O que é isso, Companheiro? Uma História ficcional
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- Vanessa Alves Fialho
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1 O que é isso, Companheiro? Uma História ficcional Erika Natasha Cardoso Júlia Souza Cabo Introdução Sobre os propósitos da produção de um cineasta, disse Lebedev que não se preocupava em revelar a realidade de uma maneira verídica e não se opunha fazer educação ideológica dos espectadores." 1 Essa declaração em muito se assemelha à que Bruno Barreto comumente faz a respeito de seu polêmico filme O que é isso companheiro?, mas foi extraída de um artigo em que o historiador Marc Ferro analisa o papel histórico da produção cinematográfica. 2 Para Ferro, em quem o presente trabalho busca os fundamentos teóricometodológicos, o filme, pretenda-se ele ficcional ou não, é História 3 na medida em que reflete, oculta, traduz e manifesta elementos muito além do seu conteúdo. Nesse sentido, o objetivo aqui é pontuar alguns desses elementos, relacionandoos com o contexto político-social do período que pretende retratar e os embates de memória do período em que é produzido. 1 O que é isso, Companheiro? O filme analisado, O que é isso companheiro? lançado em 1997, dirigido por Bruno Barreto, produzido por Luiz Carlos e Lucy Barreto e com roteiro de Leopoldo Serran, inspirado no livro homônimo de Fernando Gabeira. Com elenco global e um aparato de superprodução que lhe rendeu a indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 1997, o filme foi um grande sucesso de bilheteria e teve um orçamento de US$ 4,5 milhões. 1 O comentário de Lebedev é sobre o filme soviético Segundo a lei, do cineasta Kulechov, que teria sido baseado no romance O imprevisto. 2 FERRO, Marc. O filme uma contra-análise da sociedade? 3 Idem: p. 203
2 O livro de Gabeira já é polêmico e foi alvo de muita controvérsia na ocasião do seu lançamento, mas o filme conseguiu superar sua inspiração, elevando a limites radicais as caricaturas, dubiedades e equívocos factuais desta. A trama gira em torno do seqüestro do embaixador norte-americano, Charles Elbrick. A ação foi empreendida pelos grupos revolucionários MR8 e ALN 4, em setembro de 1969, que pretendiam trocá-lo por 15 presos políticos. A história é conhecida: dois grupos guerrilheiros empreendem a ação de seqüestro e o embaixador permanece na casa, em Santa Tereza de quinta a domingo, quando é libertado, na confusão de um fim de jogo no Maracanã. Atendendo as reivindicações dos revolucionários, sem as quais o embaixador seria justiçado, um manifesto redigido por eles foi lido, no horário nobre do Jornal Nacional, e 15 presos políticos, previamente indicados numa lista, foram soltos e transportados para o exílio. Essa seqüência de acontecimentos é mantida da trama cinematográfica. As licenças poéticas utilizadas pelo diretor acontecem no sentido de condensar figuras envolvidas em uma só, ou dividir uma em duas, além atribuir ações, escolhas, autorias e protagonismos a quem não os teve. Alem disso, construiu uma caricatura do período, dos personagens e da própria disputa política em si. O problema central do filme gira em torno da responsabilidade histórica que ele tem, negando que tem. Os fatos retratados são verídicos e boa parte dos envolvidos na história real têm sua identidade mantida na ficção, assim como as datas, locais e a coesão cronológica desses fatos. No entanto, a defesa do diretor e dos produtores, de que não se trata de um filme histórico, mas de uma ficção encima da História, amortece a crítica a como essa história é contada: de forma caricatural, simplista e, pode-se dizer, injusta. 2 Uma não-ficção? De acordo com essa perspectiva proposta por Marc Ferro, a análise de O que é isso companheiro?, deve ultrapassar seus aspectos semióticos e considerar, sobretudo 4 Movimento Revolucionário 8 de Outubro e Aliança Libertadora Nacional, respectivamente.
