Fo n t e s d o Di r e i t o In t e r n a c i o n a l d o
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- João Gabriel Alcântara Sanches
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1 8 Fo n t e s d o Di r e i t o In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o : a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global Th i a g o Fe r n a n d o Ca r d o s o Nalesso 1 SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusões. 4. Referências Bibliográficas Resumo: Uma das mais importantes manifestações do pluralismo jurídico vigente no comércio internacional é a lex mercatoria, ou nova lex mercatoria, como defendem alguns estudiosos, que visa a estabelecer um regramento comum para as transações. O texto discute a natureza de tais regras com o objetivo de propor questionamentos sobre os riscos existentes na sua ampla utilização, principalmente em relação aos direitos humanos. Palavras-chave: lex mercatoria direito global direito transnacional direito internacional do comércio. Abstract: One of the most important manifestations of actual juridical pluralism within international trading is lex mercatoria or as some of researchers claim: new lex mercatoria which aims at establishing a standard regulation for trading transactions. This article discusses the nature of those rules with the objective of formulating questions about the risks of their outspreading utilization, specially in their relation with human rights. Keywords: lex mercatoria global rights international trading rights. 1 Mestre em Direito pela UNIMEP. Membro do Núcleo de Estudos de Direito e Relações Internacionais NEDRI/UNIMEP. Professor Universitário: UNISAL Americana/SP e FII/FKB Itapetininga/SP. thiagonalesso@hotmail. com. 08 UNI2 cap8.indd 145 3/1/ :16:27
2 Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso 1. In t r o d u ç ã o O presente trabalho tem como objeto o estudo das novas fontes do direito internacional do comércio, em especial a lex mercatoria e suas repercussões no direito internacional e nos ordenamentos jurídicos nacionais, principalmente no âmbito do surgimento de novos atores globais e de novas formas de regulação das relações entre esses sujeitos. O trabalho visa analisar o conceito da nova lex mercatoria para compreender o contexto mais amplo em está inserida, o de uma nova forma de regulação global de relações existentes em diversos campos da economia e da sociedade a fim de elaborar questionamentos acerca das vantagens e desvantagens deste direito global. 2. De s e n v o lv i m e n t o As relações comerciais e seus mecanismos próprios de regulamentação, desde os mais remotos tempos, sempre desafiaram os regramentos jurídicos regionais, e ainda foram fundamentais para a derrocada de alguns, como no caso dos diversos ordenamentos medievais, apoiados na forma de exploração feudal. Por suas próprias características, a atividade mercantil sempre procurou formas de regular sua atividade sem depender, necessariamente, da intervenção estatal. Esta, muitas vezes, constituiu, inclusive, um óbice aos interesses do capital mercantil. O ponto central nesse processo é a insatisfação mercantil com a diversidade de formas com que os ordenamentos estatais sempre trataram, nos variados sistemas jurídicos, a atividade comercial. É antigo o esforço dos comerciantes em criar regras que superem as barreiras nacionais, por um lado, e de uniformização de formas de regramento, pelos ordenamentos jurídicos internos, por outro. Ao trabalhar a questão da uniformização de regras do comércio internacional, o Professor Oscar Tenório (1948, p. 380) diz que: 146 Tendo em vista esta tendência, que se fortalece cada vez mais, alguns autores distinguem o Direito Comercial Internacional do Direito Internacional Comercial. O primeiro trata dos conflitos de leis mercantis regendo o direito interno; o segundo das leis uniformes tendentes a uma solução internacional dos conflitos. A distinção embora apoiada na realidade das coisas, 08 UNI2 cap8.indd 146 3/1/ :16:27
3 8 Fo n t e s d o Direito In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o: a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global não é de molde a justificar estudos separados. A uniformização do Direito é fruto da experiência e da observação das regras dos conflitos de leis propriamente ditas dos vários países. Ambos os critérios o da solução particular dos conflitos e o da solução através de regras uniformes internacionais se completam, não merecendo tratamento à parte o que constitui uma tendência internacional peculiar ao direito mercantil. Na atividade comercial, as práticas e costumes sempre exerceram importante papel autorregrador e foram fundamentais para o início do processo internacional de uniformização de regras. No estudo do Direito os autores apresentam