PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Transcrição

1 fls. 1 Registro: ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos do Agravo de Instrumento nº , da Comarca de Franca, em que é agravante CREDIT BRASIL FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS MULTISETORIAL, é agravado SCHIO-BERETTA BRASIL INDUSTRIA E COMERCIO DE CALÇADOS LTDA (EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL). ACORDAM, em 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso. V. U.", de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão. O julgamento teve a participação dos Exmo. Desembargadores ENIO ZULIANI (Presidente sem voto), FRANCISCO LOUREIRO E FORTES BARBOSA. São Paulo, 6 de fevereiro de Teixeira Leite RELATOR Assinatura Eletrônica

2 fls. 2 Voto nº RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Determinação para que a faturizadora deposite nos autos os valores relativos aos créditos supostamente entregues em garantia fiduciária de mútuo. Alegação da faturizadora de inexistência de contrato de mútuo garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios. Decisão reformada. Contrato de factoring. Faturizadoras e securitizadoras que adquirem da recuperanda, a título definitivo e oneroso, créditos representados por títulos, pagando por isso soma em dinheiro. Inaplicabilidade do art. 49 3º da LRF, do art º do CC ou das súmulas TJSP nº 60 e 62. Empresas que não são instituições financeiras. Recurso provido. CREDIT BRASIL FUNDO DE INVESTIMENTO EM DIREITOS CREDITÓRIOS MULTISETORIAL agrava da decisão pela qual o d. Magistrado, nos autos da recuperação judicial de SCHIO-BERETTA BRASIL INDÚSTRIA E COMÉRCIO DE CALÇADOS LTDA. e OUTRAS, deferiu pedido formulado pelas recuperandas, para "determinar que as instituições financeiras relacionadas no documentos nº 10, repassem às recuperandas os valores recebidos (vencidos e a vencer) de títulos sujeitos a esta recuperação judicial, efetuando os respectivos depósitos dos valores indicados no quadro I (fls. 30)" (fls. 98/99), em conta à disposição do Juízo (fls. 102). Assim o determinou, convencido de que se trata de cessão fiduciária de direitos creditórios (trava de domicílio bancário), cujos instrumentos não foram levados a registro pelas credoras. Inconformada, alega que não se trata de cessão h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

3 fls. 3 fiduciária de direitos creditórios, mas sim de cessão definitiva e onerosa de direitos creditórios (art. 286 CC), não sendo seu crédito alcançado pelos efeitos da recuperação judicial concedida às agravadas. Assim, a decisão agravada fere seus direitos de proprietária dos créditos cedidos, pelos quais pagou às recuperandas. Recurso processado no efeito suspensivo (fls. 270/271) e respondido pela recuperanda (fls. 276/285) e pelo Administrador judicial (fls. 287/290). Parecer da d. Procuradoria Geral de Justiça, pelo provimento do recurso (fls. 293/297). É o relatório. A agravada/recuperanda defende que o contrato celebrado com a agravante é, em verdade, um mútuo garantido por cessão fiduciária de direitos de crédito maquiado de contrato de factoring. Argumenta que, independentemente do nome que se lhe atribui, importa a natureza jurídica do negócio celebrado. E, sendo mútuo garantido por cessão fiduciária de direitos de crédito, o contrato deveria ter sido registrado no RTD de seu domicílio antes do ajuizamento do pedido de recuperação, para que pudesse ser excluído de seus efeitos, o que não ocorreu na hipótese dos autos (art. 49 3º LRF c/c art º CC e súmula 60 TJSP). A tese foi acolhida pelo d. Juízo de origem, que proferiu a decisão ora agravada. Pois bem. A nosso ver, assiste razão à agravante, h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

4 fls. 4 respeitado o entendimento do d. Magistrado. O contrato de fomento mercantil (ou faturização ou factoring) "pode ser definido como aquele em que uma das partes, designada faturizado, em geral um empresário, cede à outra, designada faturizador e não necessariamente empresário, créditos originários de vendas por ela efetuadas a terceiros, podendo ainda o faturizador prestar serviços de assessoria e gestão de créditos e pagamentos ao faturizado, promovendo também a sua cobrança extrajudicial contra terceiros" (FÁBIO BELLOTE GOMES, Manual de direito empresarial, 3ª ed., São Paulo: RT, 2012, p. 299). Ao celebrar contrato de fomento mercantil, a faturizadora, além de prestar serviços de administração do crédito e garantir o pagamento das faturas, assume os riscos do inadimplemento dos sacados/devedores. Ou seja, na taxa de serviço, já está incluído o percentual de risco da atividade, não podendo a faturizadora, se não receber o crédito do sacado, voltar-se contra o faturizado para lhe cobrar. A situação é diversa no contrato de desconto, em que a instituição bancária permanece com o direito de regresso contra o cliente descontário: O contrato bancário assemelhando ao fomento mercantil é, sem dúvida, o desconto. A principal diferença está no direito de regresso, na hipótese de inadimplemento pelo terceiro devedor, que não existe na faturização, mas está presente no desconto. De fato, enquanto a faturizadora garante o recebimento do valor faturizado, mesmo se inadimplemente ou insolvente o devedor, o banco descontador não fornece essa garantia (FÁBIO ULHOA COELHO, Curso de direito comercial, vol. 3., 13ª ed., São Paulo: Saraiva, p. 164, d.n.). Distingue-se do desconto porque é uma cessão de crédito sem h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

