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1 BuscaLegis.ccj.ufsc.br O companheiro como herdeiro legítimo no Código Civil de 2002 Rogério Dell Isola Cancio da Cruz * O Código Civil de 2002 tratou da sucessão do companheiro no direito brasileiro de maneira, no mínimo, curiosa, provocando o legislador algumas disparidades. Antes de analisar essa sucessão, faz-se necessário expor um breve histórico da união estável e definir sua aplicação nos dias de hoje. O antigo Código Civil não previa a união estável, reconhecendo o concubinato como a única forma de relação extramatrimonial. A Constituição da República de 1988, em seu artigo 226, 3º, reconheceu a união estável como entidade familiar, mas faltava ainda uma lei para regulamentar tal dispositivo. Primeiro, surgiu a Lei de 1994 que veio para regular o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão. Posteriormente, foi editada a Lei em 1996 com o objetivo de regular o dispositivo constitucional acima mencionado. Por fim, o Código Civil de 2002 veio a regular a união estável e sua sucessão. A união estável está conceituada no Novo Código Civil em seu artigo 1.723: "Art É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família." Assim, para a constituição da união estável, necessário se faz o preenchimento do requisito da convivência pública, contínua, duradoura e com o objetivo de constituir família. Outro requisito, previsto no 1º do mesmo artigo, é a não ocorrência de impedimentos para o
2 matrimônio, trazidas pelo art , com exceção do inciso VI. Esta exceção se justifica, pois, a união estável é reconhecida entre pessoas casadas desde que separadas de fato. Esta última condição é justamente o requisito que faz diferir a união estável do concubinato, que não é considerado uma entidade familiar. Temos ainda, como deveres dos companheiros na constância da união estável a lealdade, o respeito e a assistência entre eles, e a guarda, o sustento e a educação dos filhos. Na falta de contrato escrito regulando o regime de bens a ser adotado pelo casal, o Código define o de comunhão parcial, no que couber, como regime legal. Por fim, o artigo do Código Civil regula a parte final do 3º do artigo 226 da Constituição Federal, dispondo como ocorrerá a conversão da união estável em casamento: pedido dos companheiros ao juiz e assento no registro civil. A sucessão do companheiro no Código Civil Inicialmente, cabe uma crítica ao legislador no tocante à sistematização do Código. O dispositivo que trata da sucessão do companheiro está inserido nas disposições gerais do Título I, "Da Sucessão em Geral", do livro das sucessões. Melhor teria procedido o legislador inserindo o dispositivo no Título II, "Da Sucessão Legítima", no Capítulo I, "Da ordem da vocação hereditária". O artigo do Código Civil prevê como o companheiro sobrevivente irá participar da sucessão: "Art A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
3 II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança." Ao examinar o caput do dispositivo mencionado, vemos que o companheiro só participará da sucessão sobre os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável. Temos que analisar profundamente este artigo para entender qual foi a intenção do legislador ao estabelecer esta limitação. Duas interpretações são possíveis para o caput deste artigo. A primeira é que o companheiro só será herdeiro legítimo se, à época da morte do autor da herança, existirem bens comuns ao casal. Ou seja, o companheiro sobrevivente só participará da herança sobre a meação que caberia ao companheiro falecido. Admitindo esta interpretação, caso os companheiros tivessem acordado quanto ao regime de separação de bens para aplicar às relações patrimoniais, o cônjuge sobrevivente nunca teria direito à sucessão. A outra interpretação possível é que, independente do regime adotado pelos companheiros, o sobrevivente terá direito à herança sobre os bens adquiridos na vigência da união estável. Assim, ainda que o bem seja particular de um companheiro, mas adquirido onerosamente após a constituição da união, terá o outro direito de participar de sua sucessão. Para melhor interpretação deste artigo, podemos usar a analogia com a sucessão do cônjuge, levando-se em conta que a Constituição deu a mesma magnitude à união estável e ao casamento. Na sucessão do cônjuge, a lei prevê que ele participará da sucessão de todos os bens do falecido, exceto em alguns poucos casos. Assim, tendo duas interpretações possíveis para a sucessão do companheiro, devemos utilizar a que mais se coaduna a Constituição, ou seja, a segunda acima explicitada.