teorias diversas acerca da conceituação e do sentido de fontes do Direito. Embora existam divergências significativas, a divisão mais apresentada é a de fontes materiais e fontes formais. As fontes materiais seriam os motivos que orientaram a criação de determinada norma jurídica, ou o próprio Estado, enquanto centro de onde emana a norma jurídica, na visão monista de Direito. Para Mi g u e l Re a l e (2007, p. 140) o que se costuma chamar de fonte material, nada mais é do que o estudo filosófico ou sociológico dos motivos éticos ou dos fatos econômicos que condicionam o aparecimento e as transformações das regras de direito.para o autor o estudo destes condicionantes éticos não pertenceria ao campo da ciência jurídica. Por outro lado existe o conceito de fontes formais, que são os mecanismos de exteriorização das normas jurídicas, os instrumentos utilizados para apresentação das normas jurídicas. A conceituação de fontes formais do Direito confunde-se com a de Direito positivo. Discutem as correntes monistas e pluralistas sobre o monopólio ou não do Estado na criação destes instrumentos normativos. Mi g u e l Reale (2007, p. 140) designa fontes do Direito como sendo: os processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima força obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa. O direito resulta de um complexo de fatores que a Filosofia e a Sociologia estudam, mas se manifesta, como ordenação vigente e eficaz, através de certas formas, diríamos mesmo de certas fôrmas, ou estruturas normativas, que são o processo UNI2 cap8.indd 147 3/1/ :16:28
4 Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso 148 legislativo, os usos e costumes jurídicos, a atividade jurisdicional e o ato negocial. Re ale (2007, p. 141) entende que a regra jurídica tem como elemento caracterizador a capacidade de impor ao transgressor de uma regra a aplicação de uma sanção. É necessária a existência de um poder capaz de determinar o conteúdo normativo e de impor a obediência ao dispositivo. Neste sentido toda fonte de direito implica uma estrutura normativa de poder. Verifica-se que o processo criador de uma norma jurídica depende também de um processo efetivador da regra, ou seja, de estruturas capazes de exigir o cumprimento dos conteúdos normativos presentes nas fontes de direito. Ocorre que tal capacidade não é necessariamente decorrente do Estado. As teorias pluralistas têm demonstrado a possibilidade dos grupos sociais de criarem e exigirem o cumprimento de regras criadas autonomamente, sem a intervenção ou referendo do Estado, fato que pode ser verificado com facilidade quando se trata do comércio internacional. As fontes do direito do Direito comercial internacional são, em muitos casos, produzidas por meio das próprias partes, por meio da autonomia privada, ou ainda, por regras uniformizadoras de condutas, principalmente as propostas pela ICC (Câmara de Comércio Internacional) e pelo UNIDROIT (Instituto para a Unificação do Direito Privado), por normas estabelecidas por meio de tratados e convenções internacionais, pelos princípios gerais de direito e pelas práticas e costumes internacionais, em especial a Lex Mercatoria. Para An a Pau l a Ma r t i n s Amar al (2005) são fontes do direito do comércio internacional, entre outros, os seguintes instrumentos jurídicos: 1. Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, de 11 de abril de 1980; 2. Convenção de Haia de 1º de julho de 1964, realizada por iniciativa da Unidroit que estabeleceu uma Lei uniforme sobre compra e venda de mercadorias (denominada LUVI) e uma Lei uniforme sobre a formação dos contratos de compra e venda internacional de mercadorias (denominada LUFCI); 08 UNI2 cap8.indd 148 3/1/ :16:28
5 8 Fo n t e s d o Direito In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o: a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global 3. Convenção das Nações Unidas em matéria de prescrição nos contratos de compra e venda internacional de mercadorias realizada em Nova York, em 14 de junho de 1974; 4 Convenção Interamericana de direito Internacional Privado sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (denominada CIDIP V); 5. Incoterms, publicados pela Câmara de Comércio Internacional (CCI); 6 Regras e práticas uniformes em matéria de créditos documentados publicadas pela Câmara de Comércio Internacional (CCI); 7. Regras uniformes para cobrança de efeitos comerciais publicada pela CCI; 8. Princípios sobre contratos comerciais internacionais elaborados pelo Unidroit e publicados em 1994; 9. Contratos-tipo ou standards; 10. Jurisprudência Estatal e Arbitral; 11. Usos e costumes internacionais ou a nova Lex Mercatoria. Nota-se que, atualmente, em todas as relações de fontes do Direito internacional do comércio encontra-se inserido o instituto da lex