5 fls. 5 direito de regresso contra o cedente (...). O cliente garante apenas a existência, legitimidade e validade do crédito, pois a cessão não é bonitas nomini (...). A operação é altamente vantajosa para o cedente ao prevenir o risco da falta de pagamento, ao proporcionar ao cedente imediato numerário, e ao liberar a empresa do serviço de cobrança das faturas (ORLANDO GOMES, Contratos, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 469, d.n.). Não se tratando de desconto bancário, em que o banco conserva direito de regresso contra o cliente, em caso de não pagamento da dívida representada pelo título ou pelo documento, mas de verdadeira compra dos créditos (função de garantia do factoring), têm-se situações distintas: a da transmissão do crédito simples e a da transmissão por endosso, em caso de títulos de crédito" (WALDÍRIO BULGARELLI, Contratos mercantis, p. 545, apud FÁBIO BELLOTE GOMES, op. cit., p. 299, d.n.). Ocorre que, no instrumento particular de contrato de compromisso de cessão de crédito (contrato de factoring) firmado entre agravante e agravada, há cláusula que garante à faturizadora o direito de regresso contra a faturizada (recompra), não só nas hipóteses de inexistência, invalidade e ilegitimidade dos títulos, mas também pela sua insolvência (cláusulas 4ª e 5ª, 2º e 3º; fls. 122), circunstância que, segundo a boa doutrina, desvirtua o contrato de factoring. Como se viu, apenas as instituições financeiras, no contrato de desconto, têm resguardado o direito de regresso contra o descontário; no fomento mercantil, o faturizador assume os riscos do inadimplemento do devedor/sacado. Por isso, o d. Juízo de origem atribuiu à relação negocial firmada a natureza jurídica de mútuo garantido por cessão fiduciária de direitos de crédito, que, por não ter sido, como tal, registrada, submete o crédito aos efeitos da recuperação judicial. h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

6 fls. 6 Contudo, não menos verdadeiro é que não há, ainda, lei específica a regular o contrato de factoring, razão pela qual não há direitos e obrigações definidos para faturizador e faturizado nessa espécie de relação negocial. A Lei 9.249/95 (que altera a legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas) apenas conceitua a atividade de factoring como "prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços", e normas expedidas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo BACEN ditam que as empresas de factoring não são instituições financeiras. A d. Procuradora de Justiça, em parecer minucioso, aponta para outra linha de raciocínio: o contrato firmado poderia ser classificado como contrato de securitização: "No direito norte-americano, 'constituem securities não somente os títulos tradicionalmente emitidos por uma sociedade anônima (como ações e debêntures), mas também 'qualquer contrato de investimento', considerando-se como tal, via de regra, aquele correspondente a um investimento em dinheiro em um empreendimento comum, cujos lucros dependam, essencialmente, dos esforços de terceiros 1. h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

7 fls. 7 Com a Lei /2001 consideram-se valores mobiliários não apenas aqueles que assim foram definidos pela legislação anterior (v.g. Lei 6.385/1976, Dec.-Lei 2.286/1986), mas qualquer contrato de investimento oferecido a investidores, que aplicam os seus recursos na expectativa de obter lucro, sem controle direto sobre o empreendimento, uma vez que o responsável pelo sucesso do negócio é o empreendedor. Vale dizer, empresas securitizadoras não se confundem - necessariamente - com factorings. (...) É certo que nas operações de recebíveis (receivables), também são consideradas as operações de factoring, permitindo às empresas que necessitam de capital de giro obtenção de recursos de maneira mais fácil, entretanto, envolvem operação de risco por parte do faturizador, tanto que não se admitem garantias adicionais. Já a securitização de recebíveis, corresponde a um processo de transformação de um conjunto de créditos presente e futuros em garantia ou investimentos, cuidando-se de alternativa aos empréstimos tradicionais, porém, permite ao estruturador da operação solicitar garantias adicionais para absorver eventuais riscos". Em suma, ainda que, doutrinariamente, haja cláusulas no instrumento em questão que poderiam macular a natureza jurídica de contrato de fomento mercantil, ou, de outro lado, se se tratar, de fato, de contrato de securitização, nem em um, nem em outro há exigência legal de registro no Registro de Títulos e Documentos do h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

8 fls. 8 domicílio do devedor. Nesse sentido, é também a opinião da d. Procurador de Justiça: "De todo modo, não há qualquer exigência legal de que os contratos - quer sejam os de factoring, quer os firmados com securitizadoras -, sejam levados a registro para o fim de excluí-los da recuperação judicial (...)". Situação diversa haveria se houvesse sido firmado instrumento conferindo ao faturizador a qualidade de proprietário fiduciário dos títulos entregues em troca de dinheiro. Não sendo essa a hipótese, não se mostra razoável surpreender o faturizador ou o securitizador, tratando o contrato por ele firmado como mútuo garantido por cessão fiduciária de títulos de crédito. Como defende a agravante, por meio do contrato firmado houve a cessão definitiva e onerosa dos direitos de crédito representados pelos títulos. Por consequência, evidentemente, não deverá querer habilitar-se na recuperação para receber o crédito relativo aos títulos inadimplidos pelos sacados/devedores, sob pena de contradizer sua própria tese. Nesse vértice, pode-se dizer não serem aplicáveis aos contratos firmados pela recuperanda com faturizadoras ou securitizadoras o art. 49 3º da LRF, o art º do CC ou as súmulas TJSP nº 60 e 62. Ante o exposto, voto pelo provimento do recurso. TEIXEIRA LEITE h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9

9 fls. 9 Relator h Agravo de Instrumento nº Franca - voto nº /9