4 Da concorrência com os descendentes Havendo descendentes sobreviventes, o companheiro com esses concorrerá como herdeiro. O código trouxe nos incisos I e II do artigo duas hipóteses; o companheiro concorrendo com filhos seus e do autor da herança, e concorrendo com descendentes apenas do falecido: "Art A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;" Na primeira hipótese devemos, primeiramente, entender filhos como qualquer herdeiro descendente, sob pena de causarmos uma aberração jurídica ainda maior. Nesta hipótese, o companheiro terá direito a uma quota parte igual à dos descendentes quando estes forem comuns ao casal. Na segunda hipótese, trazida pelo inciso II, o companheiro terá direito a quota parte equivalente à metade da quota atribuída a cada descendente. Surge mais um problema na interpretação ao se conjugar estes dois incisos. Como será dividida a herança quando existirem tanto descendentes comuns quanto descendentes só do falecido concorrendo com o companheiro? Uma coisa é certa, todos os filhos terão que herdar quotas iguais, pois a Constituição Federal proíbe, em seu artigo 227, 6º, a discriminação de filhos, qualquer que seja sua procedência, merecendo todos os mesmos direitos. O problema, então, se volta para a quota parte do companheiro. Será ela equivalente à dos descendentes ou corresponderá à metade do que a eles couber?
5 No parecer deste analista, a melhor interpretação para esta questão, é considerar todos os descendentes como se exclusivos do de cujus fossem, recebendo o companheiro metade do que couber a cada descendente. Isto porque, utilizando-se esta exegese, o companheiro sairia prejudicado, mas a perda dar-se-ia em favor de seus descendentes. Aplicando-se a outra interpretação cogitada, os descendentes exclusivos seriam prejudicados, perdendo parte de sua quota para o companheiro. Assim, mais justo parece a primeira interpretação, visto que a perda do companheiro seria em favor de um membro de sua família. Da concorrência com outros parentes sucessíveis Não havendo descendentes para suceder o autor da herança, serão chamados, em concorrência com o companheiro, os outros parentes sucessíveis. São eles os ascendentes e os parentes colaterais até o 4º grau, sendo que os parentes de grau mais próximo excluem os de grau mais distante. Assim é a previsão do inciso III do artigo do Código Civil: "Art A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;" Nesta situação, o companheiro sempre vai receber a mesma quota parte, qual seja um terço da herança. Não importa se estiver concorrendo com os ascendentes ou com um tio-avô do falecido, sua parte será sempre a mesma. Neste dispositivo, parece que o legislador também não agiu de forma acertada, pois pode gerar situações incoerentes. Considerando duas hipóteses como exemplo: Na primeira, o autor da herança morre deixando para sucedê-lo o companheiro e um filho comum. Neste caso cada um receberia metade da herança. Na segunda hipótese, o falecido deixa o companheiro e um primo. Aqui o companheiro receberia um terço da herança enquanto o primo receberia dois terços. Por esses exemplos podemos ver que, em concorrência com o companheiro, o legislador optou
6 por dar mais vantagens a um parente colateral de quarto grau do que a um descendente. E mais, pelo segundo exemplo verificamos que o Código também favoreceu um parente colateral em detrimento do companheiro. Por situações como estas, parece-nos que o legislador pecou ao redigir este inciso. Do companheiro como único herdeiro Por fim, o artigo 1.790, em seu inciso IV, prevê o companheiro com herdeiro do total da herança quando não houver outros parentes sucessíveis: "Art A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança." Ao interpretar este inciso, conjuntamente com o caput do artigo, chegaríamos à conclusão de que a expressão "totalidade da herança" se refere apenas aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável. Não parece essa, a nosso ver, a interpretação mais correta. Sendo este o último inciso do artigo, teríamos que considerar que, os bens particulares do de cujus, não sendo herdado pelo companheiro, teriam de ser considerados como herança jacente e transferidos ao ente público, conforme previsto no artigo do Código Civil. Ocorre que, em todo o capítulo VI do Código Civil, "Da Herança Jacente", os artigos trabalham com a hipótese da totalidade da herança ser jacente, não podendo, assim, considerar apenas parte dela como tal. Assim, interpretando o último inciso do artigo em conjunto com o Capítulo VI do Título I do Livro V do Código Civil, entenderemos a expressão "totalidade da herança" como todos os bens do falecido, englobando tanto os bens particulares como os adquiridos onerosamente na constância da união estável. Do direito real de habitação
