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1 Um dram EXPLORAÇÃO Com diferentes facetas, como a prostituição, a escravidão ou a venda de órgãos, o tráfico de pessoas atinge pelo menos 20,9 milhões pessoas no mundo, atraídas por promessas de uma vida melhor Você está andando pela rua e de repente se depara com uma caixa de presente gigante. Do lado de fora, uma faixa anuncia: Veja o mundo e ganhe um bom dinheiro. Uma vez dentro da caixa, você percebe que não se trata de uma proposta de emprego, mas sim de relatos de pessoas que foram traficadas e colocadas em situação de exploração sexual, trabalho escravo, servidão doméstica, tráfico de órgãos, entre outros. Essas caixas gigantes existem e são parte de uma intervenção nas ruas do Rio de Janeiro feita pelo movimento britânico GIFT box, da ONG Stop The Traffik, com o intuito de atrair os olhares do mundo para o problema do tráfico de pessoas durante a Copa do Mundo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, pelo menos 20,9 milhões pessoas no mundo vivem na condição de escravidão e prostituição atraídas por promessas de uma vida melhor. 22

2 a invisível Apesar de apresentar diferentes facetas, como a prostituição, a escravidão ou mesmo a venda de órgãos, o tráfico de pessoas têm características semelhantes. Em geral, as vítimas são convencidas a abandonar sua cidade ou país atraídas pela oportunidade de um bom emprego que nunca aparece. Um outro aspecto particular desse tipo de crime é que ele é praticado, na maioria das vezes, por pessoas próximas às vítimas, amigos ou mesmo familiares. Além disso, os traficantes costumam ser escolarizados, sedutores e com alto poder de convencimento. Chegando ao destino, muitas vezes as vítimas são confinadas ou impedidas de sair da situação em que se encontram por meio de ameaças, violência física, retenção de documentos e outras formas que as mantêm presas ao tráfico. Com isso, elas perdem o senso de identidade e segurança. Muitas ficam angustiadas em denunciar sua situação às autoridades e serem mortas, ou terem suas famílias ameaçadas no país de origem. No Brasil Por ser um crime pouco visível, ainda há muita discrepância sobre os dados do problema no país. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o UNODC, só no Brasil, entre os anos 2005 e 2011, foram registradas 475 vítimas desse tipo de tráfico, na maioria adolescentes ou mulheres de até 29 anos. Desse total, 337 sofreram exploração sexual e 135 foram vítimas de trabalho escravo. A maior parte dessas vítimas foi levada para países europeus, como Holanda, Suíça e Espanha. Lucidwaters Dreamstime.com c 23

3 Parece pouco. E é. Esses números representam apenas aquilo que desaguou nos órgãos de repressão ou de atendimento às vítimas. Ainda temos um cenário de muitos dados ocultos, explica Juliana Armede, coordenadora dos programas de Combate ao Trabalho Escravo, Tráfico de Pessoas e Migração e Refúgio na Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo. Documentar a ilicitude é muito difícil, justamente porque ela está escondida. As informações estão fracionadas e muitas vezes não são registradas, complementa. Segundo o secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, o tráfico de pessoas no Brasil ainda é contabilizado de forma deficitária. Isso ocorre porque uma de suas características é a invisibilidade das vítimas e a negação de se reconhecerem como tais. Por isso trabalhamos com foco em campanhas de conscientização e com a rede nacional de apoio as vítimas, explica. Em um estudo ainda mais específico sobre a condição do Brasil feito pelo UNODC, o Diagnóstico sobre Tráfico de Pessoas nas Áreas de Fronteira do Brasil, apresentou alguns tipos de tráfico bastante peculiares no país, como a exploração da mendicância e servidão doméstica de crianças e adolescentes, a utilização de pessoas como mulas para o transporte de substâncias ilícitas entorpecentes e os adolescentes traficados para exploração em clubes de futebol. Como as políticas sistematizadas do governo sobre tráfico de pessoas ainda são recentes, a participação da sociedade civil é fundamental para o acolhimento dessas pessoas. O trabalho tem sido feito principalmente por diversos segmentos da Igreja Católica, que dão abrigo àqueles que não têm onde ficar. A própria Igreja propôs o tráfico de pessoas como tema da Campanha da Fraternidade deste ano a fim de chamar a atenção para o problema e ajudar a evitá-lo. Algumas ONGs também oferecem auxílio psicológico ou ajudam as pessoas no encaminhamento de cada caso específico. Exploração sexual Com menos de 15 anos e aparentando mais de 30, nos subúrbios de