esta santidade requerida pela razão é postulada pela consciência moral, como persistência da personalidade num mesmo ser racional, esta persistência sendo justamente o que chamamos de imortalidade da alma. Do mesmo modo ocorre com a idéia de Deus. A lei moral nos exige agir em função do soberano bem e 28. Ibidem, itálicos meus. determina em nós, em cada uma de nossas ações, a adequação às suas exigências como condição para sermos dignos da felicidade; somos, no entanto, racionalmente, causa apenas de nossas ações individuais, e não do mundo e da natureza, não havendo nos limites de nossa ação moral qualquer relação entre moralidade e felicidade. Daí que a consciência moral postule a existência de uma causa do mundo e da natureza que possa, acima de nós, garantir essa relação entre felicidade e moralidade, bem como a garantia da realização do soberano bem no mundo. Dizer que Deus e imortalidade da alma são postulados da razão prática significa dizer que, segundo Kant, derivam todos eles do princípio da moralidade. Este princípio alerta não é, ele mesmo, contudo, nenhum postulado, mas uma lei, pela qual a razão determina i- mediatamente a vontade, vontade esta que, precisamente por ser assim determinada, enquanto vontade pura, exige estas condições necessárias para a observância do seu preceito. 29 Referências bibliográficas KANT, Immanuel. Crítica da razão pura [1781]. Trad. bras. Valério Rohden et al. São Paulo: Abril Cultural, Prolegômenos a toda metafísica futura que queira apresentar-se como ciência [1783]. Trad. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, Fundamentação da metafísica dos costumes [1785]. Trad. port. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, Ibidem, p. 151, itálicos meus.
10 ÉTICA E METAFÍSICA 89. Crítica da razão prática [1788]. Trad. port. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lecciones sobre la historia de la filosofía, III. Trad. mex. Wenceslao Roces. Cidade do México: Fondo de cultura económica, ROUSSEAU, Jean.-Jacques. Contrato social. Trad. br. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores). TERRA, Ricardo Ribeiro. A distinção entre direito e ética na filosofia kantiana. In: Filosofia Política, nº 4. Campinas, SP: Edunicamp, 1989.
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