mercatoria. A expressão é oriunda da Idade Média e, originariamente, correspondia ao conjunto de regras costumeiras e de práticas comerciais correntes no período. A lex mercatoria é uma das mais antigas manifestações do pluralismo de fontes jurídicas. Ao lado do Estado, como produtor de normas, coexistem diversas outras fontes normativas, internas ou externas aos Estados. As diversas coletividades existentes no seio da sociedade, por vezes, necessitam de regras próprias, específicas, que nem sempre emanam dos Estados. Muitas vezes, os próprios grupos criam um conjunto de regras e princípios para sua autorregulamentação. Em vários domínios da vida internacional das pessoas, no entanto, outras formas de produção normativa se desenvolvem de maneira independente e desvinculada da oficialidade das autoridades estatais, como no caso específico do direito UNI2 cap8.indd 149 3/1/ :16:28
6 Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso 150 do comércio internacional na nova lex mercatoria. (Basso, 2009, pp ). Para Je t e Ja n e Fi o r at i (2004, p. 19), são antecedentes históricos da lex mercatoria a Lei do Mar de Rodes (300 a.c.) e o Jus Mercatorum (séc. XIV). A lex mercatoria teria nascido nas feiras medievais como uma resposta aos direitos feudais, que, com inúmeros privilégios, entravavam as práticas comerciais. Fala-se atualmente em nova lex mercatoria como sendo a nova ordem estabelecida no âmbito das relações de comércio internacional, ampliadas, principalmente, com o aumento das trocas, influenciadas pelo fenômeno da globalização. Ma r i s t e l a Basso (2009, p. 90) afirma que existe um movimento da doutrina em torno de um direito transnacional, que visa a regular as relações sociais criadas a partir do movimento de pessoas, bens, capitais e tecnologias, aumentadas ainda antes do fim da Segunda Guerra Mundial e que contribuíram para o surgimento de organizações intergovernamentais. O ponto principal desta corrente é a ideia de adoção de um direito comum destinado à regulação das ordens públicas e privadas. Para diversos autores o primeiro a tratar do tema e levantar questões sobre uma nova lex mercatoria foi Be r t h o l d Go l d m a n por meio do artigo de 1964 Frontière du droit et lex mercatoria, publicado nos Archives de Philosophie du Droit. (Fi o r at i, 2004, p. 19; Az evedo, 2005, p. 97). A nova lex mercatoria sugere uma ordem normativa de regulação dos problemas dos comerciantes internacionais (numa perspectiva atual das empresas) contando com normas substantivas e também mecanismos de adjudicação de litígios que se desenvolvem paralelamente àqueles consolidados pelos órgãos judiciários estatais. Na importante lição da doutrina, a nova lex mercatoria manifesta-se por um conjunto de fontes específicas, como os usos e práticas do comércio internacional, contratos-tipo, regulamentos autônomos de associações de comerciantes e de câmaras de comércio, decisões em arbitragens comerciais internacionais e outros expedientes técniconormativos capazes de disciplinar as relações jurídicas identificadas na empresarialidade internacional. (Basso, 2009, pp ). 08 UNI2 cap8.indd 150 3/1/ :16:28
7 8 Fo n t e s d o Direito In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o: a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global O comércio internacional não tem, por hipótese, fronteiras nem bandeira nacional. É regulado por um conjunto normativo, de certa forma difuso, que vem a chamar-se nova lex mercatoria internacional, que a comunidade internacional de empresários foi constituindo sobre quatro pilares fundamentais: os usos profissionais, os contratos-tipo, as regulações profissionais ditadas no marco de cada profissão, por suas associações representativas, e a jurisprudência arbitral. (St r e n- g e r, 1998, p. 157). Ao lado de normas e regras criadas pelos comerciantes internacionais surge um conjunto de mecanismos de solução de controvérsias, como câmaras arbitrais ou de mediação, muitas vezes ligadas às diversas organizações internacionais atuantes na área do comércio. Tais estruturas tornam-se necessárias na medida em que as instituições nacionais responsáveis pela pacificação dos conflitos não conseguem acompanhar o desenvolvimento das forças econômicas e sociais, assim como as normas estatais também não são capazes de acompanhar a velocidade das transformações. Jo s é Ed ua r d o Fa r i a, (2010, p. 6) ao analisar o papel do Estado nesta conjuntura de transformações no capitalismo global, afirma que: Suas normas, editadas e aplicadas no âmbito de uma realidade dominada por forças e dinâmicas globais que ultrapassam os marcos institucionais e nacionais tradicionais, vêm perdendo a capacidade de ordenar, moldar, conformar e regular a economia e de reduzir incertezas, estabilizar expectativas e gerar confiança