Bangladesh, prostitutas levadas até lá sobretudo pelo tráfico tomam esteroides de vacas para parecerem mais velhas e mais nutridas. Em um país dominado pela fome, muitas vezes o esteroide acaba substituindo a refeição das adolescentes, que ganham menos do que o equivalente a R$ 5 pelo programa. Destinada à engorda das vacas, a substância pode causar transtornos sérios à saúde, como osteoporose, problemas cardíacos e renais, obesidade, entre outros. Segundo reportagem do jornal inglês The Guardian, os donos dos bordeis incentivam a prática, já que a droga faz com que os rostos e corpos das meninas fiquem inchados, dando a impressão de serem mais velhas e robustas. Essa é apenas uma das tristes histórias sobre a exploração sexual que movimenta cerca de US$ 27 bilhões em todo mundo, segundo dados da Organização das Nações Unidas. Para onde elas vão? Das 140 mil mulheres traficadas e exploradas sexualmente na Europa, 13% vem da América do Sul. Só no Brasil foram identificadas 241 rotas de tráfico para fins de exploração sexual. Veja as principais: 1 Espanha 5 Holanda 2 Itália 6 Alemanha 3 4 Portugal 7 8 Áustria França Suíça 24

4 Atualmente 80% das profissionais do sexo de Londres, por exemplo, entraram no país pelas mãos de traficantes. Chegando na cidade em porta-malas de carros ou em contêineres de navios, elas são vendidas ao mercado da prostituição. Sem lenço, documento, ou domínio da língua, elas já chegam ao país com uma dívida de cerca de 15 mil euros correspondente à viagem. Além disso, são obrigadas a pagar aos donos dos bordeis pela sua alimentação, aluguel e propaganda na internet. Endividadas e ameaçadas, muitas delas são submetidas a estupros ou mesmo encarceradas. Já a Itália é considerada o país europeu mais procurado por transexuais brasileiros e prostitutas. Para a assistente social e doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Tania Teixeira Laky de Sousa, autora da pesquisa Tráfico de Mulheres: Nova Face de uma Velha Escravidão, as mulheres vítimas do tráfico são fruto do abandono social e da falta de políticas públicas dentro do próprio país. Em sua pesquisa Tania relata que muitas das mulheres e transexuais que passaram pela experiência da exploração sexual fora do Brasil preferem não voltar, pois sabem que aqui não encontrarão trabalho, acolhimento social e familiar e sofrerão preconceitos. Apesar de tudo isso, para muitas pessoas a proposta é tentadora. Um grande número de travestis vai para Milão todos os anos em troca de promessas milionárias e uma vida de glamour. Para Juliana Armede, muitas vezes a escolha parte dessas pessoas, que mesmo não coagidas, optam por ficar no país. Para os que estão confinados ou ameaçados é muito difícil sair da situação. Mas em várias ocasiões as pessoas podem sair e simplesmente não querem. Nenhum ser humano vai deixar de sonhar, de querer viver uma vida melhor quando ele se encontra em uma situação de miséria. O que você precisa é garantir, aqui no Brasil, uma boa condição de vida para que elas fiquem. O real combate ao tráfico nasce quando se consegue garantir o mínimo de desenvolvimento para que as pessoas não se iludam com essas promessas, explica. Tania Teixeira Laky, parte de um ponto de vista semelhante e explica que a feminização da pobreza é o principal motivo de tantas vítimas da rede de tráfico internacional para fins sexuais. Estão atrás de emprego; aqui não encontram perspectivas. É claro que não dá para generalizar, mas como os governos cuidam das mulheres que passam por esse trauma e voltam para o Brasil? Poucas políticas públicas sérias e de resultados reais estão sendo feitas no país, afirma a pesquisadora. O tráfico de pessoas como um todo é uma forma de exploração e lucro que ofende a dignidade humana. Mas a exploração sexual agrava essa ofensa porque se beneficia da condição de fragilidade e segregação histórica de determinados grupos como mulheres, crianças, adolescentes e homossexuais, submetendo essas pessoas a regimes violentos de exploração, explica Tania. Trabalho escravo Já se foram mais de 120 anos da abolição da escravidão no Brasil, mas ela continua presente, ainda que reinventada. Embora ainda existam casos nos quais a liberdade de ir e vir é cerceada, a maior parte dos trabalhadores escravos vive em condições degradantes, está subjugada, mas não está amarrada ou confinada. A escravidão cruzou os limites físicos e os escravos do século 21 saem aos finais de semana, jogam bola com os amigos, vão ao parque. Mas são escravos porque não conhecem a porta de saída. Vivem em um processo de exploração mental e econômica. No Brasil, essa forma de exploração é chamada