Coordenação editorial: Jung Mo Sung Deus em nós O reinado que acontece no amor solidário aos pobres, Hugo Assmann e Jung Mo Sung A maldição que pesa

Transcrição

1 fé e viagens NO MUNDO GLOBALIZADO

2 Coleção Novos caminhos da Teologia Coordenação editorial: Jung Mo Sung Deus em nós O reinado que acontece no amor solidário aos pobres, Hugo Assmann e Jung Mo Sung A maldição que pesa sobre a lei As raízes do pensamento crítico em Paulo de Tarso, Franz Hinkelammert Um Jesus popular Para uma cristologia narrativa, Néstor Míguez Teologia do processo Uma introdução básica, C. Robert Mesle Fé e viagens no mundo globalizado, Joerg Rieger

3 joerg rieger fé e viagens no mundo globalizado

4 2011, Joerg M. Rieger ISBN Traveling, de Joerg M. Rieger, traduzido da edição inglesa publicada pela Fortress Press. Publicado no idioma português por acordo com The Rowman & Littlefieldl Publishing Group. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser reproduzida ou transmitida em quaisquer formatos, meios eletrônicos ou mecânicos incluindo fotocópia, reimpressão, ou em qualquer sistema de armazenamento ou recuperação de informações, sem a permissão por escrito da Fortress Press. Tradução: Pe. José Raimundo Vidigal, C. Ss. R. Diretor editorial: Claudiano Avelino dos Santos Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Revisão: Caio Pereira Manoel Gomes da Silva Filho Iranildo Bezerra Lopes Diagramação: Ana Lúcia Perfoncio Capa: Marcelo Campanhã Impressão e acabamento: PAULUS Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rieger, Joerg Fé e viagens no mundo globalizado / Joerg Rieger; traduzido por José Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, (Coleção Novos caminhos da teologia) Título original: Traveling. ISBN Emigração e imigração - Aspectos religiosos - Cristianismo 2. Peregrinos e peregrinações cristãs 3. Turismo - Aspectos religiosos I. Título. II. Série CDD Índices para catálogo sistemático: 1. Evangelização: Missões: Cristianismo ª edição, 2014 PAULUS 2014 Rua Francisco Cruz, São Paulo (Brasil) Tel.: (11) Fax: (11) editorial@paulus.com.br ISBN

5 anto Agostinho, ao falar das grandes vantagens Sdas viagens, diz que o mundo é um grande livro, e ninguém estuda tanto este livro quanto um viajante. Os que nunca saem de casa leem apenas uma página deste livro. John Feltham, The English Enchiridion (Londres: C. Dilly, 1799), 2.

6 Prefácio D esde que nós, seres humanos, surgimos na terra, temos feito viagens. Na maioria desse tempo, temos viajado a pé em busca de um novo lar e de oportunidades, a fim de fugir de perseguição, ou simplesmente para conhecer outros lugares. Como nos dizem os antropólogos, nossa espécie estendeu- -se através de viagens que começaram na África e finalmente abrangeram o globo. Nós temos sido, em toda a nossa história, uma espécie em movimento. Além disso, em nossos dias, as viagens tornaram-se um grande negócio. Quando pensamos em viagem, a maioria dos ocidentais de classe média imediatamente pensa em algo que fazemos como lazer ou meio de vida, mas não para a sobrevivência. Viajamos para diversão, negócios ou por prazer. A indústria de viagens torna acessíveis essas viagens, seja de avião, seja de carro, permitindo-nos entrar em contato com terras e povos distantes que nossos antepassados dificilmente poderiam ter imaginado. Ainda nos dias de hoje, quando aumentam as viagens de lazer, um crescente número de nossos semelhantes viaja como refugiado político e econômico. A imigração e as controvérsias em torno da imigração comprovam o fato de que as viagens nem sempre expandem nossos horizontes; às vezes, alimentam preconceitos existentes. Fé e viagens no mundo globalizado 7

7 Neste estudo acessível e envolvente, Joerg Rieger mostra como a viagem é algo central para a fé cristã. Nossas Escrituras estão repletas de histórias de viagens: do Êxodo e do Exílio, de um Salvador itinerante que não tem onde repousar a cabeça e que convoca discípulos para segui-lo, de um apóstolo cujas viagens no século I deram origem a igrejas em todo o Mundo Mediterrâneo. No entanto, a teo - logia cristã muitas vezes comportou-se como se o viajar não importasse, como se suas crenças fossem estáticas e abstratas. Examinando as facetas variadas da viagem em nossos dias incluindo turismo, nomadismo, peregrinação e migração, Rieger oferece uma argumentação convincente para mostrar como a nossa teologia é mais bem entendida e vivida na estrada, enquanto caminhamos com os outros. No decurso de sua exposição, ele vê a viagem como um ato de resistência que redimensiona a nossa visão da missão cristã. A estrada que percorremos neste estudo nos levará a lugares surpreendentes. David H. Jensen Joerg Rieger 8