no âmbito da sociedade. Suas leis e códigos, em face dos novos paradigmas de produção das novas tecnologias de informação de dos novos canais de comunicação, vêm enfrentando grandes dificuldades para promover o acoplamento entre um mundo virtual emergente e as instituições do mundo real. Seus instrumentos jurídicos destinados a corrigir desequilíbrios produzidos pelas operações de mercado, preservar a livre concorrência contra a concentração de capitais, promover orientações sociais e assegurar a legitimidade do poder, entre outras funções com a reordenação da riqueza já não se revelam mais eficazes. Seus mecanismos processuais também já não conseguem exercer de modo satisfatório seu papel de absorção das tensões, reduzir incertezas, propiciar a gestão e a decisão de disputas e neutralizar a violência. Por fim, as próprias instituições encarregadas de aplicar o direito positivo, como é o caso do Poder Judiciário e do Ministério UNI2 cap8.indd 151 3/1/ :16:28
8 Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso 152 Público, cada vez mais se revelam incapazes de se ajustar organizacional e funcionalmente aos novos fatores, dinâmicas e circunstâncias que determinam as transformações da economia e da sociedade. Questão superada é a discussão sobre a natureza jurídica ou não da lex mercatoria. Os positivistas mais extremados ignoram qualquer regra que não emane diretamente do Estado. Porém, o que determina a juridicidade de algo é a capacidade de produzir efeitos na conduta humana, e não a sua origem. Ao trabalhar esta questão, Ir i n e u St r e n g e r (1998, p. 147) demonstra que: Nos mecanismos do Direito do Comércio Internacional, a regra jurídica define-se por seu conteúdo e por seu caráter obrigatório, o qual deriva seja de um comando externo ao legislador, seja de uma simples crença interior. Dentre os motivos que influenciam a utilização da nova lex mercatoria, está o avanço das relações comerciais internacionais decorrentes da globalização e o surgimento das empresas transnacionais. Tais organizações, embora possuam uma direção determinada pela sede, se compõem de um conjunto de diversas empresas, cada uma regulada por um determinado ordenamento jurídico estatal, fato que em diversas situações pode ser uma dificuldade para tais organizações. Para Lu i s Ol av o Ba p t i s ta, sob o prisma estritamente jurídico-positivo, não existe a empresa transnacional (apud Fi o r at i, 2004, p. 18). Nesse sentido, como bem observa Jete Jane Fiorati (2004, p. 18): Apesar de seu vínculo aos sistemas jurídicos nacionais, é possível a ênfase de que o controle das empresas transnacionais é predominantemente exercido de forma extralegal, pois a matriz, melhor dizendo, a sede real da empresa, mantém forte influência na direção das subsidiárias, em sua maioria não integrais, interferindo, na prática, em suas estratégias e decisões. Justamente por tais questões que a lex mercatoria constitui um instrumento facilitador das relações entre as diversas peças da engrenagem do atual comércio internacional. O que se discutirá mais à frente é se tal instrumento representa algum risco aos atores sociais não atuantes do cenário do comércio internacional. 08 UNI2 cap8.indd 152 3/1/ :16:28
9 8 Fo n t e s d o Direito In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o: a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global O atual estágio do capitalismo mundial globalizado tem suas particularidades e complexidades, mas suas origens já podiam ser observadas há muito tempo, como bem demonstraram Ka r l Ma r x e Friedrich Engels, em 1848 (1987, p. 37): A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de se fixar em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, criar ligações em toda a parte. [...] As primitivas indústrias nacionais foram aniquiladas, estão ainda dia a dia a ser aniquiladas. São desalojadas por novas indústrias cuja introdução se torna uma questão de vida e morte para todas as nações civilizadas, por indústrias que já não trabalham matérias primas nacionais, mas matérias primas oriundas das zonas mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não só no próprio país mas em todos os continentes ao mesmo tempo. A integração de mercados, que ocorre desde o início do desenvolvimento do capitalismo, passou por diversas fases, mas é inegável que com a globalização a integração atingiu níveis elevadíssimos. A globalização é conceituada em diversos setores e por diversas óticas. Opta-se, neste trabalho, pela análise do Professor Jo s é Ed ua r d o Fa r i a (2010, p. 3): Globalização é um conceito aberto e multiforme que denota a sobreposição do mundial sobre o nacional e envolve problemas e processos relativos à abertura e liberalização comerciais à integração funcional de atividades econômicas internacionalmente