3 as relações do filme com o que não é o filme 5, ou seja, a narrativa, a trilha sonora, os cenários, os diálogos presentes no texto, entre outros, e também os fatores externos ao próprio filme, como o autor, os produtores, a crítica, o público alvo, etc. Esses elementos, em última instância, permitiriam perceber em que tipo de disputas (ideológicas, culturais, políticas, históricas, etc.) esse filme se encontra e de que lado se posiciona. Ferro considera, portanto, o que é o que não é visível no filme, já que entende como impossível a existência de uma produção cinematográfica que esteja isenta de uma ideologia, uma crítica, um reflexo de algum elemento implícito em dada sociedade. Esse tipo de análise é pertinente no caso de O que é isso companheiro? por se tratar de um filme que se auto-define ficção, mas baseia-se em um evento real, histórico. Recusa o comprometimento com esses fatos reais, mas incorpora os nomes, as datas e os locais desses fatos, além de valer-se dessa veracidade para a propaganda do filme. O trabalho de Douglas Kellner descarta a interpretação que coloca a cultura de mídia no plano de uma disputa por dominação em prol de uma outra, que entende que essa disputa, travada em nível cultural, é entre os conflitos fundamentais da sociedade 6. Adotando essa perspectiva, reafirma-se a idéia de que um filme, ficcional ou não, reflete conflitos sociais para além do seu conteúdo fotográfico. No caso do filme aqui analisado, o conflito não poderia ser mais evidente. Um dos problemas oriundos dessa dicotomia diz respeito ao papel de formulador de uma versão e cristalizador de uma memória, a que esse tipo de filme se presta. Ainda que se insista nas declarações de que se trata de uma interpretação ficcional de fatos verídicos 7, e, em alguma medida, justamente por isso, arrisca-se a construir uma imagem profundamente equivocada de um acontecimento real. No caso de O que é isso companheiro? a polêmica é ainda maior, já que o acontecimento real em questão, que constitui o cerne da trama do filme, situa-se na história recente do país, têm alguns de seus personagens ainda vivos e é alvo de muita desinformação por parte da sociedade, encontrando-se, ainda hoje, no campo de batalha das memórias. 5 Idem. 6 KELLNER, 2001: p Barreto
4 3 A questão da memória Um debate acerca da questão da memória se faz pertinente quando se trata de um filme com essas características. Não se trata de resgatar a antiga e ultrapassada tradição histórica que concentra (em vão) suas energias na perseguição de uma verdade, uma versão, uma História. Exatamente por isso não cabe também aos responsáveis pelo filme a saída que justifica o roteiro no argumento da ficção encima de fatos reais. Não apenas o roteiro do filme e a atribuição de discursos, atitudes e responsabilidades a personagens que representam pessoas, de carne e osso, é deliberadamente modificado, sem que nem ao menos um aviso aos navegantes, no melhor estilo quaisquer semelhanças são mera coincidência seja anexado, como, além disso, caricaturas e simbologias, representativas de grupos sociais, ainda em disputa no campo da memória, são construídas. Pode-se dizer que o filme reproduz uma tradição conciliadora que envolve a memória do período retratado, que vem se consolidando no Brasil e que reflete, em alguma medida, o próprio processo de redemocratização e anistia. Nesse palco, existe de um lado a memória das esquerdas, dos grupos guerrilheiros, dos presos políticos, dos exilados e, de outro, a memória do Estado, dos militares, dos torturadores e, é claro, a da sociedade omissa. A saída conciliadora, se vista sob esse prisma, tende a priorizar produções cinematográficas (assim como literárias, teatrais, representativas de uma dada realidade do passado recente, de uma maneira geral) que mantenham isenta essa sociedade e consigam manter no campo de batalha apenas os dois supostos lados de uma batalha, devidamente enquadrados num arquétipo moral e ético que os definam e distanciam dessa sociedade. Essa perspectiva explicaria porque os filmes brasileiros que retratam os anos da ditadura civil-militar adquiriram características distintas ao longo das três décadas que nos separam da democratização. Explicaria também porque alguns deles alcançam sucesso de público, crítica e bilheteria, enquanto outros permanecem em estado de semianonimato.
