O ARTEFATO CALÇADO COMO CULTURA MATERIAL

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1 O ARTEFATO CALÇADO COMO CULTURA MATERIAL Natalie Rodrigues Alves Ferreira de Andrade (FATEC e UNIFRAN, Franca) Resumo: Este artigo pretende refletir sobre o papel do design na indústria calçadista e como o artefato calçado - imbuído de desejos, significados e necessidades exerce um papel simbólico na descrição de nossas identidades e memórias, como elemento constituinte da cultura material. Palavras-chave: Calçado, Cultura material. Design. Abstract: This paper aims to reflect about the role of design in footwear industry and how the artifact footwear - imbued of desires, meanings and necessitiesrole - plays a symbolic role in the description of identities and memories as a constituent element of material culture. Keywords: shoes; material culture; design. Introdução O presente artigo 1 tem como objetivo contextualizar o artefato calçado como cultura material. A escolha por pesquisar os calçados e os processos de design dos mesmos, relacionam-se a trajetória e experiência profissional da pesquisadora 2. Por intermédio de referências bibliográficas, buscou-se fundamentar, para uma reflexão, os conceitos de cultura material e design, para entender o papel do design de calçados nas indústrias. O calçado como cultura material Os calçados são complementos essenciais no modo de vida humano, uma vez que, além de proteger as extremidades dos membros inferiores, apresentam outros significados, como os de sonho, sedução e poder, fortemente presentes no imaginário feminino. Esses 1 O artigo faz parte de uma das reflexões da pesquisa de Mestrado em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (SP), sobre orientação da profa. Dra. Márcia Merlo, onde a pesquisadora investigou o design de calçados femininos do polo de Franca, interior de São Paulo. 2 A autora é graduada em Desenho de Moda pela Faculdade Santa Marcelina (2001) e mestre em Design pela Universidade Anhembi Morumbi (2012). Atuou como designer de calçados femininos em indústrias do polo de Franca, interior do estado de São Paulo e à oito anos é docente nas área de design de moda e calçados em universidades da região. 55

2 elementos são representados por meio do design de moda configurado no artefato calçado com variada gama de referências e inspirações para criações de novos modelos, incluindo diferentes formas, materiais, cores, tecnologias e técnicas de produção. Além do aspecto funcional, de proteção e auxílio no caminhar, os sapatos são irresistíveis e tentadores, principalmente para as mulheres que, em alguns momentos, valorizam e consomem mais um novo par de sapatos ao invés de outra peça do vestuário feminino. É necessário compreender as estruturas históricas, sociais e culturais para compreender a cultura material 3, no caso, o calçado feminino, objeto de estudo deste artigo. O objeto calçado não é apenas restrito à sua função e utilização, mas também se relaciona com a satisfação, valores, realizações de desejos e experiências. O design, nesse contexto, é a linguagem que transmite a mensagem dos objetos, tornando-se um veículo que contextualiza os desejos no espaço e no tempo. Por meio do design e seus processos de criação, é possível aplicar aos calçados, de forma planejada, conceitos, referências e tendências da moda, por meio de elementos de design como cores e formas; além de características de inovação, como novas combinações e uso de novos materiais. Entende-se por objeto qualquer artefato que resulte da aplicação da vontade do sujeito, consubstanciada no processo de conformação da matéria (BOMFIM, 1997, p.36). Para esse autor, não há sentido no objeto se não houver o sujeito, pois o objeto, com suas representações ou conceitos, só existe dentro do limite das experiências humanas, de nossos conhecimentos e linguagens. Portanto, as características de um objeto são, na verdade, interpretações subjetivas que dele fazemos. O entendimento de um objeto é efêmero, pois os sujeitos e os significados dos objetos se alteram no tempo e espaço. Uma vez configurado, o objeto passa a existir a partir do contato com o usuário e estabelece relações, muitas vezes, não consideradas no projeto, como funções afetivas. Para Cardoso (1998), os artefatos possuem diversos níveis de significados: alguns universais e inerentes; outros, extremamente pessoais e volúveis, significados estes que o objeto só pode adquirir a partir da intencionalidade humana. Muitas das necessidades humanas são satisfeitas por meio da utilização dos objetos. Para Löbach (2001, p.31), isso ocorre por meio das funções dos produtos que, no processo de 3 Conforme Cardoso (1996, pp.19-20) o termo Cultura Material originou-se no século XIX na etnologia e no estudo de artefatos de povos considerados primitivos. Atualmente esse conceito ganhou uma dimensão mais ampla e pesquisamos a cultura material da nossa sociedade como uma maneira de entender melhor os artefatos que produzimos e consumimos, bem como a maneira em que estes se encaixam em sistemas simbólicos e ideológicos mais amplos. 56