8 Introdução Milhões de pessoas viajam a cada dia, e para isso parece haver milhões de razões. As viagens assumem muitas formas diferentes. Alguns viajam por prazer, outros para trabalhar, e muitos viajam para encontrar trabalho e uma vida melhor. Além disso, há diferentes movimentos de viagens em curso em nosso tempo. Um deles é o nomadismo, no qual sobretudo jovens deixam seus locais de origem para conhecer o mundo, procurando aventura e horizontes mais amplos. Outro movimento muito diferente de viagens é a migração, quando as pessoas deixam suas terras por razões de necessidade e sobrevivência. As romarias constituem diferentes tipos de movimentos de viagem algumas ligadas a buscas profundamente religiosas e outras indistinguíveis do turismo, que constitui um dos maiores movimentos de viagens de todos os tempos. Esses movimentos parecem ter pouco em comum à primeira vista. Mas, quando pesquisamos diferentes espécies de viagens, vamos ver o que os vários viajantes podem aprender uns dos outros e o que mesmo aqueles que ficam em casa podem aprender. Eu escrevo este livro como alguém que tem aprendido muito na estrada. O viajar está entrelaça- Fé e viagens no mundo globalizado 9

9 Joerg Rieger do em minha vida de muitos modos, combinado com um constante desejo de passear. Eu cresci num país diferente, a milhares de quilômetros de distância de onde moro agora. Tive a oportunidade de viajar para muitos países, em ambos os hemisférios, Norte e Sul. Também tive ocasião de viajar por motivos muito diferentes: por prazer, para trabalho e por pura necessidade. Além disso, tive a oportunidade de viajar de muitas maneiras diferentes, por terra e água, de carro e moto, e muitas vezes usando o transporte público, especialmente companhias aéreas comerciais nas últimas décadas. Viajar com diferentes grupos também fez a diferença. Tenho feito um bom número de viagens com grupos de estudantes, algumas viagens fiz sozinho, e apreciei mais as muitas viagens com minha esposa, Rosemarie Henkel-Rieger e mais tarde com nossas filhas gêmeas, Helen e Annika, que já eram viajantes internacionais numa idade em que eu nunca tinha saído da Europa e que sempre contribuíram para alargar os meus horizontes. No entanto, escrevo este livro não apenas como um viajante, mas também como teólogo cristão que está convencido de que o viajar moldou significativamente nossas tradições judaico-cristãs e as nossas variadas experiências com o divino função que pela maior parte tem sido subestimada. Diante de toda essa atividade itinerante em tradições religiosas, é estranho que a religião seja muitas vezes tratada como algo estático. As comunidades de fé tendem a localizar-se em edifícios que têm o seu lugar estabelecido em bairros específicos. De acordo com a opinião popular, estar sentado na igreja é a atividade principal da fé cristã. Na maioria dos momentos de culto, essa atitude é interrompida apenas 10

10 para ficar de pé no mesmo lugar ou voltar-se para os vizinhos para cumprir um ritual. Muitas vezes, as comunidades de fé respondem diretamente aos interesses de suas localizações geográficas, com pouca consciência deste fato, e com pouca consciência de como muitos desses interesses são paroquiais numa sociedade na qual os bairros são estruturados de acordo com identidades raciais e o status social. Nesse contexto, aqueles que viajam e até mesmo comunidades de fé que viajam são vistos como exceções à regra. Por exemplo, viagens de missão, que estão se tornando cada vez mais populares em comunidades onde as pessoas podem pagar para financiar a viagem, tendem a ser vistas como interessantes passatempos na vida de uma comunidade de fé, mas elas geralmente não fazem muito para moldar sua identidade básica, e quase nunca são consideradas como relevantes para fornecer novas perspectivas sobre crenças religiosas fundamentais. Talvez a mais surpreendente intuição deste livro seja que viajar está tão profundamente enraizado em nossas tradições que muitas delas não fazem sentido sem isso. Considere quanto do material das tradições judaico-cristãs se desenvolveu de fato na estrada. Abraão, considerado um dos pilares da fé, não tem nada de estático. Ele desenvolveu sua relação com Deus quando enviado por este numa viagem estranha com seu clã, longe de casa. O povo de Israel passou um bom tempo caminhando. Suas histórias falam de escravidão nas terras de um império estrangeiro chamado Egito, de um êxodo do Egito e de quarenta anos vagando no deserto. Nessa viagem, eles aprenderam lições teológicas importantes, nem todas Fé e viagens no mundo globalizado 11