5 Acontece que em cada momento histórico, a disputa pela memória desse período encontra-se em um determinado patamar o que sinaliza que ela ainda está em curso, renovando-se, adquirindo outros e mais outros significados e, além disso, as tramas em que os horrores da tortura aparecem confinados nos supostos porões, ou que a sociedade aparece de, alguma forma, da condição em que prefere permanecer, a de ignorante, tendem a ser mais bem aceitos. No caso de O que é isso companheiro? a retórica conciliadora falha homericamente em tentar retratar o guerrilheiro como jovem, confuso, assustado, incerto e praticamente um bobo, e o torturador, com a licença do trocadilho, o verdadeiro torturado por toda a carga existencial de angustias que seu ofício lhe confere. Apesar do eco positivo que isso tenha talvez encontrado na sociedade, dado o sucesso da produção, um olhar levemente mais crítico percebe a infelicidade inserida no discurso que, de tão simplista, reduz complexas relações, tensionadas por ideologias, projetos políticos e anseios de uma geração a equívocos rasos de personalidades pouco atraentes. Voltando, contudo, à questão da memória, como bem observou Pollak, o que está em jogo em relação a ela é também um sentido de identidade individual e do grupo 8, já que à esse indivíduo ou grupo é veiculada uma memória, forjada por si ele mesmo ou por outros. Segundo o autor, ainda que o ator social dessa memória deixe de existir, ela persiste, enquanto mito. Nesse sentido a imposição de uma memória que existe em O que é isso companheiro?, ainda que se alegue não ser a intenção é instrumento de rearranjo e enquadramento de uma memória. E, considerando a História como uma articulação do passado, prescrito na narrativa, dada a impossibilidade de reconstituição fiel dos fatos 9, o filme presta um desfavor à leitura desse passado recente e, não seria ousado dizer, comete um desrespeito aos atores sociais envolvidos, isentando-se de responsabilidade sob a égide da ficção artística. Melhor exemplo, contudo, do discurso implícito na constituição da trama e dos personagens, discurso esse que legitima uma memória, é o contra-ataque deferido ao , 9 GAGNEBIN, 2006.
6 longo do intenso debate que sucedeu o lançamento do filme. O livro Versões e ficções: o seqüestro da história, reúne textos, artigos e entrevistas que questionam o filme e sinalizam que essa memória ainda está em disputa. A partir da leitura dos textos que compõe o livro, além de uma análise retrospectiva dos fatos, que nos possibilita um outro ângulo interpretativo e, conseqüentemente, uma crítica ao filme, é possível perceber as reações de diversos envolvidos no episódio, assim como intelectuais especialistas no período, à essa tentativa de enquadramento de memória. Daniel Aarão Reis, historiador e quadro dirigente do MR8 10 da ocasião do seqüestro do embaixador, em entrevista reproduzida no referido livro, declara que: Acho que esse filme se insere numa tendência que é marcante no Brasil de hoje, de recuperação dos anos 60 sob um prisma conciliador. Acho que, como sempre, há uma luta em torno da apropriação do passado 11 O ex-guerrilheiro prossegue a reflexão dizendo que uma das tendências em disputa, presente no livro de Gabeira e reproduzida de forma radicalizada no filme, insere no período um caráter alegre, conciliador. Isso explica, em parte, a ausência de conflitos entre os guerrilheiros, que são retratados como romanticamente equivocados, com a exceção, evidentemente, do personagem Paulo, codnome de Gabeira, que é dotado de uma consciência crítica única, e de Jonas, retratado como um brucutu sádico. Outro aspecto levantado por Aarão é a imagem, que o filme passa, da tortura como uma decisão individual do torturador, e não como uma política sistêmica de Estado. Na memória conciliadora da ditadura e dos anos 60, é recorrente a tentativa de descolar a tortura da política de Estado, assim como confiná-la aos porões, isentando assim, também, a sociedade. No mesmo livro há um artigo de Marcelo Ridenti, em que a pretensão a mero entretenimento que o diretor e os produtores do filme se agarram, é questionada. Não 10 Movimento Revolucionário 8 de Outubro que, junto com a Aliança Libertadora Nacional(ALN), é o grupo responsável pela ação. 11 REIS, Daniel Aarão, GASPARI, Elio, BENJAMIN, César, MARTINS, Franklin, MAGALHÃES, Vera Lúcia, SALEM, Helena, LEITE, Paulo Moreira, NAHAS, Jorge, RIDENTI, Marcelo, FREIRE, Alipio, HORTA, Celso, SADER, Emir, ALMADA, Izaías, LINS, Consuelo, PIVETA, Idibal, MUNIZ, Dulce, TAPAJÓS, Renato, TORRES, Claúdio e BUCCI, Eugênio. Versões e ficções: o seqüestro da História. 2 Ed. São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo: p. 86.