3 utilização, se manifestam como valores de uso. Mais uma vez nota-se que o designer tem o papel de representar o interesse dos usuários. As funções práticas dos objetos são indispensáveis, mas necessitam das funções simbólicas, pois, segundo Gonçalves (2007), estas são pré-condições estruturais para o exercício das primeiras. Ainda, para o autor, é preciso refletir os significados que podem assumir os objetos materiais na vida social em seus diversos contextos e em nossas memórias e identidades. Desta forma, Gonçalves (2007, p.24) descreve que podemos perceber os processos sociais e simbólicos por meio dos quais esses objetos vêm a ser transformados ou transfigurados em ícones legitimadores de ideias, valores e identidades assumidas por diversos grupos e categorias sociais. Para o entendimento das formas de vida social e cultural, é indispensável considerar os objetos, e não pensa-los de forma evolutiva ou nas técnicas de fabricação. Torna-se relevante a partir da década de 1960 pensar em que significado ou símbolo são empregados pelos usuários num mesmo objeto em diversos contextos sociais e rituais, além de estudar formas, material e técnica de fabricação dos objetos, e refletir sobre as modalidades e contextos de uso. Weiner apud (GONÇALVES, 2007, p.26) considera que os objetos constituem nossa subjetividade individual e coletiva e descreve seus poderes: Nós usamos objetos para fazer declarações sobre nossa identidade, nossos objetivos, e mesmo nossas fantasias. Através dessa tendência humana a atribuir significados aos objetos, aprendemos desde tenra idade que as coisas que usamos veiculam mensagens sobre quem somos e sobre quem buscamos ser. [...] Estamos intimamente envolvidos com objetos que amamos, desejamos ou com os quais presenteamos os outros. Marcamos nosso relacionamento com objetos [...]. Através dos objetos fabricamos nossa autoimagem, cultivamos e intensificamos relacionamentos. Os objetos guardam ainda o que no passado é vital pra nós. [...] não apenas nos fazem retroceder no tempo como também tornam-se os tijolos que ligam o passado ao futuro. Segundo Lipovetsky (2009, p. 173), os objetos podem ser, em alguns momentos, significantes sociais e signos de inspiração, porém ele contesta a ideia de que o consumo de massa, atualmente, seja comandado principalmente por um processo de distinção social: É cada vez menos verdadeiro que adquirimos objetos para obter prestígio social, para nos isolar dos grupos de estatuto inferior e filiar-nos aos grupos superiores. O que se busca, através de objetos, é menos uma legitimidade e 57