dispersas, à competição interestatal por capitais voláteis e ao advento de um sistema financeiro internacional sobre o qual os governos têm uma decrescente capacidade de coordenação, controle e regulação, como foi evidenciado pela crise do mercado americano de crédito imobiliário de segunda linha, pelas perdas bilionárias das bolsas de valores e pela falência de grandes e tradicionais bancos de investimento americanos, europeus e japoneses. Nessa perspectiva, globalização é um conceito relacionado às ideias de compressão do tempo e espaço, de comunicação em tempo real, on-line, de dissolução de fronteiras geográficas, de multilateralismo político-administrativo e de policentrismo decisório. Neste cenário em que os Estados e governos perdem sistematicamente a capacidade de controlar e coordenar diversas relações que se estabelecem em âmbito mundial, a nova lex mercatoria se UNI2 cap8.indd 153 3/1/ :16:28
10 Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso apresenta como um conjunto normativo criado à margem do Estado, que pode ser capaz de regrar as relações comerciais internacionais. Ma r i s t e l a Basso (2009, p. 91) analisa as fontes da nova lex mercatoria e apresenta três considerações importantes: 154 i) aumento dos sujeitos das relações privadas internacionais (indivíduos, empresas, organizações e grupos); ii) a existência de um direito especial cujo âmbito de aplicação se refere a um universo social ou comunidade específica, que é aquela dos comerciantes internacionais (ou, valorativamente, as empresas transnacionais); iii) a emergência de mecanismos especiais de solução de litígios, notadamente aqui a arbitragem comercial internacional, em uma feição nitidamente instrumental. Outro ponto polêmico acerca da lex mercatoria é a sua autonomia ou não frente aos ordenamentos jurídicos estatais, porém é inegável a sua utilização cada vez mais em larga escala para a resolução de conflitos de natureza comercial, contribuindo para uma efetiva transformação do Direito internacional privado. [...] a complexidade da nova lex mercatoria determina a renovação da parte mais dinâmica e economicista do direito internacional privado, sobretudo em sua interface com o direito do comércio internacional. As soluções oferecidas pela nova lex mercatoria normalmente são reconhecidas e endossadas pelos ordenamentos estatais, o que ocorre justamente com a recepção de textos e documentos produzidos em organizações internacionais e tantas instituições de vocação internacional, consolidando a prática e as tendências de regulamentação de determinado setor do comércio internacional. Esse dado se constata tanto nas negociações de tratados e convenções entre Estados como na elaboração de leis-modelos, recomendações, diretrizes e guias de aplicação de princípios por organizações internacionais em matéria de contratos internacionais, pagamentos e transferências, operações de crédito, garantias bancárias, franchising, e comércio eletrônico, etc. (Basso, 2009, p. 93). Para Gu n t h e r Te ub n e r (2003, p. 11) a lex mercatoria é o mais exitoso caso de um Direito mundial existente para além da política internacional. Para o autor está ocorrendo um processo de formação de um direito global que deverá surgir não no bojo da política in- 08 UNI2 cap8.indd 154 3/1/ :16:28
11 8 Fo n t e s d o Direito In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o: a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global ternacional, mas sim da sociedade civil internacional. Ao lado da lex mercatoria existiriam outros direitos globais, em formação, como os direitos humanos, a padronização técnica e o autocontrole profissional, o direito ambiental e o direito desportivo. O sociólogo do Direito alemão apresenta três teses referentes ao surgimento desse direito global. A primeira é que o mesmo só pode ser interpretado de forma adequada a partir de uma teoria de fontes do Direito elaborada em consonância com as ideias do pluralismo jurídico. Para Te ub n e r a questão do pluralismo não passa apenas pelo reconhecimento de ordens jurídicas criadas à margem do Estado, mas leva em consideração os diversos discursos que se apresentam na sociedade contemporânea. Somente há pouco tempo a teoria do pluralismo jurídico passou por uma transformação bem sucedida, deslocando o seu foco do direito das sociedades coloniais para as formas jurídicas de diferentes comunidades étnicas, culturais e religiosas no âmbito do Estado-nação da idade moderna. Hoje em dia ela deveria novamente ajustar o seu foco do direito dos grupos para o direito dos discursos. Do mesmo modo, uma teoria jurídica das fontes do direito deveria concentrar a sua atenção em processos espontâneos de formação do direito que compõem uma nova espécie e se desenvolveram independentemente do direito instituído