7 obstante os problemas já mencionados, Ridenti observa que o objetivo declarado de fugir ao maniqueísmo dos personagens, não é alcançado, na medida em que Jonas é claramente um monstro, em relação ao conflituoso torturador Henrique e ao refinado intelectual Paulo. 12 A apresentação de um torturador em crise de consciência, contraposta a de um guerrilheiro monstruoso, mediada por outro guerrilheiro racional, no sentido de expor várias faces da mesma moeda, como se os lados em que os indivíduos tenham se posicionado no período não significassem uma oposição entre o bem e o mal, é sintomática para a saída conciliadora a que tende nossa sociedade. Atribuí-se a ações individuais, escolhas, desvios de caráter e opiniões pessoais o que é parte de um processo político complexo, envolto em disputas ideológicas e que envolvia a sociedade como um todo. Como bem coloca Aarão, a discussão fundamental do filme não é quem escreveu o quê ou quem teve tal ou qual idéia, mas a proposta de memória que ele apresenta para os anos 60 e para o embate ideológico que caracterizou a década. 13 A análise acerca desse debate entre memórias poderia se estender longamente, incluindo a sugestão à redução do papel de militantes femininas à estratagemas sensuais, a atribuição da autoria da ação e do manifesto à quem não era autor de nada, a figura plácida, sábia e compreensiva atribuída ao embaixador e muitos outros elementos sintomáticos e problemáticos. Por ora cabe, no entanto, apenas frisar que, dada a proximidade das produções cinematográficas com os contextos e condições sociais e políticas em que surgem, elas representam uma possibilidade de compreensão das realidades sociais, na qual figuram lutas e embates ideológicos daquele momento. Transferindo essa lógica para O que é isso, Companheiro?, percebe-se que tão conflituosa como a relação entre Estado, resistência e sociedade nos anos de ditadura, é, ainda hoje, a relação dessas memórias. Não existe uma lei, que não a ética, que regulamente a apropriação de fatos para a alegoria cinematográfica e, cada vez mais, a prerrogativa de narrar, reproduzir ou 12 Idem. p Idem. p. 91.
8 divulgar a História, deixa de ser do historiador. Isso de forma nenhuma pode ser encarado como algo negativo, apesar dos riscos que uma obra difundida massivamente, que alcança muito mais pessoas que um artigo do Marc Ferro, apresenta para a formulação e cristalização de uma memória nada crítica. Cabe ao historiador, no entanto, analisar essas obras sob o prima das representações sociais que elas encarnam, mais evidentes no que diz respeito ao tempo em que foram produzidas do que ao tempo que retratam. Cabe ao historiador levantar do tatame a outra, as outras memórias e tornar evidente o combate. Bibliografia REIS, Daniel Aarão, GASPARI, Elio, BENJAMIN, César, MARTINS, Franklin, MAGALHÃES, Vera Lúcia, SALEM, Helena, LEITE, Paulo Moreira, NAHAS, Jorge, RIDENTI, Marcelo, FREIRE, Alipio, HORTA, Celso, SADER, Emir, ALMADA, Izaías, LINS, Consuelo, PIVETA, Idibal, MUNIZ, Dulce, TAPAJÓS, Renato, TORRES, Claúdio e BUCCI, Eugênio. Versões e ficções: o seqüestro da História. 2 Ed. São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo: KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Estudos culturais: identidade política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP, EDUSC: GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Ed. 34, POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n 3, p FERRO, Marc. O filme uma contra-análise da sociedade?. In. LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novos objetos.
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