4 uma diferença social do que uma satisfação privada cada vez mais indiferente ao julgamento dos outros. O consumo manifesta-se em vista do bem-estar, da funcionalidade, do prazer para si mesmo. Conforme Bauman (1999), com a globalização, a indústria produz objetos efêmeros, reduzindo drasticamente a durabilidade dos produtos. Instala-se a era da competitividade global, e, para chamar a atenção das pessoas nesse cenário, foi necessário pensar estratégias tanto para despertar o desejo pelo consumo de bens, serviços e sinais, como para afastar seus competidores. Distinguem-se a partir desse movimento características entre as épocas: a sociedade moderna, com suas camadas fundadoras da fase industrial, é considerada uma sociedade de produtores, uma vez que desempenhavam um papel de produtor moldado, e a sociedade pós-moderna é a dos consumidores. Na sociedade pós-moderna, a necessidade e os desejos são uma busca por novas sensações e experiências. A partir deste momento, além de uma necessidade de possuir e de acumular riquezas materiais, há, também, a excitação de uma sensação nova, ainda não experimentada (BAUMAN, 1999, p.91). Ao longo de nossas vidas, desejamos e colecionamos objetos assimilados em nossa personalidade, a partir de todo um conjunto de valores, atitudes, sentimentos e criatividade daqueles que os inventaram, usaram, conhecem e desejam. Esses objetos ou produtos de uso, como os calçados, constituem uma parte importante da estrutura econômica, retratando as condições de uma sociedade. O sapato feminino, por um longo período da história, esteve oculto sob longas saias, porém, mesmo quando escondido, trata-se de um dos artefatos que mais revelam a personalidade de uma mulher, pois, de acordo com O Keeffe (1996, p.12), os sapatos são a entrada para a mente feminina. A autora sugere que mulheres colecionadoras de sapatos estão simbolicamente em busca de novas sensações, como as de poder, beleza ou status. Vale refletir sobre o motivo pelo qual se diz que algumas mulheres não conseguem se desfazer de um par de sapatos, mesmo sabendo que não vão mais usá-los, ou sobre o que faz um sapato ser mais pessoal do que qualquer outro item do vestuário. Para McDowell (1989), alguns escolhem um modelo de calçado por seu conforto, porém, não é, na maioria das vezes, o conforto que impera na sua escolha, mas seu estilo, uma vez que pode proporcionar sensações que elevam a autoestima. É necessário também, conhecer a história do calçado e, principalmente, seu design, incluindo os processos criativos inseridos em cada período histórico, bem como considerar que 58

5 esse artefato se associa à intimidade feminina quando pesquisamos referências para o desenvolvimento de novos calçados. Como afirma Rainho (2002, p.11), é preciso compreender como os hábitos se encadeiam, [...] num todo cultural, com as outras práticas da sociedade. Nesse contexto, a moda reflete as transformações socioculturais da sociedade e revela hábitos, comportamentos, posições sociais e gostos de uma determinada época. Desta forma, o conceito de moda não é limitado ou restrito ao vestuário, mas também inclui a cultura das aparências que envolvem, além de roupas, acessórios, joias, calçados, penteados, objetos, linguagens e maneiras, gostos, ideias, artistas e suas obras, que são atingidos pelo processo da moda (RAINHO, 2002). Considerações Finais O calçado, neste trabalho, é considerado um artefato nos termos propostos por COELHO (2008), porque o termo refere-se a objetos produzidos por meio de trabalho humano, abrangendo desde os objetos tecnológicos e artísticos até os industriais e artesanais, independentemente de suas funções, utilidades ou valor simbólico. Por meio da análise de conjuntos desses artefatos, procuramos analisar o que Cardoso (1998) denomina de cultura material. Desta forma, torna-se possível verificar os calçados produzidos e consumidos pela sociedade sob a ótica das áreas do design e da moda, ambos ligados pelo planejamento e projetos de produção de caráter industrial, utilizando o mecanismo da sedução, que envolve o impulso do desejo, do consumo de bens materiais e do próprio estilo de vida dos consumidores, além da motivação adicional compartilhada pela novidade (PIRES, 2008). Referências BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução: Marcus Penchel. Jorge Zahar Ed.: Rio de Janeiro, BOMFIM, Gustavo Amarante. Fundamentos de uma Teoria Transdisciplinar do Design: morfologia dos objetos de uso e sistemas de comunicação. In: Estudos em Design, n.2, v.5, Rio de Janeiro, Aend, CARDOSO, Rafael. Design, Cultura Material e o Fetichismo dos Objetos. Revista Arcos, Volume 1, COELHO, Luiz Antonio. Conceitos chave em design. Rio de Janeiro: Editora PUC RIO,

6 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Coleção Museu, Memória e Cidade: Rio de Janeiro, LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras/ Companhia de Bolso, LÖBACH, Bernard. Design industrial: base para a configuração dos produtos industriais. São Paulo, Editora Blucher, McDOWELL, Colin. Shoes: fashion and fantasy. Londres: Thames & Hudson, O KEEFFE, Linda. Sapatos: uma festa de sapatos de saltos, sandálias, chinelos. Colônia, Alemanha: Konemann, RAINHO, Maria do Carmo Teixeira. A cidade e a moda: novas pretensões, novas distinções Rio de Janeiro, século XIX. Brasília: Editora Universidade de Brasilia,