7 A Lei 9.278, de 10 de maio de 1996, regulava o 3º do artigo 226 da Constituição Federal. Ela foi quase toda revogada com a entrada em vigor do Novo Código Civil. Ocorre que, como o Código de 2002 não tratou do direito real de habitação do companheiro sobrevivente de forma diversa, o parágrafo único do artigo 7º daquela lei continua em vigor: "Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado à residência da família." Assim, quando ocorrer a morte de um dos companheiros, ao outro caberá o direito real de habitação em relação ao imóvel no qual residiam como família. Mesmo que não tenha direito de herdar este imóvel, ou herdando apenas parte dele, os outros proprietários terão de respeitar o direito do companheiro sobrevivente de nele habitar. Este direito durará enquanto viver o sobrevivente ou enquanto ele não constituir nova união estável ou casamento. Disparidades nas sucessões do companheiro e do cônjuge O Código Civil trata de forma diferente a sucessão do cônjuge e a do companheiro. Ocorre que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, definiu tanto o casamento como a união estável como sendo entidades familiares, não estabelecendo preferências entre elas. Alguns doutrinadores acreditam que a Constituição Federal tratou estes institutos de forma diferente, dando preferência ao casamento em detrimento da união estável. Eles se apóiam na parte final do 3º do artigo 226, que determina que a lei facilite a conversão da união estável em casamento, afirmando que esta conversão deve ser facilitada, pois a Constituição privilegiou o casamento à união estável. Na verdade, o que difere as duas entidades familiares é o seu modo de formação. A "preferência" pelo casamento se dá porque o modo de formação dele gera maior segurança jurídica, sendo documentada a prova do enlace, do
8 regime de bens e da data da constituição. Assim, esta facilitação da conversão foi prevista na Constituição tendo como motivação a segurança jurídica gerada pelo modo de formação do casamento, e não por qualquer outra preferência. Isto posto, podemos concluir que, de acordo com a Constituição da República, as famílias estabelecidas no casamento e na união estável são idênticas nos vínculos de afeto, dignidade, solidariedade e respeito. Não pode o legislador infraconstitucional contrariar esta igualdade, estabelecendo melhores condições para o cônjuge em detrimento ao companheiro. Ao tratar de forma diferenciada a sucessão dos cônjuges e a dos companheiros, o legislador agiu equivocadamente. Este lapso ocorreu, porque a emenda para incluir o artigo no projeto do Código Civil foi apresentada no Senado antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, e não foi posteriormente modificada. Para reparar esta inconstitucionalidade, entendemos que não deve ser aplicado o artigo ao caso concreto, equiparando o companheiro ao cônjuge e, assim, aplicando-se-lhe as disposições do Título II do Livro do direito das sucessões, que versam sobre a sucessão legítima. Após tanto criticar o legislador neste artigo, vale a pena aduzir que existem dois projetos na Câmara dos Deputados visando modificar a redação desse artigo, acabando com sua inconstitucionalidade. São eles o Projeto de Lei 276/20007 e o Projeto de Lei 508/2007. O primeiro propõe alterar a redação do artigo para: "Art O companheiro participará da sucessão do outro na forma seguinte: I - em concorrência com descendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes, salvo se tiver havido comunhão de bens durante a união estável e o autor da herança não houver deixado bens particulares, ou se o casamento dos
9 companheiros se tivesse ocorrido, observada a situação existente no começo da convivência, fosse pelo regime da separação obrigatória (art ); II - em concorrência com ascendentes, terá direito a uma quota equivalente à metade do que couber a cada um destes; III em falta de descendentes e ascendentes, terá direito à totalidade da herança. Parágrafo único. Ao companheiro sobrevivente, enquanto não constituir nova união ou casamento, será assegurado, sem prejuízo da participação que lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único daquela natureza a inventariar." Apesar da intenção do legislador de melhorar o artigo, continuaria ele inconstitucional por diferenciar o cônjuge e o companheiro no tocante à sucessão. Melhor sorte tem o segundo projeto. Ele propõe a exclusão do artigo do Código Civil e apresenta alterações nos artigos que tratam da sucessão do cônjuge, incluindo o companheiro nestes dispositivos. Com as alterações do segundo projeto, a sucessão dos companheiros seria equivalente à dos cônjuges, acabando, assim, com a referida inconstitucionalidade. Referências ANTONINI, Mauro. Arts a 2027 Sucessões. In: PELUSO, Ministro Cezar (Coord.). Código Civil Comentado Doutrina e Jurisprudência. 2 ed. Barueri: Manole, CATEB, Salomão de Araújo. Direito das Sucessões. 4 ed. São Paulo: Atlas, DANTAS JR, Aldemiro Rezende. Sucessão no Casamento e na União Estável. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas Atuais de Direito e Processo de Família Primeira Série. 1 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2004.
10 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, * Advogado Bacharel em Direito pela UFMG Disponível em: Acesso em: 15 maio
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