pelos Estados individuais ou no plano interestatal em diversas áreas da sociedade mundial. (Te u b n e r, 2003, p. 11). A segunda tese é a de que o Direito global não é inter-nacional, na medida em que não representa necessariamente os interesses dos Estados, e não é a avaliado por meio dos critérios de aferição dos sistemas jurídicos nacionais. Os impulsos criadores de normas deste Direito encontram-se acoplados a processos sociais e econômicos, muitas vezes desvinculados dos Estados. A terceira tese afirma que este Direito global, embora seja criado à margem do Estado, não é necessariamente apolítico, porém o processo de legitimação não está ligado aos mecanismos tradicionais do Estado, mas sim a um discurso altamente especializado e isolado em cada uma das áreas em que surge UNI2 cap8.indd 155 3/1/ :16:29
12 Cadernos Jurídicos Thiago Fernando Cardoso Nalesso 3. Co n c l u s õ e s Após a análise dos textos citados percebe-se que o futuro do Direito e de sua legitimação podem passar por transformações substanciais e a lex mercatoria nada mais é do que a ponta de um grande iceberg, uma vez que o Direito internacional, embora caminhe para um direito de integração, ainda é um direito de coexistência. Neste sentido, como afirma Teubner (2003, p. 13), se o Direito internacional não passa da relação intersistêmica entre unidades nacionais com elementos transnacionais relativamente fracos, outros subsistemas sociais já começaram a formar uma autêntica sociedade mundial, ou melhor, uma quantidade fragmentada de sistemas mundiais distintos. Os Estados nacionais nitidamente encontram cada vez maiores dificuldades para manter a exclusividade na criação e na administração dos conflitos na sociedade. Para Jo s é Ed ua r d o Fa r i a (2010, p. 7), os institutos jurídicos e as instituições estatais têm se revelado incapazes de se ajustar às transformações da economia e da sociedade. 156 Diante do número cada vez maior de sistemas de interação econômica, social e política fora do controle do Estado, constituindo uma ampla gama de centros de referência de interesses diversificados, essas instituições tendem a perder sua centralidade e principalmente sua exclusividade. (Fa r i a, 2010, p. 7). Verifica-se que os novos mecanismos pluralistas de regramento da sociedade mundial, dos quais a de maior destaque atualmente é a lex mercatoria, possuem amplas condições de se legitimar enquanto regras jurídicas, dentre outros motivos, por emanarem da vontade dos agentes sociais envolvidos nos mais variados setores da sociedade, e sua obrigatoriedade decorrer da aceitação por parte de tais grupos. Entretanto, deve-se olhar com atenção para o fato dos novos conjuntos normativos serem criados a partir de discursos isolados e de possivelmente neles não existir uma preocupação com as repercussões que possam ocorrer em outros sistemas. Algumas perguntas ainda carecem de respostas: Em que medida a nova lex mercatoria pode ser controlada a fim de não comprometer a efetivação e garantia dos direitos fundamentais? Ou ainda, quais seriam os meca- 08 UNI2 cap8.indd 156 3/1/ :16:29
13 8 Fo n t e s d o Direito In t e r n a c i o n a l d o Co m é r c i o: a No va Le x Me r c at o r i a e o Surgimento de um Direito Global nismos mais adequados para a conciliação de tantos discursos especializados e isolados, os Estados ou os próprios grupos sociais? Será possível responsabilizar os atores globais causadores de danos a direito em âmbito global sem que se recorra aos Estados? 4. Referências Bibliográficas AMARAL, A. P. M. Fontes do Direito do comércio internacional. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, nº 582, fev Disponível em: < Acesso em: 16 set AZEVEDO, Pedro Pontes de. A lex mercatoria e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. Revista prim@ facie. João Pessoa: UFPB. nº 9, ano 5, pp , jul.-dez., BASSO, Maristela. Curso de Direito Internacional Privado. São Paulo: Atlas, FARIA, José Eduardo. Sociologia Jurídica: direito e conjuntura. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, FIORATI, Jete Jane. A lex mercatoria como ordenamento jurídico autônomo e os Estados em desenvolvimento. Revista de Informação Legislativa. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. nº 164, ano 41, p , out.-dez., MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. Moscou: Progresso, REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: LTr, TENÓRIO, Oscar. Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, TEUBNER, Gunther. A Bukowina Global sobre a emergência de um pluralismo jurídico transnacional. Impulso Revista de Ciências Sociais e Humanas. Piracicaba: Editora UNIMEP. v. 14, nº 33, p. 9-31, jan.-abr., Enviado em: 09/2010 Aprovado em: 09/ UNI2 cap8.indd 157 3/1/ :16:29
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