11 Joerg Rieger elas fáceis ou agradáveis. Entre essas, um aprofundamento da sua compreensão de Deus, como também profundos desafios a imagens desatualizadas deste. Mais tarde, o povo judeu foi exilado pelos babilônios, senhores de outro império. Nesse exílio, desenvolveram todo um conjunto de novas ideias teológicas frescas e de intuições teológicas estonteantes. Muitos dos textos bíblicos sobre a criação, por exemplo, foram produzidos nesse exílio, quando o povo começou a entender que seu Deus não estava sujeito ao império que os escravizara, mas era o criador de um mundo que permitia alternativas e um lugar onde até mesmo as viúvas, os órfãos e os estrangeiros poderiam prosperar. No Novo Testamento, o ministério de Jesus tem lugar quase inteiramente na estrada, como uma pessoa que não tem lugar onde descansar a cabeça (Lc 9,58). Uma viagem oferece o cenário do nascimento de Jesus na estrada em que sua família se encontrou por decreto dos romanos, sem lugar na hospedaria. Entre as viagens subsequentes de Jesus estão a migração como refugiado para o Egito quando ainda criança, viagens apostólicas para várias áreas remotas da Galileia e para centros econômicos produtores ao redor do Mar da Galileia, viagens ao longo da fronteira e para terras fronteiriças, como também uma viagem à Jerusalém metropolitana. O Evangelho de Lucas acrescenta uma viagem a Jerusalém na infância, e o Evangelho de João fala de várias viagens à metrópole. Seguir Jesus muitas vezes significava caminhar com ele, e o número de pessoas que caminhavam não se limitava aos doze discípulos que conhecemos pelo nome. Entre aqueles que estavam na estrada 12

12 com Jesus havia outros, homens e mulheres, e até mesmo um grupo de mulheres ricas que apoiavam seu trabalho, inclusive a esposa de um dos funcionários de Herodes (Lc 8,2-3). O apóstolo Paulo foi, a seu modo, desafiado localmente, cobrindo distâncias muito maiores do que Jesus. Em suas viagens, Paulo fundou igrejas em várias partes do Império Romano, muitas vezes em situações de grande pressão e tensão, que ele descreve desta forma: Três vezes naufraguei; passei uma noite e um dia à deriva. Fiz viagens sem conta, passei por perigos dos rios, perigos dos assaltantes, perigos de meus compatriotas, perigos dos pagãos, perigos da cidade, perigos do deserto, perigos do mar, perigos entre falsos irmãos. Trabalho e fadiga, vigílias sem número, fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez (2Cor 11,25-27). O livro dos Atos, que descreve muitas das suas viagens, com razão chama os cristãos de pessoas do Caminho (At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14.22). Talvez um dos mais importantes desafios teológicos que a viagem coloca para a vida cristã esteja resumido na carta aos Hebreus: Não temos aqui uma cidade permanente, mas buscamos a futura (Hb 13,14). O Cristianismo é o que se passa na estrada. Portanto, a viagem é mais do que uma metáfora da fé cristã. Localização e deslocalização constante são questões centrais da vida cristã. Viajar é, assim, um tema central para a fé e a vida. Mas a viagem não é apenas uma coisa. Ela vem em muitas formas e modos, e nem todos precisam viajar tão extensivamente como alguns de nós fazem. No entanto, os que viajam para viver e os que vivem para viajar podem ter condições de dar contribuições importantes no mundo de hoje. Entre essas Fé e viagens no mundo globalizado 13

13 Joerg Rieger contribuições está o hábito de pensar realisticamente, a ampliação de horizontes, uma flexibilidade que é típica, especialmente de viajantes que têm menos controle, vários desafios ao status quo, e uma consciência muito necessária de nossos próprios limites e finitude. Os viajantes que passam muito tempo na estrada experimentam em seu próprio ser o que está no coração da lógica das tradições judaico-cristãs e o que os filósofos levaram milhares de anos para entender: uma nova apreciação para pequenas e particulares experiências de vida, a partir das quais crescem mais amplas ideias universais. Essa apreciação é onde a teologia e a filosofia começaram quando a religião ocorreu na estrada, e não com os grandes conceitos e ideias propostas pelos poderosos. Finalmente, aqueles que se encontram na estrada sem redes de segurança muitas vezes desenvolvem relações e vínculos especiais. Certa vez, quando minha esposa e eu viajamos fora do trajeto normal em Baixa Califórnia com nossas filhas por alguns dias, conhecemos um casal de jovens em um Unimog, um antigo carro alemão que tinha sido construído no ano em que nasci. Viajar juntos por certo tempo não só fez sentido devido ao isolamento da área, mas também levou a muitas conversas e encontros mais profundos que não teriam ocorrido de outra forma. Essa experiência de vaguear ajudou-nos a imaginar quanto mais migrantes devem experimentar esses laços e relações especiais em suas jornadas. Nenhuma viagem acontece jamais num vazio. Experiências individuais dos viajantes são moldadas por estruturas maiores, que os próprios viajantes talvez nunca imaginem. O poder, bem como a sua 14

14 falta, desempenha um papel importante em nossas viagens. Tomar conhecimento dessas coisas faz parte da ampliação de nossos horizontes, por isso, vamos olhar aonde nossas viagens nos levam. Fé e viagens no mundo globalizado 15