de trabalho análogo ao de escravo, prevista como crime no Código Penal (Artigo 149), com pena de dois a oito anos de reclusão. De 1995 até hoje cerca de 44 mil pessoas foram resgatadas dessa situação de trabalho, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego. No contrabando de imigrantes, nem sempre as vítimas são forçadas. Muitas vezes os aliciadores propõem melhores condições de vida, oferecendo a eles trabalhos no campo, na construção civil ou oficinas de costura. Quando chegam ao local de trabalho é que se veem em regimes de mais de 18 horas de jornada, sem liberdade, mobilidade, com documentos retidos ou dívidas impossíveis de serem pagas. Nessa modalidade de tráfico a novidade é que o Brasil é também um grande importador. Bolivianos, peruanos, paraguaios e colombianos frequentemente chegam às capitais para trabalhar na confecção de vestuário ou na construção civil. Anualmente o Brasil registra uma média de mil casos de tráfico de pessoas e de trabalho escravo. E, ao contrário da maioria dos países da Europa e dos Estados Unidos, que têm tolerância zero com imigrantes ilegais, o Brasil tenta acolhê- -los. As vítimas do trabalho escravo podem inclusive obter uma autorização de permanência no país por um ano e renovável. Quando você não conhece seus direitos, é muito fácil acreditar que ganhar 200 reais é bom, que se você largar o trabalho a Polícia Federal vai lhe prender e deportar, quando não é isso que acontece, pelo menos no Brasil, explica Juliana. c 25

5 Outra modalidade desse crime está ligada ao contrabando de imigrantes ilegais, em que o cliente paga o contrabandista por sua travessia. Chegando ao seu destino, eles passam por um período de servidão até que a dívida seja quitada às vezes, nunca. É o trabalho dos shetou ( cabeças de cobra ) pessoas que podem cobrar até US$ 70 mil para levar um chinês para cidades como Londres e Nova York. Geralmente essa quantia é financiada por parentes que já estão lá ou então ele se compromete a trabalhar durante vários anos até saldar a dívida. Inicialmente feito nos porões de barco, hoje o contrabando utiliza os aeroportos. Entre as escalas mais comuns estão Peru, Colômbia, Panamá e, mais recentemente, o Equador, que eliminou os vistos de entrada para cidadãos de 130 países, e desde então, viu o número de chineses multiplicar-se por cinco. Por mais absurda que a história possa parecer, os shetou são vistos O que podemos fazer para combater o tráfico? Duvide sempre de propostas de emprego fácil e lucrativo Antes de aceitar a proposta de emprego leia atentamente o contrato de trabalho, busque informações sobre a empresa contratante e procure auxílio da área jurídica especializada Evite tirar cópias dos documentos pessoais e deixá-las em mãos de parentes ou amigos Deixe endereço, telefone e/ou localização da cidade para onde está viajando Viaje com endereços e contatos de consulados, ONGs e autoridades da região de destino Quando estiver fora do país, nunca deixe de se comunicar com familiares e amigos Em caso de tráfico de pessoas, denuncie discando 100 Fonte: Portal CNJ muitas vezes como heróis que possibilitam aos chineses uma nova vida. Tráfico de órgãos Além das pessoas, os órgãos humanos também são contrabandeados. É uma realidade que parece ficção, mas que acontece diariamente em um mercado no qual um rim chega a valer até US$ 200 mil. Em junho do ano passado, Jucione Santos Souza, de 29 anos, foi detida por suspeita de sequestrar um bebê de um mês em Cuiabá. Segundo o seu depoimento, ele seria morto e seus órgãos doados para uma família no exterior. Jucione contou que foi abordada por um homem que lhe propôs ganhar muito dinheiro se conseguisse uma criança de até cinco meses. Infelizmente esse não é um caso isolado. No início dos anos 2000 o Ministério Público Federal denunciou um esquema de tráfico que ligava Pernambuco à África do Sul, no qual as pessoas vendiam seus rins em Recife e iam até o país sul- -africano para a cirurgia de retirada dos órgãos. Hoje o tráfico de órgãos é um dos mais lucrativos do mundo, movimentando cerca de US$ 50 bilhões, devido à escassez de órgãos e ao descompasso entre a crescente demanda por transplantes e os estritos limites definidos nas fontes disponíveis. O tráfico de órgãos muitas vezes está relacionado à escravidão, já que, em situação de dívida, muitos recebem uma oferta oportunista para doar um órgão e saldar a dívida. Um mercado cruel, que explora o desespero dos doentes que podem pagar por um órgão vital e das pessoas que doam o órgão sadio que têm arriscando a vida em troca de uma quantia que muitas vezes elas nem chegam a receber. 26